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Análise das ânforas identificadas nos contextos Contextos

3. O vinho itálico

A importação de contentores vinícolas da Península Itálica destaca-se no presente con- junto (58%), assumindo especial importância as ânforas do tipo Dressel 1 (34%), que preva- lecem em relação aos contentores ditos greco-itálicos (24%).

Ao determo-nos na análise do vinho itálico e dos seus contentores, não podemos deixar de ter presente que a sua chegada ao território actualmente português se inscreve no processo de conquista, não tendo aparentemente sido precedida por nenhuma distribuição relevante de natureza comercial, como ocorre em outras áreas do mundo romano (Fabião, 1998a, p. 175). Importa sublinhar esta ideia, visto os dados da estratigrafia do Castelo de São Jorge virem con- firmá-la. Embora as formas ditas greco-itálicas estejam bem representadas no conjunto dos con- textos identificados, trata-se de formas tardias dentro deste tipo, que surgem em contextos atri- buíveis a cronologias compatíveis com as primeiras campanhas militares no vale do Tejo.

3.1. Ânforas greco-itálicas

Este tipo foi pela primeira vez identificado por Fernand Benoit (1957, p. 251), através da análise do espólio do naufrágio do Grand Congloué, em Marselha, e corresponde a uma pro- dução pouco homogénea, de inspiração helenística, que se assume como o protótipo de que derivam as formas das ânforas itálicas durante a época republicana (Manacorda, 1981, p. 24). Desde a sua classificação inicial, tem sido de problemática definição, em grande parte devido à longa duração da sua produção e ao seu carácter de transição entre dois períodos históri- cos e culturais diferenciados (Asensio i Vilaró e Martín i Menéndez, 1998, p. 140), perti- nentemente registados na denominação de Fernand Benoit (1957).

A primeira tentativa de ordenação de uma tipologia deste grupo de ânforas foi desen- volvida por E. L. Will (1982), que propôs alicerçá-la em características morfológicas que esta- belecia cinco “variantes”, identificadas de A a E; infelizmente, esta tipologia nunca foi desen- volvida nem extensamente apresentada, tendo sido profusamente contestada, devido à sua fragilidade e falta de operacionalidade (Empereur e Hesnard, 1987, p. 25-28).

Recentemente, C. Vandermersch (1994), ao abordar a produção e a comercialização do vinho da Magna Grécia e Sicília entre os séculos IV e III a.C., contribuíu para a ordenação dos diferentes contentores deste tipo, produzidos nesta área numa perspectiva regional, sem outras pretensões, como o próprio afirma (Vandermersch, 1994, p. 21), de uma defini- ção tipo-cronológica deste tipo de ânforas.

Perante o actual estado da investigação acerca destes contentores e face à ausência de uma tipologia bem estruturada que diferencie as diversas produções e proveniências, man- tém-se a divisão tripartida “tradicional” deste grupo (Gateau, 1990, p. 165) entre ânforas greco-itálicas antigas, greco-itálicas de transição e greco-itálicas recentes, tendo em conta o seu perfil ao longo do tempo, apesar da fragilidade deste modelo.

A sua produção encontra-se atestada para a Sicília, assim como para diversas áreas da Península Itálica, com diversos centros produtores documentados através de um programa de prospecções sistemáticas (Hesnard e Lemoine, 1981; Hesnard et al., 1989). Parece con- centrar-se na costa tirrénica na região da Campania, sul do Lácio e Etrúria, embora deva ter sido igualmente fabricada na costa adriática (Cipriano e Carre, 1989 e Laubenheimer, 1990). Fora desta área, são conhecidas “imitações” destas formas no sul da Gália, onde se encontra documentada uma produção, datada de finais do século III a.C., na cidade de Marselha (Lau- benheimer, 1990), e na Península Ibérica (estas produções serão abordadas mais detalha- damente na análise das greco-itálicas hispânicas – ver 6.1.).

O seu fabrico inicia-se em finais do século IV a.C. e perdura até meados da segunda metade do século II a.C., colocando-se a transição entre esta forma e as Dressel 1 entre os anos 140/130 a.C. (Tchernia, 1986, p. 42; Sanmartí-Grego, 1985a, p. 151). Tendo em conta que os exemplares em estudo se enquadram dentro das produções tardias desta forma, penso ser pertinente determo-nos na análise do momento de transição deste modelo e do surgimento do primeiro contentor de criação genuinamente romana, a forma 1 da tabela de Dressel.

