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“Capacidade Contributiva na Realidade”, texto para o livro “Estudos de Direito Tributário - Homenagem a José Eduardo Soares de Melo”, São Paulo: 2020, Jus Podium/Malheiros, vol. 1, p. 113 - Ricardo Mariz de Oliveira.

Autor: Ricardo Mariz de Oliveira

CAPACIDADE CONTRIBUTIVA NA REALIDADE

A leitura de algumas decisões recentes despertaram a conveniência de se pensar um pouco mais, outra vez, sobre a noção de capacidade contributiva na realidade da vida do contribuinte, fugindo um pouco de proposições meramente teóricas.

Esta proposta se deve a que, na grande parte das vezes, a doutrina e a jurisprudência tratam do tema numa perspectiva muito mais teórica do que prática, e quando, se trata da prática, inúmeras vezes as alegações são mais retóricas e superficiais, verdadeiramente argumentativas, do que lastreadas em fundado conteúdo substancial.

Por evidente, esta não é uma crítica de caráter geral e absoluto, pois há, sim, excelentes trabalhos teóricos sobre o assunto, mas é uma observação retirada de um conjunto maior de trabalhos das mais variadas feições, produzidos ao longo dos tempos, o que, aliado à leitura das mencionadas decisões, que serão referidas adiante, suscita a oportunidade desta volta ao tema da capacidade contributiva.

Na verdade, esta é uma provocação para que o assunto seja repensado.

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Todos sabem que é ponto pacífico na doutrina a necessária existência dessa dita capacidade contributiva, para que algum tributo seja instituído ou cobrado, dado que qualquer fato gerador de obrigação tributária deve ter um substrato econômico do qual se retira o montante devido ao erário público.

Isto é assim, sem qualquer sombra de dúvida, a ponto de se proclamar que a capacidade contributiva deve existir sempre, ainda que não haja norma jurídica que a prescreva expressamente, por ser ela um dado inerente e inseparável da obrigação tributária. Neste sentido, mesmo no interregno entre as constituições de 1946 e de 1988, em que a Constituição de 1967 e sua Emenda n. 1, de 1969, eram silentes a respeito, jamais se admitiu tributo vazio de capacidade contributiva.

Mesmo na atual Constituição Federal, em que o lastro para a capacidade contributiva ser reconhecida como exigência constitucional geralmente é apontado como estando situado no parágrafo 1º do seu art. 1451, o dispositivo refere-se textualmente a “impostos”, e, não obstante, também se sustenta, e quase não se contesta, que as contribuições também estão sujeitas ao mesmo requisito.

Exatamente porque o poder público arrecada o que lhe é devido sobre manifestações de capacidade contributiva, qualquer dessas manifestações tem que ser efetiva e real, não podendo haver exação tributária sobre um nada econômico. Como alerta LUCIANO AMARO, em terra seca não se abre poço de água2.

Todavia, a despeito dessa unanimidade, há diferentes percepções do fenômeno a que se denomina “capacidade contributiva”, pois para uns ela se presta a fixar o dever da pessoa que a detenha, de pagar o respectivo tributo, dever que se impõe em homenagem à solidariedade social e a outros valores respeitados pela Constituição em vigor, e que ultimamente vem sendo proclamado como “dever fundamental de pagar tributos”.

Há muito de ideológico nesse tipo de visão da capacidade contributiva, e certamente muita redução do seu real significado, tanto quanto é muito simples

1“Parágrafo 1º - Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte, facultado à administração tributária, especialmente para conferir efetividade a esses objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte.”

2 AMARO, Luciano. Direito Tributário Brasileiro. 7ª ed. São Paulo: Saraiva, p. 136.

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afirmar, pura e simplesmente, sem as necessárias restrições, que há um dever fundamental de pagar tributos, assunto este que está a merecer um estudo especial.

Numa perspectiva diversa, outros aludem a que a capacidade contributiva carrega uma garantia para o contribuinte, que não pode ser chamado a contribuir para o erário público sem que esteja pessoalmente ligado a um fato economicamente denso.

Inclusive, a isto conduz a própria dicção do parágrafo 1º do art. 145, quando determina que os impostos “serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte”.

