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devido às resistências locais, o governo português, considerando seu território africano estar realmente em perigo, coloca em ação um plano concreto de invasão. “Assim, a opção pela ação militar na região como forma de subjugar o poder nguni no Reino de Gaza, desmantelá-lo e assumir o controle efetivo sobre a região, ganhou espaço entre as autoridades portuguesas, resultando na campanha de 1895” (SANTOS, 2007, p. 26-27), quando o imperador foi capturado.

Essa é a base histórica, portanto, sobre a qual se apoia a obra, que, a seguir, será analisada nas suas duas frentes discursivas: paratextual e narrativa.

contrato com o destinatário. O enunciado poético elevado do enunciador tenta justificar a colonização como necessária para a glória e enriquecimento de Portugal, lamentando as dificuldades e mortes lusitanas ocorridas durante a invasão, seja pela reação violenta por parte das tropas do imperador (anjos com espada), seja por causa das doenças desconhecidas da nova terra (febres mortais).

Nesse caso, a alusão ao discurso católico, configurado pelas imagens de pecado, julgamento de Deus, anjo com espada, primaveras de seus jardins (Éden/origem do homem, Adão e Eva), recupera o imaginário cristão, uma das bases da formação portuguesa na época, que também tinha como pilar o ideal de civilidade, em detrimento da suposta barbárie da “grande Etiópia”26. No entanto, pode-se dizer que o uso que o enunciador faz do discurso religioso é falseado, hipócrita, servindo apenas para alimentar a imagem de grande conquistador do povo português, pois apela a Deus e seus símbolos para falar de invasão, dominação, violência, colonização.

Entendemos que o autor-criador insere as palavras demarcadas de João de Barros, o que indica a separação clara entre discurso citado e citante, em seu discurso para cumprir o seu objetivo de, já nas primeiras páginas do romance, remeter ao episódio histórico que será ficcionalizado. E, ao fazer isso, gera um estranhamento no leitor, quebrando-lhe a expectativa, pois inicia uma obra que critica o colonialismo português com uma voz que defende esse mesmo colonialismo.

Também, o emprego de uma citação de um historiador e gramático remete ao mesmo tempo ao discurso histórico, que o livro discute, em detrimento do discurso literário, que a obra propõe como releitura daquele, e ao discurso da valorização da língua portuguesa, a despeito das línguas maternas, o que vemos também referenciado na obra.

Dessa forma, o paratexto, no caso aqui uma epígrafe, gênero normalmente de escolha do autor para abrir algum trabalho e que costuma adiantar algo que ainda será debatido – tal qual sabemos de Genette (2018) –, como parte do enunciado concreto se torna um importante recurso heterodiscursivo, colocando em oposição dois discursos e visões de mundo, visto que o autor emprega o discurso colonizador de João de Barros no seu conjunto maior da obra, da qual é responsável, refratando-o, problematizando-o e fazendo-o trabalhar a seu serviço de criticar a colonização.

26 Conforme registros históricos, a Etiópia, na África, é uma das regiões mais antigas do mundo e, na Antiguidade, o termo era utilizado para designar as áreas negras desse continente.

A palavra do outro, aqui inserida no contexto enunciativo do autor e reproduzida conforme suas intenções de enfrentar os conceitos coloniais recuperados pelas diferentes formações discursivas acima identificadas, ganha, assim, tom de escárnio, que é compreendido e ratificado pelo leitor, o que garante o efeito irônico. Sozinha, a epígrafe não gera ironia, pois fala a sério, mas gera considerada em diálogo com o conjunto, quando se instaura o embate.

Essa proposta de ficcionalização da história ganha mais sentido e nossa observação de que a enunciação paratextual é o plano do autor, seu espaço de manifestação específica, parece se justificar com o segundo paratexto que abre a obra, a nota introdutória.

Este é o primeiro livro de uma trilogia sobre os derradeiros dias do chamado Estado de Gaza, o segundo maior império em África dirigido por um africano.

Ngungunyane (ou Gungunhane como ficou conhecido pelos portugueses) foi o último dos imperadores que governou toda a metade sul do território de Moçambique. Derrotado em 1895 pelas forças portuguesas comandadas por Mouzinho de Albuquerque, o imperador Ngungunyane foi deportado para os Açores, onde veio a morrer em 1906. Os seus restos mortais terão sido trasladados para Moçambique em 1985.

Existem, no entanto, versões que sugerem que não foram as ossadas do imperador que voltaram dentro da urna. Foram torrões de areia. Do grande adversário de Portugal restam areias recolhidas em solo português.

Esta narrativa é uma recreação ficcional inspirada em factos e personagens reais.

Serviram de fonte de informação uma extensa documentação produzida em Moçambique e em Portugal e, mais importante ainda, diversas entrevistas efectuadas em Maputo e Inhambane. De todos os entrevistados, é justo destacar o nome de Afonso Silva Dambila, a quem devo expressar a minha profunda gratidão (COUTO, 2015, p. 9).

