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Voluntarismo doxástico: Mathias Steup

Uma outra forma de expressar a convicção de que podemos ser ativos em relação a formação de crenças é a proposta de Matthias Steup, segundo a qual deve-se distinguir

60 Refiro-me ao modelo padrão de ação intencional que estou adotando neste trabalho, que descreve a intenção em termos do par crença-desejo.

61 Uma análise mais detalhada da tese de que o ato de aceitação é um tipo especial de ação epistêmica está no capítulo 3. Meu diagnóstico é que a ideia de ação epistêmica só faz sentido de forma indireta.

62 A proposta de Steup não é uma tese sobre agência doxástica. Sua motivação primária é oferecer uma resposta ao problema do determinismo no âmbito da ética da crença. Uma revisão crítica do voluntarismo compatibilista de Steup pode ser encontrada em Müller (2004).

entre a evidência que o agente tem em favor de sua crença e a sua crença real. Segundo ele, em um processo de raciocínio normal, o agente delibera sobre a justificação de sua crença que p com base na sua evidência, formando o que ele chama de crença veredito. E somente depois de formar essa crença veredito é que ele decide formar a crença, que ele chama de crença objeto que p. Ele explica que a decisão de passar da crença veredito para a crença objeto, embora baseada em razões epistêmicas, é uma deliberação prática, que obedece aos mesmos princípios da ação intencional.

Assim, embora reconheça que não há voluntariedade no âmbito da formação da crença veredito, ele sustenta que há voluntariedade na formação da crença objeto ou da crença real. E esse processo de deliberação ou decisão, segundo Steup, se aplica a todas as nossas crenças, inclusive as aparentemente mais involuntárias, como as crenças perceptuais, que, na sua opinião, são tão voluntárias quanto qualquer ação.

Steup descreve este processo como automático e instantâneo. Uma vez que o agente julga que sua evidência suporta crer que p, ele “executa” sua decisão mediante o que ele chama de “controle interno profundo”:

Eu tenho um controle voluntário profundo sobre fazer x se e somente se (i) eu posso fazer x se decido x e posso me refrear de fazer x se decido não fazer x, e (ii) com relação à decidir fazer ou não x, eu tenho um controle interno profundo. (Steup 2000: 31) 63

Steup argumenta que esse mesmo tipo de controle (ou um análogo dele) se aplica também à formação de crenças:

Eu tenho controle voluntário profundo sobre minha atitude doxástica em relação à p se e somente se (i) quando eu decido tomar uma atitude alternativa em relação à p eu poderia tomar essa atitude, e (ii) com respeito à decidir qual atitude doxástica tomar com relação à p, eu tenho um controle interno profundo. (Steup 2000: 31)64

Independentemente do que Steup entende por “controle interno profundo”,65 a dificuldade aqui, como aponta Nikolaj Nottlemann (2006), está na analogia. O controle que temos sobre ações intencionais não é equivalente em nenhum sentido plausível ao

63 No original: “I have deep voluntary control over doing x if, and only if (i) I can do x iff decide to x, and I can refrain from doing x iff decide not to x, and (ii) with regard to deciding whether or not to x, I enjoy deep internal control.”

64 No original: “I have deep voluntary control over my doxastic attitude toward p if, and only if (i) were I to decide to take an alternative attitude toward p I could take that attitude, and (ii)with regard to deciding which doxastic attitude to take towards p, I enjoy deep internal control.”

65 O próprio Steup não fornece maiores detalhes sobre essa noção, exceto que ela é requerida como parte de uma estratégia compatibilista sofisticada de ação livre...”para assegurar que ação livre seja incompatível com lavagem cerebral, hipnose, manipulação, paranoia, e assim por diante” (Steup 2000: 31).

controle na formação de atitudes doxásticas. O termo “decisão” acima é usado em dois sentidos inteiramente diferentes, embora ambos legítimos, como nota corretamente Nottlemann.66 No primeiro caso, decisão diz respeito a razões práticas, que, como sugeri

no início deste trabalho, podem e frequentemente coincidem com razões epistêmicas. Já no segundo caso, a decisão diz respeito a razões epistêmicas, que, como também mostrei no capítulo anterior, não são suscetíveis à quaisquer outras razões, senão aquelas dadas pela evidência.

Para estabelecer a analogia pretendida por Steup teríamos que argumentar que intenções práticas são, de algum modo, equivalentes a decisões doxásticas causalmente eficazes. Teríamos que imaginar – um tanto contra intuitivamente, a meu ver – um agente operando simultaneamente com dois tipos de valores de decisão. Um tipo prático pragmático, no qual ao decidir, ele forma a crença de que ele tem boas razões pragmáticas para realizar a ação; e um tipo de valor prático epistêmico, no qual ele deve formar a crença de ele tem razões epistêmicas (evidenciais) para realizar a ação. Voltarei a esta distinção mais adiante.