E, assim, se oscila entre o dever, ou a possibilidade, de o legislador identificar onde exista capacidade contributiva, para captura-la na instituição de obrigações fiscais, e o direito do contribuinte de se opor a cobranças em situações nas quais não exista uma real capacidade para ser obrigado pela lei a pagar tributo.

Nesta multiforme visão da capacidade de contribuir, também se afirma que ela representa um mínimo a partir do qual a pessoa está sujeita à tributação, ou que ela é um limite máximo até o qual essa sujeição pode existir. Depende da perspectiva pela qual se encare esse aspecto.

Entretanto, é possível dizer que a capacidade contributiva estabelece sempre um parâmetro de mínimo e máximo, pois sem ela ninguém deve ser compelido a recolher tributo, qualquer que seja sua espécie e qualquer que seja seu valor, e acima dela ninguém pode ter tal obrigação. Daí que a obrigação tributária está necessariamente contida no valor econômico da situação que configura o dever de pagar o tributo, indo do mínimo ao máximo, mas não sendo, ela em si, nem o mínimo nem o máximo, pois aquele pode estar no limiar da subsistência e este no limite da tributação confiscatória, esta quando entendida pela quantidade do tributo exigido, e não sob outros critérios.

Na teoria, e quanto mais se aprofunda na perquisição da matéria, pode-se chegar à conclusão de que a capacidade contributiva é um fator indeterminável na realidade da vida de cada contribuinte, e que sua existência tem que ser presumida

“juris et de jure” na própria norma instituidora da obrigação tributária. A capacidade contributiva seria algo como um mero “signo presuntivo”, adotando-se a terminologia do preclaro ALFREDO AUGUSTO BECKER.

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A vida real, contudo, requer muito mais, pois não é possível subsistir uma exigência constitucional – reconhecida como princípio do Sistema Tributário Nacional – que tenha uma feição destituída de efetividade e eficácia jurídica, algo, como muitas vezes se diz, dirigido ao legislador ordinário com a feição de norma meramente programática.

Se RUI BARBOSA, seguido por JOSÉ AFONSO DA SILVA3, já proclamava que a Constituição não contém conselhos, mas ordens a serem obedecidas (digo eu, para que a ordem jurídica se sobreponha aos interesses individuais e solucione impessoalmente as controvérsias de interesses pessoais), mais ainda a Carta que está em vigor, pois está dotada de mecanismos para sua própria proteção, como a ação sobre descumprimento de preceito fundamental. E ninguém ousará dizer que a capacidade contributiva não seja um desses preceitos!

Neste passo, e em termos mais práticos, e também pragmáticos, embora não destituídos de fundamentos jurídicos, podemos detectar algumas linhas gerais para definir a capacidade contributiva, linhas estas que se ajustam ao normal, isto é, ao que não extravasa a juridicidade e a razoabilidade da tributação.

Uma primeira observação nos mostra que a capacidade para contribuir ao erário não é um dom pessoal, ou um predicado que o contribuinte tenha em sua pessoa.

Neste sentido, ninguém nasce contribuinte, ainda que tenha nascido em

“berço de ouro”, nem se torna contribuinte simplesmente por ser portador de riqueza.

Se tais fatores fossem suficientes para determinar a referida capacidade, ainda restaria estabelecer qual o tributo que estaria relacionado a ela e que, portanto, poderia ser cobrado.

Mesmo o patrimônio de um homem rico não lhe atribui capacidade contributiva, indiscriminadamente.

De fato, o patrimônio é índice real de riqueza em relação tão somente aos tributos sobre o próprio patrimônio, como o IPTU e o ITR, assim como a propriedade de um veículo de luxo não subordina o seu titular a qualquer outro tributo que não o IPVA.

3 SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das Normas Constitucionais. 3ª ed. São Paulo, Malheiros Editores, 2004, p. 35.

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Igualmente, a riqueza de um pai, que permite a um filho gozar de privilégios que outros menos afortunados não têm, não significa que o filho tenha capacidade contributiva, a qual somente aparecerá quando da morte do seu pai, se ainda lhe restar herança, e sua capacidade para pagar tributo será restrita ao ITCMD sobre o seu quinhão.

