• Nenhum resultado encontrado

Uma visão de Estado e da Igreja

Independentemente das estratégias seguidas, o projecto do cardeal in- sere-se numa verdadeira visão de Estado, que ao mesmo tempo se sin- toniza com os horizontes da Igreja do seu tempo, em cujos objectivos se empenha profundamente, enquanto eclesiástico erudito, atento e co- nhecedor dos grandes problemas da época. Face à política seguida por D. João III, D. Henrique mostra uma maior sensibilidade a algumas ques- tões canónicas, o que, por outro lado, o torna mais hábil na forma de as conduzir para os objectivos da monarquia. Se se pode enquadrar D. João III, tal como a infanta D. Maria e mesmo D. Luís, quanto a uma visão das ordens e das suas reformas, numa linha integrada no âmbito da devotio

moderna172, agindo em parte (e apenas em parte) por motivações religio-

sas, D. Henrique aparece, quanto à Ordem de Cristo, essencialmente no perfil de um homem de Estado, que às metas deste adapta, quanto con- segue, as da Igreja.

Pode dizer-se que vai, aqui, mais longe que seu irmão no controle da Igreja nacional, fazendo frente a Roma e não hesitando em usar to- dos os recursos que se contêm na sua qualidade de príncipe de ambos os poderes173, os quais parece tentar conjugar em prol de objectivos si-

multâneos da evangelização e do império. Atropelando com frequência direitos eclesiásticos, consegue contornar com mais êxito as matérias delicadas das relações entre as duas esferas, mas também com maior

172 Vide, para D. João III, os dados apresentados por Charles Witte (1988), nomeadamente na 366 quanto às características da reforma que ordenou; para a infanta veja-se a referência de Pinto 1998, 13, quanto a uma oposição à Contra-Reforma e ao seu irmão cardeal. Relativamente ao infante D. Luís evoque-se o seu importantíssimo papel no que toca o ramo franciscano dos arrábidos, de que trata, por exemplo, Almeida, Alfredo. 2000. O convento de Jenicó. 2nd ed.

Benavente: Câmara Municipal. Note-se, porém, que, nas reformas empreendidas por D. João III, a leitura deverá ser em grande parte política, ainda que se considerem as marcas e influências de todas estas correntes de espiritualidade, rigoristas e, muitas delas, eremíticas.

173 Evoquem-se as interessantes questões em torno do seu estatuto de legado a latere, ou de cardeal na recepção do enviado do papa, tratadas com abundante documentação por José Velloso (1946).

audácia, empenhando-se em canonizar as suas orientações, especialmen- te face ao Padroado, cujas doutrinas, de certa forma, nascem neste con- texto, mesmo que apoiadas na interpretação de todo um significativo acervo anterior.

As suas intervenções aparecem, com efeito, como caminhos mais sólidos, porquanto: em maior harmonia com a tradição efectiva da ac- ção dos freires clérigos174; importava a todo o custo retomar o prolonga- mento ultramarino da vigararia; convinha libertar os freires clérigos, que nunca tinham sido contemplativos, de obrigações monásticas de clausura, devolvendo-lhes a mobilidade, agora para serem enviados a partes longínquas. Mostrava-se conveniente um organismo através do qual a monarquia pudesse controlar todas estas matérias, o que foi conseguido através da transformação da Mesa da Consciência. Por fim, atento à complexidade da acção pastoral em domínios tão diversifica- dos da geografia física e humana, e a orientações consagradas em Tren- to, manifestava o cardeal uma perfeita consciência da necessidade de uma formação aprofundada, actualizada e em permanente adaptação às exigências de uma tal seara, pelo que deveriam os estudos, num con- vento transformado em seminário, ser preferidos aos ofícios do coro, devendo pertencer os principais mestres aos jesuítas, conhecedores es- pecializados desses mundos ultramarinos, com quem, com toda a pro- babilidade, arquitectara o plano, em estratégias cuja articulação entre si fora tecida, ao sabor das circunstâncias, com uma precisão quase matemática.

174 É certo que a reforma de D. João III invocava o dever de fazer cumprir a regra de Calatrava e, neste sentido, poderia justificar-se canonicamente enquanto retorno a normas anteriores; no entanto, essa regra nunca se cumprira mesmo porque, no caso dos clérigos, de certa forma atentava contra a sua finalidade de se ocuparem das igrejas do território, o que sempre fizeram; a preocupação de alargar o ramo dos clérigos, dando-lhes uma certa organização conventual, num período em que se iniciou o gradual relaxamento do ramo dos cavaleiros, e que remonta já ao século XV, compreende-se para a própria sobrevivência da ordem, mas

deveria ser muito ténue e nunca impor a clausura, sob risco de impedir a gestão eclesiástica do território.

Dados os passos para a extensão da Ordem a todo o ultramar, só havia a temer, naturalmente, a reacção do respectivo episcopado, por- quanto as pretensões para a sua vigararia correspondiam a um recuo na natural evolução das jovens cristandades para dioceses, processo no qual o primeiro passo fora dado por seu pai D. Manuel, mas fora depois prosseguido largamente por D. João III e D. Catarina. As estratégias do Padroado, no tempo de D. Henrique, pareciam agora seguir uma orien- tação inversa, alterando o esquema em que desde sempre assentara o Direito Comum da Igreja.

Urgia, como se disse, preparar o terreno no campo doutrinário, aspec- to que D. Henrique não descurou. Foi talvez esse o campo de maior interes- se, aquele onde, por fim, de forma muito concreta, encontramos a origem da tese mais ambiciosa, cuja ousadia não poderia deixar de provocar a perplexidade dos bispos: a de pertencerem as dioceses à Ordem.