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De professora palestrante à pesquisadora

No documento Universidade do Estado do Rio de Janeiro (páginas 91-95)

foram produzidos, pois os lugares sociais de onde foram proferidos produzem sentidos próprios.

Considerando o contexto no qual as enunciações se deram, procedemos às transcrições das falas produzidas no Ciclo. Após revisá-las, foi possível realizar a organização e a seleção do material de análise. Nesse momento da pesquisa, havia muitas perguntas para as quais esperávamos encontrar respostas no material transcrito, mas estávamos conscientes de que, embora houvesse intenções claras e definidas, a pesquisa qualitativa, por ser um processo aberto, não é previsível. Poderiam surgir novas perguntas, mais relevantes que as respostas encontradas. Isso foi exatamente o que aconteceu.

Nossas diferenças, pesquisadora-pesquisados, ora nos distanciavam, ora nos aproximavam. Buscávamos compreender que “o ponto de partida é a diferença: o outro é posto como enigma” (AMORIM, 2004, p. 24). Em sua origem grega, a palavra diferença significa lançar-se para o desconhecido, o que ajuda a percebê-la como um entre caminho benéfico que permite a produção de conhecimentos e complementar-se com o outro.

Amorim (2004) adverte que o desejo de encontrar-se com o outro, o desejo de alteridade é passível de suspeita, pois, dependendo do modo de olhar o outro, pode suscitar o empreendimento de nada querer saber sobre o outro, o desejo de dominá-lo ou de exterminá- lo.

Enquanto pesquisadora, percebia que, ao mesmo tempo em que almejava o encontro com o outro, a impossibilidade de encontrá-lo integrava o próprio princípio da pesquisa. A alteridade não deixa nenhuma margem de previsibilidade ou de controle por parte do pesquisador.

Sem reconhecimento da alteridade não há objeto de pesquisa e isto faz com que toda tentativa de compreensão e de diálogo se construa sempre na referência aos limites dessa tentativa. É exatamente ali onde a impossibilidade de diálogo é reconhecida, ali onde se admite que haverá sempre uma perda de sentido na comunicação que se constrói um objeto e que um conhecimento sobre o humano pode se dar (AMORIM, 2004, p. 28 - 29).

Durante todo o tempo da pesquisa, compartilhei à reflexão de Amorim (2004), que concebe a alteridade como constitutiva da produção de conhecimentos. Ela ressalta que a pesquisa pode ser um processo de aprendizagem para ambos, pesquisadora e participantes.

Quando estes são interlocutores reais, interferem e refletem sobre as questões da pesquisa. É na interação dos sujeitos que se constrói o conhecimento.

Uma pergunta que me perseguiu nesse percurso foi: quais as fronteiras entre o meu lugar de pesquisadora e o lugar do outro, do pesquisado?

Conquanto meu ponto de vista seja alterado em contato com o outro, não há inversão de papéis, o pesquisador continua sendo pesquisador. O outro em nenhum momento se apropria do lugar de pesquisador. Há um limite entre o lugar do pesquisador e o lugar do outro.

O conceito de exotopia (em um lugar exterior) de Bakhtin (1997) possibilitou a reflexão sobre o debate da construção do sujeito pesquisador. As pessoas encontravam-se posicionadas exotopicamente umas às outras, vez que entre pesquisadora e o outro há um distanciamento que permite enxergar no outro aquilo que ele próprio não pode ver em si e

vice-versa. Ao mesmo tempo em que o pesquisador tem o privilégio de ver o outro como um todo, pode também o outro, vê-lo.

Bakhtin (1997, p.43), percebendo as fronteiras que existem entre o lugar do pesquisador e o lugar de seu outro, aborda, dentre outros assuntos, o conceito do excedente de visão: “Esse excedente constante de minha visão e de meu conhecimento a respeito do outro, é condicionado pelo lugar que sou o único a ocupar no mundo”. Cada sujeito tem o seu lugar único no contexto social, por isso a visão de cada um sobre o outro é diferente.

Quando contemplo um homem situado fora de mim e à minha frente, nossos horizontes concretos, tais como são efetivamente vividos por nós dois, não coincidem. Por mais perto de mim que possa estar esse outro, sempre serei e saberei algo que ele próprio, na posição que ocupa, e que o situa fora de mim e à minha frente, não pode ver. (BAKHTIN, 1997, p. 43)

Fui me constituindo, de forma inacabada, pesquisadora na relação com o outro, pois, se eu tinha um excedente de visão em relação ao outro, da mesma forma tinha o outro uma visão sobre mim que eu mesma não tinha. Conforme reflete Geraldi (2003, p. 19), “este acontecimento nos mostra a nossa incompletude e constitui o outro como o único lugar possível de uma completude impossível”.

Ao assumir um posicionamento exotópico de pesquisadora, precisei, para conceber o outro, aproximar-me de como o sujeito se vê, inteirar-me do seu mundo, vivenciar o que ele vivencia, colocar-me em seu lugar, “adotar o horizonte vital concreto desse indivíduo tal como ele o vivencia” (AMORIM, 2004, p 24), para, então, dele me afastar e retornar ao meu lugar exterior, com outro olhar.

