1 TextoelaboradonoâmbitodapesquisanoInstitutoFernandesFiguei-ras coordenada pelo professor Octavio Souza, com bolsa outorgada pelaFaperj.
Doutoraem SaúdeColetiva peloInstitutode MedicinaSocial, Universidadedo EstadodeRiode Janeiro(Uerj);com pós-doutoradona mesmainstituição.
GracielaQuintanaGómez
RESUMO: Pretende-sedemonstrarqueosdiversosmodosdeenten-dimentodaorigemdopsiquismo,presentesemdeterminadostextos dametapsicologiafreudiana,vinculam-seadiferentesformasde compreensãodotemadamaternidade.Assim,em“Pulsõeseseus destinos”(1915),amaternidadeéassociadaaumaexcitaçãoexterna quedesorganizaopsiquismodorecém-nascido;porsuavez,em “Alémdoprincípiodoprazer”(1920)e“Oproblemaeconômico domasoquismo”(1924),háelementosdeanálisequepossibilitam umaleituraalternativasobreotema,apartirdasnoçõesdemaso-quismoerógeno,pulsãodevidaedemorte.
Palavras-chave:Maternidade,origemdopsiquismo,passividade, intrincaçãopulsional.
ABSTRACT:Themotherhoodunderthepulsionaltheoryoutlook. Thisworkaimsatdemonstratingthatthedifferentunderstandings ofthepsyche’soriginsincertaintextsoffreudianmetapsychology relatetodifferentwaystocomprehendmaternity.Thus,in“The instincts’destiny”(1915),maternityisassociatedtoanexternal arousalthatdisorganizesthenewborn’spsyche;ontheotherhand, analternativereadingofthethemebasedonnotionssuchaserog-enousmasochismandlifeanddeathpulsions,ispossibletaking elementsofanalysespresentin“Beyondpleasureprincipe”(1920) and“Theeconomicproblemofmasochism”(1924).
INTRODUÇÃO
Estetrabalhoéumareflexãosobreamaternidade,tendocomobaseocaminho abertoporFreudquandocomeçaaentenderaorigemdopsiquismoapartirda dimensãoalteritária.Ahipóteselevantadaéadequeadescobertadapulsãode morte(FREUD,1920/1973)eaintroduçãodoconceitodemasoquismoeró-genoprimário(FREUD,1924/1973)paraexplicaraconstituiçãodopsiquismo possibilitam pensar a maternidade em termos de experiência de passividade ligadaaEros.
Estaleiturapartedosupostodequeasdiferentesteoriassobreconstituição dopsiquismo,presentes(emboranãodeummodoexplícito)emdeterminados textosdametapsicologiafreudiana,supõemduasformasdeentenderamater-nidade,umadelasevocandoaidéiadeameaça,eoutrasendovistacomoúnico recursoparaqueummovimentodevidapossaserinstauradonopsiquismodo recém-nascido.Estaúltimasignificação,quenesteestudoétrabalhadaapartirde sualigaçãocomomasoquismoerógenoprimário,incorporaaidéiadepassividade comoumcaminhofecundoparapensaramaternidade,nãonosentidodesua oposiçãoàatividade,mascomomovimentopulsional,psíquicoecorporal,que evocavidapormeiodeumprocessodeabertura,dereceptividade.
Aseguir,analisaremosestasduasrepresentações,separadamente,enaordem indicada,paradepois,numterceiromomento,noscentralizarnasconclusões, tentandoinferirosefeitoseconseqüênciasdeumestudocomoeste,que,partindo deumquestionamentodaconcepçãodominantesobrematernidadenateoria psicanalíticafreudiana,exploraoutrosmodosdeaproximaçãoaotema.
