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A travessia do trágico no romance d A Pedra do Reino de Ariano Suassuna

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Academic year: 2017

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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES CÊNICAS

YURI DE ANDRADE MAGALHÃES

A TRAVESSIA DO TRÁGICO NO

ROMANCE D’A PEDRA DO REINO

DE ARIANO SUASSUNA

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A TRAVESSIA DO TRÁGICO NO ROMANCE D’ A PEDRA DO REINO DE ARIANO SUASSUNA

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A TRAVESSIA DO TRÁGICO NO ROMANCE D’ A PEDRA DO REINO DE ARIANO SUASSUNA

Dissertação de mestrado submetida como requisito para a obtenção de título de Mestre em Artes Cênicas, na linha de pesquisa Linguagens da Cena: Memória, Cultura e Gênero no Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da UFRN –

PPGArC, sob orientação do professor Dr. Alex Beigui de Paiva Cavalcante.

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Catalogação da Publicação na Fonte. Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes (CCHLA).

Magalhães, Yuri de Andrade.

A travessia do trágico no romance d’A Pedra do Reino de Ariano Suassuna / Yuri de Andrade Magalhães. – 2013.

131 f. -

Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas, 2013.

Orientador: Prof.Dr. Alex Beigui de Paiva Cavalcante.

1. Teatro. 2. Romance brasileiro. 3. Brasil, Nordeste. 4. A Pedra do Reino – Suassuna, Ariano, 1927- I. Cavalcante, Alex Beigui de Paiva. II. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. III. Título.

RN/BSE-CCHLA CDU 792

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Em primeiro lugar, gostaria de agradecer a pessoa de meu orientador, o professor Alex Beigui, que no decorrer desse tempo se mostrou, além de um competente orientador, um grande amigo que durante horas do dia, muitas vezes adentrando pela noite, me orientou e auxiliou-me na escrita deste trabalho. Um orientador que não mediu esforços para me ajudar a superar os obstáculos e desafios que me foram impostos, não permitindo que eu me deixasse abater diante das dificuldades. Desse modo, toda forma de agradecimento é insuficiente frente ao empenho de um orientador que mergulhou junto a seu orientando neste trabalho de dissertação.

Agradeço também a outra pessoa cuja ajuda foi de fundamental importância para a realização deste trabalho, a professora Maria Helena Braga e Vaz da Costa que, além de me auxiliar na disciplina Seminário de Dissertação I, também se mostrou uma grande pessoa, além de uma grande amiga, ao nos acompanhar na entrevista com Ariano Suassuna, nos conduzir e nos guiar pela rizomática cidade de Recife, agradeço também por revisar este trabalho. Manifesto também meus sinceros agradecimentos à Dona Solange, mãe da professora Maria Helena, por nos acolher em sua residência em Recife.

Aos professores Milton Marques Júnior e Rubén Figaredo Fernandez - agradeço a oportunidade que me foi dada para aprofundar este trabalho, bem como as sugestões de alterações que, creio eu, foram fundamentais para a maturação das ideias-chave da pesquisa.

Ao escritor Ariano Suassuna que, além de escrever tão fantástica obra, gentilmente nos acolheu em sua residência na cidade de Recife, proporcionando-nos um formidável diálogo sobre o Romance d’ A Pedra do Reino.

À minha familia, nas pessoas de minha mãe e minha irmã, que foram minha fortaleza em diversas ocasiões.

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Aos bons amigos que cultivei no decorrer do curso de mestrado.

Aos professores e alunos da Universidade Regional do Cariri (Juazeiro do Norte/CE), onde atualmente trabalho como professor substituto, que me compreenderam e me deram todo suporte nas vezes que precisei me ausentar da Universidade em razão do mestrado. Agradecimento especial aos colegas de trabalho e também amigos: Jerônimo Vieira, Cleber Lima, Wellington Rodrigues, João Dantas, Cecília Raiffer, Luiz Renato, Alysson Amancio e Jorge Ney Batista.

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Este trabalho busca investigar e discorrer sobre a influência dos elementos contidos na Tragédia Grega, dialogando diretamente com aspectos míticos, épicos, poéticos e romanescos, no Romance d’A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta, de Ariano Suassuna. A obra tem como protagonista o sertanejo Pedro Dinis Quaderna que é um personagem simultaneamente popular, enigmático, ingênuo, e um intelectual dotado de uma notável erudição. Quaderna é um personagem que busca, por meio da Literatura, restabelecer um reino outrora perdido no sertão nordestino, onde ele seria herdeiro. Buscando constantemente exaltar o nordeste brasileiro como se fosse uma nação aparte. Na impressão de um caráter nacional ao nordeste brasileiro, Quaderna busca tornar-se um poeta epopeico tal qual Homero, apontando assim para uma forte influência da Epopeia. Assim como diversos personagens da Tragédia Grega, Quaderna possui um passado repleto de desgraças no seio familiar, e os fatos sucedidos a seus familiares como a morte brutal de seu tio Pedro Sebastião Garcia-Barretto, o desaparecimento de seu primo Sinésio, e a disputa entre os irmãos Arésio e Sinésio, remete-nos, dentre outros aspectos, a notáveis influências, além das epopéias, das tragédias clássicas. Ao decorrer da leitura da obra podemos notar que as semelhanças entre o percurso de Quaderna e os heróis da tragédia grega são diversas. Para fins de análise acerca do fenômeno trágico na obra de Suassuna, o diálogo com diversos teóricos que discorreram acerca do trágico é uma constante neste trabalho, bem como a comparação de diversas passagens do romance com textos e personagens clássicos da tragédia grega. Nos capítulos desta dissertação busca-se proporcionar noções elementares da forma romanesca, bem como noções de tragicidade, o diálogo com o mítico, e a aplicabilidade dos aspectos trágicos e epopeicos na obra de Suassuna.

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The present work seeks to investigate and discuss about the Greek Tragedy’s elements at Ariano Suassuna’s romance called τ Romance d’ A Pedra do Reino e o Principe do Sangue do Vai e Volta, connecting it directly to mythic, epic, poetic, and romances aspects at his work. The romance has as the protagonist the backcountry Pedro Dinis Quaderna. Quaderna is a character which is simultaneously popular, elitist, enigmatic, naive, and an intellectual man that has a great erudition. Quaderna is a character that seeks, by using the Literature, to reestablish a Brazilian backcountry kingdom which

he’s supposedly the king, always trying to empathizes the Brazilian northeast region

like if it was a nation apart. By impressing a national personality to the Brazilian northeast , Quaderna tries to become an epic poet just like Homer, denoting a strong influence of the Epopee. Quaderna, just like many characters of Greek Tragedy, has at his family past time a lot of tragic circumstances. These facts that ocurred to his relativos like the your uncle Pedro Sebastião Garcia Barreto’s death, the disappearement

of his cousin Sinésio, and the contest between the brothers Arésio and Sinésio, and others aspects, remind us remarkable influences, beyond the Epopee, of the Greek Tragedy. By reading the romance we may notice many similarities between Quaderna’s

trajectory and Greek Tragedy heroes. To make an analysis about the tragic aspects at

Suassuna’s work, we need to dialogue with many theoreticals that have written about

the tragic and comparate with many parts of Suassuna’s with classics character’s texts of Greek Tragedy. At the following chapters we seek to provide romance’s elementaries

notions, as well as tragic notions, the dialogue with mythics aspects and the tragic and

epic aplicability at Suassuna’s work.

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I - Introdução ... 10

II – Capítulo 1 Entre o Épico e o Romanesco: Limites e Fronteiras ...15

III – Capítulo 2 Noções de Tragicidade ...34

IV – Capítulo 3 Categorias do Trágico ...55

V – Capítulo 4 Desdobramentos Pós-Aristotélicos: Aspectos míticos e místicos no jogo trágico ...85

VI – Considerações Finais ...109

VII – Bibliografia ...114

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I - INTRODUÇÃO

Então, como era que eu podia fazer minha escolha? Se ao menos houvesse uma coerência, uma garantia! Acresce que eu achava ambas as bandeiras bonitas: o azul era tranqüilo e fraterno, mas o vermelho era festivo e corajoso, eu gostava era de todos dois!(SUASSUNA, 2007, p.100).

