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Infinitamente Pessoal: modulações do amor em Caio Fernando Abreu & Renato Russo

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Academic year: 2017

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS

FACULDADE DE LETRAS

PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS – ESTUDOS LITERÁRIOS

ALESSANDRA LEILA BORGES GOM ES

INFINITAMENTE PESSOAL

MODULAÇÕES DO AMOR EM CAIO FERNANDO ABREU & RENATO RUSSO

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ALESSANDRA LEILA BORGES GOM ES

INFINITAMENTE PESSOAL

MODULAÇÕES DO AMOR EM CAIO FERNANDO ABREU & RENATO RUSSO

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras – Estudos Literários, da Faculdade de Letras da Universidade Fe-deral de Minas Gerais, como parte dos requisitos para obtenção do grau de Doutor em Estudos Literários.

Orientador: Prof. Dr. Maurício Vasconcelos

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Para aqueles que amam Caio Fernando Abreu; em especial, Arla Coqueiro, Ananda Amaral e Marisa Protásio.

Aos que amam a Legião Urbana; especialmente, Renato Pedrecal Jr., Francisco Gutemberg, Francisco Lima, Adriana Telles, Orlando Billy, Fabíolla Borges,

Lima Trindade e Dionne Barreto.

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AGRADECIMENTOS

A meus pais (seu Orlando e dona Nila), meus irmãos (Jacque, Júnior, Fabrício, Fabiano, Fabíolla e Rodrigo) e sobrinhos (Enzo e Lara), por não deixarem nunca secar o fluxo do amor e a doce alegria que toda boa família sabe ter.

À turminha Gallo & Pedrecal (Renato, Andréa, Hanna Clara e Arthur Micael), minha segunda família, pelo carinho com que sempre me recebe em Belo Horizonte.

Ao meu orientador Maurício Vasconcelos, uma cara interlocução, na academia, na escrita e na vida.

A Bruno Leal e Silvana Pessoa, pelas críticas e sugestões valiosas dadas na qualificação. Aos amigos Ananda Amaral, Alex Simões, Marcus Vinícius Rodrigues, Viviane Freitas, Lima Trindade e Suênio Campos de Lucena, pelos empréstimos de livros e pelas conversas pacien-tes e produtivas.

A Adriana Telles (interlocução imprescindível) e Arla Coqueiro, pelo apoio emocional, práti-co, logístico e etílico.

A Cristiane Oliveira, por ter passado todo o ano de 2007 modulando uma cantiga “Állex, es-creva logo essa tese, Állex eses-creva logo essa tese, Állex, eses-creva logo essa tese, Állex, escre-va...” — ei-la, Cris!

A Renato Pedrecal Jr., pelo envio da trilha sonora de todas as tardes de pesquisa.

A Paula Góes e Seymour, pela gentileza no socorro de última hora aos problemas idiomáticos. À literatura e à música, extensões dos olhos, dos ouvidos, da alma e do corpo.

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Londres é um deserto sem seus pés deliciosos e todas as casas de bo-tões se transformam em sementes: urtigas e cicuta são a única coisa para usar na sua ausência.

Oscar Wilde, Carta a Bosie

Tenho trabalhado tanto, mas penso sempre em você. Mais de tardezi-nha que de manhã, mais naqueles dias que parecem poeira assentada aos poucos, e com mais força enquanto a noite avança. Não são pen-samentos escuros, embora noturnos. Tão transparentes que até pare-cem de vidro, vidro tão fino que, quando penso mais forte, parece que vai ficar assim clark! E quebrar em cacos, o pensamento que penso de você.

Caio Fernando Abreu, Carta anônima

Tudo que levamos a sério torna-se amargo. Assim os jogos, a poesia, todos os pássaros, mais do que tudo: todo o amor.

De quando em quando faltaremos a algum compromisso na Terra, e atravessaremos os córregos cheios de areia, após as chuvas

Alberto da Cunha Melo, Relógio de ponto

A subjetividade, o íntimo, o que a gente chama de subjetivo não se coloca na literatura. É como se eu estivesse brincando, jogando com essa tensão, com essa barreira. Eu queria me comunicar. Eu queria jogar minha intimidade, mas ela foge eternamente. Ela tem um ponto de fuga.

Ana Cristina Cesar. Escritos no Rio

Vamos deixar as janelas abertas Deixar o equilíbrio ir embora Cair como um saxofone na calçada Amarrar um fio de cobre no pescoço

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RESUMO

Estudo sobre as particularidades da abordagem do mito do amor nos textos de Caio Fernando Abreu e Renato Russo, através de um recorte dos escritos que melhor explicitaram as relações poéticas entre trajetória pessoal, olhar crítico e sociabilidade dosafetos. As possibilidades de articulação das representações amorosas com as intervenções criativas da escrita e a compre-ensão das formas de elaboração ético-política das vivências afetivas não pretendem negar as certezas precárias a que se pode chegar num empreendimento íntimo. Assim, tomam-se como operadores de leitura os conceitos foucaultianos de microhistórias, dispositivo histórico-cultural e formas de vida, e incorpora-se o deslizamento de uma escrita deleuzeana, a fim de não fixar o jogo de encontros e perdas dos conceitos/saberes no espaço sempre outro do signo poético. A partir de comparações, leituras, análises de elementos poéticos e compreensão das conjunturas histórico-político-sociais que marcaram as gerações 60-70-80-90, chega-se à con-clusão de que a escrita inventiva ainda constitui um dos lugares mais privilegiados para se refletir sobre as problematizações dos afetos, a produtividade de um olhar crítico e as media-ções poéticas e culturais.

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ABSTRACT

A study of the particularities of the approach to the myth of love in the texts of Caio Fernando Abreu and Renato Russo, through extracts from the authors that best explain the poetic rela-tionship between their personal trajectory, critical eye and sociability of affection. The possi-bilities of articulating representations of love through creative writing and the understanding of how ethical and political formulations of emotional experiences are not meant as denials of the precarious certainties feasible in an intimate venture. Foucaultian concepts of micro-histories, historical-cultural devices and life forms are taken as conceptual references, and Deleuzean writing intended not to fix the play between meeting and loss of the con-cepts/knowledge belonging to fields other than the poetic sign taken into consideration. From comparisons, readings, analysis of poetic elements and the understanding of historical-political-social contexts marking the generations of the 60s to 90s, it is possible to conclude that inventive writing remains one of the most privileged spaces for reflection on problems of affection, the productivity of a critical eye and cultural and poetic mediation.

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SUMÁRIO

PREÂMBULO: OU UMA COREOGRAFIA, ASSIM, QUASE POSSÍVEL ... 9

CAPÍTULO 1 PERAMBULAÇÕES DO AMOR NO TEMPO E NA ESCRITA ... 17

1.1 QUANDO SE APRENDE A AMAR O MUNDO PASSA A SER SEU? ... 38

1.2 PLÂNCTONS E LOBISOMENS ... 47

1.3 O TEMPO DO AMOR HOJE: UMA COREOGRAFIA DESPEDAÇADA ... 54

CAPÍTULO 2 CAIO FERNANDO ABREU: O ETERNO DANÇARINO DO AMOR ... 71

2.1 DAS ESTRELAS CADENTES E DOS CACOS-DE-VIDRO ... 84

2.2 FEITO DE CARNE, FLUXOS E FUNDURAS ... 97

2.3 PLÂNCTON É UM BICHO QUE BRILHA QUANDO FAZ AMOR ... 106

2.4 QUANDO NADA MAIS HOUVER, EU ME ERGUEREI CANTANDO ... 114

2.5 ANA C. E CAIO F.: AS MARCAS DE UMA INTIMIDADE ... 123

CAPÍTULO 3 RENATO RUSSO: O LOBISOMEM J UVENIL ... 137

3.1 SOU MEU PRÓPRIO LÍDER, ANDO EM CÍRCULOS, ME EQUILIBRO ENTRE DIAS E NOITES ... 142 3.2 CONSEGUI MEU EQUILÍBRIO CORTEJANDO A INSANIDADE ... 164

