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Você é o que você come: noções sobre cozinha e identidade

5. ESPECIALIDADE DA CASA: O COTIDIANO NA ARTE E A ARTE

5.1 Você é o que você come: noções sobre cozinha e identidade

Uma cozinha pode dispor de eletrodomésticos de última geração, bibelôs para decoração, calendário na parede e outros inúmeros artefatos. No entanto, o ambiente produz e reproduz relações e práticas sociais, culturais e políticas – como é o caso da divisão e atribuição de tarefas domésticas ou prestação de serviços. Em algumas casas, as cozinhas são separadas dos locais de refeição (as copas); já em outras, come-se apertado próximo ao fogão; come-se também sozinho ou entre amigos; o acesso às cozinhas acontece de maneira comercial, doméstica e eventualmente, de ambos os modos. Enfim, o trânsito e a habitação dentro da cozinha – em termos de como, o que e por quem – é atravessado por inúmeras possibilidades de experiência. Contudo, os arranjos e disposições do espaço-cozinha estão relacionados à escolha, condição ou prescrição e, logo, são definidos pela situação de classe, de gênero e de raça/etnia dos sujeitos.

De acordo com Janine Helfst Leicht Collaço (2013, p. 204), “a cozinha e o comer representam elementos além de uma associação entre grupo e território, contando também com a memória, a tradição e disputas de identidade”. Tal como as comidas, que possuem diferentes facetas, formas e cheiros, são também as relações humanas na cozinha. Elas acontecem pautadas por marcadores diversos, que convergem em vivências plurais e também em relações de poder. Em outras palavras, notamos como as cozinhas são espaços contraditórios, permeados por disputas, negociações e conflitos.

O espaço que assimilamos atualmente como cozinha refere-se, geralmente, a um local onde se prepara e/ou se consome alimentos. No entanto, ele não deve ser compreendido somente por sua materialidade física ou pelas vinculações próprias do ambiente e seus artefatos. Afinal, a cozinha é espaço de consumo, por onde operam tecnologias e discursos que produzem comportamentos, identidades e subjetividades humanas. Pelas cozinhas passam sabores, transitam sujeitos, tal como circulam imagens e modos de representação. Nelas, os conhecimentos ancestrais ou culturais são retomados,

normatizados e questionados – seja seguindo (ou não) uma receita ou reproduzindo práticas sociais.

Dessa forma, visualizando a expansão das noções do espaço cozinha, quando situamos que o Grupo Cuidado Louças propôs a apropriação e deslocamento deste espaço para o museu, é preciso posicionar e problematizar de qual cozinha estão falando. Quem transitava, transita ou está sendo convidado a entrar nessa proposição? Como aconteceram as interações nesse ambiente? Dito de outra forma, assim como as instruções de uma receita, para iniciar esta análise é necessário tensionar quais ingredientes compõem a noção de espaço cozinha ou em quais representações culturais de cozinha o coletivo se baseou durante a feitura de Cozinhar-te?

Longe de responder todas as questões, por esta perspectiva norteio um caminho de investigação. Neste sentido, cabe apontar que uma imagem bastante comum para as/os brasileiras/os é compreender a cozinha como um espaço físico e relacionado ao doméstico, sendo este uma expressão cultural central de determinado povo (COLLAÇO, 2013). Fischer (1989, p. 32 apud COLLAÇO, 2013, p. 204) acrescenta que a cozinha para determinada cultura pode ser compreendida como “um corpo de práticas, representações, regras que são compartilhadas pelos indivíduos que são parte de uma cultura ou de um grupo inserido em uma cultura”.

Assim, para situar o significado social da cozinha, é preciso relacionar os sujeitos e o seu contexto cultural. Segundo Collaço (2013, p. 204), “a cozinha de um grupo ou país é um meio para pensar relações sociais, pois não se trata somente de um apanhado de traços imobilizados, pratos típicos ou ingredientes. Ela representa o próprio dinamismo cultural”. Ou seja, a análise crítica de uma cozinha diz respeito ao reconhecimento de determinado espaço, seus interlocutores, tal como das representações dos campos políticos, culturais e sociais em torno dela.