Analisar o trágico nesta obra de Ariano Suassuna constitui um grande desafio, pois como bem disse Aristóteles, o poeta não tem obrigação de representar o mundo tal qual ele é, pois esta seria a função do historiador, cabe então ao poeta a representação de um mundo

possível, um mundo “verossímil”. Nesta perspectiva, o Romance d’A Pedra do Reino constitui um mundo de diversas possibilidades, sendo ela considerada a mais complexa obra do autor por estudiosos mais antigos como Maurice van Woensel (1978). O próprio autor Ariano Suassuna classifica sua obra como a “menos imperfeita”.1

O Romance d’A Pedra do Reino é uma obra ímpar de Ariano Suassuna, nela o autor é capaz de demonstrar seu grande conhecimento acerca da cultura dos romances populares, cantados pelo sertão nordestino, bem como se mostra capaz de se apropriar da matriz estética europeia medieval, no que concerne aos famosos romances de cavalarias,

totalmente alheias ao seu contexto cultural, e “transplantá-las” para o sertão nordestino ao

ponto de, ironicamente, reverter os valores, tratando como “farsa” a família real portuguesa, a Dinastia dos Bragança, e como “autêntica” a Dinastia dos Ferreira-Quaderna, ficcionalmente localizada na divisa da Paraíba com Pernambuco, no sertão do Pajeú

Sobressai o caráter irônico da obra, já observado pela crítica, paralelamente, a um conjunto de referências que colocam no limite aspectos históricos e aspectos ficcionais, além do uso da metalinguagem como forma de pensar o romance e a narrativa dentro mesmo da matéria prima da ficção. É importante perceber que na corrente moderna do pensamento literário, o autor enfatiza o hibridismo de gênero, fazendo uso, ainda que em níveis diferentes do lírico, do épico e do dramático. Com relação a este último, abre-se o

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espaço para diversas formas de teatralidade,2 advindas, sobretudo, da influência trágica e dos aspectos da oralidade presentes em sua forma de conceber a escritura, isto é, como manifestação da permanente tensão entre a fala e a escrita, o popular e o erudito, o cômico e o trágico. Formas que se manifestam através de um permanente dualismo estrutural na obra.

O romance de Ariano Suassuna é tida, pelo senso comum, como uma das obras menos lidas do autor, e isto se verifica facilmente quando o leitor se depara com as 742 páginas que compõem o livro de sua 9ª edição do ano de 2007. O autor levou doze anos para concluir a obra, o que demonstra uma permanente revisão dos manuscritos, em tempos diferentes, além de uma permanente preocupação com a forma. Na linha das obras épicas, o narrador assume a influência da tradição, perpassando por obras que mesclam o universal e o particular, com claro intuito de não atribuir uma visão hegemônica de determinada cultura. Nesse sentido, é importante diferenciar a História Tradicional e a Nova História, uma vez que o narrador trabalha não apenas na perspectiva de narrar os fatos (acontecimentos), mas analisar a estrutura e a conjuntura (contexto, aspectos sociais, políticos) por meio das quais o próprio ato de narrar se faz possível. Não podemos simplesmente dizer que se trata apenas de um romance, mas de uma crônica, de um compêndio, de um arrazoado, ou até mesmo uma coletânea de vários textos numa só obra. Trata-se antes de um dispositivo poético, cujos elementos apontam para uma construção consciente dos processos formais em jogo.

Obra híbrida, talvez seja este o termo que melhor se aproxime de uma definição do Romance d’ A Pedra do Reino, e é justamente este termo que a maioria dos estudiosos da obra utiliza para caracterizá-la. É uma obra que logra com grande maestria unir a linguagem popular e a linguagem acadêmica no discurso de seu protagonista, Pedro Dinis Quaderna. Em razão das estratégias interdisciplinares que permeiam a obra em seus diferentes deslocamentos semânticos, sintáticos e morfológicos, o romance, muitas vezes, exige um leitor avisado, no sentido de Umberto Eco. Não se trata de prolixidade, mas de domínio de um repertório que facilita a construção, por parte do leitor, das analogias que emanam da obra em suas partes e em seu conjunto.

As análises existentes da obra parecem, muitas vezes, se limitar a analisar as

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influências da literatura de cordel, do sebastianismo, da própria vida pessoal do autor que se confunde com a vida do protagonista da obra, além de análises referentes à minissérie que foi transmitida pela Rede Globo de Televisão no ano de 2007. Relativamente poucas pesquisas e produções (artigos, dissertações, teses, entre outros), ressaltam o fenômeno trágico da obra, seus aspectos na estrutura do romance, bem como sua relação com o tragicômico, aspecto responsável por grande parte da trama. Em verdade, a ironia, o tom farsesco e picaresco que impera no romance, muitas vezes obscurece ou mesmo parece eliminar os aspectos trágicos na obra.

Dessa forma a dissertação busca suscitar questionamentos e problemas a partir da obra sob a luz da influência e da presença dos aspectos trágicos no romance. O fato de o

autor classificar sua obra como “picaresca” induz muitos pesquisadores a analisá-la sob a perspectiva da comédia. O próprio autor, Ariano Suassuna, é frequentemente mais pensado pela ótica da comédia. Relativamente poucos têm consciência do conhecimento do autor acerca de estética filosófica, e da literatura mundial, e não sabem que suas obras são

notórias “apropriações” dessas diversas referências que o mesmo detém. É por esse meio

que Ariano Suassuna logra o raro trunfo de dialogar com o meio acadêmico, e de ser facilmente compreendido no meio popular. Êxito logrado por poucos que se adentram no universo da ficção e da literatura.

O que impulsiona esta pesquisa, primeiramente é o fato de perceber que os aspectos trágicos no Romance d’A Pedra do Reino merecem melhor atenção por parte da crítica; posteriormente, é melhor compreender os modos em que o trágico se presentifica na construção narrativa, criando com essa um diálogo intermitente.

Esta dissertação se divide em quatro capítulos. No primeiro capítulo buscamos entender o romance em sua estrutura a partir da leitura do Edwin Muir (1928) e Georg Lukács (1962), visando situar a obra dentro das categorias próprias do gênero romanesco. Faz parte ainda desse capítulo, problematizar o gênero épico a partir da estrutura do Romance d’A Pedra do Reino, tomando como ponto de partida as estratégias narrativas do

autor, bem como os diferentes modos de ferir o épico e o “narrar”, através da irrupção do

trágico e da teatralidade.

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principais elementos que compõem o trágico, tomando por base A Poética de Aristóteles. A referência ao estagirita justifica-se pela atualidade de alguns princípios pertinentes e presentes na estrutura do romance. É importante observar que as categorias apontadas além de norteadoras do gênero trágico na Tragédia Ática, assumem, ao longo do romance, elementos estruturantes e formais de suas partes (tempo, ação, espaço e personagem). Vale ressaltar que os princípios trágicos e teatrais na obra de Suassuna extrapolam a mera utilização desses elementos, uma vez que o narrador desloca e insere em sua matriz irônica e metaficcional, a reescritura e subversão das unidades, através do fluxo de consciência que opera uma desestabilização na leitura da obra. Rompe-se com a linearidade narrativa, inserindo o leitor em uma tessitura discursiva, ora presente, ora passada, ora vivida, ora narrada. Esse movimento revela-se, sobretudo, na teatralização da linguagem. Quaderna vive e narra sua experiência, ao mesmo tempo em que problematiza questões de ordem estrutural no gênero épico, passando da narratividade à tragicidade, o herói imprime à construção do seu discurso, modulações do fazer e da composição literária.

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(2005), Hegel (1993), Schiller (1964), Cleise Mendes (2008) e Sandra Luna (2005 /2009).

