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2.4 O modelo do regime brasileiro como exemplo para a Argentina

4.2.2 Hugo Banzer lidera golpe de Estado na Bolívia em agosto de 1971

Mesmo depois de serem acusados como participantes de tentativas de golpe pelo governo Torres, Brasil e Estados Unidos seguiam planejando alternativas para a Bolívia, cada um à sua maneira.

No mês de junho de 1971, em contato com autoridades norte-americanas, representantes dos regimes brasileiro e argentino consideravam os militares como a melhor alternativa para a Bolívia. Em meio ao processo de possível expulsão dos adidos norte-americanos, os dois países sul-americanos também destacaram a importância da presença de Washington em La Paz. Gibson Barboza confidenciou ao embaixador norte- americano em Brasília que o regime brasileiro, apesar de muito insatisfeito com Torres, ainda tinha dificuldades para decidir quais políticas implementar na relação bilateral e que uma saída norte-americana abriria espaço para os soviéticos na região (ROUNTREE, 1971a). O então embaixador argentino em La Paz, por sua vez, pediu ao seu homólogo norte-americano que “fizesse algo” pelos militares bolivianos e que tal ação ocorresse imediatamente (SIRACUSA, 1971b).

Nas discussões internas do governo Nixon sobre a Bolívia, também em junho de 1971, os norte-americanos reconheciam que os militares eram “a única instituição viável que tem uma preocupação real com a virada para a esquerda de hoje e um potencial para fazer algo a respeito” (SIRACUSA, 1971c, tradução nossa)42. Vale destacar que, já que Torres também era militar, quando os governos de Brasil, Argentina e Estados Unidos mencionavam as Forças Armadas como a melhor alternativa para a Bolívia, faziam menção à parcela anticomunista dessas instituições.

No mesmo documento, o embaixador de Nixon em La Paz também enumerava uma série de decepções com Torres e argumentava que, a menos que o governo boliviano apresentasse alguma mudança ou fosse substituído por algo melhor, Washington tinha muito a perder nos próximos meses. A principal preocupação do diplomata era que a Bolívia pudesse se tornar uma espécie de novo satélite da União Soviética na região a um custo baixo: “A nossa conclusão é que devemos fazer algo para combater isso e que

42 No original: “the only viable institution that has both real concern with today’s leftward swing and a potential to do something about it” (SIRACUSA, 1971c).

devemos fazê-lo por meios positivos e imediatamente” (SIRACUSA, 1971c, tradução nossa)43.

Ou seja, para além da preocupação com as guerrilhas transnacionais, Washington também queria evitar, em meio à Guerra Fria, que a União Soviética tivesse outro aliado na região, além de Havana e Santiago. De acordo com Simon, a KGB e o governo soviético, de fato, analisaram a possibilidade de mandar armas e dinheiro a Torres para afastar possibilidade de golpe (SIMON, 2021).

Ainda em junho de 1971, a CIA informava à Casa Branca sobre o desenvolvimento de uma frente comum contra o governo Torres, que reuniria grupos civis e militares de bolivianos dissidentes, que tinham o objetivo de atuar de forma coordenada e estavam intensificando plotting activities (CIA, 1971a). O documento relatava ainda que havia poucas evidências de que a URSS tivesse objetivos mais amplos no país e que sua ação tinha sido mais de retórica do que de substância até o momento.

A estratégia desenvolvida por Washington na Bolívia ficou conhecida pela expressão two track: enquanto mantinha relações e pedia moderação a Torres, também financiava alguns de seus opositores. Em uma iniciativa que causou atritos dentro do governo Nixon, a CIA enviou uma quantia em dinheiro para dois militares dissidentes (UNITED STATES, 2023). Em reunião do Comitê dos 40, ficou clara a divergência interna, sendo que Charles Meyer, especialista em América Latina do Departamento de Estado, indicou que Argentina e Paraguai pareciam mais preocupados do que o Brasil com a questão boliviana (JESSUP, 1971).

Em agosto de 1971, assessores de Torres argumentaram que a nova organização do golpe era patrocinada por entidades estrangeiras de Brasil, Paraguai e Argentina, com concentração em Santa Cruz de la Sierra, região mais influenciada pela presença de brasileiros (AMERICAN EMBASSY IN LA PAZ, 1971).

Especificamente sobre o envolvimento do Brasil na queda de Torres, ocorrida em agosto de 1971, as fontes primárias mais esclarecedoras foram produzidas nos dias posteriores ao golpe. Em um diálogo entre Banzer e o embaixador brasileiro em La Paz, Claudio Garcia de Souza, menos de dois meses após o golpe de Estado, o presidente boliviano questiona “se era verdade, como disse o General Bethlem [...] que o auxílio dado pelo Brasil, durante os acontecimentos de agosto último, fôra conseguido por ação pessoal daquele militar brasileiro junto ao nosso Governo” (BRASIL, 1971o). Neste

43 No original: “It is our conclusion that we must do something to fight this and that we must do it by positive means and immediately” (SIRACUSA, 1971c).

documento, fica clara a colaboração do Brasil com o golpe de Estado, ainda que não se detalhem as ações executadas e que o diplomata negue o protagonismo de Bethlem. Além disso, na mesma fonte primária, o presidente Banzer confirma que manteve relações com Bethlem desde quando o brasileiro ocupou a adidância em La Paz, continuando a se corresponder mesmo quando o boliviano esteve asilado na Argentina. Ou seja, nem mesmo após ser acusado de uma tentativa fracassada de golpe, Bethlem deixou de manter contato com Banzer e de ser visto, ao menos por parte dos golpistas bolivianos, como um ponto de contato com o governo brasileiro.

