• Nenhum resultado encontrado

Um dos filmes que fortemente marcou a produção cinematográfica brasileira na virada do século XX para o XXI foi baseado na obra homônima Cidade de Deus, de Paulo Lins. Este autor faz parte de uma geração de escritores, que nascida na periferia das grandes cidades, conhece e vivencia de perto a realidade caótica de seu país. Uma realidade bem distinta da projetada pela classe média. Outro representante dessa geração literária é Ferréz, autor de Manual prático do ódio.46 Os dois se juntam a outros escritores espalhados pela América

45 Em sua História da loucura, Foucault parece fazer a seguinte conjectura: será que a razão é o limite de uma reflexão humana? Ao que tudo indica seu conceito de heterotopia responde que não.

46

Além de Lins e Ferréz, poderíamos citar também outros escritores que fizeram de sua escrita um referencial marcante do momento atual, como: Patrícia Melo (Inferno, 2000), Luiz Alberto Mendes (Memória de um sobrevivente, 2001), Luiz Ruffato (Eles eram muitos cavalos, 2001), André du Rap (Sobrevivente André du Rap, 2002), Julio Ludemir (Sorria você está na

Latina, como: os colombianos Rafael Chaparro (Ópio em las Nubes – 1992), Fernando Vellejo (La virgn de los sicarios – 1994), Santiago Gamboa (Os impostores – 2005), Hector Abad Faciolince (Busura – 2000), Enrique Serrano (De parte de Dios – 2000) e, o mais polêmico, Efraim Medina Reyes (Técnicas de masturbação entre Batman e Robin – publicado no Brasil em 2004); os mexicanos Jorge Volpi (em busca de Klingsor – publicado no Brasil em 2001) e Ignacio Padilla (Amphitryon – 2000); os peruanos Alonso Cueto (Grandes miradas – 2003) e Fernando Ampuero (Caramelo Verde – 2002); e o chileno Alberto Fuguet (McOndo – 1996).

Todos eles são escritores nascidos entre as décadas de 1960 e 1970 que rompem com o realismo mágico de Gabriel Garcia Marques. Podemos dizer que se trata de uma geração que constrói uma nova prosa, surgida em meio às metrópoles abarrotadas de indigentes e desigualdade social, racismo e criminalidade avassaladora. Filhos de uma cultura pop que mistura TV, jogos eletrônicos, quadrinhos e internet, essa geração expõe em sua ficção um verdadeiro mosaico de narrativas sob um cenário violento e decadente. São restos de histórias que não escondem (nem querem esconder) a falta de perspectivas de personagens desorientados, sobrevivendo em um Estado dissolvido pela indiferença e pelo narcotráfico.

As narrativas cinematográficas também surgem de mãos dadas com essa nova ficção. Nelas não sobra espaço para nenhum tipo de alívio, tudo se passa sob constante tensão e o processo pelo qual se configura o enredo é quase sempre banal e autodestrutivo. Não há propriamente uma reflexão sobre o princípio metafísico do ‘mal’, as situações são jogadas aleatoriamente sem um posicionamento moral ou ético fixo. É um retrato potencializado de situações extremas, como se a realidade quisesse sair da ficção. O experimentalismo das narrativas deixa de lado a tradição literária e apresenta como base de influência os meios de comunicação. Surgem então, histórias estilhaçadas, próximas dos diálogos de tiras de quadrinhos: curtíssimos, com cortes abruptos e utilizando os recursos gráficos. Dificilmente encontramos uma descrição completa das personagens, elas figuram como esboço de uma representação, sempre marcadas pelo desencanto – o que temos, de fato,

Rocinha, 2004), Jocenir (Diário de um detento, 2º ed., 2001), Caco Barcellos (Abusado: o dono do morro Santa Marta, 6º ed., 2003), Dráuzio Varela (Estação Carandiru, 1999), Hosmany Ramos (Pavilhão 9: vida e morte no Carandiru, 3º ed., 2002), Humbert Rodrigues (Vidas do Carandiru: histórias reais, 2002), Luis Eduardo Soares, MV Bill e Calso Athayde (Cabeça de porco, 2005).

são colagens de imagens desconexas se sobrepondo girando em torno de inquietações fatalmente indissolúveis.

Essas características são marcas de um novo momento, mais do que um movimento artístico, elas confirmam a expressão típica de um contexto sócio-cultural, no qual a intensificação da violência parece ser o carro-chefe. É certo dizer que os filmes lançados nos primeiros anos do século XXI são predominantemente fruto dessa tendência, que se consolidou e se intensificou nos últimos anos. A fragmentação das narrativas fílmicas é notória em obras como Amarelo manga, de Cláudio Assis, narrativa sem começo ou fim, na qual o acaso das relações se dá em meio à necessidade individual de cada personagem, figuras que agem e se revelam sempre em função de pequenos prazeres. A própria narrativa não conduz o espectador dentro de um enredo inteligível. Quando muito, temos recortes, fragmentos de cenas perturbadoras e ao mesmo tempo inconclusas. Na mesma tendência, podemos citar Cronicamente Inviável, Carandiru, Baixio das bestas, O cheiro do ralo, entre outros.

