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“Através de indicações pescadas aqui e ali em Talcos e Avelórios, eu descobrira que o escritor que se propusesse a escrever a “τbra da Raça Brasileira” tinha de possuir emotividade eólia, para fundir no crisol de si mesmo essas psicoses surpreendentes que aureolam de originalidade os personagens de sua Tragédia, de seu Poema, de seu Romance” (SUASSUσA, 200ι, p. 23ι).

Fazer uma travessia pelo trágico no Romance d’A Pedra do Reino significa, quase necessariamente, adentrar um universo extremamente amplo cujo nome “tragédia” se mostra insuficiente para dar conta de tamanha dimensão. No decorrer desta dissertação pudemos notar que para se falar do aspecto trágico no romance de Ariano Suassuna, exige- se do leitor um amplo diálogo com diversos aspectos que podem entrecortar a temática da tragédia, seus desdobramentos e agenciamentos.

Ao adentrar o romance de Ariano Suassuna, o pesquisador precisa estabelecer um diálogo constante com conhecimentos de áreas afins, a saber: a literatura, a filosofia, a história, a geografia, a sociologia, a cultura popular, e também o teatro. O elemento trágico no Romance d’A Pedra do Reino parecia um elemento óbvio, um objeto de pesquisa que se encontrava ali às claras nos diversos episódios em que essa tragédia é evocada no romance, contudo dada a complexidade de sua estrutura, os princípios trágicos no romance são travestidos e contaminados por outros elementos que, muitas vezes, distorcem e ampliam a sua efetividade. Comparar o misterioso assassinato de Dom Pedro Sebastião Garcia- Barretto com romances policiais parecia ser o mais óbvio a se fazer, porém ao fazer isso o pesquisador estaria ignorando toda uma tradição da Antiguidade Clássica que influenciou Ariano Suassuna na escrita do romance, e isso ficou ainda mais evidente quando, em entrevista, ele nos confirmou tal influência.

Antes da entrevista com Ariano Suassuna, aprofundamos as leituras das tragédias clássicas, dentre as 32 tragédias (7 de Ésquilo, 7 de Sófocles, e 18 de Ésquilo) entendi que a relação mais aproximada que se podia estabelecer entre as tragédias e o romance seria através da trilogia de Ésquilo (Oréstia), além de Os Sete Contra Tebas do mesmo autor. Também pudemos estabelecer relações entre o romance com Édipo Rei e Édipo

em Colono de Sófocles, bem como As Fenícias de Eurípedes. Também mencionamos outras tragédias, contudo essas se mostram menos importantes para fins de analogia com A Pedra do Reino.

Ao confrontar o conteúdo dessas peças com o conteúdo do romance, em entrevista com Ariano Suassuna, ficou ainda mais claro que a influência da tragédia grega no romance é existente e configura parte do projeto de sua elaboração. Pois, já sabemos que Pedro Dinis Quaderna tem seu padrinho, sua representação paterna, assassinado, tornando-o assim filho de um “rei morto”, como ocorre a Orestes. Sabemos também que a temática da disputa entre dois irmãos existente em Os Sete Contra Tebas é intencionalmente apropriada por Suassuna na disputa entre Arésio e Sinésio.

A apropriação esquiliana na Pedra do Reino denota, todavia, um caráter de ordem pessoal do autor que em entrevista admitiu Ésquilo ser um autor que muito o toca. Podemos ainda observar aspectos edipianos na própria figura de Pedro Dinis Quaderna que, dentro de sua falibilidade, procura se igualar a heróis da tragédia grega e aos das epopeias no que concerne às suas trajetórias; sabemos que Édipo tem seus olhos arrancados, e Quaderna também tem seus olhos metaforicamente perfurados por um gavião-macho e outro fêmea, o que faz da cegueira ser um denominador comum entre os dois heróis em questão, além de ser uma ironia ao poeta Homero que ele diz ter sido cego. Pistas que apontavam superficialmente para temáticas recorrentes.

A cegueira de Quaderna, ironicamente, o faz constatar muitas coisas antes ocultas, o que permite uma visão dúbia da vida, dualidade essa que já é presente antes de ser cego em suas duas ideologias conflitantes: o Oncismo e o Tapirismo. Édipo é decifrador de enigmas, e Quaderna também, ao ponto de se atribuir o título de “O Decifrador”. Podemos observar também que o trágico é algo presente na linhagem quadernesca tal qual ocorre em famosas famílias das tragédias gregas; ora, podemos observar a maldição da casa de Atreu, a maldição da linhagem da casa de Cadmo, e por que não relacioná-los com a maldição da casa dos Quadernas e dos Garcia-Barretto?