Nessa direção, é importante observar que a unidade e a verossimilhança nesta obra de Suassuna parecem compor termos bastante conflitantes, uma vez que o próprio autor em diversas ocasiões parece não demonstrar fidelidade às unidades aristotélicas, em especial a unidade de ação, que consiste na ideia de que a obra deve ser linear contendo começo, meio, e fim, tampouco à estrutura dos autos e dos mistérios, gêneros oriundos da Idade Média, cuja estrutura assimétrica e aberta permite maior variação formal. Já através da verossimilhança, Ariano Suassuna parece se apropriar dos fatos narrados com rígida intencionalidade, pois seu protagonista Pedro Dinis Quaderna se mostra capaz de relatar e recriar a realidade sertaneja em que vive de múltiplas formas, através de uma síntese entre o

“estilo erudito” e direitista do Dr. Samuel Wandernes e o “estilo popular” e esquerdista do

Professor Clemente.

O dialógico no Romance d’ A Pedra do Reino aponta para uma teatralidade frente à discussão sobre a concepção literária e filosófica da linguagem. Nesse sentido, Quaderna trabalha na dupla natureza do teatro apontada por Anne Übersfeld: constrói seu discurso para encená-lo como síntese.3 A posição do protagonista é fundamental para o aprofundamento do tema trágico na obra, uma vez que ele congrega, em sua própria concepção, o elemento fundante do gênero dramático: a dialética. Todo o romance se ergue na justaposição de valores: ideológicos, simbólicos entre outros. O fato de não excluir posições de naturezas distintas facilita o modo de compreensão do épico e do trágico, do narrativo e do dramático na obra de Suassuna.

3 Para Ü e sfeld: á espe ifi idade da es itu a teat al pode ia e o t a a ui seu ito de apli aç o.

Tentaremos mostrar como a teatralidade inscreve-se desde o nível das macroestruturas textuais do teatro: a pluralidade de modelos actanciais, combinação e transformação desses modelos, tais são as principais características que permitem ao texto de teatro preparar a construção de sistemas significantes plurais e espacializados. De resto, não nos cansaremos de repetir, a teatralidade em um texto de teatro é sempre

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II - CAPÍTULO 1

ENTRE O ÉPICO E O ROMANESCO: LIMITES E FRONTEIRAS

Como o senhor deve saber, existem seis qualidades de Poeta e a maioria deles ou pertence a uma qualidade ou a outra. Os melhores pertencem a duas categorias ao mesmo tempo. Mas

somente os maiores de todos, os grandes, os “raros do Povo”, pertencem, ao mesmo tempo, às seis categorias! Meu pai, que Deus guarde, era Poeta de sangue e ciência. Mas eu, modéstia à parte, sou dos poucos, dos raros, dos grandes, porque sou, ao mesmo tempo, Poeta de cavalgação e reinaço, Poeta de sangue, Poeta de ciência, Poeta de pacto, de estradas e encruzilhadas, Poeta de memória e Poeta de planeta! Mesmo porém tendo sido mais completo do que ele, grande foi a influência que recebi, das qualidades de Poeta, historiador, Astrólogo e genealogista Sertanejo de meu pai! (SUASSUNA, 2007, p.368).

A teoria do romance, de Georg Lukács, aponta para inúmeras perspectivas críticas. Tratamos aqui de um gênero aberto cuja estrutura possibilita a inserção de vários elementos de outros gêneros para além daqueles definidos pela tradição literária. Nele, incluem-se documentários, aspectos biográficos, crônica, folhetins, novela; enfim, um espaço poroso e repleto de tentáculos que impossibilita, muitas vezes, aportar em uma única direção. Talvez, o gênero romanesco enseje o espaço de escritura carnavalesco por excelência à medida que não só rompe com as delimitações formais, como também não se detém à constituição de uma unidade. A heteroglossia presente no Romance d’A Pedra do Reino permite-nos pensar a obra como mosaico de funções para além das literárias e dos campos que encerram a sua estrutura em ficção. Para Edwin Muir (1928), o romance desse tipo

pode ser classificado como “romance dramático”, uma vez que enredo e personagem

entrelaçam-se, sendo a personagem responsável pela intensificação da ação. O autor esclarece:

Num romance deste tipo, a correspondência entre a ação e os personagens é tão essencial que mal se pode encontrar termos para descrevê-la sem parecer exagerar; poder-se-ia dizer que uma mudança na situação sempre envolve uma mudança nos personagens, enquanto toda a mudança, dramática ou psicológica, externa ou interna, ou é causada ou é configurada por alguma coisa existente em ambos. Sob este aspecto, o romance dramático se coloca à margem tanto do romance de ação como do de personagem. Nos dois há um hiato entre e os personagens; no romance dramático não deveria haver nenhum. Seu enredo é parte de seu significado. (MUIR, 1928, p.24)

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constantemente, em suas ideias, se tornar uma síntese que reúne os pensamentos diametralmente opostos de seus dois grandes mestres; o Professor Clemente e o Dr. Samuel

Wandernes. Após um longo debate com esses mestres sobre o “Gênio da Raça”, em que o

Professor Clemente defende que o gênio da raça deveria vir da filosofia, enquanto seu opositor, Dr. Samuel Wandernes, defende que tal gênio deveria vir da literatura. O

protagonista conclui que o “Gênio da Raça” é aquele que logra condensar em sua obra as

características fundamentais de seu tempo. Nesta perspectiva, Quaderna termina por concordar com o Dr. Samuel Wandernes que o gênio da raça deveria ser alguém proveniente da literatura uma vez que, para Quaderna, a literatura enquanto forma de expressão consegue condensar a história e a cultura de seu tempo, tomando como exemplo o próprio Homero.

Não podemos esquecer que se trata de obra maturada, com fortes traços que apontam para a problemática da escrita e do ato de criação, a partir de aspectos da estética proposta por Suassuna. O romance abre-se ao leitor como dialética, confirmando sua tendência ao drama, principalmente como gênero capaz de absorver dentro de um mesmo movimento tradição e contradição. Embora a narrativa aporte em determinadas certezas que a personagem assume, abre-se espaço para a disposição dos argumentos contrários ao longo dos acontecimentos narrativos. A figura dos dois mestres apresenta-se como “coro” na

tragédia grega, ou seja, vias alternativas para a abertura das reflexões acerca do posicionamento do herói.

Contudo, uma vez concordando que o gênio da raça deveria ser um escritor ou poeta,

surge outra questão, desta vez de ordem metadiscursiva, a saber: “Qual gênero literário

seria mais adequado para unir o lirismo de seu mestre Wandernes à filosofia de seu mestre

Clemente?” E eisque, Quaderna, após muitas delongas, conclui: “O romance!”.

Na obra de Ariano Suassuna, podemos observar que Quaderna optou pelo romance

após ser constantemente “barrado” por seus mestres que sempre arguiam sobre a maneira

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do personagem, outra questão é o plano de elaboração proposto pelo narrador-autor, plenamente ciente das regras que permeiam a construção do romance. O excesso de regras estilísticas das formas literárias que Quaderna cogitava, o conduziu a escolher o romance (ou pelo menos fazer seus mestres acreditarem que ele fez essa escolha) em razão de seu caráter híbrido e imprecisão da forma. Apenas através do romance Quaderna conseguiria escrever uma obra que reunisse os ensinamentos de seus dois mestres; expressar a sua subjetividade no texto, além de (talvez) condensar as características fundamentais de seu

tempo e espaço, imprimindo assim uma “totalidade” de seu mundo, como fizeram Homero

e Virgilio em suas respectivas epopeias.