3.3 SOU UM ANIMAL SENTIMENTAL, ME APEGO FACILMENTE AO QUE DESPERTA MEU DESEJO ... 173

3.4 DAI-ME DE BEBER QUE TENHO UMA SEDE SEM FIM ... 186

3.5 COM VOCÊ POR PERTO EU GOSTAVA MAIS DE MIM ... 200

CAPÍTULO 4 SUPERFÍCIES REFLEXIVAS: AIDS, POESIA E VIDA ... 205

4.1 SOMOS TODOS LAIKAS URRANDO PARA O INFINITO ... 223

4.2 UM CACHORRO VIVO DENTRO DO ESTÔMAGO, QUERENDO SAIR ... 250

IMPROVISAÇÕES FINAIS OU DE COMO CANTAR NAS PRÓXIMAS CRISES ... 261

(9)

P

REÂMBULO

:

OU UMA COREOGRAFIA

,

ASSIM

,

QUASE POSSÍVEL

há-de flutuar uma cidade no crepúscolo da vida pensava eu... como seriam felizes as mulheres à beira mar debruçadas para a luz caiada remendando o pano das velas espiando o mar e a longitude do amor embarcado

por vezes

uma gaivota pousava nas águas outras era o sol que cegava

e um dardo de sangue alastrava pelo linho da noite os dias lentíssimos... sem ninguém

e nunca me disseram o nome daquele oceano esperei sentada à porta... dantes escrevia cartas punha-me a olhar a risca de mar ao fundo da rua

assim envelheci... acreditando que algum homem ao passar se espantasse com a minha solidão

[...]

um dia houve

que nunca mais avistei cidades crepusculares e os barcos deixaram de fazer escala à minha porta inclino-me de novo para o pano deste século recomeço a bordar ou a dormir

tanto faz

sempre tive dúvidas que alguma vez me visite a felicidade

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isseram que se minha voz tivesse força igual à imensa dor que sinto, meu grito

acordaria não só a minha casa, mas a vizinha inteira... Isto que poderia ser uma dança

começa de um ponto desconhecido, como num impulso que ainda não amanheceu. É preciso se deixar ficar, mas não permanecer, devagar, porém veloz, movimentando-se nesse escuro-luminoso. Não sei exatamente como de súbito eu soube que a dançaria por muito tempo. Localizo, quase sempre, o vibrar calmo-inquieto de certas perguntas, que vão comparecendo ao centro do palco, fazendo espatifar caminhos, ritmos, escolhas, que outrora eram certezas. Nesse espaço que se abre cada vez mais infinito e pessoal, percebo o mesmo que qualquer falante, poeta, escritor, ensaísta, filósofo, usuário, enfim, desse mecanismo complexo e fascinante que é a língua, que há uma escrita de si, não a ser revelada ou prestes a cair do céu, mas a ser tramada ou encenada.

Desejar neste percurso entrelaçar minha micro-porém-não-tão-pequena-história de atrito e prazer com a linguagem às outras tantas microformas (contos, poemas, canções, vide-oclipes, romances, diários, cartas, bilhetes, desenhos esboçados, fotos amareladas, afetos ra-biscados como em vitrais que simulam luz e movimento) que vão modular esta escrita de mim é trazer “à folha branca”, “ao mundo convite”, aquela força de intervenção percebida nos tex-tos lidos, desdobrados, rasurados, que compõem o que chamamos, assim, descuidados, de a minha formação. É sonhar justamente o se-inscrever-enquanto-corpo-desejo, enquanto

gesto-artefato, em vez de almejar tão somente um mero pretexto de escrita ou de cumprimento bu-rocrático de etapas. É claro que isto que se chama desejo pode ser apenas um delírio, um en-gano de mim posto assim “na contramão” de uma superfície; contudo, onde estaria a graça de qualquer empreendimento pessoal se não nos permitíssemos ao menos o sonho de sermos, “quase por um segundo”, uma outra palavra que desloca, um outro “jeito de corpo”?

Se, como adverte Roland Barthes (1977), “a linguagem é uma legislação”, e “toda língua é uma reição generalizada”, ao menos aqui posso escolher do que falar, por onde ir, por que seguir e quem me faz companhia. Lembro dos primeiros encontros com a escrita de Caio Fernando Abreu, Ana Cristina Cesar, Morrissey, Cazuza, Renato Russo. Daquilo que me foi marca, do que foi encantamento, despudor, alegria, tristeza, atalhos, possibilidades, embriaguez, doçura. Nas tantas entradas e saídas desses textos, minhas próprias “composições rodopiavam”, feito uma multidão que, depois de herdada, faz-se novamente noite e se faz minha. Creio que deve haver mesmo em toda afinidade eletiva aquele esfumaçar-se dentro do que é do outro, aquele se perder enquanto gente e bicho que subitamente se encontrou. Afinal, ao escolher falar de quem amamos, e não apenas do que pode compor a digamos assim lógica de um caminho, estamos nos posicionando com os objetos, num trabalho tantas vezes

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prazeroso tantas vezes insano de intercambiamento disto que se chama poesia e se chama uma vida. E Caio Fernando Abreu completaria, convicto, que amar demais assim deve ser

suficiente para resolver essa escrita de si ou esse investimento que se faz força. Devo confessar, então, que é dessa maneira apaixonada, meio démodé, quem sabe, e, sobretudo, viva, que isto-que-se-pensa-eu quis se inscrever junto a tudo aquilo que era deles, e agora restou nosso.

Não quero dizer, entretanto, que nesta espécie de roteiro pessoal me ocupei apenas deste meu auto-retrato de leitora ou mesmo desta vontade de me reinscrever na pele dos afe-tos, mas que no incorporar de tantos amores lidos/vividos pretendo tornar o mais cristalino possível o que move este traçado, o que dá ritmo a esta materialidade, o que emparelha e faz dançar as questões que ora trago à pauta. A escolha por um percurso em que a prática de aná-lise dos objetos mostra os emaranhados do próprio ato de se autocompreender junto à paisa-gem não constitui necessariamente um operador de escrita inaugural, mas, antes, uma conso-nância com a mobilidade de papéis, de saberes e de discursos que configuram, na contempo-raneidade, a abertura e intercambiamento das novas articulações críticas.

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de nossa saliva com aquela natureza inapreensível dos alimentos. É por isso que o que chamamos tão naturalmente de paladar é tão somente a quebra de fronteira entre nossos fluidos e os do mundo — exatamente por isso, pessoal, infinito e intransferível.

O encaminhamento “natural” desta inquietação seria a busca de inserção no debate acerca das representações homossexuais (ou gays ou homoafetivas ou homoeróticas ou que-er), que constituem, cada uma dentro dos limites de suas perspectivas

histórico-político-culturais, um arcabouço teórico do qual um interessado no tema e em seus desdobramentos pode lançar mão. As diferenças entre os operadores de leitura e o campo de pesquisa de cada uma dessas linhas investigativas, bem como de suas implicações teóricas e práticas, já foram bastante exploradas e postas na superfície reflexiva da produção de conhecimento e circulação de leitura de objetos. O que se faz com esses estudos acerca das relações, comportamentos, identidades, práticas e desejos entre pessoas do mesmo sexo é assunto de debates desenvolvi-dos tanto nos encontros e congressos literários quanto nos cursos de pós-graduação brasilei-ros.

Em Literatura e homoerotismo (2006), José Carlos Barcellos chamou a atenção para o cuidado que todo pesquisador deve ter com “as perspectivas teórico-metodológicas implica-das nas múltiplas práticas críticas que vêm se desenvolvendo entre nós” (2006, p.7). Seu aviso não representa apenas uma praxe, tomada por aqueles que consideram uma pesquisa acadêmi-ca um lugar de legitimação das troacadêmi-cas, dos conhecimentos (cujo rigor envolve sujeito, objeto e episteme escolhida, e que, como tal, deve ser cuidadosamente resguardada de meros

modis-mos e investigações conduzidas tão somente pelas sincronicidades de seus praticantes), mas, sobretudo, um posicionamento claro acerca de um certo nó que se instala em qualquer campo de produção de teoria e prática de saberes. No caso dos estudos acerca das representações entre pessoas do mesmo sexo, o nó se define como os truncamentos — denominados por ele de “particularidades incontornáveis” — entre o desenvolvimento de pressupostos teóricos, por vezes até contraditórios, que contemplam orientações políticas e culturais, e a condução práti-ca desses operadores e paradigmas de leitura no plano do envolvimento pessoal e produtivo.

