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A Motivação: O perigo de ler

5.1 MALA DE LEITURA: UMA LEITURA DE PRAZER

5.1.1 A Motivação: O perigo de ler

O Círculo de Leitura denominado Mala de Leitura começou em 16 de abril de 2018.

O primeiro passo dado, a MOTIVAÇÃO, é crucial para a aceitação do texto literário por parte do leitor, uma vez que antecipa aquilo que é dito no texto, “[...] abrindo portas e pavimentando caminhos para a experiência literária” (COSSON, 2016, p. 54). Por este motivo, deve-se favorecer o encontro criativo com as palavras, fazendo uso de atividades lúdicas, que possibilitem aguçar a imaginação e a fantasia, além de que, em se tratando do público jovem, possibilitar a exposição de pontos de vista é também um atrativo, já que muitos deles se abrem para a aprendizagem, quando lhes são dadas oportunidades de expor suas opiniões. Por isso, foi utilizada uma estratégia de leitura conhecida como Leitura Protocolada. Ela foi realizada com o texto “Ler devia ser proibido” de Guiomar de Grammont (1999), o qual aborda com criticidade e ironia a importância da leitura para a formação cidadã de um povo e as inúmeras possibilidades que esta agrega ao público leitor.

Nessa oportunidade, foram criadas condições para os estudantes elaborarem predições, isto é, formularem hipóteses de leitura, a princípio, a partir do título do texto que foi transformado em um questionamento: Ler devia ser proibido? Na sequência, as assertivas de Grammont (1999) sobre o ato de ler eram também transformadas em indagações que recebiam, gradativamente, as intervenções dos integrantes do círculo. De acordo com Kleiman (2004), em qualquer nível de formação do leitor, fazer predições acerca de um texto é um recurso eficiente, pois possibilita que os leitores construam uma ideia aproximada sobre ele. Estas hipóteses são levantadas com base no conhecimento prévio do leitor quer seja sobre o gênero textual, quer seja sobre o tema abordado no texto.

As predições efetuadas pelos participantes da Mala de Leitura, a partir do título e das assertivas da autora tecidas ao longo do texto, aproximaram-se do sentido global comunicado por ele. De imediato, o tom de ironia do texto foi percebido pelo estudante Agatha Christie:

“Eu acho que é só ironia. Só pra chamar a atenção do povo” (CÍRCULO DE LEITURA, 16/04/2018). Assim, de um modo geral, eles disseram que ler não devia ser proibido por diversos motivos, dentre eles: porque amplia os conhecimentos; faz surgir novas ideais; provoca mudanças na medida em que dá um novo rumo à vida; conduz o sujeito à reflexão, fazendo-o pensar diferente e desejar sair da mesmice; quebra paradigmas, possibilitando a ascensão social;

desperta para a realidade; faz o indivíduo questionar as ideias impostas pela mídia e o comportamento da sociedade e do governo; permite a elaboração de opiniões próprias; ensina

a discernir o certo do errado e gera pensamentos diferentes sobre um determinado ponto, fomentando o debate.

[...] quando a gente ler, a gente para de seguir os padrões que é dado pela sociedade e abre um novo mundo, [...]. (CÍRCULO DE LEITURA, JÚLIO BRAZ, 16/04/2018)

A leitura ela induz ao questionamento, porque eu não posso ter mais, porque eu não posso fazer mais, porque eu não posso seguir um caminho diferente do que eu tenho hoje? (CÍRCULO DE LEITURA, YOUNG & ROBISON, 16/04/2018)

[...] sempre que eu leio surge uma ideia nova sobre alguma coisa semelhante a aquilo que eu li, [...]. (CÍRCULO DE LEITURA, JORGE TAVARES, 16/04/2018)

Ler pode ser um problema porque o sistema quer a gente burro, e a gente lendo vai conquistar conhecimento, a gente vai saber além do que eles querem. (CÍRCULO DE LEITURA, ISABELA FREITAS, 16/04/2018)

Noutro ângulo, alguns integrantes do círculo apresentaram uma resposta afirmativa para o questionamento. Para eles, ler devia ser proibido, porque como diz a sabedoria popular

“o fruto proibido é o mais apetecido”, ou seja, tudo aquilo que está distante do homem, que não pode ser tocado por ele, desperta-lhe mais o desejo de possui-lo. Neste sentido, os estudantes das falas seguintes, concordam que se a leitura fosse um fruto apetecido, todos então ansiariam provar o sabor de sua carne e de seu suco.