Esse momento é situado num breve espaço de tempo, tendo em conta os dados de três estações bem datadas por acontecimentos históricos, onde os dados da análise do panorama das importações vinárias itálicas aí presentes não parecem coincidir:

Em Cartago, destruída em 146 a.C. por Públio Cipião Emiliano, as greco-itálicas pre- dominam, registando-se a ausência da forma 1 de Dressel (Tchernia, 1986, p. 42)25.

Em Valentia, fundada em 138 a.C. por Decimus Junius Brutus, as recentes intervenções de arqueologia urbana têm vindo a revelar, nos níveis atribuídos à fundação da cidade, uma contemporaneidade das duas formas, embora as Dressel 1 pareçam aí dominar (Ribera i Lacomba, 1998).

Nos acampamentos do cerco da cidade celtibérica de Numância, destruída em 133 a.C., assiste-se à coexistência das duas formas, assumindo as Dressel 1 um papel de destaque (San- martí-Grego, 1985a,p. 151, 1992 p. 425-427).

Ocorre assim, tendo em conta estas balizas cronológicas e o claro predomínio que as Dressel 1 assumem ao longo do último quarto do século II a.C. em todo o Mediterrâneo, num período de cerca de onze anos, uma transição entre as formas herdeiras do mundo helenís- tico e aquela que é considerada a forma típica da “expansão territorial” romana ao longo de finais do século II a.C. e I a.C.

Importa reter que, mais do que uma transição entre duas formas distintas, consiste numa evolução contínua sem ruptura aparente que, tendo em conta quer os dados dos cen- tros produtores conhecidos (Hesnard e Lemoine, 1981) quer a análise das pastas da totalidade das ânforas exumadas nas intervenções do Castelo de São Jorge, terá ocorrido nos mesmos centros produtores, tendo coexistido durante cerca de uma década, e sendo produzidas e comercializadas nos mesmos circuitos de distribuição.

Essa continuidade a nível morfológico nem sempre torna clara a sua identificação, par- tindo de fragmentos de pequena dimensão, o que me levou a optar por seguir o método pro- posto por A. Hesnard e C. Lemoine (1981), criticado e desenvolvido por Sanmartí Grego (1985, 1992) e afinado por F. Gateau (1990), tendo em conta a relação altura do lábio espessura máxima do mesmo (Fig. 21). Segundo a proposta de F. Gateau, as ânforas cujo valor da rela-

ção fosse menor do que 1,2 seriam consideradas greco-itálicas, as que fossem iguais a 1,3 seriam consideradas formas de transição e as maiores de 1,4 seriam Dressel 1A26.

Para uma discussão das diferentes metodologias desenvolvidas para a distinção entre os dois grupos de ânforas, é interessante o recente trabalho de G. Maza (1998) sobre os contextos de Lyon, que assentam na análise de mais de mil indivíduos e que levaram o autor a comparar os diferentes métodos e a sua eficácia, considerando o método de F. Gateau o único que per- mitia uma cabal distinção entre as ânforas greco-itálicas e as primeiras formas das Dressel 1 de fabrico itálico (Maza, 1998, p. 28).

3.2. Ânforas Dressel 1 itálicas

Individualizado pela primeira vez na tabela de Heinrich Dressel (1899) sob o número 1, foi posteriormente subdividido por Nino Lamboglia (1955) e Fernand Benoit (1957) em três tipos distintos (A, B e C) a que Peacock e Williams (1986) atribuem as suas classes 3, 4 e 5. Esta divisão tripartida, elaborada a partir da análise do espólio dos primeiros naufrágios des- cobertos no Mediterrâneo, teve por base a observação de exemplares inteiros, privilegiando o estudo dos bordos (sobretudo a sua altura e inclinação) e negligenciando outros critérios morfológicos como os fundos e os ombros.

Embora contestada desde cedo (Manacorda, 1981, p. 23-24; Panella, 1981, p. 58), esta tipologia tem vindo a ser aceite, ainda que as suas insuficiências e a falta de operacionalidade para lidar com o material fragmentário exumado nas intervenções arqueológicas em sítios terrestres tenha conduzido diversos investigadores a recorrer a análises matemáticas e a rege- rem-se por resultados quantificáveis e índices métricos para uma distinção dos diversos tipos (Gateau, 1990; Maza, 1998). No entanto, a multiplicação de tipologias paralelas está longe de clarificar a situação, sublinhando as dificuldades de atribuição de muitos fragmen- tos a um ou a outro tipo.