AMATERNIDADE,UMAEXCITAÇÃOQUEAMEAÇA
Aassociaçãoentrematernidadeeameaçaestápresente(demodomaisoume-nosexplícito)emdiversostextosfreudianos:nacarta-poemaenviadaaFliess (FREUD,1899)pelonascimentodeseufilho,emqueaidéiadeameaçaéas-sociadaàmaternidade,vistacomouma“potênciadosexofeminino”quepode levarauma“desagregação”seopainãointervémintroduzindoadimensãoda lei(SCHNEIDER,2000,p.56);nosTrêsensaiosparaumateoriasexual(1905/1973)e emLeonardodaVincieumalembrançadesuainfância(1910/1973),emquefaladeuma ternuramaternaexcessivaquepodeserfatalparaofilho(SCHNEIDER,1980, p.216-7);enateoriacatárticadepoisabandonada,quandoo“malpsíquico”ou o“corpoestrangeiro”,quedeveserexpulso,érelacionadoaocorpofeminino (SCHNEIDER,1992,p.9).
ouseja,namaternidade,temosquesubstituiraspalavras“excitaçãoexterna” (ou“meioexterno”,tambémutilizada)pelapalavra“mãe”.Énecessárioescla-recimentoistoparamostraroqueestáemjogoemPulsõeseseusdestinos(FREUD, 1915/1973)emrelaçãoaestetema,oqual,semdúvida,acompreensãosevê dificultadaporquesefalaemexcitação,mundoexterno,meioexterno,sistema nervoso,aparatopsíquico,pulsão,arcoreflexo,princípiodeprazer,semfazerne-nhumamençãoàrelaçãoespecíficadofilhocomamãe.Oquepropomos,então, ésubstituirtermos,imaginaroutroscenáriosquandolemosotexto,demodoa percebercomoFreudimaginaessemomentooriginárionoqualaspersonagens principaissãoofilhorecém-nascidoeamãe,equevisãodematernidadesugere naconcepçãodepsiquismoqueconstróiali.Edigo‘sugere’,enão‘constrói’, porque,defato,Freudnãofalademodoespecíficodematernidadenesteartigo (amesmaobservaçãovaleparaosoutrosdoisartigosqueserãotrabalhadosno próximoponto).Esteénossoesforço,nossotrabalho,apoiadonopensamento dedeterminadosautores,comoveremosaseguir.
Apartirdeleiturassingulares,váriosautorestrabalham,hoje,asdiver-sasformasdetrataraquestãodaorigemdopsiquismopresentesemFreud (SCHNEIDER,1980;BIRMAN,1999;SISSA,1999;DAVID-MÉNARD,2000).Na análisedePulsõeseseusdestinos(FREUD,1915/1973),noqualFreudelaborauma destasformas,nossareferênciateóricaprincipaléMoniqueSchneider,porsua maneirainovadoradeconduzirseuestudonolivroFreudetleplaisir(1980),ao articulardemodoexplícitoaquestãodaorigemdopsiquismocomaquestãodo masculino,fundamentadanaênfaseoutorgadanesteartigofreudianoànoçãode atividade,entendidanosentidodedomínio,decontroledequalquerexcitação quevenhadoexterior.Éestainterpretaçãoquemelevaaprivilegiaraautora. Aassociaçãoqueelasustentaentreasidéiasdeativo/masculino/domínio,ex-pressaemsualeituracríticadePulsõeseseusdestinos(FREUD,1915/1973),prepara oterreno,pode-sedizer,paraopróximotemaemqueaidéiadepassividade (comofoianunciadonaintroduçãoecomoveremosmaisadiante)adquireuma significaçãoquerefleteoutrosmodosdeentenderamaternidadeeaorigemdo psiquismo.Masabordemosantesarepresentaçãodematernidadequesevislumbra emPulsõeseseusdestinos(FREUD,1915/1973).
