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A moral kantiana e sua relação com o problema de Deus

No documento Angelo José Salvador (páginas 72-75)

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3. NOVAS FUNDAMENTAÇÕES DA EXISTÊNCIA DE DEUS

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Kant não levanta o dedo indicador, mas fala sobriamente uma linguagem cognitiva e não uma linguagem normativa. Em oposição a um moralizador precipitado, ele começa com um fenômeno moralmente neutro, a faculdade não de agir segundo as leis da natureza previamente dadas, mas de representar a si mesmo leis, por exemplo, relações meio-fim, de reconhecer as leis representadas como princípios e agir segundo eles (HÖFFE, 2005, p.188).

Fica evidente que Kant estabelece o sujeito como novo fundamento da moral e rejeita qualquer norma externa – a menos que ela esteja de acordo com a razão. Nesse aspecto, Deus perde seu “estatuto” de promotor de normas e é deslocado para outro ponto: a escatologia, na qual repercute a esfera do agir. Portanto, para se compreender qual é o lugar da nova prova da existência de Deus, antes é necessário entender a profundidade da filosofia moral kantista.

Tendo consciência desse novo fundamento é possível entender o lugar de Deus na história dos homens.

A filosofia moral, segundo Kant, não faz parte de uma instância humana que diz respeito a decisões que estão restritas ao particular. Do mesmo modo que a ciência reivindica validade universal, também o campo da ação humana – a moral ou moralidade20 – exige o mesmo estatuto de universalidade. Em outras palavras, a moralidade não está condicionada ao âmbito do particular ou simplesmente àquilo que é útil a uma maioria, mas a uma ação moral que possa ser elevada sempre a um patamar de universalidade.

Mas como querer que a moral, esse campo tão específico da ação humana, torne-se lei universal? É preciso então, segundo o filósofo, que ela tenha validade objetiva, assim como a ciência. Todavia, se o ser humano é constituído de inclinações sensíveis, em outras palavras, se ele é afetado por uma gama infinita de aspectos do mundo externo e também de seu mundo interno, como exigir tal empreendimento? Esse problema é tão pertinente que a própria história testemunha diversos modos de se garantir ao campo do agir uma estabilidade. O fundamento da moral sempre foi buscado em algo fora do homem: na ordem do cosmo, na comunidade e mesmo na vontade de um ser transcendente. No entanto, não há outro fundamento que possa elevar a moral a um estatuto de universalidade e objetividade?

Surgem também outras situações que exigem atenção para se pensar a moralidade kantiana. De que maneira é estabelecida a relação com o outro se Kant propõe a razão pura prática e não mais a atitude de compaixão para fundamentar a moralidade? Também não se pode escapar a outra questão fundamental: nessa busca por universalidade e objetividade, é possível articular felicidade e virtude? Como pensar a possibilidade de Deus nesse contexto no

20 Os termos Moral e Sittlichkeit são sinônimos e em geral são traduzidos por moralidade.

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qual a moral está encerrada apenas na autonomia do sujeito e não mais no transcendente? É claro que Kant não é indiferente a tais questões, mas o legado dele muitas vezes é deturpado ou mal compreendido, o que induz a pensar que o filósofo seja insensível às demandas existenciais humanas. Höffe apresenta ainda outras objeções levantadas contra Kant, mas que carecem de fundamento:

O particular significado de Kant na atual discussão ética tem, todavia, o seu preço. Não só naquela compreensão de Kant que se consolidou como patrimônio cultural comum, mas mesmo pelos filósofos a ética de Kant é frequentemente recebida apenas fragmentariamente, inclusive as partes são desfiguradas por equívocos agravantes. Desde Schiller e Benjamim Constant, o rigorismo de Kant é rejeitado, desde Hegel reafirma-se sempre de novo que, à diferença de Aristóteles, falta-lhe um conceito de práxis; que a razão prática é apenas uma razão teórica que se coloca a serviço de objetivos práticos; que além disso a ética de Kant se funda em uma problemática teoria de dois mundos, que separa o mundo moral do mundo empírico e por isso não pode mais compreender a unidade da ação. Do mesmo modo, desde Hegel, Kant é acusado de um dever-ser meramente subjetivo e, além disso, a-histórico, e a ele é contraposta uma “moralidade substancial”, novamente um elemento aristotélico, bem como a historicidade. Max Scheler acusou Kant de ética da intenção e, mediante apelo a Nietzsche e Husserl, levantou aquela acusação de formalismo que foi impressionantemente corroborada por Nicolai Hartmann. Não por último, a ética do dever de Kant é corresponsabilizada pela “obediência prussiana” (2005, p. 185-186).

Apesar de tais questionáveis objeções, Kant ainda é considerado, por grandes pensadores contemporâneos, como fundamento imprescindível para se pensar a moral. Isso se dá pelo fato de que sua moral carrega em si mesma os princípios gerais da ética normativa contemporânea. Também não se pode deixar de mencionar que, da mesma forma que os defensores da ética utilitarista e do princípio de universalização Hare e Singer, que filósofos como Habermas, Rawls, Apel e Kohlberg, e que a ética construtivista, também Kant se opõe ao dogmatismo, ao ceticismo e ao relativismo na ética (Ibidem., p. 184).

Além disso, Kant não defende que agir e julgar sejam sentimentos individualistas ou uma decisão arbitrária e muito menos uma questão de origem sociocultural ou algum tipo de convenção. “Muito antes, ele vê a ação humana submetida a obrigações últimas, para cuja observância se é chamado a prestar contas perante outros, mas também perante si mesmo”

(Ibidem., p. 184).

Outro aspecto importante de Kant para o debate contemporâneo é que sua ética da autonomia e do imperativo categórico baseado no dever vai de encontro à ética utilitarista tão vigente no pensamento atual. A teoria moral kantista elabora uma acurada distinção entre direito e moral, entre vontade condicionada e vontade pura, entre legalidade e moralidade. Kant

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também estabelece as diferenças entre obrigações morais, técnicas e pragmáticas e entre o bem supremo e o sumo bem.

Não se pode negligenciar o fato de que há uma conexão fundamental entre a moral e a questão de Deus. É importante atentar-se para este ponto a fim de que a moral não seja interpretada como um tema paralelo ao objeto da dissertação. De forma alguma isso acontece, pois é através do esforço de viver segundo a moral que o tema divino é evocado. Enfim, a articulação entre a filosofia moral e a felicidade abrirá caminho para se pensar a possibilidade de Deus. Todavia, antes desse passo, é necessário abordar de forma sistemática o novo fundamento da moral.

No documento Angelo José Salvador (páginas 72-75)