Ao evidenciarmos os cômodos de uma casa e associá-los às suas respectivas funções (quarto-dormir, cozinha-comer), notamos como a cozinha possui uma função importante. Nela são preparadas as refeições e, posteriormente, nos alimentamos neste local. Neste sentido, no momento que o Grupo Cuidado Louças anuncia que sua proposta é a elaboração de “uma cozinha viva no espaço do salão”, pode estar se referindo ao dinamismo deste

local. Afinal, as cozinhas lidam essencialmente com a manutenção do corpo e com elementos ativos e orgânicos: a comida. Logo, se pensarmos que a dinâmica alimentar está tangenciada por construções sociais, o comer pode ser assimilado como um processo e um modelo privilegiado para discutir a formação de identidades. Afinal, como acrescenta Collaço (2013, p. 212), “viver uma experiência gastronômica não é parte da vida cotidiana, mas sem dúvida é um modelo para imaginar e orientar o que se espera como apropriado de uma cozinha e de comer considerado adequado”. Nestes termos, a autora chama nossa atenção para as hierarquias que atravessam a cozinha, situando a gastronomia como uma categoria que qualifica e dá valor ao comer, assim como as práticas ao seu redor.

A este respeito, segundo Maciel (2004, p. 27), o espaço cozinha pode ser compreendido como uma categoria de análise, tal como são as identidades. Em suas palavras “no processo de construção, afirmação e reconstrução delas, a cozinha pode ser operada como um forte referencial identitário, utilizado por um grupo como símbolo de uma identidade reivindicada para si”. Assim, como acrescenta Maciel (2004, p. 27), “a cozinha de um povo é criada em um processo histórico que articula um conjunto de elementos referenciados na tradição, no sentido de criar algo único – particular, singular e reconhecível”. Longe de possuir um sentido único ou imutável, notamos que o conceito e o sentido do espaço cozinha, tal como os processos de identidade social, identificam, segmentam, mas também sofrem alterações durante o tempo e estão mediados e vulneráveis a deslocamentos e transformações.

Neste caminho, convém pontuar a pesquisa de Roberto DaMatta (1986). Destaco aqui algumas de suas observações, na perspectiva antropológica, sobre as noções de uma ficção em torno da identidade que o autor chama de brasileira. Dito isto, para a cozinha brasileira está alicerçada no mito das três raças, ou seja, é uma cozinha sustentada pela imagem miscigenada entre índios, negros e europeus. Em diálogo com DaMatta, Maciel (2004, p. 35) comenta que “a perspectiva que privilegia a ‘raça’ ou ‘etnia’ na formação de uma cozinha é uma das formas de pensar e representar uma identidade, perspectiva esta que é particularmente importante no Brasil”. Contudo, por essa perspectiva, como são representadas as discussões de

gênero no ambiente doméstico? Quais discursos são construídos nas cozinhas, no que diz respeito às feminilidades e masculinidades?

Isto posto, não seria possível pensar nesse espaço sem notar os marcadores dos indivíduos e suas relações com o trabalho ou com o gênero. Maciel chama nossa atenção para entender este espaço como permeado por relações de poder. Segundo Collaço (2013), “temos os movimentos de reconhecimento patrimonial de práticas e saberes relacionados à cozinha que valorizam a diferença, mas parecem não levar em conta os conflitos subjacentes a esses processos”.

Sendo assim, entendemos que a cozinha não é construída por relações harmônicas e simétricas, mas como um espaço de conflitos e disputas entre os sujeitos. A cozinha é um espaço de experiência pessoal, coletiva, condicionante e, logo, um espaço político. Para além de naturalizações ou opressões, por este espaço é possível imaginar modos diferentes de transitar, de habitar, de se representar, de se reinventar e, sobretudo, de aprender, de se apropriar e de deslocar o conhecimento.

5.2 REQUENTAR O PRATO: INFLUÊNCIAS DA ANTROPOFAGIA E