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ZIE E ZIE – AO VIVO

No documento pedrobustamanteteixeira (páginas 95-99)

Ainda que tivessem antecipado o repertório do show Zii e Zie em Obra em progresso, Caetano e Banda Cê, mantendo o costume, ainda iriam sair com o show do disco. Se nos shows de Obra em progresso prevalecia um clima de ensaio, com muitas variações no repertório, testes, convidados, conversas, agora tinha de ser pra valer. Com esse show, a banda que se fixara no Rio de Janeiro desde o início do projeto Obra em progresso até a estreia do show Zii e Zie, deveria alçar seu voo para além da cidade. Depois, é claro, haveria de voltar. Esse DVD traz o registro dos shows ocorridos no Vivo Rio (o mesmo local dos shows de Obra em progresso) nos dias 7 e 8 de outubro de 2010, último show de uma turnê que passou por vários estados brasileiros, pela Europa e pelos Estados Unidos.

Depois que a Banda Cê acompanha Caetano na reflexão sobre o samba que se faz em Zii e Zie, ou seja, depois que a banda passa a compreender melhor a formação de Caetano, ela pode enfim acessar com ele toda a sua obra: a fase tropicalista, o rock do exílio, o seu samba, a sua bossa nova, o seu axé, o seu rap, canto-falado, e até mesmo, o repertório ibero- americano de Fina estampa ou o anglófono de A Foreign Sound. Apesar de já estarem suficientemente escolados, os jovens da Banda Cê, a princípio mais identificados com o som de Transa e o som de Cê, encaram essa abertura com muita dedicação e respeito à vida e à arte de Caetano Veloso. Ainda assim, imprimem claramente no trabalho as suas assinaturas. Talvez o verbo aqui seja trans-significar.

Um raro exemplo de samba tropicalista, “A voz do Morto”, de Caetano Veloso, abre o show.

Estamos aqui no tablado Feito de ouro e prata E filó de nylon

Eles querem salvar as glórias nacionais As glórias nacionais, coitados

Ninguém me salva Ninguém me engana Eu sou alegre Eu sou contente Eu sou cigana Eu sou terrível Eu sou o samba A voz do morto Os pés do torto O cais do porto A vez do louco A paz do mundo Na Glória!

Eu canto com o mundo que roda Eu e o Paulinho da Viola Viva o Paulinho da Viola! Eu canto com o mundo que roda Mesmo do lado de fora

Mesmo que eu não cante agora Ninguém me atende

Ninguém me chama Mas ninguém me prende Ninguém me engana Eu sou valente Eu sou o samba A voz do morto Atrás do muro A vez de tudo A paz do mundo Na Glória!

Sua estrutura é simples. Nas duas primeiras estrofes há uma dicção de rock tropicalista, invocado, a la “Proibido proibir”. Depois, nas duas estrofes seguintes, há um sambinha sincopado de duas partes, em cuja primeira parte, com uma melodia bem simples, e na segunda, sempre no contratempo, faz-se um contracanto da primeira parte com o destaque da síncope final. Essa canção fora encomendada à Caetano por Aracy de Almeida que,

incomodada por sempre estar vinculada a Noel Rosa, “o morto”, pediu para que Caetano, à luz da Tropicália, tratasse a questão da tradição no samba. A canção foi gravada num compacto de Aracy de Almeida em 1968, mas logo foi censurada pelo governo militar. Ainda assim, Aracy nunca deixou de cantá-la.

Curiosamente, aquilo que fora urgente, em 1968, no embate entre a MPB, a Jovem Guarda e o Tropicalismo, voltava a ser urgente no despertar do século XXI, com o renascimento da Lapa e a ascensão do samba e do choro ditos de raiz. Urgente, portanto contemporâneo. Para afirmar um samba para além do Samba, o dito de raiz, é preciso antes entender essas raízes, questioná-las e aí então elaborar um “argumento”85 para escapar da tradição e tentar ir além. O argumento agora é o transamba, antes fora a Tropicália, a Antropofagia. Ademais, é preciso ir além, porque, como diz Caetano, sem saudosismo, “o samba ainda vai nascer”.