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Outro problema abordado por Barcellos é o tipo de inserção a ser procurada (nesse espaço de articulação de saberes) por aqueles que, antes de se definirem como pesquisadores interessados no debate dos estudos homoeróticos, são, sobretudo, amantes da linguagem poé-tica. Para esses, muitas vezes, os operadores de leitura oferecidos quer pelos estudos gays e lésbicos, quer pelos estudos homoeróticos, quer pela Teoria Queer, acabam catalisando ou se aproximando muito mais das discussões relacionadas com aquele olhar cultural e antropoló-gico posto em circulação pela emergência dos estudos culturais (que tendem a enxergar a

lite-ratura como apenas uma linguagem entre as demais) do que de um investimento epistemoló-gico capaz de dar conta dos elementos fundamentais e orientadores dos trabalhos movidos,

sobretudo, pela sedução da dança vertiginosa dos signos poéticos, por esse deslizar de uma superfície polissêmica a outra, por esse prazer de entrar e sair de lugares tanto legítimos quan-to clandestinos, visitando ora as representações hegemônicas ora as heterogêneas e habitando, por vezes o extremo, por vezes o incompleto, da escrita.

Esse impasse debatido dentro dos próprios estudos homoeróticos, por textos como o de Barcellos, Foreaux e Chiara, talvez, para muitos, já tenha sido resolvido ou seja apenas extensão tardia de reflexões mais amplas propostas por Costa Lima ou Leyla Perrone-Moisés ou mesmo Silviano Santiago — que não se inscrevem, evidentemente, no debate a partir das mesmas angústias. No entanto, o que não se resolve é o retorno, para um interessado na lin-guagem poética, da sensação de estar apenas compondo rótulos para um perambular contem-porâneo — talvez até eficazes quando o que se pretende é, acima de tudo, uma inscrição na cena, mas não coerentes para quem almeja uma conexão mais pessoal entre intervenção e ori-entação teórica, e não somente reiterações de reiterações.

Para esta pesquisa, o problema maior envolvia a escolha das teorias, uma vez que antes de qualquer análise era preciso conciliar o desejo de compreensão dos desenhos amoro-sos de Caio Fernando Abreu e Renato Russo — dois autores assumidamente gays, escolhidos como objetos desta leitura — com a minha prática “literária” de não exatamente eleger os objetos por causa das questões relativas aos modos específicos de compreensão do homoero-tismo, ou da prática amorosa entre parceiros do mesmo sexo. Antes de me preocupar com as formas de compreensão, valorização, teorização e intervenção das experiências homoeróticas desses autores, importava não perder a orientação espontânea da festa da linguagem promovi-da pelos signos poéticos.

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entre meninos, guardo uma permanente inquietação ou crise teórica, como numa espécie de febre que não passa. É realmente possível que essa propagada inserção da linguagem literária

no plano da cultura, máxima que tem orientado uma multiplicidade de posicionamentos que, ao longe, parecem fascinantes e diversos, mas de perto, muitas vezes, mostram-se absurdamente normais, funcione como um lugar de conforto ou de intervenção crítica. Para

mim, entretanto, todos os truncamentos e nós retornam a cada instante em que releio os textos poéticos e caminho em direção às teorias. Como tudo é móvel e tudo se desfaz ora caco ora purpurina na linguagem poética, escrever sobre poesia é, para mim, um lento desaprender de rumos.

Não quero dizer com isso que acredito em operadores binários e hierarquizantes, já desconstruídos pelas tantas teorias que postularam a crise do sujeito, o perigo da fixação de identidades, a necessidade de refletir sobre a fragmentação e abalo dos quadros de referência que davam a ilusão de ancoragem estável ao mundo. Ao contrário, essas transformações, li-gadas às noções culturais de classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade, que, permitiram a troca de uma pseudo-solidez por uma mobilidade dinâmica, são não apenas pe-dra de toque na linguagem poética, como indicativos de certos atalhos, mesmo indiretos, deste recorte.

Na dissertação de mestrado, Atritos e paisagens: um estudo sobre a loucura e a homossexualidade nos contos de Caio Fernando Abreu1, fiz um levantamento dos contos de Caio Fernando Abreu que mostravam um entrelaçamento do tema da loucura com o da homossexualidade. A idéia era mapear esses conflitos e os espaços de circulação, propostos pelas imagens, flutuações e direcionamentos dos textos, para colocar em discussão as relações entre esses dois temas. A partir de uma orientação foucaultiana, mas que se desenvolveu predominantemente deleuzeana, procurei seguir as linhas que distribuíam as diferentes concepções acerca da loucura e da homossexualidade, sempre privilegiando a multiplicidade e o caráter questionador presentes nas representações do autor. Percebi que, ao optar pelas configurações da loucura como um lugar de libertação e vivência dos desejos mais íntimos dos indivíduos, e da homossexualidade como uma paisagem diversa e multiforme para desejos, experiências e comportamentos sexuais, CFA apontava para espaços de questionamentos e singularizações dessas experiências, elegendo paisagens fragmentadas e

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saídas precárias, momentâneas, para os conflitos entre os indivíduos e a ordem social. Suas intervenções, à maneira foucaultiana, terminam por não centralizar o debate, abrindo mão de noções fixas para as representações. Essa liberdade com cheiro, textura e paladar tão deliciosamente esquisito provocou o desejo de continuar a investigar outros aspectos de sua obra. Dentre esses, o que me chamou mais a atenção foi a abordagem e problematização do mito do amor.

Como todo desejo, esse também foi se metamorfoseando, trazendo novos nomes, ou-tros rostos, sugerindo cenas. Assim, entre tantas afinidades possíveis, escolhi também a com-panhia de Renato Russo, suas formas de dizer o amor em narrativas polifomórficas, nas quais é possível flagrar conflitos de inserções e intervenções geracionais, mediados pela singulari-zação de seus jogos poéticos e discursivos, cujo pano de fundo, não raro, é a paisagem amoro-sa. Este empreendimento se deu, então, pela vontade de ampliar a discussão acerca do mito do amor, trazendo para a sua cena as montagens plurais de um dos mais representativos artistas contemporâneos que despontou no universo da cultura rock, num tempo de reelaboração dos discursos e representações sobre a experiência de ser jovem e sobre os problemas culturais e políticos que afetaram a minha geração.

Os desdobramentos deste passeio, os passos disto que precisa ser uma dança, assim se estruturaram, como forma de melhor expressar meu deslocamento neste espaço cada vez mais infinito e pessoal:

Um primeiro capítulo, intitulado PERAMBULAÇÕES DO AMOR NO TEMPO E NA ESCRITA,

no qual procuro expor os operadores mais importantes deste percurso. Nele interesso-me ain-da por inscrever isso que chamamos amor em sua própria zona de fuga e materialiain-dade, evtando as prisões e reducionismos que as tentativas de definições e capturas dele enquanto i-manência trazem. Lançando-me nos pântanos e na multiplicidade de seus jogos representati-vos, oriento-me por um recorte do mito possibilitado por uma revisão e, sobretudo, abertura trazida pelos Estudos Literários contemporâneos acerca da capacidade de se trabalhar com o conceito de representação. Nesse sentido, incorporo os avanços das leituras sobre a pertinên-cia do operador representação na escrita contemporânea e nos espaços de liberdade trazidos pelas trocas entre as demais linguagens culturais. Como o mito do amor é construído a partir de um intercambiamento dinâmico entre a elaboração de subjetividades e as formas de captura e cooptação dos afetos, busquei uma compreensão desses espaços onde ora se singulariza ora se perde o fluxo do amor.

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contrários e quase sempre se põem à deriva de qualquer projeto definitivo de demarcação. Para acompanhar melhor a abordagem de Caio Fernando Abreu, que coloca na pauta a questão do mito do amor romântico e de suas possibilidades de funcionar como efeito de verdade (obtida a partir de investimentos subjetivos), mas, também, como pulsação de um engendramento doloroso (quando incorporados pelos sujeitos como uma verdade a ser desvelada), foram usados operadores de leitura acerca da paisagem cultural onde o autor se insere.

No terceiro capítulo, que chamei de RENATO RUSSO: O LOBISOMEM JUVENIL, procurei mapear o mito do amor nas letras de algumas das canções, como forma de pontuar as multi-formidades ou modulações que o compositor empresta às tantas faces do amor. Creio ser im-portante salientar que me interessou, neste percurso, menos um esquadrinhamento verticaliza-do dessas formas e mais a espacialização de suas elaborações estéticas. Entenverticaliza-do a visão de amor de Renato Russo como uma paisagem particular, ou como um universo singular, que se destaca através das suas maneiras de se expor como artista, de interpretar e se comportar no palco — maneiras distintas das dos demais de sua geração, e, paradoxalmente, conectadas a seu contexto.