Deveria ser proibido, porque a maioria das coisas que é proibido todo mundo quer fazer. (CÍRCULO DE LEITURA, AGATHA CHRISTIE, 16/04/2018)

[...] Eu acho que [se] a leitura for [fosse] proibida o brasileiro gostaria mais de ler, [...]

iria se preocupar em ler, pelo fato der ser proibido, porque todo mundo quer o que é proibido. (CÍRCULO DE LEITURA, ISABELA FREITAS, 16/04/2018)

Porque se a leitura fosse proibida, [...], consequentemente a gente iria fazer o que é proibido, a gente ia ler, ia saber mais. (CÍRCULO DE LEITURA, IVAN ANGELO, 16/04/2018)

Há aqueles também, que defendendo a proibição da leitura, respondem as indagações numa perspectiva literal, sem revolver o não-dito. Para os estudantes Machado de Assis e Nuno Cobra, a leitura devia ser proibida, porque pensar diferente gera conflitos na sociedade e induz as pessoas a agirem, conforme ideias e comportamentos vivenciados pelos personagens das histórias contadas nos livros.

Porque através da leitura a gente vai construindo um mundo próprio na nossa mente e quando a gente vai lançar as nossas ideias pro mundo, milhares de pessoas pensam diferente, então pode gerar um conflito como tem hoje, acontecem vários conflitos por questão de cada um pensar de uma forma. (CÍRCULO DE LEITURA, NUNO COBRA, 16/04/2018)

Porque a depender do livro que a pessoa vai ler, tem livro que fala de guerra, fala de amor, [...]. Na minha opinião, eu acho que induz a pessoa a fazer alguma coisa.

(CÍRCULO DE LEITURA, MACHADO DE ASSIS, 16/04/2018)

Este último excerto nos remete à História da Leitura quando, até o século XIX, a igreja e as autoridades monárquicas ainda censuravam aquela espécie de leitura considerada perigosa,

“[...] porque podia se transformar em uma fonte de espírito crítico, de heresia e de subversão”

(NEVES, 1999, p. 393). O romance era um dos livros mais censurados por se acreditar que ele, através de seus enredos e das ações de suas personagens, exercia forte influência sob o comportamento das pessoas, principalmente das mulheres, o qual não podia ser alterado de modo que ferisse os padrões morais e cristãos (NEVES, 1999; PAIVA, 1999). Em consonância com estes pensamentos, o estudante Machado de Assis externa uma preocupação com as fortes influências que os livros podem exercer sob as pessoas, como ele mesmo diz, aquelas “que não têm seu juízo perfeito” (CÍRCULO DE LEITURA, 16/04/2018).

No dia 17 de abril, nosso segundo encontro da Mala de Leitura, fez-se necessária a releitura do texto por mim, uma vez que a maioria dos integrantes doCírculo de Leitura não cumpriu o combinado de fazer a leitura silenciosa do texto em casa e elaborar um ponto de vista sobre a questão supramencionada, justificando-o. Nesta oportunidade, eles poderiam utilizar as próprias proposições de Grammont (1999) para este fim. Diante disto, esta pesquisa concorda com Yunes (1999), quando ela diz que todos os participantes do Círculo de Leitura precisam estar dispostos a participar das atividades propostas e, ao mesmo tempo, comprometerem-se com a leitura, porque o encontro com o texto depende do autor, do livro, do mediador, mas, sobretudo, do leitor que necessita se disponibilizar para a experiência com a arte literária.

Em contrapartida, neste círculo, alguns alunos trouxeram o resultado de suas releituras, a partir das quais é possível perceber que as predições anteriormente elaboradas se confirmam e novos elementos são acrescidos de modo a ampliar os horizontes de expectativas dos ledores.

Desse modo, os nossos leitores e leitoras afirmam que após relerem o texto em pauta concordam com a autora quando, implicitamente, ela declara que ler não deve ser proibido. Isto porque, segundo eles, a leitura, na medida em que amplia os conhecimentos,torna o ser humano um ser pensante com poder de enxergar, questionar a realidade e transformá-la, o que o faz tomar dos poderosos as rédeasde seu próprio destino.Se a partir dela não se consegue reformar o mundo, desenvolve-se, ao menos, a crença na possibilidade de mudança, inclusive alterando formas de pensar acerca de um determinado tema.

E as vantagens da leitura para estes colaboradores não se resumem a isto, porque a leitura também propicia a vivência de novas experiências que podem fazer aflorar os vários sentimentos. Numa perspectiva mais prática, ler torna os homens cidadãos, porque podem conhecer os seus direitos, escolher melhor os seus representantes políticos e questionar a sua atuação. E quando se desenvolve o hábito da leitura, não por obrigação, este momento se torna prazeroso.

