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RELATO DE CASO/CASE REPORT
Púrpura em paciente com estrongiloidíase disseminada
Purpura in patient with disseminated strongiloidiasis
Luciano C. Ribeiro
1,2, Edson N.A. Rodrigues Junior
2, Margareth D. Silva
2,
Arley Takiuchi
2e Cor Jesus F. Fontes
1,2RESUMO
A i n f e c ç ã o p e lo Strongyloides sterc oralis e m a sso c i a ç ã o c o m i m u n o su p re ssã o p o d e m a n i f e sta r- se c o m le sõ e s e m m ú lti p lo s ó rgã o s e si ste m a s, c a ra c te ri za n d o a f o rm a d i sse m i n a d a d a d o e n ç a . Le sõ e s c u tâ n e a s n ã o sã o f re q ü e n te m e n te re la ta d a s e , se p re se n te s, m a n i f e sta m - se c o m o rash e p e té q u i a s. Pú rp u ra s b e m d e f i n i d a s sã o p o u c o d e sc ri ta s. No p re se n te tra b a lh o é de sc ri to u m c a so de e stro n gi lo i dí a se di sse m i n a da , c o m a c o m e ti m e n to c u tâ n e o e m f o rm a de pú rpu ra , q u e se de se n vo lve u e m u m p a c i e n te ti m e c to m i za d o e u su á ri o c rô n i c o d e c o rti c o ste ró i d e d e vi d o à miastenia gravis.
Pal avr as-chave s: Estro n gi lo i d í a se d i sse m i n a d a . Pú rp u ra .
ABSTRACT
Th e a sso c i a ti o n o f syste m i c c o rti c o ste ro i d th e ra p y a n d d i sse m i n a ti o n o f Strongyloides sterc oralis h a s b e e n i n c re a si n gly do c u m e n te d in the lite ra tu re . Sk in in vo lve m e n t in disse m in a te d stro n gylo idia sis ha s b e e n re po rte d a n d the m o st c o m m o n ly d e sc ri b e d c u ta n e o u s m a n i f e sta ti o n s a re ra sh a n d p e te c h i a l e ru p ti o n s. We p re se n t a c a se o f a n i m m u n o su p p re sse d m a n th a t d e ve lo p e d d i sse m i n a te d stro n gylo i d i a si s wi th e x te n si ve p u rp u ra .
Ke y-words: Di sse m i n a te d stro n gylo i d i a si s. Pu rp u ra .
1 . Núc leo de Estudo s de Do enç as Infec c io sas e Tro pic ais de Mato Gro sso , Cuiabá, MT. 2 . Departamento de Clínic a Médic a da Fac uldade de Ciênc ias Médic as da Universidade Federal de Mato Gro sso , Cuiabá, MT.
En de r e ço par a cor r e spon dê n ci a: Dr. Luc iano Co rrêa Ribeiro . Rua C no 6 3 , Jardim Ubatan, 7 8 0 1 0 -6 7 0 Cuiabá, MT.
e-mail: luc o rrea@ terra.c o m.br Rec ebido em 1 3 /9 /2 0 0 4 Ac eito em 2 /3 /2 0 0 5
A estrongiloidíase é uma helmintose predominantemente intestinal, causada pelo Stro ngylo ides sterco ra lis, sendo o homem seu principal reservatório, e a principal fonte de infecção.O risco de infecção é diretamente proporcional às condições de higiene do indivíduo. Apresenta ampla distribuição mundial, porém, com maior prevalência nas regiões tropicais e subtropicais. No Brasil, os dados variam de acordo com a região, com prevalência variando de 15 a 82%, mantendo uma média de 20%9.