O quarto e último capítulo, intitulado SUPERFÍCIES REFLEXIVAS:AIDS, POESIA E VIDA,

formou-se a partir da percepção de que o advento da AIDS trouxe mudanças significativas para os anos 1980, intervindo na elaboração das subjetividades, nas relações socioafetivas e na própria estruturação das instâncias de poder. Ao comparar as visões e posturas dos dois autores diante dessa contextura, quis destacar as formas distintas com que ambos se inseriram naquele cenário conturbado pelo fantasma da epidemia, e, por conseguinte, procurei assinalar o papel que cada um assumiu no debate. Para tornar mais claras essas intenções, excluí desse capítulo operadores de leitura que capturassem as identidades sexuais dos dois autores, pois, mesmo lidando com autores assumidamente gays, interessava-me menos a fixidez e mais a mobilidade dos desejos (meus/deles).

(17)

C

APÍTULO

1

P

ERAMBULAÇÕES DO AMOR NO TEMPO E NA ESCRITA

Este o nosso destino: amor sem conta, distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas, doação ilimitada a uma completa ingratidão, e na concha vazia do amor a procura medrosa, paciente, de mais e mais amor.

Carlos Drummond de Andrade, Amar

Acreditei que se amasse de novo esqueceria outros

pelo menos três ou quatro rostos que amei Num delírio de arquivística

organizei a memória em alfabetos como quem conta carneiros e amansa no entanto flanco aberto não esqueço e amo em ti os outros rostos.

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amor, assim como os sonhos, se desenvolve numa área indefinida, uma zona vertiginosa de instabilidade e deslizamentos para onde somos, freqüentemente, tragados e expulsos, como nos jogos perversos de atração e repulsa. Qualquer tentativa de apreensão ou de captura dele nos lança nesse pântano, estranho e elástico, da imaterialidade do amor e, ao mesmo tempo, dos jogos múltiplos de suas representações. Quando me pergunto o que é o amor, imediatamente outra zona instável se abre; nela, vejo-me ainda mais perdida num emaranhado de conceitos e frases feitas, oriundos de lugares diversos do conhecimento humano. Nesse espaço híbrido, onde se misturam fragmentos de romances, contos, poemas, relatos históricos, letras de músicas, cenas de filmes, ensaios e teorias sobre o tema, existem ainda milhares de pontinhos luminosos que trazem outras tantas experiências amorosas, de pessoas amigas, conhecidas, minhas, nossas, lendas urbanas, modernas, antigas, que vão se agregando como pequenas memórias desse longo aprendizado que é o amor.

Parafraseando Jorge Luis Borges num estudo sobre o Oriente — que por sua vez pa-rafraseava Santo Agostinho, em suas considerações acerca do tempo —, quero manter acesa, durante todo este percurso, uma lembrança: a de que ocorre com o amor tanto o que o poeta argentino percebeu ao tentar definir Oriente e Ocidente, quanto o que já proclamava o santo africano sobre o tempo: “o que é o amor? Se não me perguntam, eu sei. Se me perguntam, desconheço”2. Quero dizer com isso que desse eterno deslizar do amor não pretendo inventar estratégias acadêmicas para mascarar suas fugas, nem me deixar levar pela zona de conforto das falsas fixações. O que proponho a mim mesma, neste espaço de certezas instáveis, ima-gens metamorfoseantes e conceitos precários é a sincera disposição do viajante: ir em frente, sempre, sem desejos pragmáticos de chegadas que predeterminam as partidas, mas sem des-prezar, contudo, a curiosidade eterna pelos portos provisórios.

O tema do amor costuma ser bastante trabalhado na criação artística e estudos literários. Suas representações, assim como os valores que assume, variam não apenas de uma época para outra, mas, também, dentro dos diversos gêneros artísticos e caminhos teóricos nos quais são construídas, retomadas, afirmadas, negadas. Se pudéssemos pensar na possibilidade de uma história dos temas mais constantes da literatura, da música, do cinema, da pintura, do

2

Borges cita a seguinte passagem de Santo Agostinho: “O que é o tempo? Se não me perguntam, eu sei. Se me perguntam, desconheço”, mostrando que o fato de algo nos parecer verdadeiro ou real – como os termos Oriente e Ocidente – não é garantia de que possamos encontrar uma definição que dê conta dos aspectos deslizantes desses termos: “O que são o Oriente e o ocidente? Se me perguntam, desconheço. Vamos procurar uma aproximação”. Cf. BORGES, 1980, p.71.

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teatro e demais artes, tal pesquisa provavelmente apresentaria o amor como um dos assuntos mais produtivos, quiçá o preferido de oito entre dez criadores. E essa recorrência não acontece apenas devido ao fascínio que tal tema exerce sobre os artistas e estudiosos da arte e da cultura, mas, principalmente, porque sua abordagem permite uma gama de reflexões sobre o próprio mundo onde vivemos. Ou seja, ao falar de amor e ao interpretar tais falas, muitos poetas e artistas, juntamente com seus críticos e leitores, podem estar falando não apenas da expressão de um sentimento particular, buscado pelos mais diferentes seres humanos nas mais diversas partes do mundo, mas, sobretudo, das mediações assumidas entre as subjetividades e a ordem objetiva na qual todo sujeito está inserido — abordar o amor é abordar os valores morais, políticos, sociais, religiosos e culturais que nos formam e com os quais formamos nossos discursos, nossas produções. Nesse sentido, as representações do amor servem tanto a projetos coletivos quanto a investimentos individuais, devido às suas implicações e significados múltiplos.

Não quero dizer com isso que me guio exclusivamente pela busca da exposição des-sas formações discursivas, numa perspectiva multiculturalista ou mesmo sociológica dos tex-tos artísticos, que, nesse caso, seriam reduzidos a um documento ou testemunho social. En-tendo essas relações como algumas entre tantas que podem ser recortadas, conectadas a outras ou completamente isoladas numa análise. Mas creio que, para adentrar nessa zona movediça e fascinante das representações do mito do amor em Caio Fernando Abreu e Renato Russo, pre-ciso, antes, revisar as possibilidades de uso que o termo “representação” ainda permite, uma vez que, desde a Antigüidade, ele cobre uma intensa produção de definições e conceitos acer-ca da maneira como a literatura se apropria do real e o modifiacer-ca.

Quando falamos em representação, fatalmente algumas palavras aparecem como que a disputar o leme do barco e, queiramos ou não, temos de dar conta delas, sob pena de elas não darem conta daquilo que afirmamos que são. Dito de outro modo, entendo que falar em representação é repensar não apenas os sentidos adquiridos por tal palavra dentro dos Estudos Literários, mas, também, naquilo que ela inclui e exclui quando transformada num operador de leitura. Quando pronuncio “representação”, os outros principais signos que surgem — co-mo num círculo paradigmático que pode levar tanto a ordenações quanto ao caos — são: con-templação, imitação, cena, imagem, reflexo, realidade, mimesis, espelho, captura e, já num deslizamento barthesiano3 de pensamento, possibilidades e impossibilidades de produção de realidades.

