• Nenhum resultado encontrado

A CONCEPÇÃO HUMEANA DE EU

E SEUS PROBLEMAS

3.1. A CONCEPÇÃO HUMEANA DE EU

Hume começa sua análise direta da identidade pessoal (HUME, 2001, pp.299-313; 1978, pp.251-263) apresentando aquela concepção da tradição filosófica que ele deverá questionar, a saber, a concepção segundo a qual podemos ter a evidência introspectiva de nosso próprio eu enquanto existindo continuamente como um sujeito invariável e simples das sucessivas percepções distintas, descontínuas, variáveis e múltiplas:

“Há alguns filósofos que imaginam que a todo o momento temos consciência íntima do que chamamos o nosso eu; que sentimos a sua existência e a sua continuidade na existência; e que estamos certos, para além da evidência de uma demonstração, da sua identidade e simplicidade perfeitas.” (HUME, 2001, p.299)xlviii.

O ponto mais básico da crítica de Hume às afirmações de que o eu consiste em um sujeito idêntico, contínuo e invariável, dos estados mentais diz respeito a que, segundo o princípio de significação empirista, essas afirmações só seriam inteligíveis e válidas se a idéia de eu derivasse de alguma impressão (“... if we wou´d have the idea of self pass for clear and intelligible”; HUME, 1978, p.251):

“Infelizmente todas estas afirmações positivas sai contrárias a essa mesma experiência que se invoca em seu favor; e não temos uma idéia do eu da maneira que está aqui explicada. Com efeito, de que impressão poderia derivar esta idéia” (HUME, 2001, p.299)xlix.

Isso é assim, pondera Hume, porque uma impressão que desse origem àquela idéia de eu substancial deveria possuir as características que são afiguradas nessa idéia, contudo isso não seria concebível (“a manifest contradiction and absurdity”;

ibidem, p.251):

“Se alguma impressão gerir a idéia do eu, essa impressão deve permanecer invariavelmente a mesma em todo o curso da nossa existência, uma vez que se supõe que o eu existe dessa maneira. Ora não há impressão constante e invariável” (HUME, 2001, p.299)l.

Assim, a idéia de um eu substancial não passa no teste empírico da correspondência entre idéia e impressão, de modo que deve ser qualificada como sem significado – não há tal idéia (“consequently there is no such idea”; HUME, 1978, p.252) ou deve ser reduzida à evidência empírica do mero agregado de percepções, pois ademais — garante-nos a análise atomista — as percepções são entidades distintas e independentes, não necessitando de nada que suporte sua existência, vale dizer, não necessitando inerir em algo tal como um eu substancial que existiria independentemente delas e as teria como suas modificações acidentais.

Para Hume, assim como ocorre com respeito aos corpos externos, temos também com respeito à mente uma vaga e obscura idéia de um eu que continua a ser uma e a mesma coisa no decorrer de uma vida, mas que, sob análise, se revela como tendo por único conteúdo cognitivo determinado pela experiência a noção de um conjunto de distintas percepções associadas que, no entanto, por força de um complexo mecanismo psicológico, pode dar origem à “ficção” de um eu ou pessoa. A concepção humeana de identidade pessoal deve consistir, então, em sua hipótese não sobre a natureza do eu, mas antes sobre o mecanismo psicológico que forma na mente a noção de que ela é uma unidade idêntica individual, um eu, uma pessoa.

