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Voltando para ser feliz

No documento Vovó Benta - Causos de Umbanda Vol. 2.pdf (páginas 128-134)

Voltando para ser feliz

“A dor é uma bênção que Deus envia aos seus elei­ tos; não vos aflijais quando sofrerdes, mas bendizei, ao contrário, o Deus todo-poderoso que vos marcou pela dor neste mundo para a glória do céu.”

A noite se fazia alta e chovia torrencialmente. A escuridão só era rasgada pelos raios que desciam à terra, gerando trovões assustadores. O vento forte balançava a janela quebrada que agora estava am arrada com velhas tiras de pano.

Dois olhinhos assustados espiavam o cenário externo na esperança de visualizar no meio da escuridão o pai que saíra cedo de casa. O coração da menina, num misto de tristeza e dor, já não sabia qual sentimento nutria por aquele homem que dentro de sua irresponsabilidade a deixava até altas horas da noite sozinha naquela casa que se consumia pela deterioração natural do tempo. Mais um dia em que ela ainda não havia se alimentado e seu estômago também doía.

Vencida pelo sono, cansaço e fraqueza, adormeceu debru­ çada na janela, sendo acordada algum tempo depois pelo baru­ lho da porta que se abria bruscamente. Assustada, jogou-se na cama e fingiu estar dormindo para evitar os habituais xinga- mentos do pai, que chegara bêbado mais uma vez.

No seu desespero, chorou e rezou, pedindo, como sempre fazia, ao seu anjo de guarda para que ele pedisse à sua mãezi- nha, que já havia partido para o céu, que a viesse buscar. Ela não queria mais viver tão triste e sozinha, pois nem amiguinhas podia fazer, pela vergonha de sua situação.

Dormiu e sonhou.

Uma carruagem branquinha, enfeitada de flores, como aquela do filme que vira na televisão, comandada por um meni­ no de olhos azuis e cabelos encaracolados, agora a transportava por uma estrada muito bonita. Embora nada falasse, o menino sorria para ela, transmitindo-lhe confiança. A carruagem parou em frente a um portão que se abria deixando à mostra o jardim de uma enorme casa, e muitas crianças corriam para recebê-los. Entre abraços e sorrisos, a menina sentiu em seu ombro uma mão adulta a segurá-la com firmeza e, quando virou seu rosto para ver quem era, a grande surpresa. Estava ali sua mãe, mais linda do que nunca, deixando grossas lágrimas rolar de seus olhos. Desejava pular em seu pescoço, mas faltaram-lhe forças. Acolhida no colo da mulher, ela foi levada para um banho quente, ganhou roupas limpas e um caldo reconfortante para seu estômago faminto. Nem o leito limpo e macio nem os beijos e a promessa da mãe de que ali permaneceria a convenciam a adormecer, pois temia acordar dentro da sua triste realidade, com o lindo sonho desfeito.

Naquela manhã, o homem acordou sufocado pela fuma­ ça, ouvindo o estalar da madeira que queimava. Ainda tonto pela bebedeira da noite, abriu os olhos e percebeu que o fogo chegava na porta do quarto e sem pensar duas vezes se jogou pela janela, aos gritos de socorro. Mesmo com ajuda de alguns poucos vizinhos e com a chegada dos bombeiros, a casa se consumiu rapidamente pelas chamas. Em vão procuraram nos escombros pelo' corpo da menina que dormia no quarto ao lado

do seu. Apenas escombros, cinza e remorso.

O homem batia com a cabeça na terra e urrava em seu desespero. Ele havia deixado uma vela acesa na cozinha antes de adormecer, amortecido pela cachaça. Ele agora se culpava pela morte da filha.

O remorso o consumia nos dias que se seguiram, quando passou a viver de favores de algumas pessoas que, penalizadas, o ajudavam. Jurou no dia do incêndio que jamais voltaria a ingerir uma gota de álcool, mas a tentação e a sede aumen­ tavam dia a dia, até que entrou num bar e pediu um trago de cachaça. Quando pegou no copo, ouviu que alguém o chamava na porta e virando-se viu ali a imagem da filha morta, a lhe sorrir. O susto foi tamanho que largou o copo no chão, saindo em desespero. Deste dia em diante seus sonhos foram recheados pela visão da menina que lhe pedia desesperadamente para nunca mais beber. Um dia contou sobre isso para um colega de serviço, por medo de estar enlouquecendo, quando este lhe fez o convite para que fosse com ele até um centro de umbanda que costumava freqüentar. Como nunca havia se apegado a religião nenhuma, também não tinha preconceito com nada e resolveu que iria.

A medida que se aproximavam do centro, o homem sentia arrepios a percorrer-lhe o corpo todo e um medo muito grande a ponto de pensar em voltar para casa. Seu amigo, percebendo a situ­ ação, incentivou-o dizendo que era assim mesmo, mas que quando tomasse um passe com as entidades, se sentiria muito bem.

Ao adentrar e sentir as energias balsamizantes do ambien­ te irradiado pelos guias espirituais, ele se acalmou, mas a sau­ dade da filha e da esposa se acentuou, fazendo com as lágrimas fossem inevitáveis.

