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Educação e Pesquisa, São Paulo, v.29, n.2, p. 369- 373, jul./dez. 2003
A d m in is t r a ç ã o e p a r t ic ip a ç ã o :
reflexões para a educação
Fernando C. Prestes Motta
Universidade de São Paulo
R e s u m o
Est e art igo t rat a dos conceit os de part icipação conf lit ual, par-t i ci pação f u n ci on al , parpar-t i ci pação adm i n i spar-t rapar-t i va, co- gespar-t ão e au t o g est ão , d i scu t i n d o a n o ção e o p ap el d a ed u cação part i ci pat i va n a con st ru ção de u m a n ova soci edade.
P a l a v r a s - c h a v e
Administração
Participação
Co- gestão
Auto- gestão
Educação.Do pont o de vist a merament e descrit i-vo, administ rar é planejar, organizar, coordenar, comandar e cont rolar.
Essa def inição, que dat a dos primórdios da t eoria organizacional, cont inua absolut a-ment e corret a, mesmo considerando- se t odos os avanços que esse campo do conheciment o experiment ou durant e o século XX.
Ent ret ant o, nem sempre se at ent a para o f at o de que se administ rar é planejar, organi-zar, coordenar, comandar e cont rolar; ser admi-n ist rado sigadmi-n if ica ser plaadmi-n ejado, orgaadmi-n izado, comandado e cont rolado. Também não se at en-t a para o f aen-t o de que quem adminisen-t ra é uma minoria, enquant o que a maioria absolut a da população é administ rada.
O que observei serve apenas para indicar que a administração possui também um significa-do polít ico f reqüent ement e negligenciasignifica-do. Do ponto de vista político, administrar significa exer-cer um poder delegado.
Com isso quero chamar a at enção para o f at o de que se administ ra em nome daque-les que dispõem dos meios de administ ração, ist o é, qu e dispõem de poder econ ômico ou polít ico, ou em nome próprio.
Isso só ocorre quando os próprios administ radores det êm o poder econômico e po-lít ico, o que parece ser seu projet o, mas que ain-da não corresponde t ot alment e aos cont ext os sociais dos países dit os capit alist as. Evident e-ment e, só se exerce poder sobre alguém, sobre algum grupo, ou sobre uma colet ividade. Isso quer dizer que se exerce um poder delegado pela elit e econômica e polít ica sobre aqueles que não det êm poder algum ou, na melhor das hipót eses, dispõem de pouco poder real.
Por poder ent endo a posse de recursos que permit e direcionar o comport ament o do out ro ou dos out ros em det erminada direção almejada por quem a det ém. Há muit as f ormas de se exercer poder. Pode- se impor, pode- se coagir pode- se corromper, pode- se persuadir, pode- se seduzir, pode- se manipular. Em muit as si t u ações t odas essas possi bi l i dades podem ent rar no jogo do poder e nem sempre é f ácil discernir uma modalidade da out ra.
Há, ent ret ant o, o caso do poder exer-cido por um conjunt o de administ radores pro-f issionais que se est rut uram hierarquicament e e que, em nome da racionalidade e do conheci-ment o, planejam, organizam, coordenam, co-m an d aco-m e co n t r o l aco-m , p o r u co-m a r el ação d e mando e subordinação, uma det erminada cole-t ividade. A iscole-t o, inspirado em M ax Weber, cha-mo dominação.1
A pri mei ra i n dagação qu e me ocorre ref ere- se à quest ão da racionalidade. Quer me parecer que a racionalidade a que geralment e se ref ere qu an do se f al a de adm i n i st ração é apen as u m t i po de raci on al i dade, a saber, a racionalidade inst rument al, aquela vinculada à adequação mais ef icient e ent re meios e f ins.
Isso signif ica que geralment e se deixa de lado a racionalidade com relação a valores, ist o é, os modos de pensar que orient am ações liga-das ao que se percebe como desejável, adequado e inadequado, just o e injust o, e assim por diant e. Oco rre t am b ém q u e a p ró p ri a ação af et i va en t re seres h u m an o s n ão se b asei a numa irracionalidade, mas num det erminado modo de pensar. Ent ret ant o, não é dessas últ i-mas f ori-mas que vive a administ ração.