Todos esses filmes apresentam uma linguagem formada de recortes, trechos de cenas soltas, a princípio desconexas, que só se sustentam enquanto narrativas no acúmulo dos traços. Essa característica nos dá a sensação de uma continuação-descontínua, se trata de fato de uma antinarrativa: as cenas não formam uma sequência, ou um conjunto narrativo, mas um contingente de traços ligados exatamente pela desconexão.

Outra marca desse cinema é a ambiguidade de gênero que se faz presente em filmes como Ônibus 174. Essa característica joga o filme de José Padilha para um entre-lugar, sem categoria precisa. O espectador perde a noção e se pergunta onde termina o documentário e começa a ficção. As cenas captadas pela televisão (re)editadas pela visão do diretor, entrecruzadas pelos depoimentos, redimensionadas pelo distanciamento dos fatos, abriram espaço para uma outra perspectiva do caso do sequestro ocorrido no Rio de Janeiro. O resultado não pode ser definido como imagem jornalística, tão pouco mimese aristotélica. Sandro do Nascimento não é mais o criminoso de carne e osso que aterrorizou o país com sua visibilidade e acabou morto. Também não podemos dizer que ele ser tornou personagem simplesmente, fruto da imaginação. Ele não representa como um ator, nem deixa de incorporar algumas máscaras de representação. Há um meio termo entre o fingir e o agir.

O filme deixa claro que em muitos momentos Sandro assume um papel para parecer ser mais perigoso do que realmente é e, mesmo

assim, sem deixar de sê-lo. O mesmo acontece em Cronicamente inviável, principalmente na última cena do filme. Sérgio Bianchi explica47 que a cena final da moradora de rua fazendo uma espécie de oração para o filho dormir, não estava no script, ela teria pedido para ser filmada, não havia texto nem ensaio anterior.

A montagem do filme Contra todos dá extrema relevância a um trabalho de atuação espontânea. Os atores foram levados a representar sob a força do improviso, sem ensaio, sem script fechado – não podemos deixar de destacar a opção do diretor no uso em muitas cenas de câmeras soltas na mão do cinegrafista. Em depoimento, o diretor Roberto Moreira, diz que esse recurso serviu para dar maior realismo à cena, como se fosse um documentário.

O mesmo vai ocorrer em O Invasor, o filme de Beto Brant, é um belo exemplo de uma narrativa que deu certo, exatamente por conta de elementos que deveriam ser o motivo de um fracasso. O improviso e a espontaneidade de um ator não-profissional (refiro-me a Paulo Micos, figura conhecida no contexto musical) resultaram em uma maior densidade na narrativa de Brant. Muitas das cenas incluídas na edição final surgiram de atuações espontâneas do músico, superando as cenas ensaiadas e orientadas pelo diretor. Falas inesperadas, marcas de personalidade, equívocos naturais, força de expressão, reflexos e experiências pessoais de Paulo Micos preenchem de veracidade a narrativa, tornando-se a base de sua performance e dando outro contorno à narrativa. Ainda poderíamos citar o exemplo de Cidade de deus, Carandiru e Os narradores de Javéi, filmes que aproveitam a espontaneidade de atores não profissionais na intensificação do realismo das cenas, atores que representam suas próprias personas da vida real.

As imagens superpostas, como em Amarelo manga, Cama de gato e Cidade de Deus, assim como dinamizam, também descaracterizam a cronologia fílmica, deixando para o espectador apenas restos de histórias, jogando-o – perceba o paradoxo que há nisso – para fora do campo ficcional, ou seja, aproxima-o do seu violento cotidiano, o mais traumaticamente possível.

Em seu ensaio “Dialética da Marginalidade: caracterização da cultura brasileira contemporânea”48, João Cezar de Castro Rocha mostra

47 Em uma sessão do filme na Feira Pan-Amazônica do Livro, em Belém do Pará, no ano de 2001, Bianchi revela os detalhes da cena ao público presente no teatro do CENTUR, no qual eu me fazia presente.

48 João Cezar de Castro. “Dialética da Marginalidade: caracterização da cultura brasileira contemporânea”. Folha de São Paulo, Caderno: Mais, de 29 de fevereiro de 2004. A representação no cinema de uma realidade recheada de sequestro-relâmpago e de crime

que a violência contemporânea é tão brutal que devemos criar novos modelos de análise para tal contexto. João Rocha revela que a antiga “Dialética da Malandragem” promoveu um processo de infantilização nas representações simbólica de nossa cultura. Em outras palavras, representa um distanciamento do espectador da realidade do país. Perante essa perspectiva tínhamos uma leitura idealizada de nossa cultura: um povo pacífico, que nunca reage com violência mesmo sendo constantemente violentado – uma decantada paciência bem representada pela personagem Zé do Burro, do filme O pagador de promessa, de 1962.