“Osistemanervosoéumaparatocujafunçãoprincipaléafastarasexcitaçõesque chegamaele,reduzi-lasaomáximoe,sefossepossível,manter-selivredetoda excitação(...).Quandodepoisconstatamosqueaatividadedosaparatospsíquicos tambémestásubmetidaaoprincípiodeprazer(ouseja,reguladaautomaticamente pelassensaçõesdasériedeprazer/desprazer),jánosresultadifícilrechaçarum novopressuposto:queessassensaçõesdeprazer/desprazerreproduzemomodo comosedesenvolveodomíniodasexcitações,nosentidoemqueodesprazerse relacionacomumaumentodeexcitaçãoeoprazercomumadiminuiçãodames-ma.”(FREUD,1915/1973,p.2.041)2
Apartirdestasformulaçõesfreudianas,querevelamoprivilégiooutorgado àsnoçõesdedefesaedomínioemrelaçãoàsexcitações,aautorapostulaque essepensamentoimplica,porumlado,identificarmaternidade(excitaçãoex-terna)comumelementodesorganizadorparaopsiquismodorecém-nascido, e,poroutrolado,demonstrarqueaorigemdavidanãodependedeumacausa exógena(excitaçãoexterna),ouseja,queobebêécapazdegerar-seasimesmo emsuarelaçãocomoprazer.Aoanalisá-los,veremosque,emrealidade,estes doispostuladosestãointimamenteligados,umdecorrendodooutro.Vejamos, aseguir,oprimeirodeles,aidentificaçãodamãecomoumelementodesorga-nizadorparaopsiquismo.
AMATERNIDADECOMOELEMENTODESORGANIZADOR DOPSIQUISMODORECÉM-NASCIDO
Aidéiadeumpsiquismoativo,guerreiro,segundoSchneider(1980),atravessa otextofreudianodepontaaponta,manifestando-sedesdeoprimeiromomento atravésdoesquemadoarcoreflexo(aoqualFreudrecorreapelandoàfisiologia) que,semdúvida,resolveoproblemacolocadopelasexcitaçõesexternas:
“Afisiologianosdeuoconceitodeexcitaçãoeoesquemadoarcoreflexosegundo oqualumaexcitaçãoquevemdoexteriorparaosujeitovivoédescarregadano-vamenteparaoexteriorsobaformadeação.Estaaçãoéapropriadanamedidaem quesubtraiasubstânciaexcitadadaaçãodaexcitaçãoeaafastadesuainfluência.” (FREUD,1915/1973,p.2.040)
Aimagemdeumbebêfugindodamãe(excitaçãoquevemdoexterior)se vislumbranesteenunciado,sendoreforçadaalgumaslinhasdepois,quandoFreud explicaomodocomoseconstituiopsiquismodorecém-nascido:imaginemos umbebêdesamparado,perdidonomundo,semnenhumadefesacontraomeio
externo,masque,graçasàeficáciadesuaaçãomuscular(fuga),rapidamente consegueumaprimeiraorientaçãoquelhepermitedistinguirquaisexcitações vêmdomundoexterno,escreveFreud.Detenhamo-nosaqui,nesteponto.Mais adiante,continuaremosestadescrição.Oimportantenestemomentoénoscen-trarmosnomodocomoévisualizadoomeioexterno(ouseja,amãe).Aforma comoFreudfaladedesamparonesteparágrafoevocaumaausênciamaterna:a mãenãoexiste.Existeapenasumbebêdotadodeummecanismoautomático, mecânico(oesquemadoarcoreflexo)oudeumprincípiocientífico,absoluto(o princípiodeprazer),queseapresentacomoreguladordopsiquismo,associando prazeràdiminuiçãodeexcitaçãoedesprazeraoaumentodamesma.Nestadescri-çãodaorigemdopsiquismo,aênfasenumbebê“musculoso”,“eficaz”,comodiz Schneider(1980,p.112),querapidamentesuperaoestadodedesamparoinicial tornando-sedonodesi;naidéiadeação,quenestecasoseexpressaatravésda reaçãodefuga;e,porfim,naimagemdeumexteriorquesuscitaapenasreações defensivasediscriminatórias,explicaaidentificaçãodamaternidadecomuma excitaçãoexternae,portanto,comdesprazer(segundoalógicadoprincípiode prazer),comoseomundoexternonãopudesseexpressar-sedeoutromodo. EmPulsõeseseusdestinos(FREUD,1915/1973),àdiferençadosoutrosdoistextos