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3. Trabalho de projeto: Quarta Parede

3.1 Descrição do projeto

O título deste trabalho de projeto, Quarta Parede [fig. 22], estabelece uma analogia com o termo utilizado por Denis Diderot num dos seus ensaios. O dramaturgo, ao 38 analisar as regras rigorosas a que os atores estavam sujeitos no teatro clássico (comédia e tragédia), verificou a artificialidade que daí poderia estar a advir. Os seus textos críticos do teatro francês, no século XVIII, foram um importante contributo para a ascensão do realismo no final do século XIX e início do século XX.

Defendeu um estilo mais natural, em que os acontecimentos representados em palco se pudessem assemelhar a um qualquer evento real. A obra

dramática, segundo Diderot, deveria ter mais interesse com o que acontece entre as personagens e menos com o que poderia afetar o espectador. Neste sentido, propõe o seguinte:

Caso façais uma composição, ou caso representeis, pensai no espectador apenas como se este não existisse. Imaginais, na borda do teatro, uma enorme parede que vos separe da plateia; representai como se a cortina não se levantasse. (Diderot 1757, p. 167)

A quarta parede corresponde em termos físicos ao limite da boca de cena, aí é erguida uma parede imaginária, que separa qualquer interação entre

Denis Diderot, para além de dramaturgo, foi um importante filósofo francês do século XVIII.

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Insere-se na corrente iluminista, sendo por isso um defensor da razão e da ciência. É um dos responsáveis pela criação da Enciclopédia, destinada a apresentar o conhecimento humano em diversas áreas.

Figura 22. Quarta Parede, edição de três exemplares 2022.

Dimensões: 15 x 29,5 x 7,5 cm.

atores e público. Esta superfície está apenas presente na consciência dos atores, o que os leva a agir como se ninguém estivesse a observar.

É a partir desta ideia, de uma parede invisível que separa o ator do espectador, neste caso a autora deste trabalho de projeto dos leitores do mesmo, que surge o título para este projeto. O leitor não presencia o momento em que a execução da contrainte se dá. Não consegue alcançar esse instante, uma vez que já decorreu. Tal como os espectadores de uma plateia assistem passivamente a uma peça de teatro com esta técnica, também o leitor observa o resultado do cumprimento da contrainte sem que consiga interferir.

A contrainte deste projeto consiste no seguinte:

(parte um)

Num mapa, reproduzido sete vezes, fazer um percurso aleatório.

O ponto de partida deverá ser igualmente o de chegada.

Cada percurso corresponde a um dia, completando no final uma semana.

O percurso deverá ser executado com o auxílio de linha e agulha.

(parte dois)

O levantamento das ruas percorridas deve ser organizado por dia.

Num suporte transparente, sobrepor as diversas listas e fixá-las.

O objeto resultante torna-se a representação coletiva das ações repetidas.

Esta restrição é definida da mesma forma que a de Sophie Calle em Suite Vénitienne, pelo tempo e espaço: a duração é fixa (uma semana) e o lugar é conceptualmente circunscrito pelos contornos de um mapa. São estes elementos que estabelecem o cenário deste projeto e constituem a narrativa.

Enquadram a nossa performance num tempo real e num espaço conceptual, pelo que o livro de artista existe enquanto prova da autenticidade das nossas ações. Nestas circunstâncias a autora e criadora é principalmente uma executante e uma performer. Não anda “à deriva” num percurso aleatório. 39 Primeiro, explora-se a superfície lisa de um mapa, produzem-se formas

A Teoria da Deriva de Guy Debord, publicada pela primeira vez em 1956, determina o estudo

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psicogeográfico de uma cidade. Tem, por norma, a duração limitada de algumas horas (sendo considerado o período entre dois intervalos de sono), no entanto pode estender-se ao longo de vários dias. O espaço “da deriva” pode ser delimitado ou mais amplo.

irregulares bordadas sobre as ruas [fig. 23 / 24]; de seguida, constrói-sé um elemento que permite visualizar conceptualmente o nome de todas as ruas percorridas [fig. 25]; por último, depois de se concluir os bordados originais e de se cumprir a contrainte, dirigimo-nos aos locais, fazendo no espaço real o percurso que a linha e a agulha fizeram no papel. Foi registada em fotografia 40 a nossa passagem pelos mesmos.

A exploração é feita através de um mapa de Nice, objeto que representa graficamente a estrutura de uma cidade. Ao fazê-lo desta forma, e não diretamente na cidade, estamos a eliminar qualquer estímulo exterior que intervenha nas nossas decisões, tornando-as o mais neutras possível. Estes percursos estabelecem uma ligação de proximidade entre o leitor e nós autores, uma vez que foram bordados à mão de forma pessoal. Eles cumprem e são a própria instrução.

Os mapas apresentados no livro de artista são réplicas a partir dos originais, bordados

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individualmente em cada exemplar. Embora pudesse ter sido feita uma reprodução fotográfica, manteve-se o princípio da performance na execução da contrainte. Deste forma, a produção de todos os exemplares inclui a nossa performance e o resultado da mesma.

Figura 23. Quarta Parede. Página (à direita) com o mapa do percurso bordado

correspondente ao dia um (p. 7).

Figura 24. Quarta Parede. Verso da página (à esquerda) do percurso bordado

correspondente ao dia um (p. 8).

