RevBrasAnestesiol.2016;66(2):197---199
REVISTA
BRASILEIRA
DE
ANESTESIOLOGIA
PublicaçãoOficialdaSociedadeBrasileiradeAnestesiologiawww.sba.com.br
INFORMAC
¸ÃO
CLÍNICA
Colecistectomia
laparoscópica
sob
raquianestesia
contínua
em
paciente
com
doenc
¸a
de
Steinert
Mariana
Correia
a,∗,
Angela
dos
Santos
b,
Neusa
Lages
be
Carlos
Correia
baDepartamentodeAnestesiologia,CentroHospitalarLisboaOcidental,Lisboa,Portugal
bDepartamentodeAnestesiologia,CentroHospitalarAltoAve,Guimarães,Portugal
Recebidoem16denovembrode2013;aceitoem2dejaneirode2014 DisponívelnaInternetem1demaiode2014
PALAVRAS-CHAVE Raquianestesia contínua;
Doenc¸adeSteinert; Colecistectomia laparoscópica
Resumo A doenc¸a deSteinerté uma desordem intrínseca domúsculo commanifestac¸ões multissistêmicas.A miotoniapodeafetarqualquer grupomusculareéprovocadaporvários fatores emedicamentosusados emanestesia geral, como hipnóticos,sedativoseopiáceos. Emboraalgunsautoresrecomendemousodeanestesiaregionalouanestesiacombinadacom opiáceosemdosesbaixas,atécnicaanestésicamaisseguraaindaprecisaserestabelecida.
Administramosraquianestesiacontínuaemumpacientecomdoenc¸adeSteinertsubmetido à colecistectomia laparoscópica, com 10mg de bupivacaína a 0,5%, e fornecemos suporte ventilatório no período perioperatório. A raquianestesia contínua foi usada comseguranc¸a em pacientescom doenc¸adeSteinert, mas não foirelatadaem colecistectomia laparoscó-pica.Relatamosaraquianestesiacontínuacomoumatécnicaadequadaparaacolecistectomia laparoscópicaeparticularmentevaliosaempacientescomdoenc¸adeSteinert.
©2014SociedadeBrasileira deAnestesiologia.PublicadoporElsevierEditoraLtda.Todosos direitosreservados.
KEYWORDS Continuousspinal anesthesia; Steinert’sdisease; Laparoscopic cholecystectomy
Laparoscopiccholecystectomyundercontinuousspinalanesthesiainapatient
withSteinert’sdisease
Abstract Steinert’sdiseaseisanintrinsicdisorderofthemusclewithmultisystem manifes-tations.Myotoniamayaffectanymusclegroup,iselicitedbyseveralfactorsanddrugsused ingeneralanesthesialikehypnotics,sedativesandopioids.Althoughsomeauthorsrecommend theuseofregionalanesthesiaorcombinedanesthesiawithlowdosesofopioids,thesafest anesthetictechniquestillhastobeestablished.
WeperformedacontinuousspinalanesthesiainapatientwithSteinert’sdiseaseundergoing laparoscopiccholecystectomyusing10mgofbupivacaine0.5%andprovidedventilatory sup-port intheperioperativeperiod. Continuousspinalanesthesia was safelyused inSteinert’s disease patients but is not described for laparoscopic cholecystectomy. We reported a
∗Autorparacorrespondência.
E-mail:mariana.d.correia@gmail.com(M.Correia).
198 M.Correiaetal.
continuousspinalanesthesiaasanappropriatetechniqueforlaparoscopiccholecystectomyand particularlyvaluableinSteinert’sdiseasepatients.
©2014SociedadeBrasileiradeAnestesiologia.PublishedbyElsevier EditoraLtda.Allrights reserved.