Quando foi chamado para o atendimento, ajoelhou-se em frente ao preto velho incorporado, dando vazão total ao choro

que agora o fazia soluçar.

- Salve, zi fio. Chora, pode chorar - falava calmamente Pai Jacó, enquanto estalava seus dedos ao redor da cabeça daquele homem que mais parecia uma criança desamparada.

- Me ajuda... me ajuda... - era tudo o que o homem conse­ guia pronunciar entre os soluços quase convulsivos.

- Nego véio já tá ajudando zi fio, com a bênção e permissão do grande Zambi.

No ambiente extrafísico eram requisitados os guardiões do local, bem como outros falangeiros de pretos velhos para retirar e encaminhar alguns espíritos que, já em simbiose com seu corpo espiritual, ansiavam por satisfazer a vontade de ingerir álcool. Falangeiros de Oxóssi se empenhavam em desmagnetizar de seu corpo etérico resquícios da densa energia deixada pelos obsessores, ao mesmo tempo em que, servidos pelo ectoplasma da corrente mediúnica aliada às energias da mata trazidas pelos elementais, formavam um plasma curativo que tentaria minorar os estragos gerados pelo alcoolismo em seus órgãos internos.

Embora tudo acontecesse no nível astral, era inevitável que ele se ressentisse no corpo físico, pois estava ligado àquela simbiose a tanto tempo que a retirada lhe causava uma sen­ sação de perda. Sentiu enjôo e tontura que, aos poucos, foram passando, à medida que Pai Jacó higienizava sua aura com um galho de guiné.1

- Sinto tanta saudades de minha filha... mas tenho tanta culpa pela sua morte. Sou um traste...

- Saudades e culpa. E o que zi fio tem feito para melhorar isso? Zi fio tem rezado pela menina?

- Não, eu nem sei rezar.

- llum ... nem o sinal da cruz sabe fazer?

1 Planta cujo poder energético transmuta as energias dos ambientes ou pessoas.

- Ah, isso sim, mas do resto das rezas já me esqueci. - Pois é, então nego véio diz pra zi fio que se lembre da menina e fale com ela. Diga o que tá trancado na garganta e, principalmente, peça perdão pela falta de amor.

- Mas eu a amava! - interrompeu, aumentando o tom de voz. - E ela sabia disso? Zi fio demonstrou esse amor a ela? Ela sentiu alguma vez proteção, amparo, carinho vindos de suncê? Nego véio não está aqui para julgar ninguém, mas de nada adianta ficar remoendo remorsos e não se conscientizar de que houve muitos erros e que estes precisam de correção. Quando a mãe dela se foi, zi fio se sentiu vítima do destino e afogou a solidão no copo de cachaça, esquecendo que havia ficado um pedacinho dela aqui na terra precisando de amor e cuidados. Alguém que o esperava todas as noites, preocupada com o pai irresponsável, e que só não morreu de fome pela caridade dos vizinhos.

O homem agora voltava a deixar a emoção brotar, desafo­ gando toda dor que sentia no peito.

- Aquele espírito que veio como sua filha estava lá para lhe despertar o desapego e para ajudá-lo nesta dura batalha contra o vício, já trazido como uma má tendência de outras existências terrenas. Mas zi fio preferiu se anular em vez de lutar, diante da dificuldade.

- E o que me resta agora? Estou sozinho e sem esperança de nada.

- Ninguém está abandonado neste mundo, zi fio. O grande Zambi a todos socorre o tempo todo através de seus falangeiros da luz. Zi fio tem muita proteção ou então teria morrido quei­ mado naquela casa e estaria agora no sofrimento em vez de estar aqui recebendo este socorro. Tudo o que aconteceu pode­ ria ter sido evitado pelo seu livre-arbítrio, mas mesmo assim, zi fio, tire dos erros as lições que seu espírito precisa.

Depois de orientá-lo a fazer orações diárias, através de uma conversa amigável com o Criador, o preto velho chamou o cambono e pediu-lhe que encaminhasse aquele homem até o setor social daquela casa de caridade que mantinha uma clínica para viciados.

Renascia ali, mais uma vez, numa mesma existência ter­ rena, um mesmo espírito. Após um tempo de desintoxicação, integrou-se ao corpo de trabalhadores da clínica, empenhando- se em ajudar a outros dependentes que lá aportavam. Nesse trabalho, conheceu uma moça dependente de drogas que ali se curava e com ela refez sua vida.

Alguns anos depois, os dois companheiros, curados e feli­ zes, levavam uma linda menina para o preto velho abençoar. Agora aqueles olhinhos não demonstravam mais medo, somen­ te muita esperança.

- Que Nosso Sinhô Jesus Cristo abençoe esta curumim e abençoe suncê, zi fio, para que desta vez possa mostrar todos os dias que a ama muito.

O homem entendeu o recado e, entre lágrimas, beijou as mãos de Pai Jacó.

- Às vezes, camboninho, é preciso que o fogo queime o passado para que possa brotar um novo amanhã. Saravá!

- Saravá, Pai Jacó. Sua bênção.

Agacha as costas e trabalha

No documento Vovó Benta - Causos de Umbanda Vol. 2.pdf (páginas 128-134)

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