A análise acerca da influência e da travessia do trágico no romance de Suassuna também nos conduziu a um diálogo com a teoria do romance de Georg Lukács. A idéia de “totalidade do mundo grego” trazida por Lukács por meio das epopeias homéricas também

nos permitiu observar que tratar unicamente do trágico na Pedra do Reino se mostrou impossível, uma vez que o hibridismo na obra exige uma crítica mais aberta e articulada com outros fatores. Em razão disso é também relevante apontar caminhos para a influência epopeica e sua articulação com o romance.

Ainda que, em entrevista, Ariano Suassuna tenha admitido não haver lido Lukács, houve uma mútua descoberta ao constatar que o pensamento de Quaderna tem muitas semelhanças com o pensamento do ensaísta húngaro, em especial quando o personagem de Suassuna decide imprimir uma totalidade nacional e heroica ao Nordeste brasileiro através da epopeia que pretendia escrever. Naturalmente, não costuma ser do pensamento de um escritor adequar seu processo criativo ao pensamento de algum teórico, uma vez que é o teórico quem deve formular teorias acerca do processo criativo. Contudo, ainda assim não nos deixa de chamar atenção esse “aparente acaso”.

Sabemos que a apropriação de mitos é uma característica comum na tragédia grega, Ariano Suassuna certamente não se eximiu dessa apropriação quando observamos a citação ao Sebastianismo no sacrifício coletivo promovido por João Ferreira-Quaderna, bisavô de Pedro Dinis Quaderna, no século XIX, no sertão de Pernambuco. Também pudemos observar em Sinésio a apropriação de duas vertentes míticas surgidas nas Cruzadas, do lado português e do lado espanhol, a saber: o desaparecimento do rei Dom Sebastião e o mito do Rapaz-do-Cavalo-Branco que seria, para os espanhóis, o apóstolo Santiago. O bisavô de Quaderna, o rei João Ferreira, ainda pode ser relacionado com a perspectiva do pharmacós da tragédia grega, com maior ênfase na perspectiva do Homo Sacer sugerido por Giorgio Agamben. A perspectiva da morte de um tirano que se faz necessária, fazendo com que o homicídio provocado contra o tirano seja perdoado pela nova ordem. Isso pode ser observado também em Fuenteovejuna, do autor Lope de Vega, pertencente ao Século de Ouro Espanhol.

A entrevista com Ariano Suassuna também nos levou a descobrir que o respeito às unidades aristotélicas de tempo e lugar são seguidos na obra, uma vez que a estrutura in media res coloca tais unidades em permanente grau de ocultamento. Ao analisar o livro, percebemos que não só as unidades aristotélicas foram respeitadas, como também outros aspectos da Poética, e isso parece bastante evidente quando o autor insere um forte exemplo de anagnorisis no reencontro dos irmãos Sinésio e Silvestre, dentre outros aspectos.

Não podemos compreender Pedro Dinis Quaderna propriamente como um herói trágico, mas podemos observá-lo como uma metacrítica da trajetória do heroi trágico, metacrítica que está contida nos discursos de Quaderna que, ao mesmo tempo, traduz o devir do heroi em ter uma trajetória gloriosa, posicionando-se como um herói reflexivo. Um herói situado simultaneamente no âmbito do herói trágico, do herói pertencente ao “idealismo abstrato” e do herói do “romance de desilusão”, formulados por Georg Lukács.

Nesse sentido, constatamos em Quaderna um herói que está para “além do trágico”. Nele constatamos elementos constantes no herói épico, trágico, medieval e romanesco. Todas essas características são evocadas por Ariano Suassuna por meio da ironia. Essa ironia se faz presente num herói que não se decide, ou não cabe por completo, em qualquer um dos tipos mencionados. Ora ele nos remete a personagens trágicos por sua similitude no que concerne a seu DNA Trágico, ora nos remete ao herói épico que se envolve em aventuras (ainda que no campo psicológico), ora, ainda, ao herói medieval quando nos remete ao aspecto cavalheiresco e ao herói romanesco por sua notória postura auto- reflexiva e anti-trágica.