Introduc
¸ão
A doenc¸a de Steinert (DS)é umadesordem intrínseca do músculocommanifestac¸õesmultissistêmicas.A hereditari-edadeéautossômicadominanteeestima-sequetenhauma prevalência de3-5/100.000.1 Os pacientes geralmentese
apresentamentre15e35anos,semfirmezanasmãos,flexão
dorsaldospésprejudicada,catarataeinfertilidade.A
fra-quezamuscularénormalmenteobservadanorosto,pescoc¸o
e grupo de músculos distais e contribui para a aparência
facialcaracterística.Amiotoniapodeafetarqualquergrupo
musculare é provocadapelouso dedrogas,por dor,frio,
calafrios,manipulac¸ões cirúrgicase bisturielétrico,entre
outrosfatores.2
O envolvimento extramuscular é quase invariável com
a afecc¸ão cardíaca (sistema de conduc¸ão e músculo
car-díaco), ventilatória (fraqueza dos músculos respiratórios,
anormalidadescentrais),gastrointestinal(disfagia,reduc¸ão
dataxadeesvaziamentogástrico)eendócrina
(hipotireoi-dismo,insuficiênciagonadalprimária,diabetemelito).
A avaliac¸ão perioperatória desses pacientes deve
pri-orizar as manifestac¸ões extramusculares da doenc¸a, que
podemser fatais.Aconduc¸ão daanestesia apresenta
pro-blemas específicos, incluindo o aumento da sensibilidade
a vários medicamentos usados durante a anestesia geral.
Os pacientes com essa doenc¸a apresentam aumento da
sensibilidade a hipnóticos e sedativos que podem causar
apneia,mesmoemdosespequenas.3Osagentesinalatórios
podemcomprometeraindamaisosjácomprometidos
siste-mascardiovascularerespiratório,enquantoostremoresno
pós-operatóriopodemprecipitar umacrisemiotônica.4 Os
relaxantesdespolarizantesdevemserevitados,poispodem
desencadearumacrise miotônicaedificultara ventilac¸ão
eaintubac¸ão.5Osbloqueadoresneuromuscularesnão
des-polarizantescostumamprovocarumarespostanormal,mas
se houver perda de massa muscular, o prolongamento da
respostapodeocorrer.4
As complicac¸ões noperíodopós-operatório geralmente
resultamem disfunc¸ãopulmonarecardíaca efraquezada
musculaturafaríngea.Portanto,aanestesiaregionalé
con-sideradaamelhoropc¸ãonessespacientes,emboraatécnica
anestésicamaisseguraaindanãotenhasidoestabelecida.
Apresentamos uma raquianestesia contínua (RAC) em
pacientecomDSparacolecistectomialaparoscópica(CL).
Relato
de
caso
Pacientedosexofeminino,35anos, branca,com DS,
pro-gramadaparaCLeletiva.
A paciente estava sendo acompanhada no
departa-mento de pneumologia e apresentou doenc¸a pulmonar
restritiva com leve impacto ventilatório e indicac¸ão para
suporte noturnovia Bipap, ao qual ela nãoaderiu.
Atual-mente,apacientenãotomaqualquermedicac¸ão.Cesariana
cervical anterior sob anestesia combinadaraquiperidural
transcorreu sem complicac¸ões. O exame físico revelou
atoniafacial,prognatismoleveepescoc¸ocurto.
Após o monitoramento convencional, a raquianestesia
contínuafoifeitasempré-medicac¸ão,em decúbitolateral
direito, nonívelL2-L3comabordagemparamediana, com
agulhasdecalibre24-29(kitSpinocathB.Braun®),efentanil
(20mcg)foiadministradocomsoluc¸ãosalinanormal(1mL).
Com a paciente já em pronac¸ão, bupivacaínahiperbárica
(5mg)foiadministradaviacatetercomsoluc¸ãosalina
nor-mal(2mL).OnívelsensorialapóscincominutoseraT12e,
subsequentemente,umincrementode5mgdebupivacaína
isobáricacom1mLdesorofisiológicopermitiuumadifusão
paraonívelT7.OnívelT4foiatingidocincominutosmais
tarde.
Aanalgesiaincluiufentanil(80mcg)pré-incisão,
aceta-minofeno(1g)eparecoxib(40mg)duranteoprocedimento.