Em contra partida, João Rocha nos apresenta a Dialética da Marginalidade, para a qual a violência contemporânea, a crítica à desigualdade social, o conflito explícito e o caos social promovem a representação de uma realidade insuportável, aproximando o espectador de seu corrosível cotidiano, tal representação estaria bem expressa na figura de Zé Pequeno, personagem de Cidade de Deus, no livro de Paulo Lins.49

É dessa espécie de limbo que nascem as personagens, desorientadas, em busca de sobrevivência, sem perspectivas, entre a indiferença do Estado e os esquemas do narcotráfico. Sem nenhum alívio, sob constante tensão, se expondo em jogos de extremo risco, as personagens lutam pela banalidade das coisas. É o caso de personagens como Buscapé de Cidade de Deus, Ivan de O Invasor, Adam de Cronicamente inviável, quase todas as personagens de Carandiru, assim como a personagem principal de Madame Satã. Sempre em situações

organizado levou João Rocha a deixar de lado a idéia que Antonio Candido havia desenvolvido em “Dialética da Malandragem – Caracterização das ‘Memórias de um Sargento de Milícias”. No seu clássico ensaio, Candido interpreta as relações de poder na sociedade brasileira dentro de um jogo entre a “ordem” e a “desordem”. É em meio a esse jogo que surge a figura do malandro, conceito que, desde o século XIX, representa o equilíbrio entre um sistema de ordem regular e estável inspirado nas sociedades européias – um sistema que no fundo não vingou efetivamente como sistema predominante e ainda falseia as relações interpessoais – e a um sistema não-convencional que vigora por baixo das instâncias legais. Comungando com os conceitos de Candido, Roberto Damatta aprofunda sua interpretação com esse sistema dualístico de relação. Segundo João Rocha, as narrativas contemporâneas que buscam representar a realidade brasileira apontam para uma relação oposta à teoria de Candido e Damatta, e exige um novo tipo de leitura, sob um outro prisma, é o que ele vai chamar de dialética da marginalidade.

49 Quanto ao filme, João Rocha acredita que ainda há um processo de infantilização em relação ao livro de Lins, e o fator principal para isso, é a mudança de foco narrativo que no livro se faz múltiplo, mostrando a perspectiva de vários personagens, já no filme teremos somente a visão da personagem Buscapé. De qualquer modo, a violência representada em Cidade de Deus (o filme), sem dúvida ainda é bem mais contundente do que em O pagador de promessa, aproximando o espectador de sua realidade.

limite, as reflexões são, muitas vezes, frutos das revoltas ou dos desencantos, e qualquer contorno ético se esvai no contingente das necessidades.

Os curtos diálogos são preenchidos quase sempre pela força das imagens impactantes. Em alguns momentos elas substituem completamente a linguagem verbal, extrapolando os últimos liames de uma zona heterotópica foucaultiana – talvez esse seja o maior trunfo do filme Contra todos, que se deixa levar pelo experimentalismo. Assim como percebemos o estilhaçar das histórias com os abruptos cortes, os contornos das personagens não são nada precisos. Não sabemos bem, por exemplo, quem é Anízio, o importuno matador de O Invasor, não sabemos de onde ele veio, quais suas reais intenções, o que está por trás de sua relação com Gilberto. Por vezes, Anízio se mostra agressivo e audacioso, em outro momento, se mostra carinhoso e protetor, até mesmo amigo. Apesar de toda imprecisão, de toda ambiguidade, Anízio é uma figura forte na trama, envolvendo e envolvido com todas as outras personagens. A incompletude das personagens as torna mais verdadeiras, já que na vida real estamos longe dos ‘tipos’ – figuras acabadas, completas e invariáveis.

De fato, enquanto na literatura se rompe com o realismo mágico, pode-se dizer que o cinema brasileiro na virada do século abandona as imagens que transmitem a mensagem direcionada. Na apresentação das problemáticas não há necessariamente um debate, uma análise, uma defesa de proposta; o que temos são as situações lançadas para a reflexão, sem um direcionamento, uma sugestão, uma ‘verdade’ que nos guie, que nos apresente uma solução, ou um caminho a seguir. Podemos dizer que há um completo abandono das grandes utopias – abandono esse que pode ser representado pelo final do longa Desmundo, de Alain Fresnot, no qual a personagem principal acaba se conformando com sua situação, presa em um mundo hostil, sem qualquer esperança de libertação.