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Voz Profética: individua-se por uma vocação ética, o seja, o eu é eleito e acusado ao “responder” a um

CAPÍTULO I – APROPRIAÇÃO CRÍTICA DO MÉTODO FENOMENOLÓGICO E RADICALIZAÇÃO RUMO AO PARADIGMA DA

61 Voz Profética: individua-se por uma vocação ética, o seja, o eu é eleito e acusado ao “responder” a um

apelo heterônomo anterior à qualquer decisão ou engajamento no ser. Tal heteronomia implica uma hetero- afecção que contém a força (pro-)vocativa do Outro; nessa “intriga” o eu desperta no acusativo a guisa de

auto-escuta no “eco” de sua responsabilidade “in-finita” por outrem. O Eu Profético é também o Eu

Messiânico: eleito pelo “Bem além do Ser”, tendo de “responder ao Infinito” - ao Deus Invisível que é “Voz

no Deserto” - ele é “único” em sua responsabilidade, insubstituível em sua capacidade de Substituição, isto é, de “responder” enquanto “sofrer por” que pressupõe o extremo de “morrer por”. Dor da Expressão, Prova

do Inter-humano. (Ver Le prophétisme, Le messianisme et Le Témoignage. IN: CIARAMELLI, F. Transcendance et éthique. Bruxelas: Ousia, 1989, p. 145-61)

O conceito de “Eu” ou o conjunto de definições de qualquer egologia parte já de uma certeza: Eu sou. Intuição cartesiana, o cogito ergo sum, que se desdobrou como afunilamento do aristotélico hipokeimenon na singularidade (formal e epistemológica) de uma consciência pensante. Eis a revolução categorial trazida pela modernidade: reunião do sentido e do percebido pelo eu, expressão individual de juízos unificadores, síntese da consciência na cogitação. Descartes, na solidão fria de uma caserna, em frente a uma lareira trepidante proclama: “Penso, logo existo!”. Mas seu dizer se dirigia às chamas dançantes – como que a salamandras imaginárias – ou à interlocutores pressupostos, na esperança de que um dia fosse ouvido sem a “ameaça da fogueira”?

Neste rastro, a indagação pelo ego e seu “poder de ser um” encontrou Spinoza (conatus essendi) e Kant (apercepção transcendental), e, no ápice da investigação egológica/ontológica, a fenomenologia transcendental de Husserl e a analítica existencial de Heidegger. Esforço, síntese e engajamento do Eu no seu ser (persistência e repetição) ou no Ser o seu (apropriação e propriedade), na proclamação ou na compreensão do Ser. Pólo intencional identificador das apresentações assentado sobre um lastro de vivências (erlebnisse) ou ser-aí-para-a-morte-na-posse-de-si-cuidando-se (Dasein: sorge + jemeinigkeit

+ geworfenheit...), o sujeito é um modo-de-ser ou um exercício no ser. Entretanto, Lévinas perguntará: “ser um” é um poder que se exercita ou uma transcendência na expressão de

“quem” se é? O “Eu penso” não pressupõe o “Eu falo”? O “Eu falo” não é já um “Eu respondo”, isto é, uma eleição acusativa como um “Eis-me!” para-o-outro ou diante de outrem?

A trilha da “mesmidade” (da qual Lévinas desconfia) seguida pela tradição européia ocidental de “Pensamento Total” coloca, prioritariamente, o Mesmo antes do Outro, a autonomia racional antes da heteronomia viva, e, destarte, assenta o “princípio de egoidade” do eu sobre um substrato ontológico que tende a se fechar sobre um sujeito solitário auto-pensante (cogito e conatus essendi). A identidade do Eu seria sua auto- identificação contínua no/como Mesmo – gênero, estrutura formal, norma racional, pólo ideal – como uma sublimação em que a densidade subjetiva se “des-corporifica”.

A heteronomia e a alteridade são, neste esquema “idealista”, abordadas como momentos de um jogo dialético ou etapas de um processo sintético polarizado. Lévinas questiona a Ontologia como filosofia primeira e denuncia a arbitrariedade de tal redução do particular diacrônico ao geral sincrônico, em que “a razão engole o sujeito” (LÉVINAS, 1980, p. 278) e em que “nada está fora” (p. 10). O poder, como ontologia, é mantido e exercido

através de mediações e neutralizações. Os indivíduos seriam andaimes alijáveis de um processo teleológico (1993, p. 86). Não seria preciso, então, remontar da atividade à passividade, do mediato ao imediato, do impessoal total ao pessoal singular, para que uma “outra intriga de sentido” se faça ouvir, onde a alteridade significaria uma heteronomia como orientação primeira?