A força do romance encontra-se exatamente nesse modo de teatralizar a linguagem. Por um lado Quaderna responde e age de acordo com o enredo, trama; por outro, não podemos esquecer a sua função narrativa, espécie de duplo4 do autor. A duplicação também própria do gênero dramático, responde e divide a narrativa em dois planos, exigindo do leitor atenção redobrada. Se por um lado, somos levados pela personagem, por outro, há sempre indícios das estratégias de composição literária em voga. O movimento de duplicação das personas (autor/narrador) fica claro em algumas partes do texto em que ambas aparecem:

Entretanto, é deste relato que depende a minha sorte e ninguém é tão fanático a ponto de fazer Literatura em troca de cadeia. Devo ser exato: e infelizmente, num mesmo instante em que consigo arrumar tudo, tenho que desarrumar tudo de novo. Porque, naquele dia, quando a Cavalgada vinha perto do legendário Riacho de Cosme Pinto, ela mesma foi desarrumada por um incidente sujo e oncístico, que causou alguns rasgões raposos na bandeira da frente, sujou homens e cavalos de suor e poeira e chegou mesmo a derramar sangue, se bem que esta última parte ainda possa ser considerada taperista e heráldica, pois houve tiros e reluzir de facas nos riscos de Sol – o que não deixa de ser armorial. (SUASSUNA, 2007, p. 51).

4A duplicação aponta, no caso de Quaderna, para um heroi de natureza dupla,

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A estrutura da obra, in medias res,5 facilita o deslocamento dos papeis dos agentes da escrita, dificultando ao leitor decifrar as pistas que distinguem seus diversos modos de justaposição. É possível falar de uma prosa artística que é tecida ao longo do romance. O autor, paralelamente, à ação do personagem desconfia das certezas impostas pelo modo de criação poética, pautadas exclusivamente nas regras de estilo.

Apontando para uma provável influência da épica, entendemos aqui que Ariano Suassuna indiretamente se refere às epopéias homéricas, Ilíada e Odisseia, nas falas de Dr. Samuel Wandernes, que por sua vez parece traduzir, consciente ou inconscientemente6, parte do pensamento do ensaísta Georg Lukács em sua Teoria do Romance, quando este indica que Homero condensou a totalidade do mundo grego em seus dois grandes monumentos poéticos. Desta forma, podemos observar a totalidade do mundo grego na Ilíada, em especial no Canto II, quando é feita uma detalhada descrição de todos os monarcas gregos (Agamêmnon, Menelau, Odisseu, Nestor, os dois Ajax, Aquiles, dentre outros). A citação aos monarcas imprime um caráter de totalidade nacional à epopéia. É preciso distinguir que mesmo sendo possível, no gênero romanesco, abrir mão do caráter nacional, há uma exploração dos elementos épicos e nacionais daquilo que seria uma epopeia a ser escrita pelo personagem Pedro Dinis Quaderna; A Nordestíada. No entanto, tal propósito a todo o momento é cortado pela ironia com que as questões nacionais e de importação do estrangeiro são problematizadas.

A forma híbrida com que o Romance d’A Peda do Reino evolui pode ser pensada historicamente, dentro da perspectiva do gênero romanesco, no final do século XVII de nossa era; com a consolidação e a unificação política das nações, a epopeia encontra-se em decadência, sendo substituída pelo romance. Dentro desta perspectiva, a afirmação dos valores nacionais (tal qual ocorria em Homero) perdia a necessidade de existência. Podemos então supor que Ariano Suassuna utilizou seu protagonista como uma forma de representação metafórica da inadequação da epopeia nos tempos modernos. Ao observar

5Técnica literária onde a narrativa começa no meio da história, em vez do começo. Os personagens, cenários

e conflitos são frequentemente introduzidos através de uma série de flashbacks ou através de que discorrem entre si sobre eventos passados. Obras clássicas como a Eneida e a Ilíada começam no meio da história: “O escritor sempre avança em direção às falas e em direção às coisas médias (os acontecimentos no meio da narrativa) e igualmente conhecidas, assim captura do auditório, o ouvinte.” (HORÁCIO, Arte Poética, 148)

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que o romance de Suassuna aponta Quaderna como um homem nascido em 1897; podemos constatar que Suassuna transfere para seu personagem a ideia, já apresentada por Georg Lukács de “inadequação da alma em relação à realidade objetiva”:

Que Deus tenha abandonado o mundo, vê-mo-lo pela inadequação entre a alma e a obra, entre a interioridade e a aventura, pois que nenhum esforço humano se insere já numa ordem transcendental. Esta inadequação apresenta, por junto, dois tipos: conforme é mais estreita ou mais larga do que o mundo exterior que lhe é designado como teatro e como substracto dos seus actos, a alma encolhe ou alarga. (LUKÁCS, 1962, p. 99)

No Canto II da Ilíada a totalidade do mundo grego se revela na maneira como Homero enfatiza, em sua obra, valores nacionais determinados pela união de vários reinos sob um único comando, o de Agamêmnon. Também em suas obras podemos observar a defesa de valores como o espírito de nobreza, a amizade, o respeito à família e às tradições pátrias, sendo fatores que contribuem para a impressão da totalidade. Em contrapartida, na Pedra do Reino, tais elementos, quando aparecem, passam por um processo de dessacralização. Nesse sentido, o gênero romanesco passa a se distanciar em grau de estrutura e de composição de sua matriz epopeica, abrindo-se para um campo de ausência de padrão formal, o que também é explorado pelo duplo da linguagem autor/personagem. É na miscigenação das formas e não nos modelos tomados como referência que observamos surgir do Romance d’A Pedra do Reino, submodelos: romance-poema, romance-ensaio, romance de personagem, entre outros.

No caso da Odisseia nos deparamos com um único herói (Odisseu) que transita pela totalidade do mundo grego ao passar dez anos errando pelos mares na tentativa de retornar a sua terra natal onde era o governante, Ítaca. Essa viagem permite que o herói tenha contato com diversas culturas, além de enfrentar e dialogar com seres mitológicos como o ciclope Polifemo, a feiticeira Circe, a Cila, a ninfa Calipso, a descida ao Hades para encontrar Tirésias, dentre outros. Dentro desta perspectiva podemos inferir que a totalidade do mundo grego na Odisséia se encontra nessa travessia de Odisseu pela via mitológica. Em argüição, o professor Milton Marques Júnior acresce que, na realidade, a viagem de Odisseu representa a expansão do mundo grego para o ocidente.

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diferentemente da atitude dos heróis trágicos e epopeicos. Por mais megalomaníaca com que esteja configurada a personalidade do protagonista, o narrador procura criar um descompasso entre a ficção e a realidade, visando atingir o leitor. Tentativa de alertar sobre a hiper codificação do real, satirizando a escrita e hiperbolizando a mimese. O campo narrativo dialoga com o campo dramático à medida que o romance se estrutura em

“Folhetos”, espaço que se aproxima da concepção de “cenas” teatrais. Cada um dos oitenta

e cinco folhetos se apresenta ao leitor como forma não apenas de divisão, uma vez que o

fluxo narrativo não se perde, mas como forma de “flashback”, reminiscência que funciona como estratégia de criar uma ilusão do tempo presente, imediato, curto, perecível e independente, como se fosse possível ler o romance separadamente, em atos. Contudo, o leitor não consegue percorrer a trama separadamente, ainda que seja possível facilmente identificar as partes da tragédia em sua estrutura: prólogo, párodo, episódios, estásimo, clímax e êxodo (desfecho). A construção in medias res favorece a junção do prólogo com o êxodo, cujo espaço em comum entre ambos é o da cadeia. A parte do párodo funciona como um coro, cujo ponto de partida no romance é a descrição da primeira Cavalgada (SUASSUNA, 2007, p. 35-49), forma de abertura para a inserção de citações de outros poetas e escritores, com os quais Quaderna dialoga. Cada episódio, Folheto, é cortado por párodos e estásimos citacionais, reforçando a intertextualidade e interdiscursividade dialógica. A narração é sempre entrecortada por enxertos, através dos quais tanto o personagem principal quanto o autor estabelecem diálogo com a tradição literária, dramatizando-a.