É certo que muitas vezes, particularmente nos casos em que a evidência é inconclusiva, podemos, como sugere Ginet, decidir crer numa proposição. O marido que depois de percorrer 50 quilômetros de uma viagem de férias decide crer que ele chaveou a porta da casa, pois seria um grande transtorno voltar para conferir. Certamente há uma decisão aqui, mas essa é claramente a decisão de aceitação de uma crença e não de formação de uma crença.67

Como em qualquer ação intencional, a atitude de aceitar a crença que p é tomada por razões práticas – no caso evitar o transtorno de ter que voltar para casa para ver se a porta está realmente chaveada. Uma vez que conhecemos a história causal de como o marido decidiu crer que p, notamos que a intenção de evitar o transtorno de voltar para conferir não teve qualquer papel na formação da crença. Percebemos que ele tem razões epistêmicas suficientes, embora fracas, para crer que a porta está chaveada e seguir viagem. Assim, embora ele possa controlar sua ansiedade de várias maneiras – tomando um ansiolítico, por exemplo –, ele não pode, como sugere o famoso argumento de Alston,

66 Dizer que alguém decidiu crer que p pode significar que ele formou a crença de que ele tem boas razões para crer que p, mas também que ele está com intenção ou vontade de crer que p.

controlar o fato empírico bruto de que sua crença de que ele tem razões epistêmicas suficientes para crer que p o levou a crer que p.

Nota-se assim que o argumento da analogia de Steup somente pode funcionar se o termo decidir aplicado ao princípio de controle interno profundo tenha o sentido de

intencionar no análogo epistêmico. Isto é, tenha o sentido de ter a intenção de formar a

crença que p e não o sentido de formar a crença de que p. De tal modo que tanto o que ele chama de crença veredito, quando o que ele classifica de crença-objeto ou crença real devem obedecer ao mesmo padrão de controle. E isso é assim não apenas em virtude da impossibilidade psicológica apontada por Alston, mas também por razões conceituais.

Se Steup reconhece que não há voluntariedade no âmbito da formação da crença veredito, que não temos esse poder, então ele também deve reconhecer que a decisão de formar uma crença com base nesta crença veredito, uma crença que respeite valores puramente epistêmicos, é completamente inerte. O agente pode até “escolher” uma determinada crença, adquirida involuntariamente, como candidata para aquilo que ele deveria crer do ponto de vista epistêmico. Mas essa decisão será inócua. Se o agente não tem poderes causais em relação a crença veredito, respeitando-se a analogia, ele não poderá ter tais poderes sobre as crenças efetivas. A formação desta segunda crença irá obedecer ao que determina sua evidência, nada mais. A menos, é claro, que formação dessa crença não seja uma atitude de formação de crença, mas seja o ato ou a ação de aceitar, assumir ou apostar na verdade de uma proposição. E, neste caso, os valores de decisão serão pragmáticos, não-epistêmicos.

Talvez Steup queira dizer apenas que ao deliberar com base na sua evidência o agente adote automaticamente uma decisão prática. Ou ainda: que analogia se aplique apenas aos casos em que o agente realiza uma determina ação, se e somente se ele formou a crença objeto de que ele tem razões epistêmicas suficientes para realizá-la. Talvez ele possa sugerir também que tomar uma decisão prática por razões epistêmicas é, de algum modo, diferente (melhor) do que tomar uma decisão prática com base em razões pragmáticas. E que, neste caso, o agente somente irá realizar uma determinada ação, se e somente se ele formou a crença objeto de que ele tem razões epistêmicas suficientes para realizá-la. Mas o problema da desanalogia permanece.

Afora a dificuldade de se traduzir razões epistêmicas em termos de razões pragmáticas (talvez seja possível, se tomarmos razões epistêmicas como um tipo de razão

prática, como mostrarei no capítulo 3), o que racionaliza a decisão de formar voluntariamente uma crença para a qual o agente tem boas razões epistêmicas (evidenciais) não são essas razões. São razões pragmáticas, que como já referi anteriormente, podem ser qualquer razão que esteja alinhada com a intenção do agente.

Para que haja uma ação genuinamente epistêmica, como a sugerida por Steup, teríamos que ter uma ação intencional básica e direta (sem qualquer outro fim) e que pudesse ser adotada indiferente por razões práticas ou epistêmicas. Porém, uma ação deste tipo é implausível. Repetindo Davidson: agir é algo que um agente faz que “é intencional sob alguma descrição...[...] e a menos que um evento possa ser redescrito como, de fato, voluntário, ele não será sequer qualificado como uma ação” (Davidson 1980, ensaio 3). Portanto, a menos que se possa redescrever a formação de crença como um evento doxástico, de fato, voluntário, não há como falarmos em agência neste caso. E mesmo que a literatura venha a oferecer essa redescrição há um problema adicional, apontado por Alston: nós (agentes humanos) não teríamos como acessá-la. Se me pedissem para formar um conteúdo proposicional pela vontade, “eu simplesmente não saberia que botão acionar” (Alston 1989: 133).

Alston está se referindo obviamente a um tipo de agência doxástica direta, que é tópico deste trabalho.68 Na verdade, há vários “botões” que podemos acionar, seja para promover as condições “hospitaleiras” para que um determinado conteúdo venha à mente, como sugere Strawson, ou simplesmente para nos causar indiretamente certos estados mentais. Você quer crer que luz está acessa? Acione o interruptor! É o que sugere Richard Feldman com a sua proposta de voluntarismo doxástico restrito: se eu tenho controle sobre um estado do mundo e minha crença rastreia aquele estado, então eu tenho controle sobre minha crença (Feldman 2001: 82). Não há dúvida de que podemos controlar nossas crenças dessa maneira, mas não é esse tipo de controle que me interessa aqui. Se há uma tese interessante por trás da ideia de somos agentes epistêmicos, ela deve ir além do fato trivial de que podemos controlar os estados do mundo com nossas ações.