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Durante nossos estudos sobre as vulnerabilidades infantis, foi constatada uma discussão acerca dos termos vulnerabilidade e risco, os quais, ainda que com uma forte relação entre si, têm sido utilizados equivocadamente por serem dois conceitos distintos (JANCZURA, 2012). Após apresentar as definições dos conceitos afirmando que só esses podem ser entendidos como “um processo associado a diferentes contextos histórico-sociais” (JANCZURA, 2012, p. 302), a mesma autora conclui que o conceito de risco vai se referir à situação de grupos e o conceito de vulnerabilidade “deve ser usado para a situação fragilizada de indivíduos” (JANCZURA, 2012, p. 307). Rizzini et al (2010), no documento “Crianças e adolescentes com direitos violados: situação de rua e indicadores de vulnerabilidade no Brasil urbano”, apresentam uma discussão acerca dos mesmos conceitos. Os autores também constatam uma semelhança em seus usos em diferentes discursos (RIZZINI et al, 2010). Sobre risco, os autores trazem a visão de Hutz e Koller, para os quais,

uma criança é considerada em situação de risco quando seu desenvolvimento não ocorre segundo o modo esperado para sua faixa etária, de acordo com os parâmetros de sua cultura. Relacionado com questões de ordem física, social ou psicológica, o risco pode ser resultado de ações realizadas por indivíduos de modo a comprometer sua existência, como por exemplo, o uso de drogas (lícitas ou ilícitas), e relações sexuais desprotegidas (HUTZ; KOLLER, 1996 apud RIZZINI et al, 2010, p. 30),

e de Sobral (2008 apud RIZZINI et al, 2010) afirmando no que lhe concerne que, independentemente da classe social a que pertencem, crianças e adolescentes estão sujeitos a se depararem em situações de risco como “consequência de conflitos familiares ou carência de modelos que estimulem o respeito à vida e à dignidade humana” (SOBRAL, 2008 apud RIZZINI et al., 2010, p. 30).

Entretanto, para Rizzini et al (2010, p. 30) “a expressão ‘em situação de risco’ é sistematicamente aplicada para designar, de forma discriminatória, apenas a parcela pobre da população”.

Em relação ao termo vulnerabilidade, fundamentados em Bellenzani e Malfitano (2006), Rizzini et al (2010, p. 31) vão argumentar que o conceito em questão tem por objetivo “dimensionar o contexto sociocultural, os direitos violados ou negligenciados, os agravos à saúde e os impactos na qualidade de vida” e que as crianças e adolescentes, no contexto apresentado no documento, estão ainda mais

sujeitas ao processo de exclusão e violação de direitos básicos. Ou seja, muitas vezes, as crianças estão/são expostas a situações de riscos que podem intensificar sua situação de vulnerabilidade.

Freitas (2013) aborda a questão afirmando que a palavra vulnerabilidade se refere às situações nas quais alguns estão “mais expostos a riscos iminentes” (FREITAS, 2013, p. 36), o autor utiliza o exemplo de pessoas que vivem em locais sujeitos a alagamentos e deslizamentos. Sobre situações de risco, o autor afirma serem situações nas quais a vida das pessoas é impactada devido a problemas de diferentes esferas (FREITAS, 2013, p. 36).

De acordo com Freitas e Prado (2016), desde o final do século XX, a palavra

vulnerabilidade vem sendo amplamente utilizada para tratar sobre questões referentes

ao que os autores chamam de “efeitos territórios”:

Mapas de exclusão social, índices de vulnerabilidade social, famílias ou crianças em situação de vulnerabilidade, escolas em zonas vulneráveis são exemplos de palavras/conceitos/instrumentos que revelam a circulação de jargões da análise econômica, das sumas sociológicas e mesmo da produção acadêmica do serviço social entre aqueles que pensam as complexas relações existentes entre escola e pobreza, entre escola e violência urbana e entre escola e família (FREITAS; PRADO, 2016, p. 14).

Assim como Rizzini et al (2010) percebem uma discriminação no uso do termo “situação de risco”, para Freitas e Prado (2016) a palavra vulnerabilidade vem sendo utilizada de uma forma estigmatizante, ou seja, aqueles que vêm de áreas vulneráveis estão sendo vistos como pobres.