Na versão de “A voz do morto” apresentada no show de Zii e Zie, a banda introduz essa música “cool” e antiga, com dois dos mais populares refrões do carnaval da Bahia de 2009: O refrão de “Cole na corda” (“Psirico passando é madeira é viola/ então cole na corda”) do Psirico, e “Tem que ser Viola” ( “Viola, tem que ser viola, tem que ser viola, tem que ser viola...”) do Fantasmão. Assim, antes da primeira estrofe (rock tropicalista), há uma introdução com esses “sambas-axé”. No fim da canção, ainda se cita Kuduro, outro grande sucesso do carnaval da Bahia de 2009. Unindo a canção tropicalista com axé baiano de 2009, atualiza-se uma práxis. A Tropicália não está no passado; a Tropicália é sempre um movimento.

A canção já nascia para questionar a tradição. A letra é enfática. Como se fazia naquele tempo, separava-se bem: de um lado NÓS, a vanguarda, a Tropicália, do outro, ELES, os guardiões das tradições. Aqui, os inimigos, ELES, ameaçam o devir do samba em nome da salvação das glórias nacionais. A reação na canção, no entanto, é de desprezo e deboche. Mas com o endosso de Aracy de Almeida, que é muito mais que “a voz do morto”, pois é também a voz do samba que ainda vai nascer; a canção coloca em cheque toda uma ideia de tradição. Assim, abre espaço para novos devires no samba, na música pop, popular, inclusive, abre caminho para o próprio samba do jovem compositor Caetano. Essa composição, que marca a libertação artística de Aracy de Almeida do padroado de Noel Rosa, a partir dos shows de Zii e Zie, passa a deliberar a experiência da Banda Cê com o samba.

85 Quando dizemos argumento estamos pensando também na reação do supracitado Paulinho da Viola que em “Argumento” canta: “tá legal eu aceito o argumento, mas não me altere o samba tanto assim/ saiba que a rapaziada está sentindo a falta/ de um cavaco, de um pandeiro e de um tamborim”.

Depois dessa catártica nota introdutória, a banda poderia vir tranquilamente com os seus instrumentos elétricos, os seus arranjos construtivistas, os seus transambas, pois a porteira já estaria escancarada.

No cenário da primeira música, “A voz do morto”, há apenas uma asa-delta real iluminada num fundo escuro. A partir da segunda, “Sem cais”, por detrás dessa asa-delta revela-se um telão em que se começa a passar imagens das praias do Rio. Como já dissemos, é possível que a configuração da letra dessa canção tenha sido sugestionada pelo desenho de asa que se vê no refrão dessa canção. Esse refrão que paira, como uma asa-delta acima da estrofe que traz os nomes de alguns locais famosos do Rio: “Barra, Gávea e Arpoador”. O telão põe primeiro a asa-delta em movimento, depois a banda e, por fim, toda a plateia, como num cinema de parque de diversões, embarca nessa asa-delta transcendental.

A banda, com uma dinâmica muito cuidadosa, em que tudo é arranjado e executado de forma que os sons não se embaralhem, está voando. O som da banda flui entre os estilos. Faz- se quase imperceptível em algumas canções, mas sempre volta com peso, dinâmica e beleza. Da mesma forma, nem sempre se projetam imagens no telão; às vezes ele se apaga, para acender mais o cantor, a banda, a asa-delta. A palavra aqui é dinâmica. Se há uma dinâmica cuidadosa nos arranjos há também uma, igualmente cuidadosa, para se adicionar as projeções à música. Ainda assim, o show é bem solto, leve. Plana pelo Rio, por Cuba, pela Argentina de Gardel, voa no tempo, passa pelo exílio londrino, pelo Tropicalismo, pelos anos 80, 90. Há, como diz Marcelo Callado, “o lance cabeçudo” dos Transambas, mas não é só isso. No show já se apresentam várias saídas para a equação proposta em Zii e Zie. E é claro que Caetano – como ainda veremos no próximo disco, último da trilogia – mais uma vez, preferirá sair por todas elas.

Antes, entre o fim da turnê de Zii e Zie e o início das gravações do terceiro disco da Trilogia Cê, Caetano começaria a trabalhar na composição de um grupo de canções para serem gravadas por Gal Costa, e numa estética para esse disco que ele mesmo produziria.

No documento pedrobustamanteteixeira (páginas 95-99)