Em fevereiro de 2023, o jornalista Walter Sotomayor publicou na revista Piauí um artigo em que, também baseado em fonte primária, argumenta que Bethlem recebeu em Brasília o agente secreto boliviano Oscar F. Barrientos e que teria o levado até o presidente Médici, quando se negociou a liberação de armas para uso no golpe de Estado de agosto de 1971 (SOTOMAYOR, 2023).

Em telegrama para a secretaria-geral do Itamaraty em setembro de 1971, o embaixador Claudio Garcia de Souza descreveu dois encontros que sugerem o apoio militar brasileiro ao golpe na Bolívia. Em um deles, o adido militar brasileiro em La Paz detalhara a Souza que teria havido remessa de armas de empresários paulistas, transportadas por avião da FAB (Força Aérea Brasileira), via Corumbá e Puerto Suárez até Santa Cruz de la Sierra (SOUZA, 1971d).

Além disso, outros documentos mostram que o regime brasileiro também patrocinou diretamente o momento do golpe de Estado. Em conversa do embaixador brasileiro com o novo chanceler boliviano, Mario Gutierrez afirmou que “as Forças Armadas de seu país [...] não poderiam esquecer a colaboração em nível castrense recebida do Brasil no momento da Revolução” (SOUZA, 1971d).

A avaliação da CIA, dois meses depois do golpe de 1971, era a de que

Argentina, Brasil e Paraguai serviram de bases de operação para os conspiradores anti-Torres e ajudaram sutilmente em seus esforços para tomar o poder. Tendo participado da reversão do curso para a esquerda da Bolívia, esses vizinhos continuam a mostrar um grande interesse pelos assuntos bolivianos(CIA, 1971c, p.7, tradução nossa)44.

44 No original: “Argentina, Brazil, and Paraguay served as bases of operation for the anti-Torres plotters and subtly aided their effort to seize power. Having taken part in the reversal of Bolivia’s leftward course, these neighbors are continuing to show a keen interest in Bolivian affairs” (CIA, 1971c, p.7).

Ou seja, de acordo com o relato da CIA, a colaboração desses três países ao golpe de Estado não se limitou ao envio de armas, mas também ao patrocínio dos grupos golpistas e ao oferecimento de seus territórios para a organização do golpe. Em outro documento da agência de inteligência norte-americana, de 1972, há menção ao fornecimento de armas e suprimentos, da parte do regime brasileiro, para Banzer e seus aliados durante a disputa pelo poder (CIA, 1972).

A satisfação com a queda de Torres e a posse de Banzer foi tanta que, um dia após o golpe de Estado, o chanceler Mário Gibson Barboza escreveu ao presidente Médici que

“o novo Governo mostrará sensível simpatia pelo Brasil” (BRASIL, 1971m). Gibson elencou dois pontos principais para essa perspectiva positiva de relação bilateral: o relacionamento antigo entre alguns integrantes do novo governo com funcionários do regime brasileiro e a inclinação política anticomunista dos novos líderes de de La Paz.

De acordo com Simon, citando documentação chilena, as informações internas no governo Allende davam conta que o Brasil tinha 20 mil homens na fronteira com a Bolívia, caso Torres resistisse. O autor também argumenta que não houve alinhamento entre Brasília e Washington nesta mudança de regime (SIMON, 2021, p. 129).

Em suma, a participação brasileira, de acordo com os documentos levantados acima, se deu de três maneiras: a) doação de equipamentos bélicos, não só do governo brasileiro, mas também de empresários paulistas, com apoio logístico da FAB; b) doação de dinheiro; c) auxílio em bases de operação pré-golpe. Todas essas ações ocorreram de forma secreta e com a participação de outros atores que permitissem ao governo Médici negar o envolvimento na tentativa de mudança de regime. Dessa forma, o custo de tais operações para Brasília era bastante baixo.

A participação do governo argentino no golpe contra Torres, por sua vez, foi confirmada pelo presidente Lanusse em conversa com o embaixador dos Estados Unidos em Buenos Aires. “As soluções devem vir de dentro dos países em questão, mas essas soluções podem ser assistidas de fora, como a Argentina acaba de fazer com algum sucesso na Bolívia” (LODGE, 1971, tradução nossa)45. Além do apoio ao golpe, a declaração de Lanusse também reforça outro ponto da literatura teórica sobre mudança

45 No original: “Solutions must come from within countries concerned but these solutions can be assisted from outside such as Argentina has just done with some success in Bolivia” (LODGE, 1971).

de regime, de que o apoio exterior deve ser um empurrão adicional a ações organizadas por atores domésticos (DAUGHERTY, 2010).