3

Para Barthes, a mimesis constituía a segunda força da literatura (a primeira seria a mathesis e a terceira, a

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Representar, de modo geral, significa colocar uma coisa no lugar de outra que está ausente. Assim como na linguagem diária se representam, através dos signos, de forma simbólica, objetos, seres, lugares, sensações, pensamentos, presente, passado e futuro, os escritores e artistas também representam seus universos imaginários e suas subjetividades, em conflito ou em harmonia com a ordem objetiva. Há várias formas de se entender a representação, algumas delas levam à idéia de contemplação do real, outras à noção de reflexo ou imitação, outras ainda à desconstrução4 ou renovação de paradigmas. Numa tentativa de enumerar essas tantas maneiras de estudar a representação, é possível destacar pelo menos sete formas de pensá-la:

1) Refletindo sobre o uso especial da linguagem na literatura, seu mecanismo especí-fico de elaboração de sentidos, estabelecido a partir de uma tensão constante entre forma e conteúdo (que vai desaguar na velha questão do desvio literário ou na “literariedade” dos formalistas russos, hoje em baixa devido às constantes críticas e desconstruções sugeridas pelos Estudos Culturais);

2) Comparando, aristotelicamente, a maneira como as diferentes formas de criação trabalham com a imitação da realidade, como elas podem ser diferenciadas ou aparentadas a partir do ritmo, da linguagem e da harmonia que propõem (que vai desembocar num estudo a partir dos elementos significativos de cada gênero ou subgênero literário; uma especificação da mimesis em cada categoria textual);

3) Buscando a relação entre signo, coisa designada e idéia que os interligam (que conduzirá à concepção saussuriana de significante-significado, ou à relação triádica do signo, representamen-objeto-interpretante, tal como a concebe Peirce)5;

4) Analisando as maneiras de produção de saber possibilitadas por cada época, a partir da forma como cada uma lidou com os signos e as realidades por eles representadas (que levará, por exemplo, às formulações foucaultianas acerca da episteme da história do Ocidente)6;

4

O termo aqui é utilizado a partir da leitura do termo/gesto/posicionamento proposto por Jacques Derrida, para quem, “a desconstrução é um modo de pensar a filosofia, ou seja, a história da filosofia no sentido ocidental estrito, e, conseqüentemente, de analisar sua genealogia, seus conceitos, seus pressupostos, sua axiomática, além de naturalmente fazê-lo não apenas de maneira teórica, mas também levando em conta as instituições, as práticas sociais e políticas, a cultura política do Ocidente”. Disponível em: <http://www.derrida.ufjf.br/proposta.htm>. Acesso em out. 2007.

5

Sobre as teorias do signo, ver: Ferdinand SAUSSURE. Curso de Lingüística Geral. São Paulo: Cultrix, 1969. Charles PEIRCE. Semiótica. São Paulo, Perspectiva, 1987; ou ainda Lúcia SANTAELLA. O que é semiótica. São Paulo: Brasiliense, 1983.

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5) Concebendo uma oposição entre forma e fundo, elegendo aquela como superior a este (o que leva a um abandono da investigação da mimesis e de suas conexões entre texto e mundo, em favor da semiosis, com seus estudos acerca das ordenações lingüísticas e dos entrelaçamentos que essas produzem no texto)7;

6) Considerando uma correspondência entre as artes, especialmente a literatura, e o mundo real, com o universo onírico dos indivíduos (o que produziria no texto literário uma estruturação simbólica em que tanto o elemento pragmático — diretamente ligado à realidade concreta — quanto as lacunas e mutações apresentadas pela mimesis têm a mesma importância; perspectiva que leva às investigações orientadas pela psicanálise);

7) Compreendendo que a linguagem é engendrada a partir das experiências dos sujei-tos, e funciona como um lugar de construção tanto da identidade quanto da condição sócio-político-cultural desses sujeitos (tais elementos estariam, assim, sempre presentes no ato de produção, marcando o texto de forma determinante e definindo a realidade que ele deixa en-trever; posição que leva às perspectivas dos Estudos Feministas e dos Estudos Culturais).

Alguns desses modos de se pensar a representação literária são excludentes (literari-edade e multiculturalismo, por exemplo), embora muitos deles possam se entrelaçar numa análise, complementando-se ou permitindo que se siga em frente, diante de algum impasse ou limite teórico. A maioria, entretanto, surgiu da necessidade de rever as noções platônicas a-cerca da mimesis. Para Platão, a ação de representar pessoas, sentimentos e objetos estava diretamente ligada a uma noção de correspondência entre o abstrato e o real. Tal processo, obtido a partir de uma contemplação, tinha por objetivo separar aquilo que era autêntico, ver-dadeiro, daquilo que conduzia ao erro, à dissimulação.

Sua teoria se ergueu a partir da necessidade de distinguir o Mundo das Idéias (origem, matriz, modelo), do mundo das cópias (imperfeito, falso, refletido, dissimulado). Dentro dessa perspectiva, os artistas são vistos como imitadores de terceiro nível, uma vez que estão situados na última instância hierárquica da tríplice platônica: em primeiro lugar está o fundamento ou origem, no Mundo das Idéias, que fornece o princípio de derivação, seleção e discriminação das cópias; em segundo lugar está o artífice, materializando a idéia, no Mundo Sensível; em último, encontra-se o artista, imitando as coisas a partir das cópias desse Mundo Sensível. Assim, ao identificar a utilidade do poeta, ou do artista, e o efeito da sua arte

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no público leitor, o filósofo vai afirmar que certas representações artísticas se afastam demasiadamente do modelo, conduzindo os cidadãos a um erro de percepção. Devido a essa capacidade “terrível” que a obra de arte teria de causar danos aos “homens de real valor”, é preciso impor aos poetas uma seleção rigorosa de sua entrada e saída na República:

[...] se viesse à nossa cidade algum indivíduo dotado de habilidade de assu-mir várias formas e de imitar todas as coisas, e se propusesse a fazer uma demonstração pessoal com seu poema, nós o reverenciaríamos como a um ser sagrado admirável e divertido, mas lhe diríamos que em nossa cidade não há ninguém como ele nem é conveniente haver; e, depois de ungir-lhe a ca-beça com mirra e de adorná-lo com fitas de lã, o poríamos no rumo de qual-quer outra cidade. Para nosso uso, teremos de recorrer a um poeta ou conta-dor de histórias mais austero e menos divertido, que corresponda aos nossos desígnios, só imite o estilo moderado e se restrinja na sua exposição a copiar os modelos que desde o início estabelecemos por lei, quando nos dispusemos a educar nossos soldados. (2000, p.154).

Restringir a liberdade de criação seria a forma encontrada para manter a ordem na polis ideal, pois, em geral, a concepção platônica pressupõe um efeito negativo da arte sobre o

seu apreciador: a emoção causada pelo efeito estético prejudicaria o indivíduo no entendimen-to da verdade e no auentendimen-tocontrole. Por isso, ele discrimina o que as crianças e os indivíduos me-nos capazes de discernimento viriam a conhecer ou não.

Em relação à capacidade de representação do real, Platão compreendia que na boa ar-te deveria existir a reprodução da similitude; ou seja, descreve-se algo que exisar-te na realidade (Mundo Sensível) e que serve a um reconhecimento racional de seu fundamento (Mundo das Idéias). As imitações que rompem com a noção de semelhança são danosas aos indivíduos, por não se tratarem de reflexos dos objetos copiados; elas já são problemáticas por se consti-tuírem de uma visão espelhada da realidade, uma aparência ilusória, e, se nem dessa coisa espelhada são capazes de se aproximar, então, fatalmente, conduzirão os cidadãos à confusão e ao engano. O critério, portanto, para a comparação entre modelo e derivação, e sua conse-qüente hierarquização, é o da semelhança; o que leva a uma noção de construção da identida-de a partir do espelho ou da existência identida-de um reflexo identida-de uma coisa (original) na outra (cópia). As cópias deformadas são ruins, pois não trazem similaridade com o fundamento; as cópias boas são consideradas exemplares (moderadas) justamente por serem análogas ao modelo estabelecido.

Aristóteles distancia-se da concepção platônica, identificando uma função na mimesis: a arte não seria apenas uma mera imitação da realidade (imitatio), mas uma imitação

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quanto pela capacidade de purificar os sentidos (catarse). A verossimilhança é o resultado do processo artístico da mimesis e está ligada à realidade, mas à realidade ficcional. Para Aristóteles, a mimesis na obra de arte pode ocorrer tanto pela sua semelhança com o mundo real quanto pelo seu afastamento: “não é ofício de poeta narrar o que aconteceu; é, sim, o de representar o que poderia acontecer, quer dizer: o que é possível segundo a verossimilhança ou necessidade” (1973, p.451).

Dessa forma, se todos os gêneros poéticos elaboravam a arte da representação, a dife-rença estava na forma e na escolha dos objetos. Na tragédia, por exemplo, a representação de um drama envolve a ação do(s) ator(es) e do texto encenado, e gera uma reação no público espectador. O objeto artístico supõe uma interação entre autor e receptor, considerando que a obra só se realiza pelo efeito causado nesse último. Assim, Aristóteles parte para uma especi-ficação da representação em cada categoria ou gênero. Ao mostrar a diferença entre o histori-ador e o poeta, ele aponta para o fato de a história tradicional se caracterizar pelo discurso científico e objetivo (no qual se encontra documentada a realidade empírica), enquanto a obra de arte possui a equivalência da verdade: mesmo não sendo verdadeira, tem na sua verossimi-lhança a característica responsável pela possibilidade de algo vir a ser ou acontecer.

