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PARTE I FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

1. A Traumatologia Forense

2.3. Principais crimes que podem provocar danos físicos sem que deles resulte

2.3.3. Violência doméstica

Com a alteração ao Código Penal pela Lei nº 59/2007, surge o art. 152º. Este artigo responde à necessidade de se punir criminalmente os casos mais chocantes de maus tratos na violência doméstica.

Este crime pode concorrer com o de ofensa à integridade física, ficando então consumido aquele que for passível de punição menos gravosa. Existem no entanto algumas diferenças significativas entre ambos: enquanto o crime de ofensa à integridade física pode ser cometido por negligência, o crime de violência doméstica previsto no referido artigo é essencialmente doloso; por outro lado, o crime de ofensa à integridade física pode ser cometido através de um só ato, enquanto que o crime de violência doméstica pressupõe um carácter de habitualidade, havendo, normalmente reiteração das condutas.

Importa considerar, ainda, a nova redação do tipo legal, previsto no nº1 desse artigo, que integra nas suas alíneas uma multiplicidade de possíveis sujeitos passivos do crime, filiados numa relação, presente ou pretérita, de conjugalidade ou união de facto, mesmo sem coabitação, ou numa relação de mera coabitação latu sensu, com pessoa particularmente indefesa.210

Nestes casos, o bem jurídico, enquanto materialização direta da tutela da dignidade da pessoa humana, (particularmente a saúde, compreendendo-se neste conceito o bem-estar físico, psíquico e mental), implica que a norma incriminadora

207

FIGUEIREDO DIAS, J., Op. cit. 153, pp. 684-692.

208

GONÇALVES, M.L.M., Op. cit. 154, pp. 130-137.

209

in Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, Proc. nº 243/96, de 22 de Maio de 1996. 210

apenas preveja as condutas efetivamente maltratantes, ou seja, que coloquem em causa a dignidade da pessoa humana, conduzindo à sua degradação pelos maus tratos.

A tutela do bem jurídico é projetada numa relação de afetividade ou coabitação, que pode materializar-se em casamento ou relação análoga, com ou sem coabitação, ou em mera coabitação quando a vítima seja pessoa particularmente indefesa. Sempre pressupondo um nexo relacional, presente ou pretérito, de vida em comum, numa aceção ampla do termo.

Relativamente à factualidade típica do crime de violência doméstica, exige-se que sejam infligidos a outra pessoa maus-tratos físicos ou psíquicos. Trata-se de um crime de execução não vinculada, podendo os maus tratos físicos ou psíquicos consistir nas mais variadas ações ou omissões. Sendo um crime de execução não vinculada, especifica-se agora que os maus tratos poderão incluir castigos corporais, estando em causa, o poder funcional de correção dos pais.211

O Dr. Plácido Conde Fernandes, Procurador-Adjunto e Docente no Centro de Estudos Judiciários, esclarece clara e sucintamente a violência doméstica no novo quadro legal 212:

“Embora a violência seja um fenómeno generalizado a quase todas as sociedades, a sua definição não é universal. Cada sociedade tem a sua própria violência, correspondendo a critérios que variam de cultura para cultura. O conceito de violência doméstica não é unívoco entre os profissionais que se dedicam ao seu estudo, mas em todas as concepções são identificadas três formas básicas e mais frequentes: a violência sobre as crianças, os idosos e as mulheres (…) É na afirmação do III Plano Nacional Contra a Violência Doméstica (2007-2010), que se refere que, “a violência doméstica não é um fenómeno novo nem um problema exclusivamente nacional”, mas “a visibilidade crescente que tem vindo a adquirir associada à redefinição dos papéis de género, e à construção de uma nova consciência social e de cidadania, bem como à afirmação dos direitos humanos, levaram os poderes públicos a definir políticas de combate a um fenómeno que durante muitos anos permaneceu silenciado” (…).

No contexto político internacional várias medidas, recomendações e normas têm vindo a ser definidas na identificação e combate à violência doméstica, em especial na sua vertente de violência de género e violência contra as mulheres. Desde logo, as Nações Unidas têm procurado combater a violência contra as mulheres, considerando a violência em razão do sexo, nomeadamente a violência doméstica, como um dos principais obstáculos ao pleno gozo dos direitos humanos das mulheres e das suas liberdades fundamentais. A Declaração sobre a Eliminação da Violência Contra as Mulheres, adoptada em Dezembro de 1993, pela Assembleia Geral das Nações Unidas, declara que “A violência contra as mulheres é uma manifestação da

211

CARDOSO, C.A.T. - A Violência Doméstica e as penas acessórias. p. 19.

212

CONDE FERNANDES, P. - A Violência Doméstica no Novo Quadro Legal. [Em linha]. [Consult. 1 de Setembro 2014]. Disponível em WWW:<URL: http://penal2.blogspot.pt/2008/10/violncia-domstica-novo-quadro-legal-e.html;

desigualdade histórica das relações de poder entre sexos, que conduziram à dominação sobre as mulheres e à discriminação contra as mulheres por parte dos homens, e à obstaculização do seu pleno progresso […]”. Reconhecendo na IV Conferência Mundial, de 1995, que constitui um obstáculo para alcançar os objectivos da igualdade, desenvolvimento e paz (…)

O Comité Económico e Social Europeu da União Europeia, adoptou, na sessão de Março de 2006, um apelo para uma estratégia pan-europeia sobre violência doméstica contra as mulheres. O Conselho da Europa define como objectivos centrais o reconhecimento e o respeito pela dignidade e integridade de mulheres e homens, tal como o combate à violência contra as mulheres (…)

O III Plano Nacional Contra a Violência Doméstica (2007-2010) reconhece que “apesar da violência doméstica atingir igualmente as crianças, os idosos, pessoas dependentes e pessoas com deficiência, a realidade comprova que as mulheres continuam a ser o grupo onde se verifica a maior parte das situações de violência doméstica, que neste contexto se assume como uma questão de violência de género”. Sem que isso signifique que todas as vítimas de violência doméstica sejam do sexo feminino e que todos os agressores sejam homens. Mas “a pertinência de uma representação não neutral do género nesta criminalidade reside no facto do sexo da vítima e do agressor influenciarem o comportamento de ambos” (…)

Incontestadas são, actualmente, as necessidades de protecção acrescida igualmente devidas a crianças e idosos, enquanto categoria objectiva de vítimas particularmente indefesas.”

A Lei n.º 112/2009 de 16 de Setembro estabelece o regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica, à proteção e à assistência das suas vítimas, considerando no seu art. 2º, a), a vítima como “a pessoa singular que sofreu um dano, nomeadamente um atentado à sua integridade física ou mental, um dano moral, ou uma perda material, directamente causada por acção ou omissão, no âmbito do crime de violência doméstica previsto no artigo 152.º do Código Penal.”

Estipula também o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, Proc. nº 1290/12.1PBAVR.C1, de 29 de Janeiro de 2014 que “[n]o crime de violência doméstica, tutela-se a dignidade humana da vítima. (…) Neste crime não se demanda a prática habitual dos atos ou a repetitividade das condutas, o normativo prevê tanto situações repetitivas ou plurimas como situações de natureza una. (…) O crime de violência doméstica apenas exige que alguém, de modo reiterado ou não inflija maus tratos físicos ou psíquicos no âmbito de um relacionamento conjugal, ou análogo, e determinada por força desse relacionamento e que, por força das lesões verificadas, se entenda que tenha ofendido a dignidade da vítima.”