Mas se fizermos uma breve busca da palavra “vulnerabilidade” em qualquer dicionário impresso ou eletrônico, obteremos como resultado algo como: “característica, particularidade ou estado que é vulnerável; qualidade que pode se encontrar vulnerável” (VULNERABILIDADE, 2021); “característica de quem ou do que é vulnerável, ou seja, frágil, delicado e fraco.” (VULNERABILIDADE, 2021a); “qualidade ou estado do que é vulnerável; suscetibilidade de ser ferido ou atingido por uma doença; fragilidade; característica de algo que é sujeito a críticas por apresentar falhas ou incoerências; fragilidade” (VULNERABILIDADE, 2021b). Os exemplos que os sites oferecem giram em torno de diferentes categorias de vulnerabilidade: tecnológica, patrimonial, segurança pública, social, ambiental, entre outras.

Quando falamos, por exemplo, em vulnerabilidade social é comum pensarmos em pessoas que vivem em situação de risco, onde essas podem ser definidas como moradia em locais com alto índice de criminalidade, com falta de saneamento básico e/ou falta de outros serviços públicos básicos, entre outros.

No Estado de São Paulo, por exemplo, para se mensurar locais mais ou menos “vulneráveis”, é utilizado o Índice Paulista de Responsabilidade Social (SEADE), no qual são combinados alguns indicadores que geram os grupos bem como as categorias que os caracterizam. Os grupos, numerados de 1 a 5, são nomeados, respectivamente, como: desiguais, dinâmicos, equitativos, em transição e vulneráveis. Por vulneráveis o índice entende aquelas regiões com baixa riqueza, baixa longevidade e baixa escolaridade. Freitas e Prado (2016, p. 15), ao trazerem uma reflexão sobre o mesmo índice, concluem que, “em regra, populações vulneráveis, são aquelas que são identificadas com locais desprovidos de serviços públicos regulares e consistentes”.

A reflexão acerca do exposto torna-se fundamental aqui à medida em que não poucas vezes a escola utiliza o termo vulnerável para identificar crianças vindas de locais vulneráveis, e “vir de locais vulneráveis” torna-se um problema pois projeta, utilizando o termo empregado pelos autores, uma imagem de deterioração (FREITAS; PRADO, 2016).

Essa imagem deteriorada transmite a ideia de que essa criança é “menos um sujeito de direitos e mais uma pessoa desprovida da possibilidade de ser plenamente escolarizada” (FREITAS; PRADO, 2016, p. 15). E por ser vista como não escolarizável, a criança corre o risco de tornar-se vulnerável ao ter o direito à educação violado.

O artigo 4º do ECA e o conceito de bases de apoio, apresentados no subitem anterior, vão ao encontro com a ideia proposta por Freitas e Prado (2016) de que todas as crianças são vulneráveis partindo da noção de que crianças vivem sob a responsabilidade de alguém mais velho, podendo afirmar que “vulnerabilidade não é inerente à pobreza. Vulnerabilidade não é uma fase da vida. [...] vulnerabilidade não diz respeito ao corpo, mas à presença do corpo quando, com, em, ao lado, entre.” (FREITAS; PRADO, 2016, p. 18).

E se pararmos para refletir sobre a presença do corpo em diferentes condições, é possível perceber que, em qualquer sociedade, a criança está sempre numa posição

passiva em relação ao seu próprio corpo porque criança e, por conseguinte, porque não sobrevive por si, em si e para si: “a criança sempre está com, está entre, permanece ao lado de, é levada para, é deixada em, é uma extensão de, é uma incumbência para, é…” (FREITAS; PRADO, 2016, p. 17).

Desta forma, compreendemos que ao depender de um adulto para a garantia de ações básicas do dia-a-dia, a criança torna-se vulnerável, conforme afirmam Sierra e Mesquita, “as crianças e os adolescentes precisam da relação com os adultos para crescer e isso os torna vulneráveis. Vale lembrar que seus direitos, para serem assegurados, dependem, em grande parte, dos deveres dos adultos.” (SIERRA; MESQUITA, 2006, p. 150).

No documento elaborado por Rizzini et al (2010), os autores trazem seis situações de vulnerabilidade com alguns direitos associados à essas vulnerabilidades, ilustrando a discussão com artigos do ECA, sendo elas:

· 1) Vulnerabilidade associada às condições precárias de vida (Artigos 3º, 4º e 7º, Estatuto da Criança e do Adolescente, 1990):

Art. 3º A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade. Art. 4º É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.