dametapsicologiafreudianaqueanalisaremosmaisadiante—Alémdoprincípio deprazer(1920/1973)eOproblemaeconômicodomasoquismo(1924/1973)—,omeio externo(mãe)nãoésolicitado,nãopodeajudar.Aqui,éimpossívelpensarem termosdeummeionecessário,quedeveintervirparaauxiliarorecém-nascido nalocalizaçãoeapaziguamentodasexcitações,propiciando,dessemodo,um movimentodevidanopsiquismodorecém-nascido.Apresenta-se,aocontrá-rio,aimagemdeumbebêvitorioso,quelogodominaodesamparoiniciale aprende a defender-se, sozinho, supostamente sem nenhum auxílio externo (graçasapenasaosmovimentosdeseucorpo)detudoaquiloque,desdefora, supostamenteoagride.SchneidervêopróprioFreud,teórico,construindoum sabermetapsicológicosobreasorigensdopsiquismocontraafiguramaterna, identificadacomumafiguraameaçadora,“omonstroqueénecessárioreduzir paraanularmagicamenteumaorigem...”(SCHNEIDER,1980,p.115).
setornaimpossívelporqueorecém-nascidonãopodefugirdasexcitaçõesque, dedentrodele,operturbam,dizFreud.Asexcitaçõespulsionaisestãoligadas aumestadodenecessidade,comopodemserafomeouofrio,porexemplo; elassãoconstantesnosentidoemqueopsiquismonãopodefugirdelas.Neste caso,apresenta-seumproblemaquenãoexistianooutro:comonãosepode fugirdaexcitaçãopulsionalquevemdointeriordoprópriocorpo,osistema nervosotemquedeixardeladosuatendêncianaturalaeliminartodaexcitação (tendênciabiológica,reproduzidanoaparatopsíquicoatravésdofuncionamento dopróprioprincípiodeprazer),e“começararealizarcomplicadasatividades relacionadasentresi,quemodificamomundoexternoatéqueesteacabeofe-recendoasatisfaçãopedidapelaexcitaçãointerna”(p.2041).Aqui,Freudestáse referindoaochoroouaogritodobebêquechamaamãeparaqueelarealizea “açãoespecífica”.Maisquecomomeiodecomunicaçãocomooutro,revelador davulnerabilidadeedesamparodorecém-nascido—comonoProjeto(FREUD, 1895/1973)—,estasmanifestaçõesdobebêfiguramemPulsõeseseusdestinoscomo provadeque“overdadeiromotordoprogresso”(1915/1973,p.2041),omotor dodesenvolvimentodosistemanervoso,encontra-senasprópriaspulsões,não nomundoexterno.
ObebêimaginadoporFreudemPulsõeseseusdestinossevê,então,obrigadoa pedirajudaexternapararesolverodesprazercausadopelasexcitaçõesinternas, das quais não pode fugir. O exterior, antes visto como ameaçador é, assim, transformadoemsatisfação,masemumasatisfaçãopontual,quesupostamente acalmariaumestadodenecessidadetambémpontual,enfatizaSchneider:nada detoques,carícias,sons.Assimvisualizado,ocorpomaternoaparece,sim,mas apenascomorecursoparaacalmarafomeouofrio;comoremédio,tranqüi-lizante.Todaexcitação(externa)imprevisível,ocasionadaporiniciativasque nãoentremnasatisfaçãorestritadanecessidade,nestetexto,sãoimpossíveis. Emumcontextocomoestenãoháespaço—teórico—paraqueoprazerpossa entrarcomomovimentotrazidopelaexcitaçãoexterna,imprimindoalgonovo. Oúnicoprazerviávelconsisteemsuprimiroestadodedesprazeroriginadonas excitaçõesinternas,dasquaisnãosepodefugir.Obebêtemàdisposiçãoum mecanismoreguladopeloprincípiodeprazerqueolevará,automaticamente,a rejeitarqualquerexcitação(externa)quenãoselimiteasatisfazerànecessidade, eliminandooudiminuindoaexcitaçãointerna.Seessedispositivonãofuncio-nabemenãoconseguedeteraexcitação(externa),aexcitação(externa)que seinfiltranuncapoderásersentidacomoprazerosaporqueaidéiadeprazer, anexadaaoprincípiodomesmonome(oprincípiodeprazer),equivaleauma diminuiçãodaexcitação.