Out ro pont o ref ere- se ao conhecimen-t o com o base para o exercíci o do poder. É import ant e ressalt ar que há quest ões adminis-t raadminis-t ivas que exigem conhecimenadminis-t o especializa-do, enquant o out ras exigem apenas conheci-ment o comum.
O problema, ent ret ant o, est á em saber se o conheciment o especializado pode ser le-git imament e suf icient e para a dominação.
A quest ão só se t oma relevant e na medi-da em que se vive num mundo camedi-da vez mais administ rado, ist o é, num mundo onde predomi-nam as grandes organizações como o Est ado, as grandes empresas, et c. A dominação mediant e organização é inseparável da opressão, na medi-da em que se ret ira do dominado a f aculmedi-dade de pensar e decidir sobre o que f az, pelo menos em det erminadas esf eras da vida, como o t rabalho. Também é inseparável da opressão na medida em que implica uma administ ração do
t empo, cont rária a qualquer noção conhecida de liberdade, bem como em uma organização geral-mente rígida do espaço, além da utilização regular de sanções disciplinares e da regulação das rela-ções sociais em benef ício da produt ividade.
Opressão não é necessariament e sinôni-mo de exploração. A primeira cat egoria é polí-t ica, enquanpolí-t o a segunda é econômica. M esmo que os administ rados não est ejam sendo explo-rados, ainda assim podem est ar sendo oprimidos. Se a administ ração nos moldes em que a conhecemos parece, em sent ido absolut o, não p o d er p erd er o asp ect o co erci vo q u e l h e é p r ó p r i o , cer t am en t e p o d e t er esse asp ect o minimizado. Uma das f ormas de minimizar o aspect o coercivo da administ ração é a part ici-p ação . Fal o evi d en t em en t e d e ici-p art i ci ici-p ação aut ênt ica e não de modalidades de manipula-ção camuf ladas sob est e rót ulo.
Evident ement e, part icipar não signif ica assumir um poder, mas part icipar de um poder, o qu e desde l ogo excl u i qu al qu er al t eração radical na est rut ura de poder. Ainda, f reqüen-t emenreqüen-t e é dif ícil avaliar areqüen-t é que ponreqüen-t o as pes-soas ef et ivament e part icipam na t omada e na implement ação das decisões que dizem respeit o à colet ividade e at é que pont o são manipula-das.
Uma observação mesmo superf icial de al g u m as ex p er i ên ci as p ar t i ci p at i vas r evel a q u e o s d o i s asp ect o s n ão são excl u d en t es, ist o é, que é perf eit ament e possível que a co-l et i vi d ad e i n f co-l u a so b re o p o d er, ao m esm o t em po em qu e est e procu ra coopt á- l a para seu s obj et i vos.
Todavia, a preocupação com a part icipa-ção é algo que decorre de valores democrát icos, ist o é, da idéia de que a sociedade ou as cole-t ividades menores como a empresa ou a escola são pluralist as, const it uindo- se num sist ema de pessoas e grupos het erogêneos, e que, por ist o mesmo, precisam t er seus int eresses, suas von-t ades e seus valores levados em convon-t a.
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Part icipar não implica necessariament e que t odas as pessoas ou grupos opinem sobre t odas as mat érias, mas implica necessariamen-t e al gu m m ecan i sm o de i n f l u ên ci a sobre o poder. Para part icipar é necessário algum co-nheciment o e cert as habilidades polít icas. Isso varia conf orme a amplit ude da part icipação e a nat ureza das mat érias em que se part icipa.
Boa part e desses conheciment os e ha-bilidades são ent ret ant o f rut o da própria expe-riência, o que signif ica que não se pode espe-rar que só se inicie a part icipação quando es-ses requisit os est iverem preenchidos.