Aqui, o autor-criador simula a voz do escritor Mia Couto para assegurar ao romance o semblante de ficção que tem como matéria fatos da história. Em matiz explicativo, característico de uma nota introdutória, primeiramente essa voz simulada do escritor, figura alimentada no imaginário dos leitores como um ser criativo que concebe uma obra original, comenta o processo editorial da trilogia a que Mulheres de cinzas pertence (“[...] o primeiro livro de uma trilogia [...]”) e traz o resumo do episódio histórico tratado na narrativa (“[...] trilogia sobre os derradeiros dias do chamado Estado de Gaza, o segundo maior império em África dirigido por um africano”).

Depois, esclarece que aquilo que tem em mãos é uma “[...] recreação ficcional inspirada em factos e personagens reais”. Desse modo, a dissimulada figura real do escritor se dirige a seus leitores, explicando a sua escolha por um tipo de obra que terá a história transformada em romance, acionando, portanto, a relação entre ficção e história na obra. Faz mais sentido a esse universo que

se pretende simular que o próprio escritor venha à tona para contar como pensou e conduziu a sua criação, mas quem fala é uma entidade literária, não o autor real, que, portando seu horizonte e linguagem literária, insiste que o que produz é ficção, não história, ainda que baseado “fatos e personagens reais”.

O uso dos pronomes demonstrativos “este” (“Este é o primeiro livro [...]”) e “esta” (“Esta narrativa é [...]”) e a presença da forma verbal na primeira pessoa do singular “devo” nessa nota apontam-na como o lugar enunciativo do escritor, confirmando a representação de que quem falaria seria mesmo ele. Além disso, o emprego de verbos no passado, como “ficou conhecido”,

“foi”, “governou”, “foi deportado”, “veio”, e a menção à pesquisa histórica, com a realização de registros e entrevistas com pessoas supostamente reais, imprimem mais credibilidade ao discurso do escritor conhecedor da história e que sobre ela escreve, reforçando a confiança do leitor de que o que lê, apesar de ser ficção, tem base histórica.

Igualmente, podemos perceber que, quando a suposta voz do escritor, de modo a se opor aos portugueses e ao seu discurso oficial, assinala de que lado da história está, algo que observamos pela sua opção pelo termo “Ngungunyane”, utilizado pelos moçambicanos para nomear o imperador, em vez de “Gungunhane”, como os portugueses o chamavam, como se elucida na nota, ela deixa ver uma posição axiológica que se aproxima da posição do autor-criador, já adiantada pelo seu posicionamento irônico em relação à epígrafe precedente, que é de crítica à invasão portuguesa da África negra, no caso o Estado de Gaza. Por esse viés, o autor, utilizando o discurso do escritor para comprovar seu argumento, ressalta a oposição linguística e ideológica existente entre colonizador e colonizado.

Considerando a ausência de marcas claras de separação entre os dois discursos, é possível assumir tratar-se de um caso característico de estilização, de bivocalidade de orientação única, sendo que o autor cria o discurso do escritor, com seu modo de dizer e lugar social, apelando, assim, para o conhecimento de mundo do leitor, de modo a instaurar o seu objetivo para a obra de discutir a relação ficção e história. Como afirma Bakhtin (2013), na estilização o autor emprega a linguagem do outro como sendo desse outro para traduzir uma visão de mundo.

Nesse sentido, o autor, ao assumir a voz do escritor e questionar os portugueses sobre a veracidade do evento histórico, já que menciona que existe mais de uma versão sobre o retorno dos restos mortais do imperador ao país (se existe mais de uma versão sobre isso, pode haver mais de uma versão sobre todo o resto), tentando afiançar a ficcionalidade da narrativa, apesar de

“inspirada em fatos e personagens reais”, institui o diálogo entre discurso histórico e discurso literário, sendo este um meio possível de passar o outro a limpo, de refletir sobre ele, de questioná- lo, o que a obra intenta fazer.

O discurso do escritor está presente no interior do discurso do autor-criador por paratexto ao mesmo tempo que se encontra na categoria de um discurso sobre o discurso do romance, um enunciado sobre o enunciado governado pelo autor-criador, ou seja, o “[...] discurso dentro do discurso, o enunciado dentro do enunciado, mas ao mesmo tempo [...] também o discurso sobre o discurso, o enunciado sobre o enunciado”, tal como advertido por Volóchinov (2017).

Logo, percebemos que o autor-criador utiliza os paratextos como um frutífero expediente heterodiscursivo de modo a construir um enunciado concreto que examina criticamente a história por meio da ficção, resistindo, assim, ao discurso pronto e único. O olhar contestador do autor instaurado e adiantado pelo emprego das palavras de João de Barros fortalece-se com a voz simulada do escritor na nota introdutória, desembocando no que vem a seguir, a narrativa propriamente dita, a leitura ficcional do acontecimento histórico.