Aqueixadedornoombro esquerdofoiefetivamente
con-troladacominstilac¸ãodiafragmáticadelidocaínaa2%.Após
40minutos,umaperfusãoespinhalcomropivacaínaa0,1%
(2mL/h)foiiniciadaemantidadurante24horas.
Suportecomventilac¸ãonãoinvasiva(VNI)foiinstituído
12horas antesdacirurgiaaté24horasapósacirurgiacom
Bipap E/T (Espontâneo/Temporário) (6/14cm H2O) e
dis-positivo queauxilia omecanismo detosse. Espirometriae
gasometriaarterialforamavaliadasduranteoperíodo
perio-peratório(tabelas1e2).Apressãointra-abdominalmáxima
(PIA)erade10mmHgenofimdacirurgiaerade8mmHg.A
saturac¸ãomínimadeoxigênionosangueerade92%.
Crises miotônicas nãoforam desencadeadas durante o
procedimento.
Após trêshoras na sala de recuperac¸ão pós-anestesia
(SRPA),obloqueiomotorfoicompletamenterevertidoe a
pacientenãoreferiudoroudispneia.
Em 24horas o cateter espinhal foi removido sem
complicac¸õeseapacienterecebeualtahospitalarsem
inter-corrências.
Discussão
ARACpermitiuumbloqueiosensorialadequadoparaa
cirur-giaemínimocomprometimentorespiratório.Aescolhada
RAClevouemconsiderac¸ãoascomorbidadesdapaciente,a
adequac¸ãodoprocedimentoeascomplicac¸õesjádescritas
da anestesia geral nessecontexto. De fato,Cope etal.,6
consideraram que a anestesia regional é a melhor opc¸ão
nesses pacientesporque medicamentosquedesencadeiam
crisesmiotônicas nãosãousados.Marchetal.,7
recomen-daram aanestesia regionaloua combinac¸ãode anestesia
geral-regional comuso restrito deopiáceos, porque esses
pacientesapresentammaisriscodedepressãorespiratória.
RACfoiusadacomsucessoem pacientesdealtorisco
sub-metidosàcirurgiaabdominal,8incluindoCL.9---13Alémdisso,
Verdaguer etal.14 descreveram umcaso deRAC em
Colecistectomialaparoscópicasobraquianestesiacontínuaempacientecomdoenc¸adeSteinert 199
Tabela1 Avaliac¸ãoespirométricanopós-operatório
Basal RAC+VNI PIA+VNImáximas SRPA+VNI
CFV(L) 2,60 2,24 2,00 2,59
FEV1(L) 1,99 1,79 1,65 1,99
FEV1/CFV(%) 76,50 79,88 82,58 78,35
CFV,capacidadefuncionavital;FEV1,volumeexpiratórioforc¸adoem1s;VNI,ventilac¸ãonãoinvasiva;PIA,pressãointra-abdominal; SRPA,saladerecuperac¸ãopós-anestesia.
Tabela2 Análisegasométricanoperioperatório
Basal Intraoperatório+VNI SRPA+VNI
pH 7,550 7,587 7,552
pCO2(mmHg) 24,5 24,5 22,2
pO2(mmHg) 116,0 115,1 117,8
HCO3(mmol/L) 22,9 22,8 22,7
EtCO2(mmHg) 23,7 23,6 23,5
SatO2(%) 98 98 98
pO2epCO2,pressãoparcialdeoxigênioededióxidodecarbono;EtCO2,dióxidodecarbononofimdaexpirac¸ão;SatO2,saturac¸ãode
oxigênio;HCO3,íondebicarbonato.
sabemos, este é o primeiro caso de CLsob RACem paci-ente com doenc¸a de Steinert. Bennun et al.15 relataram
umadiminuic¸ãosignificativadamédiadacapacidadevital
nopós-operatório(de965a349mL)emrelac¸ãoaovalor
pré--operatórioduranteaanestesiacontínuacompropofol.Em
nossapaciente nãohouve diminuic¸ãoda capacidade vital
nopós-operatório em comparac¸ãocom osvalores no
pré--operatório.Deacordocomaavaliac¸ãoespirométrica,não
houve comprometimento significativo dos mecanismos de
ventilac¸ão, mesmo após o estabelecimento pleno do
blo-queio sensorialouapós o pneumoperitônio.Além disso, a
gasometriaseriadavalidouacontribuic¸ãodosuporte
venti-latórionãoinvasivonoperioperatório.