Ao tratar do contexto ficcional, exemplificando inclusive a partir da visão interior e exterior da personagem de ficção (estreitamento ampliação da alma em relação sua exterioridade), Lukács possibilita entendermos Quaderna sob dois prismas:

No primeiro caso percebe-se melhor do que no segundo o caráter demoníaco do indivíduo problemático que parte à aventura mas, ao mesmo tempo, a sua problemática interna manifesta-se com menos clareza; à primeira vista, parece que o seu fracasso diante da realidade se mantém puramente exterior. O demonismo que corresponde a este encurtamento da alma é o do idealismo

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A obra que Pedro Dinis Quaderna pretende escrever possui três eixos norteadores da trama: A morte de Pedro Sebastião Garcia-Barretto, o desaparecimento de seu filho caçula Sinésio, logo após a morte do pai, e o retorno de Sinésio montado em um cavalo branco. Estrutura aparentemente linear. A divisão simétrica é cortada pelos dois tipos de visões as quais se refere Lukács, Quaderna pode ser apresentado tanto como personagem fechado no seu imaginário, projetando uma aventura quixotesca, quanto como personagem condutor dessa aventura, condição que é, a todo o momento, complexa, refletida, posta sob suspeita.

Reforçando a ideia do hibridismo, acima apontada, observamos que Quaderna vislumbra a escritura de uma obra simultaneamente lírica, épica e dramática para abarcar tudo o que ele pretende contar em sua obra. A riqueza de sua narrativa, para tornar-se uma epopeia aos moldes de Homero, deveria ser escrita em versos hexâmetros. Quaderna, ao constatar a sua limitação em relação à escrita de uma epopeia nos moldes de Homero, decide que sua obra será um romance. Podemos aqui observar que a ironia e a sátira permeiam constantemente o romance de Suassuna, pois no depoimento prestado por Quaderna ao juiz-corregedor, Suassuna ironiza essa inadequação da epopeia nos tempos modernos no relato em que Quaderna explica ao corregedor que não consegue escrever uma epopeia em razão de um osso protuberante localizado próximo às nádegas que o

impede de sentar e escrever, o vulgo “cotoco”. Sendo o gênero romântico oriundo da

inadequação da epopeia aos tempos modernos, cabe-nos apontar na obra alguns momentos em que, na narrativa, o romance como gênero é problematizado.

É ao constatar a impossibilidade de se manter fiel à sua ideia primeira que, à luz da metacrítica acerca do gênero romanesco, Quaderna oferece ao leitor campo de investigação acerca dos elementos formais que constituem a sua narrativa trágica e a arte de narrar. Para

Quaderna: “E é aí que eu, apesar de partir da realidade rasa e cruel do mundo como

Clemente, dou também razão a Samuel, quando diz que, na Arte, a gente tem que ajeitar um

pouco a realidade que, de outra forma não caberia bem nas metas da Poesia.”

(SUASSUNA, 2007, p. 54).

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O transcendental teria, na visão de Lukács, função determinante através da qual os impulsos devem ser ordenados rumo à construção de uma forma que lhe é desconhecida, mas

que lhe é uma forma simbólica libertadora, sendo a “paixão” o caminho pré-determinado pela razão para a perfeita adequação de si própria. Neste sentido, Quaderna é um exemplo singular dessa busca, uma vez que seu mundo interior molda a realidade externa e por ela é moldado. Isso faz, dentro do pensamento de Lukács, com que sua alma parta em busca de aventuras, ignorando os perigos reais dessa busca e de suas descobertas, fluxo que permite ao leitor um duplo movimento: o do imaginário da obra e o da metaficção crítica do romance. Exemplo máximo do plano metaficcional nos é dado ao corregedor e por tabela ao Leitor que, a todo

tempo, é convocado para testemunhar dados e fontes: “Pronto, nobres senhores e belas Damas

de peitos macios! Estava descoberto o meu grande crime, aquela culpa que eu vinha procurando ocultar tão cuidadosamente, desde que se iniciara o depoimento.” (SUASSUNA, 2007, p. 457), ou ainda de modo mais enfático: “Li então para o Corregedor toda aquela história que Vossas Excelências já conhecem, nobres Senhores e belas Damas.” (SUASSUNA, 2007, p. 464).

Ao leitor é atribuída a função de testemunha ocular dos fatos narrados, o que permite intensificar o suspense provocado pelo estilo, assumidamente, do romance policial. A receita é posta a partir do argumento de citação da escritora Albertina Bertha:

Modernamente, diz ela que é importante ‘o romance inspirado pelos novos métodos de instrução criminal’. Olhem, copiei, no livro, essa

parte da receita, e vou lê-la. Diz ela que nesses ‘romances de instrução criminal’, o enredo para a pista do assassino ‘se faz

sempre pelo grande Decifrador’ e a história termina sempre com ‘a

Virtude recompensada e com crime punido. (SUASSUNA, 2007, p. 236).

O diálogo do romance com a epopeia permanece como elo de tensão que se encaminha para o trágico e para o drama. Lukács entende que na epopeia a alma é desconhecedora de abismos dentro de si, abismos estes que podem conduzi-la tanto para o auge quanto para a decadência. Entende, o autor, que não há ação que não seja um vestuário para a alma, e numa perspectiva estóica aponta que o Ser e o Destino, Aventura e Acabamento, Existência e Essência, a partir de noções idênticas entre si, uma vez que a

interrogação básica que movimenta a epopeia, segundo o crítico, é: “Como pode a vida

tornar-se essencial?” (LUKÁCKS, 1962, p.22).

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Segundo Lukács, a dialética entre a subjetividade do autor e a realidade objetiva eram elementos potenciais para a elaboração de um romance. Entendemos por subjetividade as razões intrínsecas do autor, que podem ser moldadas pela realidade objetiva, como pode, também, moldar a mesma. Pedro Dinis Quaderna tanto molda como se deixa moldar pela exterioridade.7

Considerando que o repúdio à guerra e à sociedade burguesa da época era algo puramente utópico, Lukács esclarece que não havia nela nenhuma mediação entre a tomada de posição subjetiva e a realidade objetiva. Em razão disso, o filósofo não sentia qualquer necessidade de avaliação crítica acerca de sua concepção do mundo, o método de seu

trabalho científico, etc. Pretendia assim, o ensaísta, “passar” da perspectiva de Immanuel

Kant (que buscava compreender a fundamento e a motivação dos fenômenos e objetos) para Hegel (que considerava absoluta apenas a investigação cientifica que também abarcasse as contradições do objeto de estudo) sem modificar sua ligação com os métodos das ciências do espírito. Lukács se considerava influenciado pelos trabalhos de Dilthey, de Simmel e de Max Weber. Desta forma, a Pedra do Reino, constitui-se em mosaico de referências e de influências: históricas, sociais, religiosas, míticas e literárias. No que diz respeito, às referências biográficas, ainda que nesse estudo elas não sejam a questão principal, vale o seguinte registro de Ariano Suassuna:

Olhe, eu vou lhe dizer, na verdade já tem relatos por aí. Na verdade, A Pedra do Reino surgiu de dois fracassos meus. Eu, nos anos 50, tentei escrever uma biografia do meu pai. Mas eu não consegui levar adiante, aquilo era como se eu estivesse mexendo numa ferida numa cicatrizada, não consegui. Aí eu tive o primeiro fracasso, que eu não consegui fazer essa biografia. Depois eu tentei fazer um longo poema épico sobre ele que se chamaria Cantar do Potro Castanho, mas eu também não conseguia. A poesia dava um distanciamento maior mesmo, mas mesmo assim eu não conseguia.

Então eu deixei pra lá, e disse: “Eu não vou tentar mais nada nessa

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vida não.”, em 1958, depois de eu ter deixado isso pra lá, comecei a querer escrever um romance que terminaria sendo o Romance d’A

Pedra do Reino. E sem eu perceber; a Pedra do Reino terminou sendo o substituto ficcional do romance, dabiografia e do romance, e do poema que eu não tinha conseguido escrever.8

Os diversos níveis de deslocamentos (históricos, culturais, literários, biográficos entre outros), presentes na narrativa, condiz com uma estrutura móvel que permite várias entradas no texto. Daí a importância de perceber os aspectos formais e variacionais do romance em diálogo, sempre que possível, com o conjunto de referências presentes na obra. Tais deslocamentos estão anunciados já no longo título dado ao romance: Romance d’A Pedra do Reino e o Principe do Sangue do Vai-e-Volta. O movimento de ir e vir sugerido, já no título, exige que o leitor se desloque em meio a dados cuja fonte documental está sempre sob suspeita.

