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Voz e Espaço

No documento A Voz e o Campo de Visão (páginas 58-61)

A VOZ NO CAMPO DE VISÃO

IV.3 Voz e Espaço

As ondas sonoras são uma forma particular das chamadas ondas elásticas. Sempre que produzimos uma súbita deformação num certo ponto do meio, (...), as forças elásticas farão com que os pontos próximos à deformação inicial comecem a se mover. Esses pontos, por sua vez, atuarão, por meio das forças elásticas, sobre outros pontos vizinhos, passando-lhes a ordem de começar a se mover, e assim por diante. Essa “reação em cadeia” representa uma onda elástica afastando-se da região da perturbação inicial. O que se afasta com esta onda não é matéria, mas energia: aquela energia necessária para por em movimento cada ponto alcançado pela onda. (...) A maneira como as ondas se propagam, são refletidas ou absorvidas

determina as qualidades acústicas de um aposento ou sala de concerto. (ROEDERER, 2002, p. 104)

O conceito de forças elásticas aqui exposto dialoga diretamente com os preceitos desta pesquisa, pois quaisquer vocalidades que surjam durante o Campo de Visão gerarão ondas elásticas (o próprio som da voz) que estarão ligadas entre si e conectadas à fonte emissora. A voz do ator carregará seus materiais internos pelo espaço, “perturbando” as moléculas com que ela se choca e espalhando sua energia pelo ambiente.

Sabemos que quaisquer formas de vocalidade precisam de um espaço físico concreto para existir, pois dependem das características acústicas de tal espaço a propagação e recepção dessas qualidades vocais pelos ouvintes. A voz humana já foi foco de intensos estudos sobre os aspectos de projeção, intensidade e altura, tanto na área dos estudos acústicos sobre a voz cantada, quanto às suas patologias e possíveis deficiências estudadas pelos fonoaudiólogos.

Aqui, o espaço cênico surge como mais um estímulo na construção do imaginário dos atores no coletivo do Campo de Visão, além de contribuir individualmente para sensações perceptivas de suas próprias vozes. O espaço cênico no Campo de Visão é literalmente um campo de criação, o espaço neutro para ser preenchido com respirações, estados, imagens internas, sensações, gestos e vocalidades, como já dissemos. E além disso, o espaço fisicamente informa os atores da necessidade de energia física que deverão dispor corpórea- vocalmente durante a dinâmica.

Uma vez iniciado o Campo de Visão, o ator se utilizará de sua percepção auditiva para ajustar a potência vocal ao que está processando internamente, de forma sensível e já integrada ao seu fazer. Os ouvidos do coletivo já estão sensibilizados, o ator assim terá consciência da acústica do ambiente, não de forma estudada tecnicamente, mas sensibilizada, pois a música que ele escuta já revela qualidades acústicas do ambiente, por exemplo.

Como em qualquer ambiente para a ação cênica, o ator deve tirar proveito das qualidades acústicas do espaço, deve entender como seus colegas o escutam para que suas palavras ou vocalidades abstratas consigam chegar aos ouvidos com a qualidade de afetá-los. Durante a dinâmica, onde o contágio entre as poéticas dos atores é a premissa estruturante, o ator pode pesquisar em si suas qualidades vocais, porém o contágio pelo o que sua voz possa carregar só se dará com um mínimo energético possível para que ela ocupe o espaço. O que queremos dizer é que o ator, durante a dinâmica, não precisará pensar em projetar tecnicamente a voz no espaço; ele poderá pensar em incluir o coletivo em seu “discurso” vocal: assim ele estará mais dilatado, menos focado em si mesmo e mais poroso para ser afetado e afetar.

O improviso da dinâmica faz com que alguns efeitos acústicos espaciais sejam investigados sem mesmo o coletivo ter se colocado nessa meta. Um exemplo: num Campo de Visão, um ator estava chamando a atenção de alguém erguendo sua mão direita e movimentando seus dedos, surgindo depois a vocalidade: “psiu!”, facilmente associada a esse imaginário. Esse ator então, foi chamado a liderar o Campo de Visão, e num momento específico, o coro tornou- se um paredão de pessoas chamando por alguém, cada um ao lado do outro com seus objetivos em processamento. Um efeito acústico que o líder descobriu foi que, quando ele avançava lentamente, incluindo sua mão no campo de visão do outro ator, ele conseguia controlar a quantidade de pessoas do coro que o estariam seguindo. Houve, então, um efeito de eco do “psiu”, começando com o líder e entrando em cadeia com o coro.

O Campo de Visão é um jogo que acaba inevitavelmente desenvolvendo uma sensibilidade perceptiva em relação ao espaço cênico nos atores, pois o líder por exemplo, poderá pensar em como distribuir esse coletivo de uma forma específica no espaço, optando por deixar o grupo inteiro de costas a ele e “solar” ou ainda deixar grupos espalhados pelo espaço com diferentes qualidades gestuais. Enfim, as possibilidades são infinitas e, por consequência,

as vocalidades acompanharão tais disposições espaciais e os intérpretes poderão tirar partido dessas novas geografias com suas vozes.

Os conceitos de refração e reflexão de ondas no espaço serão utilizados neste estudo, uma vez que descrevem as possibilidades de trajetória da voz no ambiente cênico. O conceito de reflexão é bem vindo, pois o Campo de Visão é um jogo que não tem direções pré-estabelecidas. O jogo cênico ocorre para qualquer lado da sala, a voz do ator, enquanto onda sonora, pode atingir as paredes, tetos e pilastras para retornar ao jogo trazendo um pouco do espaço em sua constituição. Assim sua voz sai de si, atravessa a sala, atinge a parede e retorna alterada, amplificada e reconfigurada pelo próprio espaço, participante ativo do jogo.

O conceito físico de Refração dialoga diretamente com os aspectos de contágio e afecção do Campo de Visão. Refração é um desvio que as ondas sofrem ao passar por materiais distintos entre si quando se muda o anteparo de sua propagação, por exemplo: quando um feixe de luz passa do ar à agua, sofre refração e suas qualidades se alteram. Pensando nos aspectos desta pesquisa: a voz, ao percorrer os espaços e o coletivo dos atores, é refratada por seus corpos, sofrendo desvios e atravessando-os, vibrando também em suas células, ossos e músculos e, mais uma vez, misturando-se aos materiais íntimos e expressados dos outros. A voz refratada ainda possui a mesma força de alcance espacial, porém, agora no Campo de Visão, ela amplifica-se no corpo do outro, adquire novas qualidades e até mesmo novos sentidos, porque inclui o outro e é modificada por ele, desviando-se, diferenciando-se do modo pelo qual foi emitida por sua fonte primeira.

No documento A Voz e o Campo de Visão (páginas 58-61)