Com estas perfunctórias observações pode-se perceber que a capacidade contributiva depende da ocorrência do fato gerador de determinada obrigação tributária, ou melhor, depende de haver a ocorrência real de um fato que esteja descrito em lei como hipótese de incidência de algum tributo específico.

Quando esse acontecimento se verifica, pode-se dissecar o fenômeno tributário para verificar:

− que, e se, há uma competência tributária constitucional, a qual, quando instituída pelo constituinte, é, sim, um signo meramente presuntivo de capacidade contributiva;

− se há uma lei embasada na competência constitucional que tenha instituído a hipótese de incidência tributária, com todos os elementos ou aspectos da respectiva obrigação (fato de incidência, base de cálculo, alíquota, sujeição passiva, momento de incidência);

− se ocorreu o fato em conformidade com as duas normas, e aqui se podendo determinar que “in casu” há efetiva manifestação de capacidade contributiva, ou se esta capacidade não passou de presunção existente na formação legislativa, mas, por alguma anomalia, não existe na realidade fenomênica.

Geralmente, ao se constatar a ocorrência do fato gerador, também se constata a manifestação da capacidade da pessoa do contribuinte para entregar dinheiro ao fisco titular da competência tributária respectiva, mas também se pode notar outro fenômeno.

Realmente, embora pessoal, a capacidade contributiva nasce com o fato gerador e é delimitada pelo conteúdo econômico nele existente, podendo ser medida pela respectiva base de cálculo determinada na norma instituidora da obrigação.

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É por esta razão que dois indivíduos portadores de riquezas diferentes – um deles muito mais rico do que o outro – têm igual capacidade contributiva em relação a determinado tributo no qual ambos incidam em condições iguais, como, por exemplo, se os dois tiverem imóveis construídos um ao lado do outro, na mesma época, com plantas iguais, com os mesmos materiais e mão-de-obra, enfim, imóveis que tenham o mesmo valor venal.

Neste caso, a municipalidade não pode pretender cobrar IPTU mais elevado do vizinho mais rico, alegando que este tem maior capacidade contributiva. Embora titulares de riquezas desiguais, eles têm capacidades contributivas absolutamente iguais relativamente ao imposto sobre essas suas propriedades.

E, também, o homem mais rico fica quite com o poder público tanto quanto o menos rico ao efetuar o recolhimento do imposto, o qual extingue o igual crédito tributário contra cada um.

Assim, a detenção de riqueza maior não subordina o respectivo dono a efetuar qualquer outro pagamento ao fisco com relação ao tributo pago ou a qualquer outro, até que ele incorra em novo fato gerador de obrigação tributária do mesmo tributo ou de qualquer outro, quando então, e somente então, começará uma nova história sobre um novo fato tributário.

É possível, e usualmente ocorre, que o rico venha a incidir em mais obrigações tributárias do que pessoas de pouca riqueza, mas sem fato gerador ele não é nem será contribuinte de qualquer tributo, nem a pretexto de que a Constituição consagra como princípio a solidariedade social.

Pela mesma razão, é possível que um pobre tenha que pagar imposto e contribuição sobre seu salário, que nesta dimensão revela capacidade para contribuir ao erário, por mais que a política fiscal deva atender os desníveis dessa capacidade.

Em síntese, e enfim, a capacidade contributiva vem do fato gerador do tributo e corresponde à respectiva base de cálculo.

É inevitável que outros preceitos informem a obrigação tributária, inclusive o da proteção do mínimo essencial e o da vedação do tributo com efeito de confisco,

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mas quaisquer outras considerações além das aqui apresentadas serão meramente especulativas, ainda que possam ter valia acadêmica ou que devam ser devidamente sopesadas pelo legislador, ou pelo julgador em casos excepcionais.

Assim, um ótimo exemplo da importância da capacidade contributiva em sua real expressão está contido nas hipóteses em que o sujeito passivo de determinada obrigação tributária seja um terceiro, eleito pela lei em substituição ao próprio contribuinte.

São as hipóteses de retenções tributárias pela fonte pagadora (hoje difundidas entre muitos tributos) e as de substituições tributárias (muito em uso na seara do ICMS, mas hoje também empregada em outros tributos).