O Stro n gylo i d e s ste rc o ra li s possui dois tipos de c ic lo evolutivo: o direto ou homogônico e o indireto ou heterogônico, sendo que no homem ocorre ainda a auto-infecção, que pode ser de forma interna ou externa. Em situações especiais, o ciclo de auto-infecção pode acelerar-se, levando à rápida elevação do número de vermes nos órgãos normalmente envolvidos no ciclo biológic o, fenômeno c onhec ido c omo hiperinfec ç ão. Pode evoluir para estrongiloidíase disseminada, que se estabelece quando oc orre uma ac eleraç ão do c urso normal do c ic lo biológico do parasita e invasão, pelas larvas filariformes, de órgãos como pele, sistema nervoso central, rins, fígado, com alta m o r talidade6. Esta c o m plic aç ão o c o r r e c o m m aio r
freqüência em indivíduos com depressão da imunidade celular por neoplasias ( linfomas, leucemias) , transplantados renais, alcoólatras e infecção pelo vírus da imunodeficiência adquirida humana ( HIV)1 0.
No presente trabalho, é descrito um caso de estrongiloidíase disseminada, com acometimento cutâneo em forma de púrpura, que se desenvolveu em um paciente timectomizado e usuário crônico de corticosteróide devido à m ia ste nia gra vis.
RELATO DE CASO
JJ, masc ulino , 3 6 ano s, po r tado r de m i a ste n i a gra vi s
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Ribeir o LC e t al
com expectoração esbranquiçada, astenia e emagrecimento de cerca de 5 kg no período.
Ao exame físic o, apresentou-se em regular estado geral, apátic o , hipo c o r ado , desidr atado , emagr ec ido , eupnéic o , anictérico, afebril, com diminuição difusa e moderada da força muscular. Os exames complementares revelaram hiponatremia ( 114meq/L) , leve granulocitose ( 8.200 células/mm3) , ausência de
eosinófilos, anemia normocrômica e normocítica ( Hb 11,2g/dL) , plaquetas de 2 1 6 .0 0 0 /mm3, hematúria importante e raio-X de
tó r ax no r mal. Pe sq uisa de antic o r po s anti- HIV r e sulto u negativa.
Dois dias após a internação o paciente apresentou febre baixa ( 3 8oC) , dispnéia e hemoptise. Surgiram-lhe lesões cutâneas
pápulo-eritematosas e purpúric as em membros superiores, região proximal dos membros inferiores e abdome ( Figura 1 ) . Evoluiu c om sinais de irritaç ão peritoneal e surgimento de infiltrado pulmonar retículo-nodular difuso bilateral ao raio-X. Os exames laboratoriais desse dia revelaram queda dos níveis da hemoglobina ( 7,2g/dl) e da contagem de plaquetas ( 174.000/mm3) ,
com aumento dos granulócitos ( 1 0 .2 0 0 células/mm3) .
Observou-se baixa atividade de protrombina ( 3 2 ,9 %) e hipofibrinogenemia ( 1 2 0 mg/dL) , além de hiperbilirrubinemia indireta ( 1 ,3 6 mg/dL) e níveis de LDH de 8 0 8 u/L.
por 1 0 dias, com melhora progressiva do quadro. Recebeu alta hospitalar no 8 º dia de internaç ão, prosseguindo o tratamento em nível ambulatorial, sem interc orrênc ia.
DISCUSSÃO
A doenç a c ausada pelo S. ste rc o ra li s no homem pode manifestar-se em três formas c línic as: aguda, c rônic a ( não c omplic ada ou c omplic ada) e disseminada. A forma c línic a inicial da infecção aguda é pouco relatada na literatura e pouco notific ada pelo médic o. Na forma c rônic a não c omplic ada os sintomas gastrintestinais são os mais relevantes, enquanto que na forma complicada o paciente geralmente apresenta sintomas respiratórios c omo bronc oespasmo e síndrome de angústia respirató ria do adulto , po dendo asso c iar-se à pneumo nia bacteriana secundária5 1 2. Em associação com imunosupressão,
o espec tro c línic o tende a se agravar, oc orrendo manifestaç ões de lesões em múltiplos órgãos e sistemas, c arac terizando a forma disseminada da infec ç ão1.