Eviden t emen t e, u ma edu cação part i-cipat iva f avorece a aquisição de habilidades de valor na part icipação na administ ração na idade adulta. Participar também implica um desejo. Pes-soas educadas em cont ext os muit o aut orit ários podem simplesment e pref erir não part icipar. Esse aspect o parece essencial, vist o que a part icipação implica um alto grau de envolvimento e, com fre-qüência, o envolviment o implica desgast e emoci-onal ou mesmo f ísico.2
A part icipação impost a, ist o é, os f or-mat os part icipat ivos criados pela própria admi-nist ração e volt ados para a maior ef iciência da organ i zação, para a m el hori a dos can ai s de comunicação e de nível de sat isf ação não são necessariament e indesejáveis.
O problema que se coloca para a par-t icipação impospar-t a é que ela abre uma oporpar-t u-nidade, mas não um leque de possibilidades, a ser explorada pela própria colet ividade. Ela, at é mesmo, com f reqüência, ignora se a part icipa-ção é um desejo ef et ivo de comunidade. Ent re-t anre-t o, o que a preocupação com a parre-t icipação e os moviment os part icipacionist as revelam é que esse desejo vem se ampliando na maioria dos países, desde aqueles de t radição democrá-t ica mais f ordemocrá-t e ademocrá-t é aqu eles de democrá-t radição mais aut orit ária.
Há f ormat os part icipat ivos em países capit alist as avançados como os Est ados Unidos, a França, a Alemanha, a Grã- Bret anha, em paí-ses que se dizem socialist as como os do Lest e europeu e em países subdesenvolvidos como o
Brasil. É cert o que varia muit o a nat ureza des-ses f ormat os e seus result ados, de cont ext o para cont ext o, mas t ambém é cert o que dia a dia ampliam- se as experiências part icipat ivas seja em nível de Est ado, seja em out ros níveis, como os da escola e da empresa.
Hist oricament e, os moviment os part i-cipacionist as surgem com a sit uação de explora-ção e de opressão na empresa que a aplicaexplora-ção do t aylorismo, primeira t eoria administ rat iva, t ornou t ransparent e. O t aylorismo implicou a dest ruição dos rest os de of icio que o t rabalho conservava. Separou concepção de execução, introduziu tem-pos e movimentos rígidos e, seguido do fordismo, organizou rigidament e o espaço.
Chama- se part icipação conf lit ual aquela que se desenvolveu como oposição ao taylorismo. Baseia- se no processo de negociação colet iva entre patronato e sindicato de trabalhadores. Essa f orma de part icipação vigora na maior part e dos países ocident ais, mas seus result ados nem sem-pre t êm se most rado suf icient es.
Ent re out ros problemas, a negociação colet iva exclui a maioria dos t rabalhadores e é regressiva, vist o que supõe que as cúpulas sin-dicais f alem pelos t rabalhadores. Isso t em leva-do os t rabalhaleva-dores a procurar out ras f ormas um pouco mais aut ônomas de part icipação.
Chama- se part icipação f uncional a prá-t ica de reuniões periódicas enprá-t re paprá-t rões e prá-t ra-balhadores, ent re administ radores, f uncionários e t rabalhadores, ent re unidades organizacionais e ent re níveis hierárquicos em geral. Essas reu-niões servem de ocasião para o debat e, para a consult a e a inf ormaçãao.
Part icipação administ rat iva é um t ipo especial de part icipação, que se organiza por represent ação. Há, nest e caso, a f ormação de comissões de t rabalhadores, ou de t rabalhado-res e f uncionários ou ainda de comissões que reú n em adm i n i st radores e t rabal hadores, ou administ radores, f uncionários e t rabalhadores.
Essas comissões são muit o semelhant es a algumas experiências no plano da administ ra-ção da educara-ção, especialment e em t ermos de universidade, no que se ref ere a órgãos de re-present ação discent e, ou a órgãos colegiados qu e reú n em represen t an t es t an t o do corpo docent e quant o do corpo discent e.
Co- gestão é uma forma avançada de par-ticipação administrativa que implica co- decisão em det erminadas mat érias e direit o de consult a em outras. Ela pode ser parit ária ou não. Na Alema-n ha Oci deAlema-n t al , oAlema-n de exi st e est e si st em a por f orça de lei, ela é parit ária em dois set ores in-dust riais e não parit ária nos demais.