O Código Tributário Nacional - CTN reconhece, no art. 121, as figuras do sujeito passivo contribuinte e do sujeito passivo por responsabilidade, prefixando que aquele deva ser a pessoa que tenha relação direta e pessoal com o fato gerador da respectiva obrigação, exatamente porque é essa a pessoa detentora da capacidade contributiva. E o mesmo dispositivo, em combinação com o art. 128, permite a eleição de um terceiro para ser o sujeito passivo, podendo a responsabilidade deste ser exclusiva ou conjunta com a do contribuinte, neste caso este sendo colocado em posição supletiva.

Porém, o código requer que o terceiro responsável tenha algum vínculo com o fato gerador (como ocorre quando ele efetua um pagamento do qual possa subtrair o valor do tributo), porque ele não tem capacidade contributiva (que sempre é do contribuinte), de tal arte que sua obrigação é legal e sua, mas à custa do patrimônio do contribuinte que está envolvido na situação econômica passível de cobrança tributária.

Nestes casos, o sujeito passivo tem obrigação de providenciar o pagamento do tributo, mas sem o sacrifício do seu patrimônio, o que lhe outorga o direito de cumprir a obrigação com dinheiro do contribuinte, isto é, ele tem o direito de cobrar do contribuinte o valor do tributo devido por este, o qual a lei o obriga a recolher.

Sobre estes aspectos da substituição tributária, veja-se o judicioso acórdão proferido em 1.8.2011 pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal no Recurso Extraordinário n. 603191-MG, em grau de repercussão geral, da relatoria da MINISTRA ELLEN GRACIE.

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O CTN tem plena consciência – os autores do seu projeto a tiveram – desta fenomenologia, pois ela também está expressa no seu art. 45 quanto ao imposto de renda. Realmente, o “caput” desse dispositivo declara que o contribuinte é o titular da disponibilidade da renda, isto é, aquele que a recebe em seu patrimônio e, pois, detém a capacidade contributiva relativa a esse imposto, sendo que o parágrafo único autoriza a lei a atribuir à fonte pagadora da renda a condição de responsável pelo imposto cuja retenção e recolhimento lhe caibam, quer dizer, a fonte pagadora pode ser responsabilizada pelo recolhimento, desde que possa reter o valor a recolher.

Pois bem, como fica a situação de um contribuinte que incidiu em obrigação tributária, mas viu sua capacidade contributiva esvair-se por fatores posteriores?

Há muito tempo, quando havia a incidência do IVC (imposto sobre vendas e consignações), a jurisprudência paulista entendeu que o tributo estadual era devido ainda que o vendedor da mercadoria não viesse a receber o preço da venda.

Mais recentemente, tivemos a repetição da essência desse entendimento quando a Primeira Turma do Superior Tribunal de Justiça decidiu o Recurso Especial n.

1308698-SP, em 6.12.2016.

Neste caso, confirmando o julgamento recorrido do tribunal paulista, a corte entendeu ser irrecuperável o ICMS relativo a serviços de comunicação cujos preços foram inadimplidos pelos usuários, e consequentemente foram baixados como perdas no balanço patrimonial.

A decisão esteve marcada por barreiras processuais, inclusive o entendimento de que o STJ não pode conhecer de matéria eminentemente constitucional, como, segundo o tribunal, é o caráter do princípio da legalidade, mas também não deixou de marcar posição quanto ao mérito do assunto ao afirmar que no caso a incidência do ICMS tem como fato gerador a prestação onerosa de serviço de comunicação e que “o inadimplemento da obrigação civil assumida pelo contratante (Consumidor-final) é desinfluente para a constatação da ocorrência do fato gerador que enseja a exação”.

Na mesma linha, o Supremo Tribunal Federal, em sessão plenária de 23.11.2011, ao julgar o Recurso Extraordinário n. 586482-RS, entendeu que o fato

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gerador das obrigações cujos objetos sejam a COFINS e a contribuição ao PIS “ocorre com o aperfeiçoamento do contrato de compra e venda (entrega do produto), e não com o recebimento do preço acordado”.

Em consequência, aditou a suprema corte que “o inadimplemento é evento posterior que não compõe o critério material da hipótese de incidência das referidas contribuições”.

