3. ANÁLISE DO MATERIAL
3.5 A prática e o rigor imaginativo
3.5.1. Visão hermenêutica
Segundo Hans-Georg Gadamer, em Verdade e Método (GADAMER, 1991),
hermenêutica “é a disciplina que se ocupa classicamente da arte de compreender textos” (p.
217). O que pretende esse autor com o referido trabalho é mostrar que “a compreensão não é
nunca um comportamento subjetivo a respeito de um objeto dado, senão que pertence à história
efectual, isto é, ao ser do que se compreende” (p. 13/14). E que “a compreensão só se converte
em uma tarefa necessitada de direção metodológica a partir do momento em que surge a
consciência histórica” (p. 16).
O autor apresenta a hermenêutica como uma filosofia que tem uma tradição histórica (o
termo surge com Aristóteles) e com base filosófica idealista; o que se mostra contrário à
concepção materialista-dialética, base do presente trabalho. No entanto, alguns conceitos
apresentados em Verdade e Método não podem ser deixados de lado, mesmo diante desta
contradição fundamental, não apenas para justificar, mas também para compreender algumas das
interpretações dos dados obtidos nas análises musicais apresentadas nos diversos momentos do
curso Linguagem e Estruturação Musicais.
O texto de Gadamer discute a maneira de interpretar os textos da tradição com uma
consciência histórica não só do próprio texto, mas com a consciência da finitude histórica de
quem o interpreta (compreende). Isto quer dizer que “na finitude histórica de nossa existência
está que sejamos conscientes que, depois de nós, outros entenderão cada vez de maneira distinta”
(p. 452). Essa chamada “consciência histórica efectual” é base da filosofia do autor em questão e
seu conceito é: “O interesse histórico não se orienta somente em direção aos fenômenos
históricos ou às obras transmitidas, mas tem como temática secundária o efeito dos mesmos na
história (o que implica também a história da investigação)” (p. 370).
O autor continua definindo a maneira de interpretar - sempre no sentido de compreender,
como um pastor protestante deve interpretar um determinado trecho da Bíblia e não no sentido de
interpretação musical – como a “reconstrução de uma pergunta que dá resposta a um determinado
texto” (p. 452), mas lembrando que esta pergunta não necessariamente foi feita pelo próprio autor
do texto: mas por alguém que o interpreta de determinada distância, e que
quando aparece uma pergunta “histórica”, isto significa sempre que já não é mais uma pergunta. É o produto residual do “já não compreender mais”, um carrossel em que se fica preso; ainda que, ao contrário, forme parte da verdadeira compreensão recuperar os conceitos de um passado histórico de maneira que contenham ao mesmo tempo nosso próprio conceber (p. 453).
Compreender, portanto, o que o autor de um determinado texto “quis dizer” ao escrevê-lo,
passa também pela maneira que o intérprete (no caso da música, o ouvinte) a compreende, em seu
momento presente, com a consciência de que essa é uma interpretação “datada” e que pode
mudar em outro momento. Esta é, portanto, uma interpretação possível, resultado da reconstrução
da pergunta fundamental ao texto.
Vale lembrar que o autor não se refere diretamente à música, em Verdade e Método. Trata
mais das implicações da interpretação de textos escritos na Tradição, por isso alguns conceitos
podem soar confusos na aplicação à linguagem musical. Como essa questão, por exemplo: o
intérprete, no caso, parece ser o ouvinte (a quem deve chegar o sentido da obra, finalmente). Mas
isso não fica evidente no referido trabalho. No entanto, para que esse sentido chegue ao ouvinte,
ele deve estar consciente para o intérprete (agora no sentido musical da palavra) que deverá
revelá-lo (mostrá-lo) ao ouvinte.
A partir desta contextualização de conceitos a respeito da hermenêutica, espera-se ter uma
base para explicar a sorte de interpretação que o compositor-professor tem sobre os dados das
análises musicais.
Cada aula que contenha uma análise traz um exemplo concreto deste tipo de interpretação.
No entanto, destacam-se, aqui, alguns que chamam a atenção pelos resultados surpreendentes.
Um primeiro exemplo se encontra na aula 3 do primeiro módulo (I_3), em que o professor, a
propósito de discutir a simultaneidade da música, analisa o Estudo op. 25 n
o7, de Chopin. Depois
de ouvir separadamente os três acontecimentos simultâneos, ele interpreta as relações entre eles
(criadas pelo compositor), relacionando-as e imaginando como compositor, compreende a peça
de uma maneira diferente da usual. Por exemplo, ao apontar um dó natural que soa, no compasso
17, no acontecimento 3, inesperado e que “soa, e instala-se, tornando o acontecimento 3
extraordinário, provocando desequilíbrio no conjunto. Decisiva informação”.
Lendo a peça desta forma, em uma descrição analítica, compasso a compasso, depois de
compreender as diferentes naturezas iniciais de seus três acontecimentos e entender suas
transformações – suas causas e conseqüências, como no exemplo do compasso 17 ou ainda, mais
abaixo, saber que, no compasso 19 “desaparece o acontecimento 3. No compasso 20, ele
reaparece”. e etc – o compositor interpreta esses dados, refletindo sobre eles por meio da
imaginação, para compreender que
Nesta peça, os acontecimentos funcionam como um organismo, diferentes entre si, como órgãos em um organismo vivo, mas relacionando-se, também, como em um organismo
vivo. Quando mexe na parte, o todo se altera. Quando mexe no todo, a parte também se altera. Tudo se relaciona (I_3).
E, então, o professor continua o parágrafo fazendo uma pequena retrospectiva das causas
das alterações de equilíbrio no conjunto que, segundo ele
começa com o lá do acontecimento 3, no compasso 14. Posteriormente, desestabilizará ainda mais o conjunto com o dó natural do compasso 17 e, a partir disso, o “organismo” que, no caso que nos ocupa é o próprio Estudo no 7, é a própria peça
artística, tenta resolver o desequilíbrio.
E completa generalizando “Uma obra de arte é um organismo vivo, em que as partes são
diferentes, mas se relacionam, como os órgãos de um ser vivo”.
Esta é apenas uma parte de uma extensa aula que a análise em questão ajudou a suscitar.
O objetivo é destacar, como que para apontar, exemplos de interpretações dos dados musicais,
identificados com a hermenêutica. Por isso, vale apontar, também a aula 10, ainda do primeiro
módulo (I_10). Nesta, encontra-se uma interpretação dos dados lingüísticos obtidos de uma
audição analítica do 3
omovimento da Sinfonia, de Berio, que identifica o 3
omovimento da 2
osinfonia de Mahler, como princípio unificador da peça, mais o texto de Beckett (Samuel Beckett,
escritor) e os Swingle Singers (conjunto vocal a quem o compositor dedicou essa peça). Ele
continua:
A sinfonia de Mahler funciona como uma onda portadora; mas como onda portadora que se escuta como ilhas em meio ao mar de música que a cerca por todos os lados. Como palavras e curtos versos do poema Un Coup de Dés, de Mallarmé: são como ilhas em mar em branco da folha de papel. Na obra de Berio, o terceiro movimento da sinfonia de Mahler está sempre lá, mas submerso quase sempre (I_10).