Ler não deveria ser proibido, porque a leitura é algo muito fundamental. No meu ponto de vista, a autora compara a leitura com uma arma, que deixa o homem mais poderoso, sai da posição de insosso, para querer questionar, entender e ‘correr atrás’. (CÍRCULO DE LEITURA, ONDJAKI, 17/04/2018)

Já imaginou se todos os cidadãos lessem sobre seus direitos e pudessem saber o passado de cada político antes de dar a ele o poder sob uma nação? Se todos fossem ler e questionar suas escolhas, realmente, para a sociedade, a leitura pode ser um problema. Mas para nós é algo essencial, é uma silenciosa carta de refúgio, pois liberta a mente e o pensamento, e nos faz [...] donos de nós mesmos. (CÍRCULO DE LEITURA, YOUNG & ROBISON, 17/04/2018)

A leitura promove alegrias, dores e tantos outros tipos de sentimentos. [...] Enriquece o nosso interior. É o mundo que cria regras, que determina como seguir, mas a leitura faz o ser humano evoluir e criar caminhos livres, para nos expressar e fazer nossas escolhas. (CÍRCULO DE LEITURA, LYGIA BOJUNGA, 17/04/2018)

A vocação principal dos Círculos de Leitura é o compartilhamento dos sentidos do texto.

Contudo, há aqueles membros que são inibidos e, portanto, não se sentem à vontade de oralizar seus pensamentos. Logo, a atividade escrita cumpre também este objetivo de favorecer a este aluno a oportunidade de expressar suas ideias, opiniões e sentimentos. Mas este silêncio se quebra para alguns integrantes do Círculo, que se sentem constrangidos de externar posicionamentos, quando no calor das manifestações de pontos de vista, envolvem-se rompendo o silêncio que estava instalado, a exemplo dos alunos Lygia Bojunga, Machado de Assis e Milton Hatoum, cujas falas estão dispostas no decorrer deste capítulo.

Enquanto isso, os participantes do círculo de Leitura Domingos Pellegrini, Laks &

Sender, Moacyr Scliar, Roseana Murray, Marcelo da Cunha, Geni Guimarães, Miguel Jorge, Gaarder & Hagerup e Milton Hatoum também rompem seus silêncios ao registrarem por escrito alguns aspectos concordantes com aqueles antes explicitados, no entanto, adicionaram outros posicionamentos acerca da leitura para além da vida prática, voltados à fabulação. Então, para eles ler não devia ser proibido haja vista proporcionar a realização de sonhos, despertar a curiosidade de saber o que estar por vir em uma narrativae desenvolver a imaginação para a criação de histórias.

Quando lemos, temos mais imaginação, mais fundamento para criarmos, inventarmos histórias. (REGISTRO, MILTON HATOUM, 17/04/2018)

Quando estamos lendo [...] não sabemos o que está por vir, além disso, [...] desperta uma grande curiosidade de saber. (REGISTRO, MIGUEL JORGE, 17/04/2018)

O balanço desta primeira fase do Círculo de Leitura nos mostra que a estratégia Leitura Protocolada é um recurso eficaz, pois mantem firme a atenção do aluno para aquilo que vai ocorrer no decurso da leitura, possibilitando-lhe interferir e (re)criar o texto, fazendo deduções a partir das informações reveladas, envolvendo-se num movimento criativo da linguagem. As falas dos alunos, na maioria das vezes, não somente confirmaram a ironia presente no texto e anteciparam reflexões que se aproximavam dos argumentos da autora, mas também acrescentaram outros elementos, que enriqueceram o compartilhamento de sentidos sobre o texto. Esta prática, como nos informa Yunes (2014, p. 138), desenvolvida pelo PROLER38, “foi bastante fundamentada e comprovada pelo país afora nas últimas décadas, para ajudar a dar voz aos pensamentos que tomam corpo diante de uma leitura compartilhada.”.

Esta forma de ler também preenche uma lacuna no processo de formação do leitor, quando, nos encontros de leitura ao compartilharmos ideias e reflexões, a escuta e o debate favorecem o repensar e o reconstruir de posicionamentos acerca de um determinado tema. Isto foi observado com o aluno Nuno Cobra, no momento em que ele faz predições literais acerca do texto Ler devia ser proibido de Grammont (1999). Ao final desta etapa

A leitura [...] traz para ele [o leitor] informações das quais induz a mudar o conceito sobre determinado tema, ou seja, a questão que quando a gente começa a ler, aí vem [...] coisas que a gente não conhecia, e a partir daí a gente cria nossas experiências. Aí eu até brinquei assim com as frases dos questionamentos que a senhora colocou aqui:

A leitura enriquece, “é obscena”.

“Ler pode gerar invenção”

e até mesmo a loucura, pode ser um problema ou talvez a solução, aí é que tá.

É a depressão

que disse que ela não faz bem.

Devo me preocupar?

Sei lá.

Se ler “promove a comunicação de [...] sentimentos”,

então é na leitura que vou morar. (CÍRCULO DE LEITURA, 17/04/2018)

38O Programa Nacional de Incentivo à Leitura (PROLER) da Fundação Biblioteca Nacional tem o objetivo de “[...]

assessorar e articular nas várias regiões do país ações que visavam à formação de recursos humanos para o desenvolvimento de atividades de leitura em diversos espaços.” (BESNOSIK, 2002, p. 20).