dadenosentidododomíniodooutro.Emnossoentender,nãoéaidéiadeatividade quedeveserquestionada,esimadedaraestaumasignificaçãodedomínio—e nadaalémdisso—pormeiodaimagemdeumaparatopsíquicoregidopelo princípiodeprazer,quebuscavenceraexcitaçãoexterna;emoutraspalavras, pormeiodeumbebêquelutacontraamãe.Umaidéiaquedeveserrevisada, ainda mais porque neste trabalho privilegiamos um momento muito inicial, demuitavulnerabilidadetantoparaofilhocomoparaaprópriamãe,emqueo queestáemjogoésuapossibilidadedefavorecermovimentosdevidanofilho notempoimediatamenteposterioraonascimento,quandoelamesmaacabade vivenciaraexperiênciadoparto.Comofalarnessestermos—deumexterior desorganizador—numcontextocomoeste,quandomãeefilhoestãotãojuntos (umdependendodooutro,poderíamosdizer)paraqueomovimentodevida possa instaurar-se e consolidar-se? É nessa direção que desejamos transitar, privilegiandoaidéiadeencontro,enãoadeseparaçãooudedefesaemrelação àmaternidade.ComodizSchneider,noartigointitulado“Laproximitéchez LevinasetleNebenmenschfreudien”(1991):avulnerabilidadeeodesamparo presentesnãoapenasnorecém-nascido,mastambémnaprópriamãe,devem servistoscomofontedecomunicação,encontro,humanização,enãocomo obstáculo.
UMAVISÃOSOLIPSISTADOPSIQUISMO
orecém-nascidodafome,dofriooudequalqueroutroestadodenecessidade semelhante,ouseja,apenascomoremédio,comoinstrumentoparaeliminaro estadodenecessidade,masnãocomoalguémcapazdeimprimirtraçosnovos nopsiquismo.Comofalaremtermosdealteridadenestecaso,quandoooutro ésolicitadodemodotãocontrolado,tãopontual?Comofalaremtermosde alteridade,deinstauraçãodeumprocessodehumanizaçãoentredoisserestão unidos,sepermanecermosnalógicadotudo-ou-nada,impostapelofunciona-mentodoprincípiodoprazer—tudo-ou-nadanosentidodeassociarprazerà diminuição/eliminaçãodaexcitação,desprazeraaumentodeprazer,comose nadamaisexistisse?
Éimportante,então,ressaltaracorrespondênciaentretrêsidéias—pra-zer,excitação,visãosolipsista/vitalistadopsiquismo—parapostular,como acabamosdever,queomodocomooprazereaexcitaçãosãoentendidosem
Pulsõessupõeumavisãosolipsistadopsiquismo,e,poroutrolado,queesta correspondênciaimplicaumavisãodamaternidade,queprivilegiaasidéias deafastamento,separação.Umavisãoquedeveserrevista,emrelaçãoàqual opróprioFreudindicaumcaminhodiferentedeabordagem,quandomais tarde descobre que o princípio que rege a vida psíquica não é o princípio de prazer, mas o princípio de inércia (pulsão de morte), como veremos a seguir,nopróximoponto.Aforçaqueadquireadimensãoalteritárianesse novocontextoteóricoinauguraummododeentenderaorigemdopsiquismo quepermiteumaaproximaçãodiferenteaotemadamaternidade.Antesde abordá-lo,porém,umesclarecimento:nãosetratadesubstituirumavisão da maternidade por outra, mas de incluir sentidos antes desconsiderados, relacionadosàsidéiasdeprazeredeexcitação,osquaistornammaisfecunda estareflexão,aopossibilitaraintegraçãodaidéiademasoquismoerógeno, entendidacomoexperiênciadepassividadeligadaàvidaeaEros.Estaproble-máticaéaquetrabalhamosaseguir,tendocomobaseteóricaosoutrosdois textosdametapsicologiafreudianaantesmencionados:Alémdoprincípiodeprazer eOproblemaeconômicodomasoquismo.