Nesse julgado, o respectivo acórdão estendeu-se na justificação do entendimento prolatado, porém deu voltas em torno do regime de competência, que teria sido fixado pelo CTN como regra geral para a apuração dos resultados da empresa, aludindo, contudo, ao art. 177 da Lei n. 6404.

Por esta rota, o acórdão estendeu-se em remissões a julgados anteriores sobre os conceitos de faturamento e de receita bruta, bem como se referiu ao regime de competência segundo a lei societária e a Resolução n. 750/73, do Conselho Federal de Contabilidade. Igualmente, abordou o conceito de disponibilidade jurídica da receita, reportando-se a precedentes relativos à disponibilidade econômica ou jurídica da renda em questões em torno do imposto de renda.

Adotou, também, o ensinamento de PAULO DE BARROS CARVALHO sobre a instauração automática e infalível do vínculo obrigacional, ao ensejo do acontecimento do fato gerador.

Tudo isso está muito bem para explicar o nascimento da obrigação tributária que, no caso daquela que incide sobre a receita, efetivamente se dá com a consumação da aquisição da disponibilidade do direito ao seu recebimento através do cumprimento da obrigação de direito privado que lhe é correspondente, a qual, no caso de uma compra e venda, ocorre com a entrega da mercadoria.

Todavia, a desconsideração pura e simples do fato posterior – inadimplemento – é no mínimo passível de indagação mais profunda, a qual deixou de ser devidamente feita pelo julgado.

Segundo o histórico do processo, constante do relatório do acórdão, a parte sustentou que, ocorrendo a inadimplência, explicitada como sendo representada por valores faturados e não recebidos, não há, em suas palavras, qualquer demonstração de

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capacidade contributiva efetiva, sendo vedada a tributação de parcelas que não exteriorizem riqueza do contribuinte, por não existir substrato econômico. Suscitou ainda o caráter confiscatório das contribuições no caso em que o contribuinte, além do decréscimo patrimonial sofrido, é compelido a dispor ainda mais do seu patrimônio para quita-las.

Esta é uma petição seríssima e que contém fundamentos suficientes para justificar o seu exame mais aprofundado.

Entretanto, o Supremo Tribunal, pelo voto condutor da sua decisão, deixou de tratar dela com a mesma extensão com que feriu a questão da realização do fato gerador, limitando-se a constatar que o fato gerador havia ocorrido e a dizer que fatos posteriores não influem na sua formação.

Ou melhor, o voto vencedor aludiu duas vezes à capacidade contributiva, e nas duas vezes de modo insuficiente e de certo modo equivocado.

A primeira vez já surgiu na ementa do acórdão, quando foi dito que “nas hipóteses de cancelamento da venda, a própria lei exclui da tributação valores que, por não constituírem efetivos ingressos de novas receitas para a pessoa jurídica, não são dotados de capacidade contributiva”.

Quanto a isto, é possível que a corte tenha sido induzida pelo pedido da parte, para dedução das perdas efetivas diretamente da base de cálculo (da receita bruta) das contribuições, e não existe norma que a autorize.

Não obstante, as normas legais que tratam de algumas hipóteses de exclusão de valores da base de cálculo não poderiam conduzir o enfrentamento da questão da inadimplência, isto por múltiplas razões.

A primeira delas é que as hipóteses de incidência dessas normas incluem situações de não incidência (exatamente o caso de vendas canceladas, ou de reversão de provisões), para as quais sequer é necessário haver normas escritas, as quais, quando existentes, são meramente explicitadoras ou didáticas. Isto porque, ao contrário da isenção, que depende de regra expressa, a não incidência está contida na face negativa da própria norma de incidência, dado que “equivale a todas as situações de fato não contempladas pela regra jurídica da tributação e decorre da abrangência ditada

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pela própria norma” (Supremo Tribunal Federal, Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 286-4-RO, posteriormente citada e transcrita na Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 2529-5-PR).

Além disso, no bojo das mesmas normas que excluem as vendas canceladas, há hipótese de isenção, como a exclusão da venda de bens do ativo não circulante, e hipótese de definição (igualmente explicitadora) do valor da receita a compor a base de cálculo, como a pertinente aos descontos incondicionais.

Tudo isto demonstra que a relação legal de hipóteses de exclusão da receita bruta, isto é, da base de cálculo das contribuições, não é exaustiva das situações em que não pode haver incidência.