O Romance d’ A Pedra do Reino parece ser uma tessitura sem fim, uma colcha de retalhos, onde as referências vão se desdobrando em outras referências, em encadeamentos que não permitem, muitas vezes, a visão clara de uma finalidade. O diálogo com a teoria do romance proposta por Georg Lukács apontou-nos outras perspectivas para análise, conforme citei anteriormente. Analisar a Pedra do Reino significa também transitar em um universo complexo que dialoga simultâneamente com a Antiguidade Clássica (epopéias e tragédias) e Idade Média (sob a perspectiva dos autos) numa perspectiva praticamente barroca ou, melhor dizendo; armorial, uma vez que a Antiguidade Clássica e a Idade Média parecem estar a serviço do nordeste ficcional trazido por Ariano Suassuna.

Nesta dissertação procuramos acompanhar, em especial, a travessia do trágico no romance de Ariano Suassuna, tendo como principal mote a influência dos princípios da tragédia grega. A leitura de obras da tragédia grega também constituíram um elemento fundamental para dar sustentação a nossa travessia. É evidente como a leitura das obras clássicas nos proporciona alicerces eficazes na análise de uma obra literária, à medida que nos debruçamos sobre o romance percebemos como eventos e personagens do romance se assemelhavam aos mitos aos acontecimentos trágicos.

A leitura das tragédias remete-nos a uma pergunta já feita por Italo Calvino: “Por que ler os clássicos?”. Calvino está certo ao alegar que a leitura dos clássicos nos proporciona um alicerce que nos permite melhor analisar as obras da atualidade. Desta forma, Suassuna parece confirmar que uma obra literária é quase um verdadeiro compêndio de inúmeras outras referências que o escritor acumulou ao longo de sua vida. Também acredito ter compartilhado das sensações de Pedro Dinis Quaderna, principalmente a sensação de que um trabalho que parecia muito distante de ser concluído, e agora creio que, dentro dos limites de uma dissertação, se apresenta modestamente concluso. E creio que este trabalho também aponta uma possível resposta para uma nova pergunta: “Por que ler os trágicos?”

Dentre os obstáculos desta pesquisa, uma delas se encontra na própria leitura do Romance d’ A Pedra do Reino. Ariano Suassuna conduz o leitor a um universo simultaneamente popular e erudito, para não dizer “armorial”, em um vocabulário que muitas vezes soa familiar ao leitor e outras vezes soa completamente alheia à sua realidade. O romance parece não permitir que o leitor apenas leia de forma passiva, ele conduz o leitor a um trabalho investigativo em que informações verdadeiras se confundem com informações ficcionais criadas pelo autor, sugerindo assim o seu aspecto verossímil.

Além da busca pela “plena compreensão” da obra, foi preciso relacioná-la diretamente com outras obras que continham o elemento trágico como eixo. Foi necessário buscar constantemente fontes alternativas de pesquisa em outros livros, simultaneamente, fazendo com que as leituras se dessem de maneira simultânea e justaposta. Na leitura da obra, pudemos notar que Ariano Suassuna promove um verdadeiro discurso hibrido entre as matrizes culturais. O sebastianismo exposto na obra é um elemento substancial desse hibridismo luso-sertanejo. Também no decorrer deste trabalho foi possível estabelecer relações diretas com os personagens trágicos, entre eles: Édipo, Etéocles e Polinices, Agamênon, Orestes, dentre outros.

Diante da complexidade de uma obra como o Romance d’ A Pedra do Reino, finalizamos esta dissertação compartilhando talvez do mesmo sentimento de Virgilio para com a sua Eneida e de Pedro Dinis Quaderna com a sua Nordestíada; a de “incompletude da obra”. A abrangência do romance de Suassuna e, consequentemente, desta dissertação me leva a constatar que uma pesquisa de mestrado se mostra insuficiente para satisfazer plenamente o que se exige deste objeto de estudo. Contudo, essa “incompletude” se mostra

também positiva, pois ela aponta direcionamentos para um possível doutorado no futuro. De todo modo, é também interessante que a pesquisa se apresente como “incompleta” porque ela também não busca soluções fechadas, ela busca problematizar temáticas, através da analogia, podendo se desenvolver para além do que aqui foi mapeado. Desta forma, encerramos este trabalho com a perspectiva de poder, talvez, retomá-lo e aprofundá-lo em um futuro projeto.

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