OUTRASFORMASDEENTENDERAMATERNIDADE
Nestesentido,pode-sepensarquequandoFreudintroduzaidéiadapulsão demorte,em1920,estáfalandotambémdevidaporqueestádizendoquepara queainstauraçãodeummovimentodevidanorecém-nascido—ouseja,para quepossaserimpedidaatendênciaprimeiradoorganismonosentidodoretorno aoinanimado—sejapossível,éindispensávelapresençadamãe(ousubstituto). Amãe,então,éooutro;elarepresentaadimensãoalteritária,conseqüênciada descobertadapulsãodemorte.Ditodeoutromodo,apartirdadescobertada pulsãodemorte,aênfasenoprincípiodoprazersedeslocaparaadimensão alteritária:amãepossibilitaavidaaoobstaculizaroprimeiromovimentodo bebênosentidodadescargaabsoluta,davoltaaoinorgânico.
Em1920,Freuddescobreapartirdaexperiênciaclínica—dacompulsãoá repetiçãonatransferência—,queacaracterísticadetodapulsãonãoéatendência àevoluçãoeaoprogresso(comoafirmavaem1915)senão,aocontrário:aten-dênciaareconstruirumestadoanteriorquefoiabandonadodevidoàinfluência deforçasexteriores.Voltaaoinorgânico,voltaaoinanimado,assimseexpressa Freudaoreferir-seàpulsãodemorte.Emoutraspalavras,oqueelequerdizer équeapossibilidadedeinstauraromovimentodevidanorecém-nascidoestá nomundoexterno(namãe)enãonaprópriapulsão(bebê);ouqueaexcita-ção,queem1915eravistacomoinvasora,levanta-seagoracomoúnicorecurso paraavida.Estassãoduasmaneirasdeexpressaramesmaidéia.Adimensão alteritária,esboçadaemTrêsensaiosparaumateoriasexualatravésdoauto-erotismo —acriança“setornaauto-erótica”nomomentoqueperdeoprimeiroobjeto dapulsãosexual(FREUD,1915/1973,p.1225)—,3torna-seevidenteemAlémdo princípiodeprazer,quandoooutroéincorporadodesdeoprimeiromomento,quando nãosequerafastá-lo,comoemPulsõeseseusdestinos.
Em1920,aocontrário,busca-seaunião;esseéoelementonovo.Nomesmo lugaremqueantesseviaoperigo(noexterior,naexcitaçãoexterna),agorase vêaúnicasalvação;einversamente,ondeantesserefletiaavida,ouaomenos suaconservação(naprópriapulsãodorecém-nascido)teme-seagoraamorte. EmAlémdoprincípiodeprazer,aexcitaçãoexternaévida.Nãoénecessáriomontar todoumaparatodefensivocontraaexcitaçãoporqueégraçasaelaquesepode bloquearatendênciainternadoindivíduonosentidodoretornoaoinanima-do. A união com outras substâncias vivas, análogas, mas diferentes, produz
umaumentodetensõescujoresultadoéavida.Rejuvenescimento,renovação, reforço,impulso,todosessestermosqueFreudutilizamostramapresença,a evidênciadapulsãodevida,revelandoqueestamosdiantedeumamodificação dateoriadaexcitação.