Esta afirmação adquire maior relevância quando se está perante um imperativo decorrente de normatização constitucional, como é o princípio da capacidade contributiva.

Mesmo que se admita que outras deduções, não previstas nas normas das leis ordinárias, não possam ser feitas ao se calcular o montante da base de cálculo das contribuições devidas em determinado período, como, por exemplo, as vendas faturadas e ainda pendentes de pagamento, essa admissão não esgota o trato jurídico de outras situações, e muito menos autoriza julgar o preceito constitucional pela face da lei ordinária.

Realmente, o fato gerador perfaz-se pela aquisição do direito à receita, devidamente disponível para o contribuinte, até para atender o princípio da capacidade contributiva. Assim, não é dado ao contribuinte desconsiderar as receitas faturadas a prazo.

Contudo, isto não significa que posteriores eventos, que pulverizem o fato gerador, não devam ser considerados.

Devem, sim, inclusive se se argumentar com base no regime de competência, pois que qualquer fato superveniente compete ao período em que vier a ocorrer.

De qualquer modo, por seu conteúdo argumentativo, o julgado do Supremo Tribunal não admitiu a dedução direta das perdas por inadimplência, perante a receita

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bruta de período posterior, e também não teria admitido uma repetição do indébito, pois seu entendimento foi no sentido do aperfeiçoamento definitivo e imutável da obrigação tributária.

Com efeito, após transcrever a disposição de uma das leis ordinárias que declaram que as vendas canceladas e os descontos incondicionais não integram as receitas tributáveis, o relator consignou, e destacou em negrito e grifo, que, “dessa forma, observo que, no caso em questão, as situações excludentes do crédito tributário contempladas na legislação do PIS e da COFINS ocorrem apenas quando o fato superveniente venha a anular o fato gerador, nunca quando o fato gerador subsista perfeito e acabado, como ocorre com as vendas inadimplidas”.

Ou seja, apenas as hipóteses listadas na lei ordinária anulariam o fato gerador.

E, nesta ordem, o acórdão se reforçou remitindo-se ao Recurso Extraordinário n. 751368-SC, no qual foi julgado que “o posterior inadimplemento de venda a prazo não constitui condição resolutiva da hipótese de incidência das exações em tela”.

E, assim, a capacidade contributiva, no plano mais amplo e elevado em que foi levantada pela parte, ficou em segundo plano, ou melhor em plano inexistente na realidade considerada para a solução da questão.

Porém, a capacidade contributiva foi abordada uma segunda vez no voto vencedor, quando foi dito que “a manifestação da capacidade contributiva é a mesma para todas as pessoas jurídicas, que, igualmente, devem registrar as suas receitas, de acordo com o regime em vigor, assim como as demais mutações patrimoniais, pelo regime de competência”.

Isto, contudo, é muito pouco, a começar pelo fato de que não há igualdade efetiva entre uma pessoa jurídica que registre sua receita segundo o regime de competência e a receba, e outra que também registre sua receita segundo o mesmo regime, mas não a receba.

Outrossim, ao se desvendar o tratamento cabível à situação de inadimplência, posterior ao fato gerador, não é suficiente argumentar com o

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tratamento legal devido no momento da realização da venda que supostamente virá a ser adimplida.

É curioso que, na toada da inexistência de lei autorizando a exclusão das vendas inadimplidas, da receita bruta de determinado período, o julgado procurou supedâneo na disposição do art. 9º da Lei n. 9430, relativa a perdas no recebimento de créditos para efeito do imposto de renda das pessoas jurídicas.

Não foi apropriada a alusão a esse artigo, que trata de uma provisão para dedução antecipada de perdas prováveis no recebimento de créditos ainda pendentes, ou seja, não trata de inadimplência definitiva.

Aqui, como estamos em ritmo de investigação de fatos abstratos, e não de uma situação concreta, temos que admitir que, ao se falar em venda inadimplida, se esteja tratando de um evento efetivo e definitivo, devidamente comprovado, e não de uma mera possibilidade de perda, ainda não concretizada.