A sua produção está atestada numa vasta área geograficamente contínua, nas costas tir- rénicas da Península Itálica, desde a região de Pisa até à Calábria, sendo conhecidos inúme- ros centros produtores (Hesnard e Lemoine, 1981; Olmer, 2003), infelizmente nunca alvo de um estudo exaustivo, que produziram diversas variantes, numa aparente continuidade desde os modelos greco-itálicos. Um recente trabalho, que cruzou a informação existente entre os centros de produção conhecidos e determinados sítios de consumo (Hesnard et al., 1989), veio, de uma forma esclarecedora, demonstrar a existência de uma enorme quantidade de centros produtores, que poderia ultrapassar a centena.

Face a esta multiplicidade de proveniências que terão certamente influenciado os crité- rios morfológicos, não faz sentido continuar-se a descurar as características das argilas, como se todas as ânforas viessem de um mesmo centro produtor. Tendo em conta esta rea-

FIG. 21 – Esquema descritivo das principais medidas efectuadas sobre os fragmentos de bocais de ânforas do tipo Greco-Itálico e

lidade, L. Benquet e F. Olmer (2002, p. 297) salientam que não serão somente três os tipos de ânfora que terão sido produzidos, mas seguramente muitas dezenas de variantes, podendo os seus critérios morfológicos estar sujeitos a diversas variáveis: localização geográfica do cen- tro produtor, a sua cronologia, a qualidade dos seus produtos, o seu dinamismo, etc.

Outro factor inerente à discussão da tripartição tradicional desta forma é o valor crono- lógico geralmente atribuído aos seus diferentes tipos, o que conduz a que sejam utilizados para datar os níveis em que são exumados. Também este pressuposto está longe de com- provado nas suas diversas acepções, como as recentes escavações em Lyon têm vindo a con- firmar (Mandy et al., 1987/88), com o estudo de contextos fechados em que a contempora- neidade de diferentes variantes formais não é compatível com a proposta de Lamboglia (1955).

Perante estes dados, diversos investigadores têm vindo a pôr em causa a operacionali- dade da divisão tradicional tripartida de N. Lamboglia (1955), recuperando a antiga denomi- nação de “Dressel 1 itálicas” (Hesnard et al., 1989; Fabião, 1998b; Olmer, 1998; Benquet e Olmer, 2002). Esta designação, que adoptámos para o presente trabalho, engloba, em si mesma, diferentes morfologias e não põe em causa a variação formal, empiricamente obser- vável, em diferentes formas pertencentes a “uma família comum”; questiona, isso sim, a per- tinência da sua distinção no actual estado dos conhecimentos.

Apresenta-se particularmente interessante para esta discussão o método de registo desenvolvido por F. Olmer (1998) a partir do estudo do povoado gaulês de Bibracte (Mont- Beuvray), que consiste no agrupamento e análise de todos os fragmentos com característi- cas específicas definidoras da forma (bocal, colo, ombro, asa e fundo), por grupos de pastas, e de os quantificar metricamente. Este método permite definir diversas variantes dentro das Dressel 1, possibilitando a sua comparação com outras estações, associando-as a áreas de pro- dução e deixando antever um grande número de variantes morfológicas dentro desta forma, onde o factor proveniência não é de todo dispiciendo mas cujo real significado, de momento, se nos escapa.

No que diz respeito à sua cronologia, trata-se de produções bem conhecidas, normal- mente conotadas com os primeiros momentos de contactos com o mundo romano. A sua pro- dução, tal como vimos para as greco-itálicas, iniciou-se em meados do terceiro quartel do século II a.C., assumindo o papel de contentor por excelência da exportação do vinho pro- duzido nas grandes villae republicanas da zona da Etrúria, Campânia e Lácio (Tchernia, 1986) ao longo do último quartel do século II a.C., papel esse que mantém até meados da segunda metade do século I a.C. (Desbat, 1998)27.

3.3. Análise dos grupos de fabrico identificados

A análise macroscópica da totalidade dos fragmentos de ânforas vinárias itálicas identificados permitiu reconhecer e caracterizar diferentes grupos de pastas, que deverão corresponder a diferentes fabricos e, possivelmente, a diferentes proveniências e conteú- dos vinícolas28. A caracterização dos fabricos com que foram produzidos os contentores aqui representados permite observar diversas realidades, nomeadamente a coexistência das mesmas pastas nos exemplares ditos greco-itálicos e nos da forma 1 de Dressel. De facto, os grupos 3, 4, 5 e 6 surgem em ambas as produções, sendo característicos dos modelos greco-itálicos os grupos 1 e o 229. Tal situação não é de estranhar, visto que os dois tipos sur- gem representados nos mesmos centros produtores da costa tirrénica (Hesnard et al., 1989).

QUADRO 11

Análise dos diversos grupos de fabrico identificados para as ânforas vinárias itálicas.