Ao analisar as enunciações construídas no Ciclo de Palestra como dados de pesquisa, precisei construir movimentos constantes de exotopia, de encontro entre o lugar de pesquisadora e o lugar do outro, tornando-me outro sem deixar de ser eu mesma. Esse processo não se dá de forma linear e tão bem definida, pois, enquanto pesquisadora negra e ser este o tema central em discussão, envolvi-me com todos e me distanciei de todos (ou de alguns) em diversos momentos dos encontros.

Aprendi que é no lugar da tensão entre o meu olhar de pesquisadora sobre o outro, que nem sempre coincide com o olhar que o sujeito pesquisado tem de si, que buscava captar como o sujeito pesquisado se via, para, depois, assumir um lugar exterior, buscando a construção de um conhecimento novo.

Outro momento emblemático vivenciado foi o de escrita do próprio texto de dissertação, momento em que foi possível narrar/refletir sobre o encontro da relação entre o

meu “eu” pesquisadora e os meus outros. Para isso, o conceito de polifonia que aborda a multiplicidade de vozes foi fundamental para poder ouvi-las no mesmo lugar45.

A maneira pela qual o texto é escrito, na dimensão de alteridade presente na pesquisa, pode valorizar mais vozes ou, ao contrário, esquecer alguns ditos. Tenho procurado refletir sobre a presença do discurso do outro no meu texto. Preocupo-me quais vozes que se deixam ouvir no texto, em que lugares foi possível ouvi-las e quais teriam sido as vozes inaudíveis ou ausentes.

Quais sujeitos falam no texto? Um dos sujeitos é a autora, que dirige o texto ao seu interlocutor. Autora e interlocutores, ambos colaboram para a construção do texto. O texto é um lugar de sujeitos, lugar de diálogo.

O conceito de autoria para Bakhtin congrega tanto uma dimensão social, que diz respeito às vozes sociais que representa no momento da escrita, como a dimensão individual, que aponta para o caráter singular do autor, que é quem assina o texto, visto que a assinatura faz valer a singularidade do autor/pesquisador. O pesquisador ocupa um lugar único. É desse lugar que cabe ao pesquisador dar o acabamento, que ele responde, assumindo uma responsabilidade e dá a sua assinatura. Amorim (2003, p. 15) afirma que “a assinatura é o que me torna capaz de responder pelo lugar que ocupo num dado momento, num dado contexto”.

A produção do texto escrito foi também um momento de um encontro integrado da autora com o outro (seus interlocutores), de encontro nos enunciados e nas interações colaborativas. A escritura de algo se dirige sempre para um leitor, um outro, sendo determinada pelo contexto e pela interação que estabelece. Como escreve Bakhtin (2006, p.106), “a palavra dirige-se a um interlocutor: ela é função da pessoa desse interlocutor”.

Ninguém nunca está sozinho, há sempre o eu e o outro para a constituição de qualquer ato. Ao escrever esse texto, estou respondendo a perguntas presumidas do meu interlocutor-meu outro.

[...] Toda palavra comporta duas faces. Ela é determinada tanto pelo fato de que procede de alguém, como pelo fato de que se dirige para alguém. Ela constitui justamente o produto da interação do locutor e do ouvinte. Toda palavra serve de expressão a um em relação ao outro. Através da palavra, defino-me em relação ao outro, isto é, em última análise, em relação à coletividade. A palavra é uma espécie de ponte lançada entre mim e os outros. Se ela se apóia sobre mim numa extremidade, na outra se apóia sobre meu interlocutor. A palavra é território comum do locutor e do interlocutor (BAKHTIN, 2006, p.107).

45 A obra de Bakhtin (1981) aborda, a partir dos romances de Dostoiévski, a oposição entre discurso monológico, discurso de uma só voz e discurso dialógico ou polifônico, o discurso marcado pela multiplicidade de vozes, com um enfoque dialógico, em que o sujeito se reconhece através do outro.

Outra preocupação com a escrita da dissertação é com a estética, em não dissociar forma e conteúdo. Como dar um acabamento à pesquisa, de forma que o outro que lerá possa compreendê-lo? Quais os limites e impasses impostos à escrita de um texto ‘acadêmico’?

A reflexão que Michael Bakhtin (1997) conduz sobre a alteridade é um significativo para as pesquisas nas ciências humanas, que abordam a interação do pesquisador com seu outro. Percebo que a relação de alteridade estará sempre presente nas análises dos dados, complementando minha caminhada enquanto pesquisadora e na construção do texto da dissertação. Necessito construir uma escuta na alteridade, para, após, poder traduzi-la e transmiti-la.

Nesse sentido, indago-me sobre como busquei interagir enquanto pesquisadora com os participantes do Ciclo de Palestras na releitura do material? Como procurei entendê-los? A interação é um ato realizado junto com o outro, entre o pesquisador e os interlocutores da pesquisa.

No documento Universidade do Estado do Rio de Janeiro (páginas 91-95)