Mas a imprópria alusão ao art. 9º veio apenas à guisa de complemento do raciocínio desenvolvido pelo autor do voto vencedor, e poderia ser substituído pelos parágrafos 3º e 4º do art. 10 da mesma Lei n. 9430, os quais, estes sim, tratam dos créditos definitivamente perdidos, para efeitos do imposto de renda.

Também não prejudica o raciocínio desenvolvido no voto vencedor a alegação de que o intérprete não pode alegar isonomia para equiparar as vendas inadimplidas às vendas canceladas, porque isto seria hipótese de exclusão do crédito tributário, cuja interpretação deve ser restritiva, a teor do art. 111 do CTN.

Apesar de que não se trataria de isonomia, mas de analogia, isto até pode ser dito para não permitir a dedução direta de uma venda inadimplida, no cômputo da base de cálculo de outro período em que havia ocorrido o fato gerador, mas, neste caso, haveria que justificar a não aplicação da analogia segundo as prescrições do art. 108 do mesmo código.

Não obstante, seja face ao art. 108, seja face ao art. 111 do CTN, tanto quanto dito anteriormente, suas regras não podem excluir a possibilidade do assunto ser analisado no altiplano constitucional.

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Porém, este plano mais alto somente acarretou maior impacto na divergência do MINISTRO MARCO AURÉLIO, sendo que o Ministro Celso de Mello, em manifestação simplificada, também contrariou a maioria.

Referindo-se a desfazimento do negócio e a inadimplência, MARCO AURÉLIO reconheceu não ser possível confundir institutos jurídicos diversos, mas lançou uma exclamação: “belo sócio esse, o Estado, que arrecada sem submissão a qualquer risco”.

É verdade que seu voto enveredou pelo caminho do significado do verbo

“auferir”, numa postura muito mais no sentido de que a receita auferida dependeria do recebimento, e não da disponibilidade consequente ao cumprimento do contrato pelo contribuinte, mas ele não deixou de enfatizar ao concluir: “Presidente, não posso fechar os olhos, em primeiro lugar, à capacidade contributiva, que não se faz presente, quando o sujeito passivo do tributo não tem um ganho, não tem um aporte em termos de riqueza”.

Em suma, a lacuna a ser preenchida em nosso ordenamento, se pensarmos em legislação ordinária, ou por nossa jurisprudência, de pensarmos segundo o regime constitucional, gira em torno do efeito decorrente da inadimplência, não confundida com simples mora, mas efetiva e definitiva perda do valor da receita pelo não recebimento, quando essa receita tenha sofrido alguma tributação.

É certo que a receita não significa lucro, pois pode existir receita em venda com prejuízo, ou a ausência de lucro pode decorrer de outros fatores externos à determinada receita, como se verifica com o resultado negativo ao final de um período mesmo quando todas as vendas, ou a maioria delas, tenham sido efetuadas com lucro. É certo também que a receita é auferida quando nasce o direito a ela, cujo direito se integra ao patrimônio do seu credor e está disponível para diversas finalidades, mesmo que se trate de crédito com termo futuro de vencimento.

Mas a receita não é e não pode ser uma simples quantidade de moeda expressa em algum documento contratual ou fiscal, ou em algum lançamento contábil.

Ao ser contabilizada como direito já adquirido, ela carrega um signo de riqueza nova, porque está cercada da possibilidade de vir a ser transformada em moeda, ou seja, de vir a ser recebida e encerrar o ciclo do contrato de que provém.

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Portanto, ela é um índice de riqueza, mas, como tal, precisa ser efetiva, desparecendo a efetividade quando aquele ciclo não se completa, situação em que o titular do crédito não apenas não o recebe e experimenta a respectiva perda, como também, mais ainda, tem a perda dos recursos empregados para produzir a receita.

Veja-se, para aclarar, o que ocorre com a venda de uma mercadoria, adquirida por 100 e vendida por 20, quando o preço de 120 não for pago: na verdade, a receita tributada e perdida (120), que teria acrescentado nova riqueza de apenas 20, acaba representando a perda de 20 não recebidos, e de mais 100 correspondentes à mercadoria que pertencia ao vendedor e foi entregue ao comprador, que não a devolverá.

Nesta situação, onde está o mínimo de capacidade contributiva para manter a incidência das duas contribuições sobre 120?