O Ego Ativo ou o Ser-Aí Compreensivo, síntese de identificação e angústia de existir – o que o porá em questão? Primado do Mesmo ou o narcisismo, em que a autonomia da liberdade justificada por si “compraz-se, como Narciso, consigo mesma (…) e o encontro com o não-eu é amortecida pela evidência...identificação que exige a mediação dos neutros” (LÉVINAS, 1998, p. 203-4). Quem provocará fissuras neste monólito aparentemente homogêneo? Em que outro lugar a subjetividade buscará seu sentido para além do ser?

Haveria uma individualidade não-conceitual aquém do ego auto-constituinte que, por sua própria constituição sensível (passiva e responsiva), estaria implicado na alteridade que lhe concerne e à qual se relaciona? O caráter “enigmático” do ente pessoal não significará aquém e além do “campo fenomênico” de sua aparição?

c) Enigma e Fenômeno: sobre a passividade corporal da proto-impressão

Foi com Edmund Husserl e o método fenomenológico (epoché e analise

intencional) que a consciência pôde revelar um pouco mais de suas profundezas pré-

reflexivas e a passividade anárquica que precede a constituição do mundo. A síntese passiva da corporeidade (kinestesias e sin-esthesias) e da temporalidade (presente vivo, proto- impressão, retenção e protensão) anunciava uma passividade de fundo do sujeito que, intencionalmente, doava sentido (sinngebung) à afecção e a assumia como atividade consciente noético-noemática.

Em tal passividade se produziria a Urimpression (“Proto-Impressão” - primeiro destacamento e primeira sensibilização, sensação de si na paciência), diacronia individuante no seio do “presente vivo” de uma temporalidade imanente. Também, além da temporalidade, a sensibilidade originária ganhava a consistência de um corpo próprio senciente; ou seja, antes da atividade consciente (noesis) correlacionando intencionalmente seus termos ideais determinados (noemas), haveria uma plenitude interior de si como vivente e um ultrapassamento da intencionalidade na encarnação. (LÉVINAS, 1998, p. 160-3). A interioridade extrapolaria a intenção iluminadora e sua articulação na inteligibilidade do ser, ou seja, seria irredutível aos horizontes, carne pessoal e interioridade expressiva: enigma.

Os fenômenos e seus modos de apresentação, bem como a explicitação do sentido dado e dos horizontes de sentido pressuporiam já a transcendência do corpo62 vivo frente aos contextos em que se move e aos conteúdos que vive. O sujeito viveria este paradoxo como transcendência na imanência (intencionalidade) e como transcendência

corporal (ultrapassamento da intencionalidade). O outro “corpo próprio”, o corpo vivo alheio

seria abordado, para Husserl, como que por aproximação “empática” e por analogia numa

síntese analógica endopática em que se identificaria na “expressão corporal alheia” um outro-

eu (alter-ego) análogo, mas externo a mim. Contudo, as análises da corporeidade não revelarão também um auto-estranhamento e uma abertura não-analógica ao outro? As relações auto e hetero-afetivas primordiais se resolveriam em sínteses intencionais identificantes?

d) Alteridade e responsabilidade: o Rosto e a moralidade

Como foi dito, Emmanuel Lévinas desconfia da tradição filosófica do Mesmo – egotista e narcisista, e, valendo-se da fenomenologia como método promissor, resgata e renova as noções de alteridade e responsabilidade. Opõe-se, portanto, ao esquecimento do Outro e ao embaçamento da intersubjetividade radical (assimétrica e traumática), propondo a defesa de um sentido ético irredutível na relação “meta-física” entre Interioridade e

Exterioridade. O Outro é o Uno que se expressa para além do sistema, é o exterior a mim

interno a si que, ao se expressar, é Rosto63. O Rosto (visage) seria a modalidade pela qual o

enigma da interioridade ganha um sentido na expressão, na situação crítica e fundadora do

encontro inter-humano. Por possuir uma Interioridade irredutível, que constitui sua alteridade, o Outro se revela como Exterioridade para o Eu; o modo dessa revelação é já uma aproximação em que o outro “faz face”, inquieta e concerne individualmente, é Rosto.

Lévinas defende uma subjetividade cujo sentido se funda numa “relação frontal” (face-a-face) com outrem, intriga ética, em que o outro não é absorvido nem reduzido. Tal relação é definida como responsabilidade e responsividade64 em que, pela doação ética de sentido na discursividade, o eu se individua como falante. A unicidade do Eu estaria no fato de este ser insubstituível na sua responsabilidade e na sua condição de

62 Ver REICHOLD, Anne. A Corporeidade na ética de Emmanuel Lévinas. IN: A Corporeidade Esquecida. RS: Nova Harmonia, 2006, p. 222-44, 264p.

63 Em geral utilizaremos Rosto (maiúsculo) para designar a categoria filosófica levinasiana para a expressão significante da alteridade de outrem. Quando utilizarmos “rosto” (minúsculo), significa o rosto humano particular ou a repetição casuística do conceito filosófico. Nas citações os termos aparecem de forma indistinta, respeitando a escrita original.