Figura 25. Quarta Parede. Listagem das ruas de todos os percursos.

As formas geométricas abstratas dos percursos não estabelecem qualquer ligação física com o lugar, esse é o propósito das fotografias, de torná-lo visível. Elas são posteriores à instrução. E ao contrário do que acontece em Suite Vénitienne (quando Sophie Calle persegue o homem), neste livro não existe pressa em registar determinado momento. Não se tratam de snapshots, existe tempo para a captura da imagem e planeamento a determinar os enquadramentos de cada fotografia. Elementos arquitetónicos com linhas diagonais introduzem tensão, movimento, ou, pelo contrário, as perspetivas frontais, com linhas paralelas, transmitem uma sensação de equilíbrio e serenidade. Não se

pretende que tenham destaque, daí serem apresentadas a preto e branco, com uma pós-produção a simular um acabamento mais artesanal [fig. 26], característico da impressão a riso. No 41 entanto, as fotografias possuem a especificidade de fixar num instante uma realidade pertencente ao passado.

Ao apresentarmos uma imagem ao leitor, estamos a partilhar um instante de uma referência física do lugar, “um vestígio, algo que foi diretamente transposto do real, como uma pegada”

(Sontag 1977, pp. 333–334).

Entretanto, terminada a primeira performance (a contrainte) é tempo de seguir para a próxima. Esta, é a performance do leitor e dá-se enquanto está a manusear o livro. Ao aceitar a nossa proposta, dispõe os componentes de

RISO é o nome de uma impressora japonesa (que surgiu em 1946) e utiliza tinta composta

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por óleo de soja e água. Inicialmente estes materiais foram uma resposta à dispendiosa importação de tinta durante o pós-guerra, sendo atualmente bastante valorizada pela sua sustentabilidade. Trata-se de um processo semelhante à serigrafia, onde o acabamento não é perfeito. É bastante utilizado em cartazes e zines.

Figura 26. Quarta Parede. Detalhe da malha de pontos de uma imagem que simula a impressão a riso.

acordo com a “topografia dos componentes” [fig. 27 / 28]. Pode-se entender 42 esta sugestão – a disposição organizada dos diversos elementos – como uma instrução, estando desta forma o leitor a executar uma série de ações pré-determinadas. Existe, portanto, um paralelismo entre o mapa que percorremos e o mapa que orienta o leitor: são o elemento indispensável à performance de ambos. Acionam uma série de respostas e dão ao livro de artista uma dimensão performática.

O livro desdobra-se numa multiplicidade de formas, expande-se no espaço. Os componentes (contidos numa caixa de cartão) articulam-se entre si com o objetivo de evidenciar a ideia do projeto. A listagem só é possível através dos percursos bordados à mão apresentados no livro “percursos & registos” e a disposição de todos os elementos é criada com a “topografia dos componentes”.

O formato corresponde à proporção dos mapas desdobráveis – novamente, uma referência ao elemento impulsionador das performances – enquanto a

Ideia inspirada pelo trabalho artístico de Daniel Spoerri, nomeadamente Tableau Pièges

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(série com início em 1960) e Topographie Anécdotée* du Hasard (1962). Ambos exploram o conceito da disposição de objetos no espaço.

Figura 27. Quarta Parede: topografia dos componentes.

Figura 28. Quarta Parede. Disposição dos diversos componentes segundo a topografia dos componentes.

transparência do acrílico é utilizada para evidenciar a repetição de ações que o cumprimento da contrainte representa. A moldura é como uma janela que a exemplo do palco torna possível observar um conjunto de representações.

Neste caso, as diversas páginas do acrílico (onde cada uma corresponde ao percurso de um dia) são vistas em simultâneo, assim como no palco acontece com as várias cenas que constituem o todo do espetáculo. Aqui as placas de acrílico são o equivalente da quarta parede, que tal como o acrílico também é

“invisível”. O palimpséstico constituído pelas várias sobreposições das placas de acrílico e respetivos conteúdos são o equivalente do conjunto das várias cenas que integram uma peça na sua totalidade. O objeto como se apresenta não permite uma leitura ao nível da linguagem verbal, mas sim, em contrapartida, de uma linguagem plástica. A leitura individualizada dos percursos remete-nos para o livro “percursos & registos”, onde permanece uma linguagem plástica pelas formas imprevisíveis que cada percurso apresenta. O objeto livro de artista é para ser usufruído plasticamente, ou seja, dentro do âmbito estritamente estético.

O laranja, aplicado em alguns componentes gráficos do livro, tem o principal objetivo de destacar os elementos com ligação direta à contrainte: os percursos e a listagem. Resultante da mistura entre o vermelho e o amarelo (duas cores que percepcionamos como perigo), esta cor vibrante tem como principal objetivo captar a atenção do leitor.

Tal como referido no início do segundo capítulo, a arte conceptual é definida pelo conceito que dá origem à obra. Na série à qual pertence One and Three Chairs (1965), o artista Joseph Kosuth cria um conceito que aplica a diversos outros objetos. Desta forma, também a contrainte que deu origem à Quarta Parede pode ser aplicada a novos mapas e criar uma série. Os resultados são expectáveis, mas as formas dos percursos e o padrão da listagem nunca se irão repetir.

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