Dessa forma, em substituição aos deuses da mitologia greco-romana, Suassuna evoca escritores da tradição universal e regional, criando um elo de forças que se estende por toda a obra. Dante, Euclides da Cunha, Goethe, Camões, José de Alencar, Machado de Assis, Augusto dos Anjos, Alexandre Dumas, dentre outros.

Segundo Lukács, a perda dessa relação com o mítico faz com que as formas artísticas se submetam a uma dialética histórico-filosófica; acrescentamos a histórico-filosófica, no caso de Suassuna, a literária, tendo resultados diferentes de acordo com a origem dos gêneros específicos. Mais uma vez, Suassuna supre a evocação aos deuses, pela citação explícita a escritores. Lukács aponta que o romance é uma expressão do desabrigo

transcendental, ou seja, o romance vem traduzir a perda dessa “inocência mítica”. Dentro

dessa perspectiva, A Divina Comédia de Dante, segundo Lukács vem a constituir uma transição histórico-filosófica da epopeia para o romance em razão de seus personagens serem indivíduos que resistem a uma realidade que a eles se fecha, apesar de possuírem a completude e ausência de distância inerente ao herói épico, e nessa oposição se tornam verdadeiras personalidades. Quaderna pode ser analisado como sendo uma experiência radical desse movimento.

Sabemos que na Grécia o destino do individuo estava diretamente conectado à coletividade a qual era pertencente, enquanto na Modernidade o destino do individuo não se

8

(26)

encontra conectado com a coletividade, havendo assim uma maior ênfase na individualidade. Nesta perspectiva, Lúkacs identifica no poema épico de Dante, nas peças de Shakespeare e no Dom Quixote de Cervantes o caminho que configurou o romance ocidental.

O tom memorialista, no romance, está reforçado pela função do rapsodo, imprescindível para a compreensão dos estágios cíclicos da obra em questão. A literatura clássica compreende respectivamente três períodos: o arcaico, o clássico e o alexandrino. No período arcaico são produzidas as mais significativas obras literárias da humanidade: a Ilíada e a Odisseia. Marques Júnior (2008) nos esclarece que o período arcaico marca o principio do fato literário, em que a escrita é resgatada, uma vez que se encontrava desaparecida durante um período de quatrocentos anos entre os séculos XII e VIII a.C. Apesar da escrita, a tradição oral nessa época era forte, sendo os aedos (ou rapsodos) os principais responsáveis pela difusão da poesia oral. Tanto a Ilíada quanto a Odisseia foram mantidas e repassadas por gerações durante duzentos anos até que, no século VI a.C, o tirano de Atenas, Psístrato, ordenou o registro escrito dessas obras atribuídas a Homero.9 Aqui, é importante enfatizar a desconfiança da existência ou não de Homero, explorada por Quaderna, como modo de questionamento do lugar da autoria dos textos e de suas matrizes orais.

No período clássico da Grécia (V e IV a.C) o foco da literatura se transfere do mundo ligado à natureza para o mundo da polis. Conforme nos esclarece Marques Júnior, nesse período a filosofia busca a explicação lógica para os fenômenos, por meio do discurso racional. É nesse contexto que surge os textos da tragédia grega que buscam refletir acerca da condição humana expondo a sua fragilidade. Já no período alexandrino (IV e III a.C), ocorre a expansão da influência grega por meio da expansão territorial do império de Alexandre, o Grande.

Acerca desses gêneros literários vigentes na Antiguidade, Rosenfeld (2009) nos traz distinções a fim de que possamos identificar as características peculiares do lírico, do épico e do dramático. Sobre o gênero lírico, Rosenfeld nos esclarece que esse gênero enfatiza o aspecto emocional, ressaltando a musicalidade dos versos, além de possuir um notável

9 Para um maior aprofundamento ver “Canto XXII da Ilíada: O teatro da morte, do ultraje e da dor”. In:

MARQUES JÚNIOR, Milton. O teatro da morte, da humilhação e da dor: análise e tradução do canto XXII da

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caráter de pessoalidade em relação ao eu lírico. Já no gênero épico introduz-se a descrição, podendo-se observar um caráter mais impessoal do narrador, uma vez que o texto épico, com relativa freqüência, expõe fatos históricos que também podem ser ficcionalizados. Já no gênero dramático se insere o texto dialógico, que tem como eixo central o conflito, a solução de problemas. Na qualidade de suposto poeta visionário, Suassuna, através do personagem Quaderna, problematiza todos esses lugares do discurso, atenuando suas diferenças por meio da constante indecisão do lugar do narrador.

Nesta perspectiva, Anatol Rosenfeld em seu trabalho cita exemplos de possíveis nomenclaturas para textos dramáticos que se utilizam de elementos líricos e épicos como o

“drama lírico” e o “drama épico”. A perda dessa unidade faz com que ela seja constantemente buscada na Modernidade, não havendo assim uma “totalidade espontânea do ser”, o herói no romance está sempre em busca de si mesmo. Através da perda da

totalidade e da unidade, bem como da ausência de divindades, a psicologia do herói no

romance, segundo Lukács, se torna “demoníaca”. Essa psicologia demoníaca seria a

percepção e realização na escrita de que o herói do romance não é capaz de penetrar inteiramente na realidade.

A constatação de Lukács, em A Teoria do Romance, é de que o romance é a forma necessária da modernidade. Esta modernidade se caracteriza pela consciência da cisão, que se constata por ser incontornável pela necessidade da busca do sentido e, a também necessária descoberta da sua impossibilidade neste mundo prosaico, pela presença viva do elemento demoníaco. A sensação permanente

de desabrigo da alma. “O romance é uma construção ‘problemática’, emblema de uma modernidade que perdeu o sentido da vida” (MARTINS, 2008, p.269).

Paralelamente à “perda do sentido da vida”, da “hibridização” patente no romance, é

possível apontar elementos teatrais e dramáticos na obra, antes de entrarmos nos elementos trágicos propriamente ditos. Entre eles, destacamos a presença implícita de didascálias em todo o texto, ora para descrever o cenário em que as cenas são narradas e a indumentária, ora como recurso para balizar a potência teatral do texto. Tais didascálias funcionam como um segundo texto no interior da narrativa. Coaduna com esta assertiva, a caracterização do personagem doutor Pedro Gouveia, sobreposta aos fatos contados:

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cavalo. Com a outra, sobraçava um meio-termo de pasta-de-documentos e maleta de viagem. Como logo descobriríamos depois, ali, naquela pasta, é que vinha todos os papéis de documentos que terminariam causando tanta complicação, tantas mortes e tantos infortúnios. Amarrada ao pescoço por uma fita branca e amarela –“as cores do Papa”, como ele mesmo nos

explicou o Doutor carregava uma espécie de condecoração, “uma Cruz semelhante à da Ordem de Cristo, mas com esmaltes diferentes, pois era de ouro e goles – ou de amarelo e vermelho, para os não traquejados na Heráldica. No dedo anular da mão esquerda, o Doutor usava um anel brasonado. No indicador da direita, uma pedra-de-grau de Licenciado em Direito, um enorme rubi, cercado por pequenos diamantes encravados em chuveiro (SUASSUNA, 2007, p. 44)

Paralelamente à presença das didascálias implícitas no romance, detectamos a

metáfora do teatro como forma enfática de dramatizar os atos narrativos: “... era teatro de

constantes desordens e conflitos...” (SUASSUNA, 2007, p. 72); “Aquele anfiteatro antigo e bruto parecia exigir que eu misturasse meu sangue às pedras...” (SUASSUNA, 2007, p.

146). Nítida, portanto, é a teatralidade da linguagem trabalhada pelo autor. No campo da

intertextualidade, o diálogo com a tradição encena uma escrita “fáustica”, cujo Ser

encontra- se e perde-se na linguagem, tal qual a noção do narrador como dramaturgo que organiza as cenas em que participa, através de um constante debate, personificado nos inúmeros dualismos postos em discussão, dentre eles destacamos os mais marcantes, a

saber: o “Oncismo” e o “Tapirismo”. É a partir dessas duas posições antagônicas, que o

herói Quaderna estabelece a sua narrativa dialógica.