Conclusão
O controle dador nopós-operatório foieficaz e opiáceos
foramevitados. Não observamos dor decabec¸a associada
à raquianestesia, o que podeser explicado pela remoc¸ão
docateterapenasapós 24horas.16 RelatamosaRACcomo
umatécnica adequadapara CLe comvalor particularem
pacientesDS.
Conflitos
de
interesse
Osautoresdeclaramnãohaverconflitosdeinteresse.
Referências
1.UddB,KraheR.Themyotonicdystrophies:molecular,clinical, andtherapeuticchallenges.LancetNeurol.2012;11:891---905. 2.MathieuJ,AllardP,GobeilG,GirardM,DeBraekeleerM,BéginP.
Anestheticandsurgicalcomplicationsin219casesofmyotonic dystrophy.Neurology.1997;49:1646---50.
3.SpeedyH.Exaggeratedphysiologicalresponsestopropofolin myotonicdystrophy.BrJAnaesth.1990;64:110---2.
4.Aldridge LM.Anaesthetic problems in myotonic dystrophy. A casereportandreviewoftheAberdeenexperiencecomprising 48generalanaestheticsinafurther16patients.BrJAnesth. 1985;57:1119---30.
5.Azar I. The response of patients with neuromuscular disor-dersto muscle relaxants:a review.Anesthesiology. 1978;49: 44---8.
6.Cope D, Miller J. Local and spinal anesthesia for cesarean section in a patientwith myotonic dystrophy.Anesth Analg. 1986;65:687---90.
7.March X, Ross J, Vizuete G, Pérez-Castanedo J, García-Jiménez R, Ferrándiz M. Anestesia general combi-nadacom anestesia periduralen uncaso de enfermedadde Steinert.RevEspAnestesiolReanim.1992;39:133.
8.Kumar CM, Corbett WA, Wilson RG. Spinal anaesthesia with a micro-catheter in high-risk patients undergoing colorec-tal cancer and other major abdominal surgery. Surg Oncol. 2008;17:73---9.
9.Van Zundert A, Stultiens G, Jakimowicz J, Peek D, van der Ham W, Korsten H, Wildsmith J. Laparoscopic cholecystectomyundersegmentalthoracicspinalanaesthesia: afeasibilitystudy.BrJAnaesth.2007;98:682---6.
10.GramaticaL Jr, Brasesco OE, Mercado Luna A, MartinessiV, PanebiancoG,LabaqueF,RosinD,RosenthalRJ,GramaticaL. Laparoscopic cholecystectomy performed under regional anesthesiainpatientswithchronicobstructivepulmonary dise-ase.SurgEndosc.2002;16:472---5.
11.VanZundertA,StultiensG,JakimowiczJ,BorneB,vanderHam W,WildsmithJ.Segmentalspinalanesthesia for cholecystec-tomy in a patient with severe lung disease. Br J Anaesth. 2006;96:464---6.
12.Sinha R, Gurwara AK, Gupta SC. Laparoscopic surgeryunder spinalanesthesia.JSLS.2008;12:133---8.
13.ImbelloniLE,Sant’AnnaR,FornasariM,FialhoJC.Laparoscopic cholecystectomy underspinal anesthesia: comparativestudy between conventional-dose and low-dosehyperbaric bupiva-caine.LocalRegAnesth.2011;4:41---6.
14.Verdaguer MitjansM,BernalDzekonsky J, NogueraGarcíaJ, RicósAguiláM.Continuoussubarachnoidblockinacaseof Stei-nertdisease.RevEspAnestesiolReanim.1991;38:204. 15.BennunM,GoldsteinB,Finkelstein Y,JedeikinR.Continuous
propofolanaesthesiaforpatientswithmyotonicdystrophy.BrJ Anaesth.2000;85:407---9.