O pensamento aristotélico traz para o conceito de representação do mundo a idéia de que a realidade na ficção é uma operação obtida a partir da imaginação de seu criador; não pode, portanto, ser submetida à verificação extratextual; no entanto, seu poder de causar ve-rossimilhança se dá a partir de uma relação significativa com o real, uma vez que a criação não parte de um vazio, e sim de algo referencial. As estruturas lingüísticas, sociais e ideológi-cas reais fornecem o material para que o artista crie o mundo imaginário, enquanto os gêneros fornecem os meios, os objetos e as formas de imitação, elementos que interferirão no ritmo e na harmonia de cada texto.

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Tais diferenças forneceram, durante algum tempo, operadores de leitura significati-vos, que distinguiam a representação literária da histórica, jornalística ou científica. Todavia, esses elementos não trazem mais uma conceituação segura, pois tanto a “neutralidade” do discurso científico cedeu lugar à consciência do jogo ambíguo entre o posicionamento do su-jeito que pesquisa frente ao objeto pesquisado, quanto a autonomia da arte foi confrontada a partir da exposição de seus vínculos ideológicos, capazes de lhe conferir força e prestígio nas instâncias políticas e intelectuais da sociedade e de, muitas vezes, perpetuar o discurso hege-mônico das classes dominantes.

Interessado no mais baixo dos graus estabelecidos por Platão em sua escala hierár-quica, Gilles Deleuze8 propõe a reversão do platonismo — o que, precisamente, consistiria em afastar qualquer possibilidade de rever a teoria platônica a partir do rompimento promovido por Aristóteles. O autor compreende que a cisão aristotélica não vai ao ponto chave do pro-blema instaurado pelo mundo hierárquico de Platão. O propro-blema para Deleuze não passa pela divisão de gêneros (especificação) trazida por Aristóteles, nem pelo acréscimo dado ao espaço da imaginação artística; afinal, o método platônico permanecerá inalterado se aristotelicamen-te o conaristotelicamen-testarmos: lá, trata-se de um método “de seleção de linhagens puras” (1988, p.67), de afastamento dessas das degredadas; cá, a preocupação se volta para uma divisão e funciona-mento próprio das espécies.

A representação artística é compreendida então como um simulacro e não uma falsa cópia. E o simulacro constitui o desvio radical, visto de forma positiva e revolucionária pelo filósofo francês, que destaca nele uma potência, pois a falsa cópia é um xeque-mate do mode-lo, uma ironia que põe em questão a hierarquia; uma vez que é marcada pela dessemelhança, pelo desvio, pela diferença, deve ser pensada em si mesma e não em correspondência com um modelo (fundamento). O objetivo deleuzeano, segundo ele mesmo, se confundia com o de toda a filosofia contemporânea: reverter o platonismo. Para tanto, solicita a instauração de uma permanente recusa à idéia da superioridade do mundo original, que seria obtida a partir de uma exaltação do simulacro:

Quando a identidade das coisas é dissolvida, o ser se evade, atinge a univocidade e se põe a girar em torno do diferente. O que é ou retorna não tem qualquer identidade prévia e constituída: a coisa é reduzida à diferença que a esquarteja e a todas as diferenças implicadas nesta e pelas quais ela passa. É neste sentido que o simulacro é o próprio símbolo, isto é, o signo na medida em que ele interioriza as condições de sua própria repetição. O

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A discussão aparece em Platão e o Simulacro. In: Lógica do Sentido, São Paulo: Perspectiva, 1982; e em

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simulacro apreendeu uma disparidade constituinte na coisa que ele destitui do lugar de modelo. (1988, p. 70, grifo do autor).

Isso implicou pensar o texto artístico como um mundo onde se criam modelos pró-prios, um mundo de desierarquização e de afirmação da diferença, visto que as coisas são in-comparáveis, incomensuráveis, dada a sua singularidade. A posição deleuzeana foi a de bus-car um diálogo entre as formas estabelecidas e as não legitimadas de produção de saber, entre a filosofia e a não-filosofia, entre semelhança e diferença, criação e repetição, a fim de permi-tir zonas de fugas aos modelos fixados pelo pensamento clássico. Representação na arte, para Deleuze, não resulta em cópia ou imitação de coisa alguma, mas na própria idéia do ato de criar. Ele mostra que, assim como na matemática a idéia que orienta a criação leva à produção de funções, na filosofia leva à produção de conceitos; na arte a idéia produz blocos de sensa-ções, de percepção e de afetos, fazendo o mundo girar de maneira desordenada e diferente,

não organizada e espelhada, como queria Platão.

O resultado de toda essa reversão das idéias platônicas foi o posicionamento diante de uma teoria que aprisionava e ordenava o mundo, já conhecido e palmilhado pelos sentidos humanos, reduzindo a criação artística. Desautorizar esse operador de leitura, através de uma retomada do conceito nietzschiano de falso, foi uma forma de libertar a máquina de guerra produzida pela linguagem literária, que conduz ao desencadeamento de mundos diferentes, a tonalidades não conhecidas, à simultaneidade de contrários, às desordens, às estranhezas, aos desvios, às distorções. Por isso, o que para Platão seria uma degradação do modelo, para De-leuze é a potência de um investimento radical.

A morte do autor e das grandes narrativas; a postura antiessencialista e relativista; a idéia de que o sujeito não representa uma unidade ou um centro, nem possui natureza; a ênfa-se na fragmentação e na multiplicidade; o combate ao universalismo; e a condenação de qual-quer tipo de busca ou estabelecimento de verdades absolutas têm constituído, a partir da déca-da de 1960, operadores de leitura significativos para se analisar as produções artísticas e cul-turais. Dentro desse contexto, não apenas o conceito de mimesis sofreu abalos significativos, como o lugar que ele ocupava na teoria passou também a ser questionado.

Em sua concepção marxista de mundo e orientado pelo estruturalismo de Lévi-Strauss, Luiz Costa Lima, em Mimesis e modernidade (2003)9, investe num estudo cujo norte é a compreensão dos elementos ideológicos da mimesis, isto é, o projeto de mundo “visto” e “dito” engendrado por ela. Concentrando seu foco na análise dos valores e percepções

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presentes na obra literária, Costa Lima analisa a mimesis literária a partir da reunião de dois vetores opostos: o de semelhança e o de diferença. Essa direção o coloca, em Sociedade e discurso ficcional (1986), contrário ao pensamento deleuzeano, que teria desdobrado de forma

radical o embaraço trazido, antes, pelas vanguardas artísticas. Para o crítico, o pensamento deleuzeano e esse “embaraço” seriam os responsáveis por um banimento da discussão da mimesis. Costa Lima defende que a confusão instaurada, desde os vários usos feitos por

Platão com o termo mimesis, merecia um estudo rigoroso e não uma proscrição.

Levando em conta que Platão emprega a palavra para definir ora uma técnica de es-crita, ora a incorporação de um personagem pelo ator, ora o processo de ensino, em que o discípulo imita o mestre, e ainda para distanciar a poesia da episteme, destrinchar os caminhos ou estratégias da mimesis da representação e da mimesis da produção (COSTA LIMA, 2003) seria mais importante do que tomá-la unicamente pelo seu poder de dissimulação. O crítico parte do pressuposto de que a mimesis não é privilégio da obra de arte; ela faz parte da vida como um todo, e que os seus diferentes modos de elaboração carecem de análise aprofundada. Compreender, pois, os mecanismos de produção de semelhança e diferença (simulação e dis-simulação) da mimesis seria mais importante do que apenas negar que ela estivesse submetida a uma representação de uma natureza que a precede e que, portanto, está hierarquicamente acima. Para ele, a instituição da realidade na literatura como algo exclusivamente obtido pelos operadores da linguagem (uma ficção), sem qualquer contexto externo e antecedente — a festa da linguagem, diria Roland Barthes (1980) —, não resolve a necessidade de se pensar a

“experiência intersubjetiva” (COSTA LIMA, 1986, p.359), pois é o fenômeno da representa-ção que leva o “real” ao “texto da mimesis”.