Atéagora,fomosintegrandonasegundapartedestetrabalhodiferentesidéias: pulsãodemorte,dimensãoalteritária,excitação,pulsãodevida.Eaquestãodo prazer;qualéseulugaresuaimportâncianestenovoentendimentodasorigens dopsiquismo?Vejamos.
Atransformaçãoteóricainauguradaem1920apartirdadescobertadapulsão demorteseráreforçadaem1924,emOProblemaeconômicodomasoquismo,quando Freudreconhecedemodomaisexplícitoesistematizadoque,defato,oque despertaparaavidaéaexcitaçãodeorigemexterna,poisnãoexistenenhum princípioendógenoautomático(comoo“princípiodeconstância”ouo“prin-cípiodoprazer”)queassegureaprópriaconservação.
Estanovaconcepçãoalteritáriaenãomaissolipsistadopsiquismonosintro-duz,decheio,naquestãodoprazer.Emquesentido?Seaexcitaçãoérestaurada, istoé,seaparticipaçãodooutropassaaservistacomoindispensávelparainstaurar aordemdavida,adefiniçãodeprazerquevigoroudurantemuitosanos,associada aumadiminuiçãooueliminaçãodaexcitação,devesermodificada:oprazernão podemaisserassociadoàextinçãodaexcitaçãoporqueissosignificariadeixar ooutrodelado.Schneiderdestacaquemaisquedeumatransformaçãoradical dadefiniçãodeprazer,trata-sedeintroduzirummovimentoemseuseio,indi-candoqueépormeiodomasoquismoerógeno,finalmentereconhecidoemsua dimensãooriginária,queoprazerseráporfimdesvinculadodeseuprimitivo objetivodeextinçãodetensões.Naspalavrasdaautora:énoartigode1924, então,noqual“Freudsevoltasobreasdefiniçõesinauguraisdoprazer,para colocaremquestãoaequaçãofundamental,queidentificaprazerediminuição detensão”(SCHNEIDER,1980,p.236).
demorte,pulsãodevida,intrincaçãopulsional,princípiodeprazernãomais identificadocomextinçãodasexcitações—é,emdefinitivo,falaremtermos demasoquismoerógenoprimário.ÉissooqueFreudnosdizquandoserefere aessemasoquismocomoo“testemunho”ouo“vestígio”(p.2.755)dessafase deformaçãoemqueseligampulsãodemorteepulsãodevida.
Então,seomasoquismoerógenoprimárioédefinidopelaintrincaçãopul-sionale,simetricamente,aprimeiraemaisoriginaldasintrincaçõespulsionais realiza-senomasoquismoerógenoprimário,essaduplarelaçãofazcomque a intrincação pulsional seja, em essência, masoquista. Masoquista apenas no sentido em que ela erotiza a pulsão de morte por meio de um movimento pulsionaldepassividade,entendidonosentidodereceptividade,abertura.Esta idéiaéimportanteporquemostraasdiferentesformasdeentenderomasoquis-mopresentesemFreud,ouseja,demonstraquehá,também,ummasoquismo ligadoàvida.ElaserámaisbemcompreendidaapartirdoqueFreuddizsobre oprincípiodeprazeresuaarticulaçãocomomasoquismoerógenooriginário. Emrealidade,resultadifícilfalaremseparadodetodosessesconceitosqueestão sendointroduzidosporqueelesestãointimamenteligadosentresi,todosrefe-ridosaomomentoinicialdavida.Umlevaaooutro;àsvezes,uméaomesmo tempoooutro,comonocasodaintrincaçãopulsionaledomasoquismoeró-genoprimário.Vejamos,então,arelaçãoentremasoquismoerógenoprimário eprincípiodeprazer.
