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LUSOCENTRIC MISUNDERSTANDING”

1. Ponto de partida

Um bom ponto de partida para o início de uma reflexão sobre o sentido da ideia de lusofonia é o facto de uma parte significativa dos cidadãos que compõem esta “comunidade imaginada” (Anderson, 1994 [1983]: 6) não lhe atribuir qualquer significado: a evidência de que em outros países do mundo existem milhões de pessoas com quem partilham a sua língua, o português, bem como muitas das suas expressões culturais, simplesmente não faz parte dos seus quotidianos. Como observam Macedo, Martins e Cabecinhas (2011), este cenário ficou a dever-se não só à enorme distân- cia geográfica que separa os oito países de língua oficial portuguesa e as suas inúmeras diásporas espalhadas pelo mundo, como também a uma história pós-independência na qual cada um destes países se posicionou estrategicamente noutros sistemas políticos, económicos e culturais, que não o do espaço lusófono. Com efeito, no tempo presente, a consciência coletiva em torno de uma identidade lusófona parece encontrar-se ainda longe do seu estado de consubstanciação, uma vez que só uma minoria, de entre os cidadãos lusófonos, concebe as suas pertenças a partir da língua que falam.

Tal cenário remete para a importância e para a urgência de uma refle- xão séria e participada sobre as possibilidades que se colocam à comunidade lusófona: para além de se tratar de uma comunidade que fala, pensa e

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155 sente numa das grandes línguas de comunicação e cultura do mundo 1, trata-se também de uma comunidade significativamente representada em número de glotas: de acordo com a Internet World Stats 2, em 2012, exis- tiam 253 milhões de falantes de português espalhados por todo mundo.

Trata-se, ainda, de uma comunidade de culturas que aborda um espaço fragmentado, disperso por várias latitudes e longitudes do globo, no qual habitam cidadãos de diversos grupos étnicos e com diferentes modos de vida (Ibidem). Trata-se, por isso, de uma comunidade que, através das suas diferentes culturas, exprime o valor da diversidade.

Por outro lado, àqueles a quem a ideia de lusofonia desperta a arte da reflexão, parece ser difícil dissociar a narrativa contemporânea desta comunidade de culturas do passado histórico protagonizado pelos seus ancestrais.

Assim, a interpretação que cada grupo nacional pertencente à comuni- dade lusófona faz do seu próprio passado determina o seu posicionamento face ao presente, bem como o planeamento das suas estratégias para enfrentar o futuro. De acordo com Cabecinhas et al. (2006), são estas estra- tégias que definem as relações intra e intergrupais, num processo dinâmico que pode oscilar entre a estabilidade ou a transformação, a resiliência ou o ajustamento, a definição de novas fronteiras ou seu enfraquecimento.

Atender às diferentes vozes que pensam a lusofonia a partir das várias versões da história e das várias perspetivas sobre o presente constitui- -se, portanto, como cuidado imprescindível para que uma ideia acerca desta comunidade de culturas possa ser coletivamente partilhada. Por isso mesmo, a lusofonia – concebida enquanto narrativa identitária dos povos que habitam os espaços outrora pertencentes ao império português – poderá apresentar-se, em certos casos, sob o discurso da desconstrução pós-colonial.

Neste sentido, é McMillin (2009) quem defende a ideia de que as consequências do colonialismo – que se fazem sentir até aos dias de hoje – são coletivamente partilhadas pelas sociedades que o viveram. Daí a

1 Houaiss (1992 [1984]) notava que a língua portuguesa, enquanto língua de comunicação e cultura, é sustentada por um aparato escrito que mais de 98% das restantes línguas do mundo não possuem.

2 http://www.internetworldstats.com

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necessidade de tomar em linha de conta a abordagem pós-colonial quando se pretende atender às atuais condições das sociedades ex-colonizadas.

Todavia, há a considerar que o pós-colonialismo não está isento de pontos fracos, e mesmo de equívocos, como bem notaram Almeida (2002) e Martins (2014). Para além da recusa de todas as narrativas-mestras e do eurocentrismo que delas emana, a abordagem pós-colonial repu- dia as dicotomias centro/periferia ou primeiro mundo/terceiro mundo, alegadamente criadas pelo colonialismo, consubstanciando uma nova constituição discursiva do mundo. Por isso mesmo, o pós-colonialismo mais radical corre o risco de substituir a verdade única do ex-colonizador pela verdade única do ex-colonizado, fortalecendo a “Escola do ressentimento” 3 a que se referia Bloom (1997: 31).

Assim, a recomposição de um discurso que integre as várias perspe- tivas sobre o passado e sobre o presente desta comunidade – a da antiga metrópole do império colonial, porventura mais eurocêntrica 4, e as das suas ex-colónias, porventura mais pós-coloniais – deverá procurar não uma convergência de visões, mas antes uma síntese crítica das mesmas.

Atendendo à ideia de Baptista (2006) de que, “…o conceito de luso- fonia assinala (…) um lugar de ‘não-reflexão’, de ‘não-conhecimento’ e, sobretudo, de ‘não-reconhecimento’, quer de si próprio, quer do outro”

(p. 24), propõe-se o exercício de desconstrução de uma das narrativas dominantes sobre esta comunidade de língua e de culturas – o “equívoco lusocêntrico” (Martins, 2011: 75) – de modo a abrir outras possibilidades de futuro para a ideia de lusofonia.

3 A noção de “Escola do ressentimento”, proposta por Bloom, constitui uma crítica a diversos discursos desconstrutores, entre os quais o feminismo, o marxismo ou o afro- -centrismo. Naturalmente, trata-se de uma visão muito discutível, uma vez que o autor adjetiva de “ressentidos” (Bloom, 1997: 42) aqueles que procuram apresentar um discurso alternativo ao das correntes dominantes, nomeadamente quando esse discurso procura reconciliar os seus autores com o seu próprio passado.

4 A inclusão desta perspetiva apresenta ainda uma outra vantagem: a de a investigadora respeitar as leituras do seu próprio espaço cultural, uma vez que é portuguesa. Como referia Chaunu (1984), é difícil realizar um trabalho científico válido se o investigador não tiver em conta o seu próprio espaço cultural.

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