Segundo David Wellbery, em “Mimesis e metafísica: sobre a estética de Schope-nhauer” (1999), o desenvolvimento do conceito mimesis em Costa Lima é tributário da “ten-são entre o registro antropológico e o metafísico” de Schopenhauer (1999, p.71), que, por sua vez, resolveu a distância ontológica entre original e cópia apontada por Platão. Essa resolu-ção, presente em O mundo como vontade de representação10, abole a dualidade entre aquilo que antecede a representação e a mimesis propriamente, pois concebe que há unidade nesse processo (devir) e não dualidade; há uma indistinção entre conhecimento e Vontade, sendo então a mimesis uma transformação que unifica sujeito e objeto numa Idéia emergente.

Em Mímesis: a representação da realidade na literatura ocidental (1976), Erich Auerbach analisa a ruptura da cultura cristã com a tradição clássica, defendendo a linguagem literária (a obra, mais precisamente) como uma representação da realidade, embora essa

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representação não seja de ordem imitativa e, sim, fruto de um contato entre história e estética; para ele, cada época é responsável pela introdução de uma visão (imagem) diferente de mundo, o que resulta em oposições, em confrontos de formas distintas de representação do real. A orientação de Auerbach é histórica, ainda que deixe em evidência os impasses que toda abordagem histórica traz — no caso da representação literária, o principal obstáculo é a multiplicidade de imagens e ações que precisam ser sistematizadas numa figura. Para o autor, mesmo diante de um emaranhado complexo de planos, ações e imagens que obra literária traz, há em sua linguagem, necessariamente, uma relação entre a estética e o real, isto é, toda forma traz uma percepção do real (conteúdo real) — no que é apoiado por Costa Lima. No capítulo “A cicatriz de Ulisses”, ele exemplifica esses confrontos, analisando dois modos diferentes de representação: o lendário, representado pelo episódio homérico em que Ulisses retorna a Ítaca, é confundido com um estrangeiro, e tem os pés lavados pela sua antiga criada; e o episódio bíblico, em que Deus pede a Abrão para sacrificar Isaac, no Antigo Testamento. No primeiro texto, o excesso de descrições e cortes que levam a outros detalhes e histórias dentro da mesma narrativa impedem a tensão, conduzindo a representação por um caminho linear; no segundo, a tensão se faz a partir da supressão da representação diante da frase-resposta de Abrão — Deus proverá — à pergunta de seu filho sobre onde estava o cordeiro a ser imolado. O excesso e a elipse são, assim, modos distintos de configuração do contato entre a forma e a identificação — entendendo essa identificação já como um fenômeno mimético, que aglutina semelhança e distância do real, fenômeno paradoxal, uma vez que é a partir desse atrito que se dá a possibilidade de aquilo que se representa ser visto, ouvido, tocado, saboreado, cheirado, compreendido, analisado, questionado.

Auerbach e Costa Lima se assemelham na concepção de que se representa não por-que se deseja, mas porpor-que se necessita: “Não representamos porpor-que por-queremos e quando por- que-remos, mas o fazemos como maneira de nos tornarmos visíveis e ter o outro como visível”11. Por isso, ambos acreditam ser importante que, na discussão sobre a capacidade de criar e/ou espelhar realidades na arte e na literatura, haja um espaço para as diferenciações conceituais entre a mimesis oriunda dos gregos (que não é exatamente igual à tradução que fizemos dela), a noção de imitação (retomada pelos renascentistas) e a de representação (que contém também a auto-análise do próprio distanciamento daquilo que se representa).

A criação de imagens e mundos possíveis através da linguagem poética pode seguir os mais diversos rumos, desde que se compreendeu o real como uma suposição, impossível de

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ser capturado, e a literatura como um universo que tende a um jogo de desficcionalização e ficicionalização da realidade, através de cortes nos referentes, bifurcações de significados, encenações, multiplicações, performances, manipulações, e novas criações de referencialidades que resultam também em uma crítica do próprio desejo de representação. Segundo João Adolfo Hansen, em “Estranhando a semelhança”12, o mais interessante no conceito de mimesis é seu deslizamento: “Quando se fala em mímesis, sabe-se muito bem do que se trata, mas não o quê” (1999, p.184). Assim, dentro da representação literária é possível encontrar elementos que negam aquilo mesmo que ali se representa, numa brincadeira infinita de desmentir as certezas alcançadas, a fim de jamais perder o devir e o prazer de organizar e desorganizar o mundo através da vertigem da escrita. Esse prazer de construção também desconstrói, pois a escrita é irônica, uma vez que coloca em dúvida o que se “pré-concebia” como real. Escrever é manipular realidades possíveis, nem copiar nem espelhar, mas criar e jogar no espaço entre vida e cena (máscara), razão e dramaticidade (BARTHES, 1980).

Jacques Derrida, em A escritura e a diferença (1971), aposta na idéia de différance, a fim de dar conta de tudo que antecede os sentidos do signo. Para ele, as fronteiras entre escritura e diferença (com “a”13) aglutinam, não separam, pois constituem um espaço de jogo entre “mesmo” e “outro”, entendidos não somente como elementos contrários, mas, sobretudo, su-plementares. O conceito de escritura está relacionado com o silêncio, com a demora, a prorro-gação, a crise, enquanto o de différance está ligado à síntese de um duplo movimento de ser diferente: todo signo é definido pelos sentidos diversos das palavras que usamos para estabele-cer seu significado (“tudo que ele é”) e pela oposição com outros signos (“tudo que ele não é”).

Em As palavras e as coisas (1999), Michel Foucault analisa o quadro Las meninas, de Velásquez, mostrando que já há algum tempo a noção de representação como correspondência de algo ao qual ela se assemelha não é capaz de nos ensinar sobre um mundo em que as construções falam do ato de se construírem: “E livre, enfim, dessa relação que a acorrentava, a representação pode se dar como pura representação” (1999, p.21), o que implica uma compreensão de que o mero exercício de apontar semelhanças entre o que se cria

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Artigo publicado em Hans Ulrich GUMBRECHT e João Cezar de Castro ROCHA (org.). Máscaras da

mímesis. A obra de Luiz Costa Lima. Rio de Janeiro: Record, 1999. p.179-199. 13

Desde que a obra A escritura e a diferença foi traduzida para o Brasil, por Maria Beatriz Nizza da Silva, em 1971, muitas foram as tentativas de dar conta desse “neo-grafismo”, para usar a designação de Silviano Santiago (Glossário de Derrida. Francisco Alves, 1976, p.22-24). A tradutora optou pela grafia “diferencia”; leitores e tradutores de Derrida tentaram outras formas de grafar o termo, embora, no texto “Lettre à un ami japonais”, o próprio autor tenha aconselhado ao seu tradutor japonês criar um conceito/estratégia que, em sua língua, fosse equivalente ao jogo por ele proposto na língua francesa. Cf. Jacques DERRIDA. Lettre à un Ami Japonais. In:

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e os elementos que por ventura estejam na criação representados não leva mais a nenhum lugar — a representação se libertou da coisa representada.

O percurso de Foucault é o de estudar a emergência e estruturação de certas ciências que têm por objeto o conhecimento do homem e de suas culturas, e que são, geralmente, agrupadas na grande área de Humanidades. Para ele, as Ciências Humanas se estruturaram a partir da idéia de similitude (mundo pré-clássico e mundo clássico) e representação (mundo moderno e contemporâneo). Seu ponto de partida é o questionamento da representação do signo operado pela época moderna, por isso, vai buscar num quadro de Velásquez elementos outros que permitam um novo olhar sobre o conceito de mimesis. Tal quadro lembra aquelas bonecas russas que trazem dentro delas uma cópia menor, que por sua vez se abre para revelar uma outra cópia ainda menor, e assim sucessivamente, até chegar à menor possibilidade de cópia dentro da cópia. Lembra também as histórias de As mil e umas noites, ou as peças de Shakespeare, ou, ainda, os filmes de Godard. Enfim, algo dentro de algo que abre uma janela para refletir sobre o jogo da representação. A sua descrição e análise do quadro se desdobram em várias páginas, mostrando que o jogo é complexo e não se esgota apenas no plano do visível (transparência), pois dentro do quadro há um quadro que está sendo pintado que não é visto (opacidade) e um espelho entre ambos (jogo, reflexão). Segundo Foucault, há uma inversão permanente de papéis entre espectador e modelo, isto é, eles estão a perguntar quem são os modelos, quem são os espectadores, quem é o pintor, quem ou o quê é representado, quem se auto-representa e quem reflete aquilo que não é a coisa representada, mas o jogo-confronto do visível-invisível, conforme mostra o espelho que está dentro do quadro.