Art. 7º A criança e o adolescente têm direito à proteção à vida e à saúde, mediante a efetivação de políticas sociais públicas que permitam o nascimento e o desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existência (BRASIL, 1990).

· 2) Vulnerabilidade em relação ao contexto familiar (Artigo 19, Estatuto da Criança e do Adolescente, 1990):

Art. 19. É direito da criança e do adolescente ser criado e educado no seio de sua família e, excepcionalmente, em família substituta, assegurada a convivência familiar e comunitária, em ambiente que garanta seu desenvolvimento integral (BRASIL, 1990).

· 3) Vulnerabilidade associada à violação do direito à educação (Artigo 53, Estatuto da Criança e do Adolescente, 1990):

Art. 53. A criança e o adolescente têm direito à educação, visando ao pleno desenvolvimento de sua pessoa, preparo para o exercício da cidadania e qualificação para o trabalho, assegurando-se lhes:

I - Igualdade de condições para o acesso e permanência na escola; II - Direito de ser respeitado por seus educadores;

III - direito de contestar critérios avaliativos, podendo recorrer às instâncias escolares superiores;

IV - Direito de organização e participação em entidades estudantis;

V - Acesso à escola pública e gratuita, próxima de sua residência, garantindo-se vagas no mesmo estabelecimento a irmãos que frequentam a mesma etapa ou ciclo de ensino da educação básica (BRASIL, 1990).

· 4) Vulnerabilidade associada ao Trabalho Infantil (Artigos 60 a 67, Estatuto da Criança e do Adolescente, 1990):

Art. 60. É proibido qualquer trabalho a menores de quatorze anos de idade, salvo na condição de aprendiz.

Art. 61. A proteção ao trabalho dos adolescentes é regulada por legislação especial, sem prejuízo do disposto nesta Lei.

Art. 62. Considera-se aprendizagem a formação técnico-profissional ministrada segundo as diretrizes e bases da legislação de educação em vigor. Art. 63. A formação técnico-profissional obedecerá aos seguintes princípios: I - Garantia de acesso e frequência obrigatória ao ensino regular;

II - Atividade compatível com o desenvolvimento do adolescente; III - horário especial para o exercício das atividades.

Art. 64. Ao adolescente até quatorze anos de idade é assegurada bolsa de aprendizagem.

Art. 65. Ao adolescente aprendiz, maior de quatorze anos, são assegurados

os direitos trabalhistas e previdenciários.

Art. 66. Ao adolescente portador de deficiência é assegurado trabalho protegido.

Art. 67. Ao adolescente empregado, aprendiz, em regime familiar de trabalho, aluno de escola técnica, assistido em entidade governamental ou não-governamental, é vedado trabalho:

I - Noturno, realizado entre as vinte e duas horas de um dia e às cinco horas do dia seguinte;

II - Perigoso, insalubre ou penoso;

III - realizado em locais prejudiciais à sua formação e ao seu desenvolvimento físico, psíquico, moral e social;

IV - Realizado em horários e locais que não permitam a frequência à escola (BRASIL, 1990).

· 5) Vulnerabilidade associada à violação do direito à saúde (Artigos 7º e 11, Estatuto da Criança e do Adolescente, 1990):

Art. 7º A criança e o adolescente têm direito à proteção à vida e à saúde, mediante a efetivação de políticas sociais públicas que permitam o nascimento e o desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existência.

Art. 11. É assegurado acesso integral às linhas de cuidado voltadas à saúde da criança e do adolescente, por intermédio do Sistema Único de Saúde, observado o princípio da equidade no acesso a ações e serviços para promoção, proteção e recuperação da saúde (BRASIL, 1990).

· 6) Vulnerabilidade associada à exposição à violência (Artigo 18, Estatuto da Criança e do Adolescente, 1990):

Art. 18. É dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor (BRASIL, 1990).

Por isso é tão necessário que se compreenda o que os professores pensam a respeito do ECA, pois é através dele que os direitos das crianças estão estabelecidos e porque existem em seu conteúdo aspectos que definem e ajudam a compreender vulnerabilidades infantis específicas, tornando-se relevante verificar se é conhecido e utilizado em ambiente escolar.

No próximo capítulo tecemos algumas considerações sobre a opinião docente acerca de seus alunos nos fazendo perceber que a fala de professores nunca é neutra. Além disso, destacamos como a violência se apresenta em âmbitos familiar e escolar.

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