Destarte, caso mantida a incidência, o “contribuinte” ainda terá outra redução patrimonial, correspondente ao valor das contribuições que recolhera. O prejuízo de 120 não tem como ser evitado, e faz parte do risco do negócio, ou, se houver alguma possibilidade de ressarcimento, será fora do direito tributário.

Já o prejuízo correspondente aos tributos recolhidos, em caso de inadimplência não ressarcida, é assunto pertinente ao direito tributário, e clama por uma solução não apenas justa, mas rigorosamente jurídica.

Essa solução começa pela indagação em torno da capacidade contributiva, que surgiu com o fato gerador, porém na mesma perspectiva de que o crédito originado do negócio tributado iria se realizar, mas que se esvaiu juntamente com a inadimplência deste.

Será que, nesta circunstância, pode-se afirmar, como disse o Supremo Tribunal, que “o resultado da venda ... constitui o faturamento da pessoa jurídica, compondo o aspecto material da hipótese de incidência da contribuição”? Ou que o evento posterior, quando afeta o próprio cerne da capacidade contributiva, não apresenta qualquer efeito no direito tributário?

Que materialidade econômica real existe nesta situação?

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Estas indagações colocam em debate se o direito tributário pode se ater a aspectos meramente formais, ignorando os efeitos jurídicos e econômicos concretamente verificados em cada situação que corresponda ao fato gerador.

Não se trata de advogar a prevalência da essência econômica sobre a forma jurídica, segundo a concepção da ciência contábil, nem as teorias em torno do abuso de formas jurídicas, mas, sim, lembrar que toda tributação repousa sobre um fato da vida natural ou do direito, que seja dotado de conteúdo econômico.

O próprio patrimônio é o conjunto de relações jurídicas do seu titular, que lhe atribuam direitos ou obrigações com caráter econômico, embora não necessariamente representados por moeda em caixa.

Assim, trata-se de verificar se numa dada situação jurídica – nascimento de uma receita – é possível finalizar o dever tributário em caráter perpétuo, fechando os olhos para a realidade de que o contrato gerador da receita deixou de ser cumprido, e, consequentemente, a respectiva receita deixou de existir, retirando qualquer capacidade contributiva que originalmente se pressupunha haver. Mesmo no plano patrimonial, a perda apaga o anterior direito à receita.

Mesmo conhecendo-se perfeitamente as distinções e os respectivos regimes, não se pode deixar de apontar a similitude entre a hipótese de uma receita não adimplida e a hipótese de vício redibitório, existente no direito privado.

Em sua essência, ambas as situações apontam para efeitos jurídicos existentes originalmente – direito ao preço da venda e tributo devido sobre a correspondente receita –, mas que não podem subsistir em virtude do advento de uma nova circunstância imprevista no primeiro momento.

O direito privado não fica inerte, fechado na conclusão de que o contrato se aperfeiçoou e foi cumprido pelo vendedor quando entregou a mercadoria, de modo que este teria o direito de reter o preço recebido, e não devolvê-lo ao comprador ou ressarcir-lhe o prejuízo.

Já na ótica formalista, o tributo foi pago porque o contrato foi cumprido e o vendedor entregou a mercadoria, motivo pelo qual o vendedor não teria direito de recuperar o tributo pago.

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É claro que na hipótese de vício redibitório, se a venda se desfizer, o seu desfazimento autorizará a dedução do respectivo valor segundo as normas expressas que definem a receita bruta tributável por PIS e COFINS.

Mas, se o inadimplemento consiste em situação jurídica distinta do vício redibitório, não deixa de representar uma situação em que a presunção de capacidade contributiva do contribuinte porta um vício semelhante ao vício redibitório do contrato de compra e venda, porque é um vício que afeta o fato gerador, o qual passa a ser um fato gerador defeituoso, e defeituoso no âmago da sua suposta existência, pois carente de capacidade contributiva.

Em outras palavras, e repetindo o que foi dito antes, o inadimplemento faz esvair a capacidade contributiva, pulverizando-a!

Referências

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serve-nos como ponto de quando o corpo quebra e se esquizografa, pois a quebradura como já bem repetimos não propõem um descolamento do real - seria como um cortar-recortar que