Acerca desse “demonismo” proposto por Lukács, Martins (2008) segue seu artigo explicando que o herói no “idealismo abstrato” atua psicologicamente, impedindo assim

qualquer problemática da alma, qualquer impulso de ordem sentimental. Diferentemente do herói trágico, o herói do romance tende a ser aventureiro em vez de contemplativo. Os valores que o impelem à ação não vêm necessariamente da exterioridade, como na Ilíada e na Odisseia, ele já possui esses valores intrínsecos. Dom Quixote, por exemplo, nesta perspectiva, representa o ápice do “distanciamento”. Sendo concebido como uma paródia

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Pedro Dinis Quaderna, apenas parcialmente se distancia da realidade, uma vez que é a própria realidade, ou referência a ela que conduz o imaginário poético do personagem. Em contraposição a essa perspectiva quixotesca apresentada por Martins, Lúkacs aponta que no

século XIX surge o “romance da desilusão”, nesse tipo de romance a inadequação da alma

se dá por ela ser demasiadamente ampla em relação à realidade, sendo mais vasta que os destinos que a realidade pode lhe oferecer. O problema central dessa forma de romance é a perda do simbolismo épico, a renúncia da vida, e a necessidade de um mundo completamente regido pela convenção. Nesse sentido, Suassuna recria a realidade a partir do elemento primordial da consciência sobre a forma poética e a forma estética. Dentro das possibilidades da linguagem, é o elemento da convenção que estrutura o romance.

A partir do modelo proustiano, a “duração” torna-se a categoria que caracteriza o

romance de desilusão, ocorre uma constante “luta contra o poder do tempo”. O tempo nesse romance passa a ser, o “princípio depravador” sendo ele o responsável pelo definhamento da essência. O nome “desilusão” se dá em razão de o herói ser frustrado na busca de

estabelecer sentido à vida, tão somente pelos fatos cronológicos, tornando-se assim, o herói ou personagem, um desiludido frente a fusão entre o tempo e a subjetividade.

Pedro Dinis Quaderna situa-se no intervalo entre o “idealismo abstrato” e o “romance de desilusão”. Desta forma, Ariano Suassuna cria um personagem que transita entre as modalidades apresentadas por Lukács. Pois a perspectiva quixotesca é latente em Quaderna, a partir do momento que o personagem se propõe a restabelecer um reino outrora extinto no sertão brasileiro, podendo-se observar, no plano da diégese, uma total desconexão do herói, tal qual ocorre no idealismo abstrato. Todavia, do ponto de vista da construção da ação, Quaderna é uma criação dotada de notória introspecção e isso coincide

com a ideia de “alma enriquecida de interioridade”.

Conforme já mencionamos anteriormente, Rosenfeld (2009) esclarece-nos que a ausência da necessidade de uma exaltação de caráter nacional faz com que o romance substitua a epopeia. Nesta perspectiva, quando Quaderna opta pelo romance em vez da epopeia, podemos entender que Ariano Suassuna utiliza o personagem principal como

“personificação” da transição entre o romance e a epopeia, adequando a problemática ao

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Tomando por base essa cesura entre o épico e romanesco, observamos uma espécie de ética da escrita que envolve tanto o plano da enunciação quanto o plano do enunciado. Podemos apontar que não só a obra do romance aqui estudado, mas toda obra artística, se desenvolve a partir de três conjunturas: poética, técnica e estética. Assim, a obra se constitui entre os elementos que tencionam a relação entre a produção e o produto. Daí, podermos observar que em obras metaliterárias, como a de Suassuna, ocorre a justaposição dos planos poéticos e técnicos. Resta ao leitor, buscar identificá-los do ponto de vista da

estética. Ainda sobre aquilo que denominamos acima “ética da escrita”, Ana Cotrim em

estudo dedicado ao romance discorre:

Diverso é o papel que a ética desempenha na constituição da forma do romance, antes de mais nada, porque o desenvolvimento para

além do “mundo fechado” do período heróico leva ao rompimento

da unidade existente entre interioridade e o mundo exterior, entre individuo e todo social, e com isso leva à dissolução do laço ético. O mundo moderno se caracteriza pela elevação da interioridade subjetiva muito acima dos limites da cultura fechada, e encontra uma manifestação privilegiada no alto grau de individuação. É um mundo de riqueza subjetiva, interior, que, contudo, não encontra respaldo para existir ativamente da esfera do mundo exterior (COTRIM, 2009, p. 573-574).

Nessa segunda fase de sua vida, a do idealismo objetivo, ainda segundo Cotrim, Lukács entende que o romance é um gênero capaz de configurar a totalidade extensiva da vida, o que de certa forma justifica o pensamento de Quaderna ao mudar da epopeia para o romance.

Mas não é uma Epopéia o que eu quero fazer mais não, Clemente! A princípio, pensei nisso, tendo como assunto a Pedra do Reino e como figura central meu bisavô, o Rei João Ferreira Quaderna! Mas acabo de desistir, depois que eu ouvi Carlos Dias Fernandes provar que as Epopéias estão ultrapassadas! De fato, eu já andava meio cismado, porque o Senador Augusto Meira, Poeta épico pelo Rio Grande do Norte, já escreveu o Brasileis – Epopéia Nacional Brasileira, em catorze cantos, maior, portanto, do que Os Lusíadas, que só tem dez! Sendo assim, o que é que eu iria fazer mais, nesse campo da Epopéia brasileira? Por isso, mudei de ideia, e o que eu

quero, agora, é escrever um “romance”! (SUASSUNA, 2007,

p.235).

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uma vez que na epopeia a realidade parece ser construída de maneira totalmente subjetiva por meio da inspiração do autor, enquanto no romance (dentro do um entendimento hegeliano) existe uma estrutura empírica exterior. Hegel, em verdade, refere-se à perspectiva histórica. Na obra de Suassuna, contudo, os limites da construção histórica são postos em acordo com a perspectiva da Nova história, Peter Burke compreende que:

Visões retrospectivas, cortes e a alternância entre cena e história: essas são técnicas cinemáticas (ou na verdade literárias) que podem ser utilizadas de uma maneira superficial, antes para ofuscar do que para iluminar, mas podem também ajudar os historiadores em sua difícil tarefa de revelar o relacionamento entre os acontecimentos e as estruturas e apresentar pontos de vista múltiplos. Desenvolvimentos desse tipo, se continuarem, podem reivindicar

ser vistos, não apenas como mero ‘renascimento’ da narrativa,

como denominou Stone, mas como forma de regeneração. (BURKE, 1992, p. 348).

É possível entender essa mudança de paradigma a partir da relação estabelecida entre o afastamento da visão coletiva (epopeia) para a visão individual (romance) ao longo do

desenvolvimento da narrativa. Lúkacs nos explica que há uma “totalidade ética”, onde a vida, o mundo, a realidade objetiva, é penetrada pela substância espiritual interior (a nossa subjetividade). Em razão disso os indivíduos da epopeia clássica pouco se diferenciam entre si e o coletivo, a busca individual do herói compreende a busca de todo o povo.

Sendo um gênero híbrido, o romance é um herdeiro direto de outros gêneros literários, dentre eles a epopeia e a tragédia, gênero que abordaremos em detalhes posteriormente. Desta forma, o herói do romance se encontra em alto grau de individuação. Podemos pensar que a tentativa de Quaderna em construir algo original baseia-se na busca de uma singularidade que culmina com a individualidade do herói romanesco.