O elemento central nesse mecanismo de formação da idéia de eu consiste na extrapolação imaginativa em conformidade com a qual se atribui a continuidade, invariabiliade e permanência de um único objeto

— em suma, se atribui identidade — a objetos de algum modo relacionados, mas descontínuos, variáveis e transitórios — em suma, ao que é diverso. A despeito da aparente implausibilidade da própria tese de uma confusão da diversidade com a identidade, Hume pondera que o tipo de transição ou extrapolação imaginativa que está em sua base é

bastante ordinária e é facilitada de variadas maneiras na experiência (HUME, 2001, pp.305-307; 1978, pp.256-258), por exemplo, na medida em que a parte que varia é proporcionalmente pequena em relação ao objeto como um todo (e.g. o desaparecimento de uma das montanhas da lua não faz com que a lua deixe de ser a mesma de antes), quando a mudança das partes de um todo se dá de maneira gradual e pouco perceptível (e.g. as reformas e urbanizações municipais promovidas ao longo de anos não faz com que uma cidade deixe de ser a mesma cidade onde nascemos), quando a mudança das partes ocorre sem afetar sua função (e.g. a troca freqüente de peças por outras equivalentes em um barco não faz com que ele deixe de ser o mesmo barco), quando as partes e sua conjunção e ordem são consideravelmente semelhantes (e.g.: a reconstrução, segundo o modelo arquitetônico original, de certa igreja histórica, eventualmente destruída em algum acidente, não faz com deixemos de considerá-la como a mesma igreja), quando as partes e sua ordem não são mais semelhantes, mas o objeto como um todo se encontra ainda numa equivalente relação funcional para com outros objetos (e.g.: a reconstrução, segundo um modelo arquitetônico completamente novo, de uma igreja histórica, eventualmente destruída em algum acidente, não faz com que ela deixe de ser a mesma, e isso apenas por força de sua relação para com os habitantes da cidade ou os membros da congregação), quando o próprio objeto é reconhecido como tendo uma constituição inconstante e mutável, embora não arbitrária (e.g.: um rio, a despeito da mudança até mesmo completa de suas águas depois de certo tempo e de alterações relativas em sua margem e curso, não deixa de ser o mesmo rio).

Certo tipo, ainda não mencionado, de relação entre objetos relacionados (ou entre partes que aparecem conjugadas como constituindo um objeto) é particularmente forte e, assim, particularmente favorável à confusão entre diversidade e identidade, a saber, a relação de causa e efeito. No caso de corpos orgânicos, tais

como os vegetais e animais, as partes mantêm “a relação recíproca de causa e efeito em todas as suas ações e operações” (HUME, 2001, p.306)56 em vista de um fim comum (“common end”; HUME, 1978, p.257). Nesse caso, por mais que, em poucos anos, se passe uma mudança total (“a total change”) em forma, tamanho e matéria entre um broto de árvore e a própria árvore e entre um recém nascido e o animal adulto, ainda assim a relação causal entre o broto e a árvore e entre o bebê e o animal faz com que se atribua ainda identidade a eles.

Esse caso é tanto mais importante, posto que Hume sustenta que “A identidade que atribuímos à mente humana é apenas fictícia, do mesmo gênero que atribuímos aos corpos vegetais e animais” (HUME, 2001, p.308)57. Hume fala aqui da “mente do homem” e não do seu corpo, mas sustenta que a mente humana tem por princípio unificador aquela mesma relação responsável pela identidade do corpo humano, nomeadamente, a relação causal. Vejamos exatamente o detalhe desse mecanismo psicológico de explicação da identidade pessoal, no qual não só as conjunções de percepções, a memória e a imaginação desempenham papéis centrais, mas também a causação.

Na medida em que a memória preserva percepções passadas na mesma conjunção e ordem originárias, ela permite que se estabeleça e reconheça relações de semelhanças entre essas percepções que, por sua vez, proporcionam a base para que a imaginação transite tão facilmente de uma percepção a outra que é como se não houvesse, de fato, nenhuma transição entre distintas percepções, mas sim uma efetiva continuidade do mesmo dado percebido:

“Com efeito, o que é a memória senão uma faculdade pela qual despertamos as imagens das percepções passadas? E, visto que uma imagem necessariamente se assemelha ao seu objeto, não deverá a colocação destas percepções

56 “the reciprocal relation of cause and effect in all their actions and operations”

(HUME, 1978, p.257).