O paciente ora relatado fazia uso de corticosteróide, sendo este o provável fator desencadeante da disseminação do S.ste rc o ra li s.
Figu r a 1 - Le sõe s pu r pú r icas abdom in ais apr e se n tadas pe lo pacie n te n o se gu n do di a de i n te r n ação.
Pela alta pro babilidade de etio lo gia infec c io sa para o quadro, iniciou-se antibioticoterapia de largo espectro, com cefalosporina de quarta geração e imidazólico, após coleta de material biológic o para exames, sendo c onstatada grande quantidade de larvas de S. ste rco ra lis no exame direto de escarro e fezes. O exame histopatológico das lesões purpúricas da pele revelou discreto infiltrado linfocitário perivascular superficial com presença de fragmento de larva do helminto em meio às fibras do c olágeno dérmic o ( Figura 2 ) . A investigaç ão de bactérias e fungos no escarro, fezes, urina e sangue foi negativa. Iniciada terapêutica com tiabendazol na dose de 2 5 mg/kg/dia,
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De fato, em casos graves de estrongiloidíase, é consenso que o principal fator predisponente para a apresentação sistêmica da parasito se é a imuno ssupressão , sendo o uso c rô nic o de corticosteróide imputado, quase que em unanimidade, como o mais importante fator de risco7.
A manifestação cutânea mais comum na estrongiloidíase é a
la rva curre ns, isto é, lesão urticariforme, linear, pruriginosa, normalmente única e ocasionalmente múltipla, decorrente da penetração ativa da larva na pele da borda anal do indivíduo8.
As lesões de pele na forma disseminada resultam da disseminação hematogênic a do parasita, c onforme já desc rito em lesões do parênquima c erebral, c o m c arac terístic as isquêmic as, conseqüentes à embolização do nematódeo6. Outra explicação
ser ia a migr aç ão das lar vas atr avés da par ede do s vaso s sangüíneos na derme papilar, causando hemorragia petequial. Além disso, as larvas podem também migrar a partir da cavidade peritoneal, após terem invadido os vasos da parede do intestino delgado4 ,2. Independente do mecanismo, lesões cutâneas não
são freqüentemente relatadas e, se presentes, manifestam-se como ra sh e petéquias. Púrpuras bem definidas, tal como as apresentadas pelo paciente, são pouco descritas8 1 1.
A eosinofilia comumente encontrada em algumas parasitoses intestinais, inclusive na estrongiloidíase, mostra tendência a ser menos ( 2 0 %) freqüente na forma disseminada da doença, à medida que a infecção se agrava. Embora esta redução possa ser efeito da corticoterapia sobre os eosinófilos, a ausência de eosinofilia também foi relatada em indivíduos com outras causas de imunossupressão que não o uso de c ortic osteróides, ao de se nvo lve r e m infe c ç ão disse minada4. De mo do ge r al, a
eosinopenia implica mau prognóstico, o que se confirmou na apr e se ntaç ão da gr avidade inic ial do pac ie nte , q ue não apresentava eosinófilos no sangue periférico3.
Um grande complicador da estrongiloidíase disseminada consiste na infecção secundária, como pneumonia, meningite, e ndo c ar dite e se pse , so b r e tudo po r e nte r o b ac té r ias o u eventualmente fungos, podendo mascarar a infecção pelo S. ste rco ra lis. Isto ocorre devido à ruptura da barreira intestinal pela penetração do parasita, associada à diminuição da motilidade do trato digestivo, que ocorre associada à hiperinfecção4. No caso
aqui referido, o início precoce da antibioticoterapia de largo
espectro, na vigência da suspeita inicial de processo infeccioso inespecífico grave, possibilitou melhor prognóstico do paciente, evitando a evolução para as complicações acima citadas.
É bem provável que o tratamento empírico periódico desta parasitose seja benéfico em pacientes de alto risco, sobretudo os usuários crônicos de corticóides sistêmicos.
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