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Antes de entrarmos no Medo Líquido, conceituemos medo lato sensu: o polonês nos ensina que “‘medo’ é o nome que damos à nossa incerteza: nossa ignorância da ameaça e do que deve ser feito — do que pode e do que não pode — para fazê-la parar ou enfrentá-la, se cessá-la estiver além do nosso alcance.” (BAUMAN, 2008, p. 8)

Temos de associar medo sempre ao desconhecimento. Medo é potência, possibilidade, incógnita; medo é ansiedade, tensão, angústia; medo é ojeriza a algo que tem probabilidade de acontecer. É sentimento em que o sujeito se projeta em um futuro (próximo ou distante) indesejado, em uma circunstância na qual ele é ferido de alguma de forma (fisicamente, emocionalmente, economicamente, materialmente, moralmente, socialmente etc.).

Nessa perspectiva, o medo sempre está conectado ao desentendimento e à ausência de controle e ineficiente capacidade/habilidade de autoproteção. “Compreensão nasce da capacidade de manejo. O que não somos capazes de administrar nos é ‘desconhecido’, o

‘desconhecido’ é assustador. Medo é outro nome que damos à nossa indenfensabilidade.

(BAUMAN, 2008, p. 125)

O autor teoriza que as plurais estirpes concebíveis de medo têm, sem exceção, origem no horror à morte, que é um tipo especial de medo nomeado por ele de “medo primal”: o arquétipo de todos temores, porquanto estes extraem seus significados dele. (BAUMAN, 2008, p. 71-73) Assim, visto que sempre ansiamos afastar medos, podemos concluir que nossa existência consiste em uma tentativa incessante de afastar a morte.

O erudito afirma que existem três espécies do gênero morte: a) a morte em “primeiro grau”, o falecimento do próprio indivíduo, isto é, a morte do “eu”; b) a morte em “segundo grau”, que advém com o falecimento de alguém com quem o sujeito possuía laço, acarretando corte eterno do vínculo, ou seja, é a morte do “eu-você”; e c) deve-se compreender, no entanto, que morrer tem acepções que vão além do mero padecimento do corpo e encerramento de suas funções orgânicas; dessa maneira, a morte em “terceiro grau”

não se constitui com um falecimento propriamente dito, mas com a sublimação de algum relacionamento (amoroso, familiar, de amigos, de trabalho etc.), sendo uma morte com possibilidade de retorno, vale dizer, é uma morte do “eu-você”, porém revogável.

(BAUMAN, 2008, p.62-63)

Citando o francês Lucien Febvre, Bauman vincula, metaforicamente, a ubiquidade do medo à escuridão; escuridão esta que

começava exatamente do outro lado da porta da cabana e envolvia o mundo situado além da cerca da fazenda. Na escuridão, tudo pode acontecer, mas não há como dizer o que virá. A escuridão não constitui a causa do perigo, mas é o habitat natural da incerteza — e, portanto, do medo. (BAUMAN, 2008, p. 8, grifo nosso)

Diferente dos animais (dotados unicamente do “medo originário” ou “medo primário”, originado unicamente pelo instinto, caracterizado por um rico repertório de reações a ameaças imediatas, que oscilam entre fuga, agressão e paralisação), os humanos, além de acometidos pela habilidade de sentir o citado medo primário, desenvolvem, também, um desdobramento intelectual do medo18, através de uma estrutura mental, chamada pelo pensador em voga de

“medo derivado” ou “medo secundário”. O último se constitui como um medo socialmente reciclado, existente apenas porque somos seres racionais e gregários, que orienta nosso comportamento para além da mera reação imediata, mas em incontáveis níveis mediatos, a curto, médio e longo prazo. O medo derivado/secundário não tem origem em um fato real, iminente. Ele se ancora naquilo que pode ser e não naquilo que é. É fomentado pelo rastro de uma experiência passada, própria ou alheia, de enfrentamento da ameaça direta, causada por medo(s) primário(s). Noutros termos: é uma conjectura, uma especulação da provável ocorrência de um evento com potencial lesivo que, se concretizado, gerará um medo originário/primário, seguido pelo dano.

Nessa seara, podemos afirmar que a Modernidade Líquida fez com que aquela escuridão ao redor da clareira, na qual a cabana da metáfora de Bauman se situava, fosse expandida em um breu que encobre a floresta inteira, sem esperanças de claridade — nas palavras dele, uma “estufa dos temores”. Equivale dizer que, quando imerso na liquidez, o indivíduo se vê jogado em uma selva de trevas, o que aflora seus medos. Consequência:

18 Claro, embora sustendo por base racional, o medo de segundo grau também tem parcela ancorada no instinto.

somos acometidos, então, por uma sensação contínua insegurança, vulnerabilidade e suscetibilidade ao perigo. (BAUMAN, 2008, p. 9)

Tendo em conta o dito arriba, conceituar “Medo Líquido” se torna tarefa simples: em termos precisos, medo líquido é todo medo derivado/secundário que tem sua criação com origem na e por causa da liquidez.

Se seguirmos avante na investigação dos efeitos que o medo líquido causa no cidadão contemporâneo, chegamos a conclusões aterradoras — ou, no mínimo, desconfortáveis. O autor vai dizer que, “no ambiente líquido-moderno [...], a luta contra os medos se tornou tarefa para a vida inteira”, haja vista que difusos, inesperados, dificilmente administráveis e, muitas vezes, silenciosos. Os medos líquidos são os mais assustadores, vez que dispersos, indistintos, sem origem precisa. “Os perigos que os deflagram [...] passaram a ser considerados companhias permanentes e indissociáveis da vida humana”. Dessa forma, depreende-se que a “vida inteira é agora uma longa luta, e provavelmente impossível de vencer, contra o impacto potencialmente incapacitante dos medos e contra os perigos, genuínos ou supostos, que nos tornam temerosos”. (BAUMAN, 2008, p. 15, grifos nossos)

Atente para o destaque “genuínos ou supostos”. Medos originários sempre são genuínos; noutra via, embora medos derivados também possam ser genuínos, eles costumam ser supostos, isto é, uma criação abstrata e especulativa — sem embasamentos fáticos contundentes — da mente do indivíduo atormentado pelo caos ambivalente da liquidez. Nesse âmbito, sempre que um medo derivado for suposto, estaremos tratando de um medo líquido;

e, em se tratando de medos derivados genuínos, pode ser (com fortes tendências) que sejam medos líquidos.

Em face do explanado, somos capazes de inferir duas teses sobre a dinâmica entre medos originários/primários e derivados/secundários com a liquidez: i) medos primários nunca são medos líquidos; e ii) todo medo líquido é medo secundário, mas nem todo medo secundário é medo líquido, embora tenha tendência de sê-lo (se estivermos fazendo esta análise no contexto da Modernidade Líquida, é claro).

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