Na anterior concepção de prazer, o princípio de prazer podia acabar se identificandocompulsãodemorte(nosentidodaeliminaçãodetodaexcita-ção,ouseja,dabuscadeumprazerabsoluto,entendidocomoausênciatotalde excitação),mas,graçasàintervençãodomasoquismoerógeno,atendênciaao prazerabsolutoéevitada,eoprincípiodeprazer,modificado,passaarepresen-tarapossibilidadedeumavivênciarelativizadadeprazer.Quesignificaisso? Significaqueestamosdiantedeumaidéiamaiscomplexadeprazer,queintegra tambémodesprazer,equecompreendetantoaexcitaçãocomoaeliminaçãoda excitação,ouseja,adescarga.
sedescarregaparaoexteriorsenãoque,aocontrário,permanecenointerior doorganismo,ondeficaligadalibidinalmentecomaajudadaco-excitação sexual.Ditodeoutromodo:nomomentooriginário,imediatamenteposterior aonascimento,quandoapulsãodevidaencontraapulsãodemorte(reinando, querendolevartudoaoinorgânico),erotiza-a,graçasaodesviodepartedela paradentrodoorganismo.Esseéo“momento”,o“lugar”,domasoquismo erógeno,experiênciaquepossibilitaaprópriainstauraçãodociclovital,pri-meiroesboçodavidapsíquica,masquetambémsedáemnívelorgânico.O masoquismoerógenoprimárioouaintrincaçãopulsionalprimária,é“otraço deuniãoentreoorgânicoeopsíquico”,comosalientaoautor(p.100),por issofalamosemtermosde“momento”ede“lugar”,pararessaltaraíntima vinculaçãodessaexperiênciaorigináriacomocorpo,entendidocomoespaço, comolugarondeelaacontece.
CONCLUSÕES
Foipercorridoumlongocaminhoparachegarondequeríamos,aoconceito demasoquismoerógenooriginárioeseuvínculocomamaternidade.Umca-minhoquecomeçoudistinguindo,nostextosdametapsicologiafreudianaque tratamdaorigemdopsiquismo,apresençadediferentesmodosdeentender amaternidadeque,semestarexplicitados,eramvislumbrados,ousugeridos. Paraaprofundaredarconsistênciaaestaidéiafoinecessárioumtrabalhode exploraçãodessestextos,oquenoslevouaimaginaroutrocenário,noqual amãeeobebêeramospersonagensprincipais,demodoapoderavançar emnossahipótesedetrabalho,que,semdúvida,encontra-sedificultadapela linguagemutilizada,umalinguagemmecanicista,quepodelevarapensarque Freudnãotrataaquestãodarelaçãodeobjetonostextosdametapsicologia.Um dosobjetivosprincipaisnestetrabalhofoidemonstrarquesim,queestaquestão estápresentenosescritosaquianalisados;quehánelesumareflexãosobreo vínculoprimordialmãe/bebê,daqual,poroutrolado,épossívelinferirduas formasdiferentesdeentenderamaternidade—oucomoelementoexterno doqualéprecisodefender-se,sobretudoeantesdemaisnadadefender-se
(Pulsõeseseusdestinos);oucomoúnicorecursoparaqueociclodavidapossaser instauradonopsiquismodorecém-nascido(AlémdoprincípiodeprazereOproblema econômicodomasoquismo).
Aoincorporarelementosantesnãoconsiderados—umanovaformade entender o prazer; a idéia de masoquismo erógeno originário evocando a uniãocorpo/psiquismoatravésdeumaexperiênciadepassividadeligadaà vida —, esta última significação possibilita uma compreensão diferente da maternidade,naqualaidéiadevulnerabilidadeadquireimportância,enos interpela,nosentidodealertaredeinsistirnanecessidadedocuidadomaterno: parapoderpropiciarnorecém-nascidoaformaçãodeumespaçoemquea vidapossacomeçaracirculareadespregar-se,amãeprecisaelamesmatera possibilidadedevivenciarsuaprópriaexperiênciadematernidade(gravidez, parto,pós-parto)comoexperiênciadepassividade—passividadeentendida nãocomoopostaàatividade,comojáfoidito,mascomoreceptividade,en-trega,abertura.
Recebidoem4/11/2006.Aprovadoem11/12/2006.
REFERÊNCIAS
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