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Quando penso na figura de Vitor Hugo descrita por Baudelaire,41 imagino aquele homem caminhando tranquilamente pelas ruas, sempre com um olhar reflexivo de quem no fundo goza de um momento de gestação para grandes idéias. Na verdade, Baudelaire nos fala de Vitor Hugo como representante de um mundo que se perdeu mediante a modernidade. O autor de As flores do mal aponta para um sistema de vida no qual o tempo era organizado de um modo diferenciado pela sociedade. Um tempo em que os artistas e os intelectuais desfrutavam de um elemento fundamental para suas produções: o ócio – prática, na qual a cultura burguesa consolidou seu projeto civilizatório.

Naquele momento histórico do pensamento ocidental o tempo era bem generoso com os que tinham condições de refletir o mundo. O espaço público era predominantemente coletivo, ou seja, um espaço onde a convergência dos interesses individuais criava uma espécie de ordem coletiva inteligível. Tempo e espaço, então, contribuíam para a ordenação do livre pensar, o ajuste dos enunciados, o ornamento do discurso, as mediações dos diálogos e os bons embates argumentativos.

Vitor Hugo, portanto, torna-se símbolo de um tempo, no qual parecia ser possível parar e contemplar a vida. Esse tempo, pouco a pouco, foi engolido por uma época na qual o avanço tecnológico dita um ritmo extremamente veloz; um tempo captado nas retinas de Baudelaire e analisado na crítica benjaminiana. E foi justamente o pensamento de Benjamin42 que melhor interpretou esse processo que desorganizou o sujeito, deslocando-o de um mundo objetivo, inteiramente lógico, para um mundo indiferente às estruturas racionais e inteligíveis. Essa outra estrutura acabou ganhando a aparência de uma segunda natureza, processo que levou à perda dos fundamentos das coisas, em uma prática de reprodução elevada ao infinito pelo avanço tecnológico. É o que Benjamin reconheceu como a nova retomada do mito, só que dessa vez o mito é o eterno retorno da produção mercadológica e, por fim, da tecnificação da sociedade.

O ritmo acelerado da produção acelera também a vida nas grandes cidades, fazendo com que o sujeito deixasse de enxergar a própria identidade. O sistema social incha, desequilibrando o

41 BAUDELAIRE, Charles. Escritos sobre arte. Tradução: Plínio Augusto Coelho – São Paulo: Imaginário: EDUSP, 1991, p. 13.

funcionamento de outros sistemas. Konrad Lorenz43 reflete sobre a grande velocidade imposta pelo desenvolvimento cultural da humanidade. Ele afirma que com essa velocidade “o homem se acha extremamente ameaçado”. O fato é que essa aceleração ficou cada vez mais intensa nos dias atuais, despessoalizando o sujeito, fundindo as matérias-primas do pensamento, desassociando tempo e espaço; em outras palavras, criou um campo ideal para a proliferação de um contexto violento.

Parece que a força que impulsionava a criatividade no século de Goethe perdeu-se graças à extrema desconexão comunicativa entre o topo e a base da escala hierárquica do poder. O tempo que se alongava nas intermináveis tardes de Vitor Hugo acelerou-se e consumiu a voz de quem sente na pele a incapacidade de se expressar, justamente em uma época com inúmeras possibilidades de comunicação. Viver em um tempo de pós-guerra, como chama Bauman44 é viver em constante estado de alerta, sempre na defensiva, sobre intensa pressão, em que os eventos se sobrepõem uns aos outros, numa ciranda alucinante que sufoca os instantes de concentração e criação; por vezes, provocando movimentos coletivos involuntários: um quadro que levou ao fim da figura do intelectual enquanto antena-da-raça e, com ele, ao fim das grandes utopias.

Faz-se necessário criarmos ilhas de ócio em nosso cotidiano, caso contrário seremos dizimados por ele. Mesmo assim, essa possibilidade só nos leva ao mesmo isolamento do qual tentamos escapar, carregamos mais do que nunca o estigma de Santo Antônio que tinha somente os peixes como ouvintes de seus sermões. Nossa voz, por mais crítica e inteligível que se faça, acaba se perdendo em um mar de outras vozes, perdendo-se também de seus princípios fundadores. Com a saída de cena do intelectual, o mediador social e organizador dos grandes sistemas e dos grandes projetos, seu lugar caiu em um vazio que se transformou em um riso perturbador.

Em um contexto com poucos espaços para o diálogo as universidades perderam o elo que as ligavam ao social, se transformando em pequenos guetos sem muita propagação. A grande mídia ganha espaço e o contato com o social se dá no mínimo de forma preocupante, pois, sem o espaço para meditação, aniquilado pela

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LORENZ, Konrad. Os oito pecados mortais do homem civilizado. Tradução: Henrique Beck – São Paulo: Brasiliense, 1991.

44 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e holocausto. Tradução: Marcos Panchel – Rio de Janeiro: Zahar, 1998.

velocidade de um cotidiano extremamente violento e violentado, a comunicação desaparece ou perde seu caráter dialogal. Sem a possibilidade de se criar ilhas de ócio, a reflexão se dá em meio aos atropelos do dia a dia, na forma de fast food, como o zig-zag das letras de Rap ou como flores insistindo nascer em pleno asfalto.

É sob esse contexto sem ócio, sob a pressão de uma exigente corrida por respostas e soluções imediatas, que surge outra possibilidade de expressão no cinema nacional, com o sabor do testemunho, os impulsos corporais, as ações instintivas indissolúveis das personagens. O teor marcadamente urbano (mas não só), impulsionado por experiências traumáticas das personagens, coloca em xeque a velha lógica cartesiana e faz com que a produção cinematográfica brasileira se apresente como uma espécie de testemunho, uma forma de representação dos fantasmas contemporâneos. Neste caso, os filmes podem ser vistos na mesma perspectiva do teatro na antiguidade clássica: uma catarse na pretensa luta em aprender a sobreviver num mundo deslocado e cíclico. Foi exatamente essa possibilidade que, penso eu, levou Foucault a investigar a loucura, como uma espécie de crítica à razão kantiana.45 Captar esses traços da contemporaneidade nas narrativas fílmicas, a partir de categorias corpóreas será matéria do próximo tópico.