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Lukács que consiste no fato de que o romance tem a função de recriar a totalidade perdida. Nesse esforço de recriação, Ariano Suassuna reconstrói parte da história de um período. Em suas palavras:

Depois eu fiz várias versões, eu faço sempre várias versões depois que eu escrevo. Numa das versões, que dei por terminada, que eu pensei que estava terminada, e veio uma irmã que eu tenho chamada Germana que cuja opinião eu levo muito a sério, aí ela

disse pra mim assim: “__Ariano, você percebeu que a morte do padrinho de Quaderna é a morte de João Dantas?” Eu lembro que era um fato pessoal ligado à minha família. Aí eu fui olhar: “__ E é mesmo!”. João Dantas foi encontrado morto com a garganta cortada no dia 06 de Outubro de 1930 na detenção aqui do Recife, que é hoje a Casa da Cultura, num aposento elevado e tava trancado por fora, então, aí eu vi que era mesmo. Inconscientemente eu tinha recriado a morte de João Dantas na Pedra do Reino como fato ficcional, mas tinha uma origem (inclusive) autobiográfica minha muito forte!10

O processo de edição e montagem, revelado pelo autor imprime à obra uma clara noção de convencionalidade. A luta do herói Quaderna em recuperar a totalidade perdida se dá em razão de, inclusive, problematizar a relação entre a história e a literatura. O narrador memorialista, recupera dados de toda ordem; antropológica, social, biográfica, literária, geográfica, filosófica, política, para não falar das microestruturas que compõem o romance, gastronômica, religiosa, ecológica, além das descrições, em abundância, da flora e da fauna da região. Narrativa em mosaico, o Romance d’A Pedra do Reino permite várias portas de entrada, incluindo a análise documental. No entanto, frisamos a importância de alicerçar as referências na obra ao próprio tom satírico, irônico e crítico com os quais, o autor elabora seu processo criativo. Cabe, ainda, enfatizar, o modo como o autor encara a cultura dita popular e suas contradições frente à cultura erudita, dita estrangeira. Há no romance uma

tese implícita acerca do caráter nacional e da miscigenação entre as culturas: “Lembro que o genial poeta Nicolau Fagundes Varela adverte todos nós, Brasileiros, de que ‘os irônicos estrangeiros’ vivem sempre vigilantes, sempre à espreita do menor deslize nosso para,

então, ‘ridicularizar’ o pátrio pensamento.” (SUASSUNA, 2007, p.60)

Conclui-se que no romance o narrador pode assumir duas posturas em relação à exterioridade; a postura descritiva e a narrativa. Assinala Cotrim:

No romance, a representação corpórea dos homens também adquire

10

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significação poética apenas na relação ativa com os demais, “na influência que exerce sobre eles”. Assim, mais uma vez tomando os

traços épicos que vinculam Homero aos grandes romancistas realistas, nosso autor aponta o modo como se fazem sentir nas obras a beleza de Helena e de Ana Karenina. Valendo-se mais uma vez da apreensão de Lessing, nosso autor afirma que, tal como Homero caracteriza a beleza de Helena pelos efeitos sobre os homens e a sua influência na ação humana, também Tolstói figura a beleza de Ana como elemento vivo das relações e destinos humanos. (COTRIM, 2009, p. 587-588)

O romance representa a totalidade contraditória pela figuração de indivíduos em luta na sociedade. Outro aspecto que não podemos deixar de perceber é o da demarcação dos gêneros a partir de sua relação direta com as fases do homem. A fim de demarcar o surgimento do romance, Lukács estabelece uma divisão da literatura épica em duas partes:

uma se encontra na “infância” do homem ocidental em que o homem está fadado à unidade comunitária por meio da “fé” em suas divindades, e a outra parte se encontra na “maturidade viril” desse homem que se encontra na crise dos valores que agora, na

ausência de deuses, passa a se distinguir de sua comunidade, vendo-se obrigado a encontrar sua própria identidade. Desta forma o romance é oriundo dessa maturidade viril, onde se busca saber como a existência se torna singular, individual e intransferível. Nessa linha de raciocínio, cabe identificar onde o drama se localiza enquanto forma de emancipação da

expressão do homem. Essa “maturidade” que ocasiona o desaparecimento da essência na

íntegra inviabiliza a escritura da épica, nesta perspectiva o romance surge como uma forma de suprir essa deficiência da épica. Desta forma, o romance passa a lidar com a multiplicidade de experiências, uma vez que não há mais uma relação hierárquica entre essência e existência.

(34)
(35)

III

CAPÍTULO 2

“Só depois, quando comecei a entender melhor as coisas, a estudar mais o estilo epopeico e

profético, foi que me certifiquei de que a patranha é uma das características indispensáveis às

Tragédias...” (SUASSUNA, 2007, p.147).

NOÇÕES DE TRAGICIDADE

O texto da tragédia, considerado dentro da tradição crítica, pertencente ao gênero dramático, é entrecortado por momentos líricos na entrada do coro, párodo, estásimos, e por momentos épicos como a narração inicial feita no prólogo por deuses como Afrodite em Hipólito de Eurípedes e o sentinela em Agamenon de Ésquilo. A tragédia grega, no decorrer de toda a história, exerceu grande influência junto à produção filosófica, literária e intelectual. O uso da tragédia grega estende-se aos diversos ramos das ciências humanas, a exemplo da Psicanálise, como podemos ver em Sigmund Freud ao forjar o termo

“Complexo de Édipo”, e de Carl Jung ao forjar o termo “Complexo de Electra”, versão

feminina do complexo de Édipo. Exemplos também fortemente difundidos no imaginário do senso comum. A constatação dessas influências permite-nos pensar a tragédia não apenas do seu ponto de vista formal, mas dos princípios que circundam seus mitos literários e relações simbólicas em um conjunto infindável de produções. O processo de intertextualidade transpõe, no caso da tragédia, inclusive, as linguagens não verbais, plásticas, espetaculares, visuais etc.

A tragédia grega também tem sido apropriada e adaptada por diversos autores no decorrer dos séculos subsequentes. Dentre eles podemos destacar a possível semelhança entre a Oréstia de Ésquilo e Hamlet de William Shakespeare, também no âmbito nacional podemos lembrar que Chico Buarque, que ao escrever A Gota d’Água se apropriou da tragédia Medéia, de Eurípedes. A noção de “apropriação” parece ser pertinente quando o

assunto é o reaparecimento do trágico ou de seus princípios em obras contemporâneas.

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com a trajetória do herói, enquanto na comédia a catarse se dá através do distanciamento e não identificação direta do espectador com essa trajetória, e ao pathos.

No Romance d’A Pedra do Reino, a noção e a influência do trágico caminha paralelamente à noção e influência do cômico, o que nos permite observar, em outro plano, também, a presença de hibridismo para além da questão de gênero e da metalinguagem. A ascendência trágica da família de Quaderna, a morte misteriosa de Pedro Sebastião Garcia-Barretto, o desaparecimento (exílio) de Sinésio, a disputa entre irmãos, o tema do julgamento são, entre outros, alguns exemplos temáticos no romance que apontam para a presença do trágico na estrutura romanesca. No entanto, a analogia de alguns temas não é suficiente para apontar e sustentar uma estrutura trágica no romance, é preciso atentar para a recorrência da citação como modo de elaboração, a partir da justaposição, do processo de criação do autor. Exemplo dessa recorrência no plano ficcional é a contradição existente entre a unidade de tempo, de ação e de lugar que, para Ariano, corresponde à unidade de tempo, de ação e de lugar utilizada pelos tragediógrafos. Vale ressaltar que a unidade de tempo na tragédia grega era evocada sempre pela palavra, o que no romance de Suassuna também acontece. Contudo, o modo como o narrador narra os fatos encobre a perspectiva de unidade em jogo. Estratégia que, muitas vezes, induz o leitor a não reconhecer a presença de dois planos na narrativa: o do épico, assumido por Quaderna; e o do trágico assumido por Suassuna.

Yuri: Então, vejamos, a ausência de uma linearidade na obra é uma contraposição intencional à unidade aristotélica?

Ariano: Não, olhe, eu sou um admirador das unidades aristotélicas... Não sei se você se lembra, mas a Pedra do Reino, em si, ela dura um dia.

Yuri: Então é um tempo de sol...

Ariano: É uma unidade de tempo, não é? É o tempo de narração, porque o tempo de narração dele ao corregedor passa-se num dia só. Quando ele sai do depoimento ao corregedor à noite ta começando a cair.11

11

Referências

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