Ao estudar alguns aspectos que estão no quadro de Velásquez (pintura, representa-ção, quadro e luz), Foucault chama a atenção para a complexa rede de relações entre o fruidor (espectador, público, leitor), a criação, o objeto que ela representa e o próprio ato de represen-tar objetos, além de também refletir sobre os deslizamentos de outras dimensões que existem nas representações a partir do posicionamento de outros elementos (o espelho, a janela, a por-ta entreaberpor-ta que separa o especpor-tador da cena etc.). Esses deslizamentos organizariam e de-sorganizariam, simultaneamente, possibilidades de leituras, remetendo os signos não apenas a seus significados, mas também aos significantes, aos atritos e paisagens, às reciprocidades e aos antagonismos. Os lugares das coisas, onde estão? E as coisas para onde foram/vão? Essas parecem ser perguntas mais possíveis na realidade contemporânea do que as antigas noções de fidelidade e semelhança, origem e cópia.

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onde os signos estavam ligados àquilo que espelhavam — isto é, baseavam-se numa exposição entre palavra e similitude — e o mundo moderno que se descortinava. Por isso, Foucault chama-o de “herói do Mesmo”, pois considera que todo o sofrimento do personagem advém de um desejo extremo de espelhar o mundo e ser espelhado por ele. É nesse movimento do Dom Quixote de busca de correspondência entre as palavras copiadas dos livros e a ordem concreta que Foucault flagra um deslizamento significativo: se ele precisa tanto encontrar essa correspondência e mergulhar nela, transformando-se no espelho daquilo que apreendeu, é porque ele já sabia, de antemão, que tal correspondência não mais existia no universo onde ele estava inserido. Assim, ele se torna “só linguagem, texto, folhas impressas, história já transcrita” (1999, p.62). A maior meta do Cavaleiro da Triste Figura é provar ao mundo que os signos nos livros estão certos, que a ordem dos livros é a verdadeira e não pequenos reflexos distantes de uma vaga semelhança. Por isso, “seu caminho todo é uma busca das similitudes: as menores analogias são solicitadas como signos adormecidos que cumprissem despertar para que se pusessem de novo a falar” (1999, p.65). Todavia, seu desejo esbarra na nova configuração de mundo onde “as semelhanças e os signos romperam sua antiga aliança”— resultando numa impossibilidade de a linguagem ser um desdobramento semelhante à coisa representada, e de a coisa representada ser um espelho da realidade presenciada. Nesse universo que se abre frente aos olhos do Engenhoso Fidalgo são as diferenças e as identidades que interessam, e não as semelhanças. A representação artística torna-se, então, um espaço em que se descobre nas diferenças algo parecido (mas não idêntico):

[...] o poeta é aquele que, por sob as diferenças nomeadas e cotidianamente previstas, reencontra os parentescos subterrâneos das coisas, suas similitudes dispersadas. Sob os signos estabelecidos e apesar deles, ouve um outro dis-curso, mais profundo, que lembra o tempo em que as palavras cintilavam na semelhança universal das coisas: a Soberania do Mesmo, tão difícil de enun-ciar, apaga na sua linhagem a distinção dos signos. (FOUCAULT, 1999, p.68).

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algo possível de chegar a nós enquanto época concreta, e passa a analisar como o pensamento ocidental se desenvolveu a partir do instante em que deixou de contar com a idéia de similitude como uma maneira de conhecer os objetos. Segundo o filósofo, houve uma substituição dessa velha forma de saber pela orientação do uso da analogia entre as coisas (como um método para se conhecê-las), mas nesse movimento comparativo não se vê mais uma ordenação do universo e seus elementos, e, sim, uma análise que vai buscar a identidade e a diferença no semelhante. A palavra chave então é diferenciar e não igualar.

No seu estudo acerca da representação na época moderna, o autor estabelece três re-lações: a) como não existem mais possibilidades de signos incógnitos, rompe-se com a con-cepção de que podemos ler os rastros deles no mundo divino; b) como o signo passa a refletir a dispersão e não a unificação das coisas, assume uma existência paradoxal, pois se aproxima daquilo que nomeia, dando-lhe sentido (significado), e, ao mesmo tempo, afasta-se dela (sig-nificante); c) como os signos são compreendidos a partir da idade moderna enquanto naturais (dados pela natureza) ou convencionais (construídos pelo homem), passam a indicar agora que ambos estão separados das coisas, sendo que os convencionais se prestam à fácil memori-zação, à divisão e composição infinita de seus elementos, enquanto os não-artificiais — que antes estavam conectados com os artificiais de forma igual — são compreendidos como algo impossível de ser capturado pela inteligência, pois está/estão afastados da coisa. Tudo, portan-to, do mundo natural ou convencional, leva à representação.

Mostrando que se tornou impossível desvendar uma verdade fixa nas palavras, Fou-cault chama atenção para a arbitrariedade que faz parte da natureza do signo e não pode ser dele excluída, sendo a relação do significante com o significado fundada por uma idéia, o que resulta numa concepção do conhecimento como produtor de uma linguagem e não como um processo de busca dela. Representação e signo formam teias, mosaicos, universos, mas não inteiros, aos pedaços: “o homem compôs sua própria figura nos interstícios de uma linguagem em fragmentos” (1999, p.535). Não nos é dado mais perguntar no que signo e representação se assemelham e no que se diferem, e sim, como jogamos o jogo de imaginá-los, elegendo semelhanças entre coisas diferentes, e, ao mesmo tempo, sabendo que a nossa imaginação deriva delas.

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compreensão da mimesis enquanto “invenção” e “recriação” da linguagem banal, a percepção do signo literário como uma “instauração do instante de encantamento primário”, enfim, a polissemia dos jogos artísticos e seu estranhamento perderam poder conceituais numa análise acadêmica. Trazê-los de volta como um gesto puramente saudoso do tempo em que falar de literatura era encerrar o texto em determinados limites teóricos, como queriam Wellek e Warren14, não resolve a questão sobre a necessidade de um espaço próprio para a análise do texto literário, dissociado do relativismo institucionalizado e das teorias culturais de afirmações identitárias (precárias ou fixas, negativas ou positivas) e da crítica dos vínculos políticos e culturais (hegemônicos ou não). Será que desejar falar de literatura e apenas dela, isto é, da especificidade do texto literário, de seus elementos poéticos, implica necessariamente querer, anacronicamente, de volta o espaço de análise do estético pensando com “E” maiúsculo em detrimento do minúsculo, como resumiu Silviano Santiago?15

Quando a discussão acerca da representação passou a ser influenciada pela perspecti-va relativista e pela idéia da fragmentação do mundo, os espaços acadêmicos passaram a en-grossar o coro de um decreto que dava por mortas as grandes narrativas e instaurava a revisão do cânone ocidental e o debate acerca da alteridade, de como a literatura e a arte quase sempre reproduziam uma ideologia dominante, representando certos grupos quase sempre à margem de sua construção (ou silenciados ou como figurantes ou como antagonistas). Essa percepção tensionou a discussão sobre a representação literária, enfatizando outros pontos de debate so-bre a mimesis — por exemplo e novamente, a análise de como o texto literário reproduz a ideologia das classes dominantes. O deslocamento do eixo acadêmico da França para EUA e a consolidação de um espaço destinado aos Estudos Culturais, que empalideceu o prestígio da Teoria da Literatura (COMPAGNON, 1999), fizeram questões como “o que é literatura?”, “função e natureza dos objetos literários”, “valor da poesia”, “teoria dos gêneros”, “mimesis história e representação” e “polissemia do signo literário”, entre outros, ceder lugar para a problematização de “gênero”, “etnia”, “discurso” e “cultura”. Nesse sentido, tornaram-se ana-crônicos ou humanistas tardios os estudos sobre a ambigüidade e polissemia da linguagem poética, pois as análises do texto literário enveredaram pelo caminho da evidência das formas de entronização e disseminação do discurso opressor.

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Cf. René WELLEK, Austin WARREN. Teoria da Literatura. 2. ed. Trad. José Palla e Carmo. Lisboa, Publicações Europa-América, 1976 (a primeira edição é de 1947).

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Referências

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