57 “the identity, which we ascribe to the mind of man, is (...) of a like kind with that which we ascribe to vegetables and animal bodies” (HUME, 1978, p.259).

semelhantes na cadeia do pensamento conduzir mais facilmente a imaginação de uma ligação a outra e fazer com que o todo pareça a continuidade de um objeto único?”

(HUME, 2001, p.309)li.

Não apenas a semelhança concorre para facilitar essas transições da imaginação que culminam na idéia de ipseidade ou identidade. Na medida em que a memória garante a seqüência de percepções, ela constitui a base para se estabelecer aquelas relações mais fortes entre as percepções, a saber, as relações de causa e efeito; é ainda com base, em última instância, na memória que se constitui a identidade pessoal, mas a memória não é condição suficiente para tal constituição, mas esta requer ainda interconexão causal entre as percepções:

“Visto que só a memória nos dá a conhecer continuidade e extensão desta sucessão de percepções, devemos considerá- la, sobretudo por esta razão, como a fonte da identidade pessoal. Se não tivéssemos memória, jamais teríamos noção de causação, nem, conseqüentemente, daquela cadeia de causas e efeitos que constitui o nosso eu ou pessoa”.(HUME, 2001, p.311)lii.

Contudo, é preciso dar a exata dimensão da relação de causalidade na constituição da identidade pessoal. A relação causal entre as percepções experienciadas, sua reprodução como idéia na memória e sua atualização por semelhança em uma nova percepção em que é lembrada não basta para formar a noção do eu enquanto identidade perfeita, posto que, como já se viu, essa noção envolve a idéia de uma continuidade, se não independente, então pelo menos não redutível ao que é de fato experienciado e de fato retido na lembrança e de fato lembrado:

“Mas uma vez que adquirimos pela memória esta noção de causação podemos estender a mesma cadeia de causas e, por conseguinte a identidade das nossas pessoas para além da memória”.(HUME, 2001, p.311)liii.

Uma identidade pessoal que vai além da memória é uma identidade preservada mesmo na falta de lembranças que liguem

atualmente as percepções passadas e as percepções em curso, o que seria garantido por se conceber que, para além dos nexos de semelhança entre percepções por força da lembrança, essas percepções estão ligadas mais basicamente e mais fortemente por nexos causais:

“Quanto à causação, podemos observar que a verdadeira idéia da mente humana é considerá-la como um sistema de diferentes percepções ou diferentes existências ligadas entre si pela relação de causa e efeito e que se produzem, destroem, influenciam e modificam umas às outras. As nossas impressões originam a suas idéias correspondentes;

estas idéias, por sua vez, produzem outras impressões.Um pensamento empurra outro e arrasta atrás deste um terceiro, pelo qual por sua vez é expulso.” (HUME, 2001, p.310)liv.

A memória estaria, assim, na base da identidade pessoal, mas não constituiria efetivamente a identidade pessoal, pois que tal constituição caberia à causalidade entre as percepções que a memória apenas permite reconhecer, sendo assim a via régia para a noção de identidade pessoal: “(...) a memória não tanto produz como descobre a identidade pessoal, mostrando-nos a relação de causa e efeito entre nossas diferentes percepções.” (HUME, 2001, p.311)lv. Seja como for, a identidade pessoal não assenta em uma conexão real de percepções, pois, como já sabemos, “o entendimento jamais observa uma conexão real entre objetos e que a própria união de causa e efeito, quando se examina estritamente, reduz-se a uma associação habitual de idéias”

(HUME, 2001, p.308)lvi. Em suma, as percepções retidas na memória têm por efeito produzir na mente (via operação da imaginação) a idéia de sua própria identidade enquanto uma unidade mental particular, um eu ou uma pessoa, e isso por força da qualidade natural dessas próprias percepções de se associarem por semelhança e causação. Quais os problemas com tal concepção?