Ent ret ant o, a maioria absolut a de expe-riment os part icipat ivos é caract erizada pela na-t ureza consulna-t iva dos órgãos de represenna-t ação e não por uma nat ureza deliberat iva e normat iva.3
Au t o g est ão n ão é p art i ci p ação . Por aut ogest ão se ent ende um sist ema no qual a co-let ividade se aut o- administ ra. Port ant o, não se t rat a de part icipar de um poder, mas sim de t er um poder. Há experiências aut ogest ionárias his-t óricas como a da Comuna de Paris, o movi-ment o machnovist a na Ucrânia em 1917 e boa part e da Espanha ent re 1936 e 1939. Há t am-bém o caso da Iu gosl ávi a, qu e se procl am a aut ogest ionária, mas cujo carát er aut ogest ionário é pelo menos discut ível. Há ainda moviment os pela aut ogest ão import ant es como o Solidarie-dade n a Pol ôn i a e experi ên ci as set ori ai s de aut ogest ão em empresas e escolas.
No caso part icular das escolas é preci-so dist inguir aut ogest ão pedagógica de aut o-gest ão inst it ucional. Enquant o a primeira se ref ere à dinâmica do t rabalho pedagógico, a segunda se ref ere à administ ração do est abele-ciment o de ensino.
N em sem p r e a p ar t i ci p ação v i sa a aut o- gest ão. Da mesma f orma, é discut ível se a f avorece ou a dif icult a. Segundo querem al-gu n s est u di osos de al al-gu m as f i l i ações i deol ó-gi cas, el a é u m cam i n ho; segu n do ou t ros, é m ai s u m descam i n ho.
Um últ imo pont o a ser considerado é que a part icipação não precisa
necessariamen-t e se resnecessariamen-t ringir ao nível das insnecessariamen-t inecessariamen-t uições. Tam-bém se f ala de part icipação para se ref erir a moviment os sociais aut ônomos de t rabalhado-res e de out ros grupos que procuram af irmar seu s di rei t os n a soci edade. Tam bém caberi a aqui pergunt ar sobre o papel desse movimen-t o na consmovimen-t rução de uma sociedade ao mesmo t empo igualit ária e pluralist a.
A event ual const rução de uma sociedade aut ogest ionária passa inquest ionavelment e pela quest ão da educação polit écnica e polivalent e, pela aprendizagem não- aut orit ária.
Por aprendizagem não- autoritária enten-do aquele que impede a int ernalização enten-dos me-can i sm o s d e su b m i ssão e co n f o rm i d ad e. A aprendizagem para uma nova sociedade precisa cent rar- se na erradicação da angúst ia, do medo, da culpa e da dependência. A aprendizagem não- aut orit ária f oment a o apoio mút uo; não t rat a, como salient a o “ Sindicat o de Enseñanza” da CNT espanhola, a criança como um adult o imperf eit o na qual o adult o complet o precisa colocar aquilo que julga f alt ar.
Nessa con cepção, apren der t orn a- se u ma prát ica con t ín u a de ação diret a, n a qu al a experiência t orna- se a met a ao mesmo t em-po em qu e n ão é rem i n i scên ci a, m as prát i ca con t in u ada.
Num processo desse t ipo, o que se pode esperar é que a criança aprenda a ser livre, sa-ben do respei t ar e se f azen do respei t ar, qu e aprenda a pensar com aut onomia, a ser sincera, a ser capaz de amar e ser amada, que possa lut ar pela promoção da pessoa humana, que possa criar uma consciência crít ica e aut ocrít ica, que saiba se expressar e ser just a, que venha a possuir uma cult ura verdadeira.
Esses obj et i vos si n gel os parecem - m e verdadeiros e t raduzem em sua pureza o dile-ma da educação: reprodução e criação. A nova sociedade depende dessa pureza, que não pode e nem deve ser conf undida com ingenuidade. Nat uralment e os obst áculos são vários, mas não
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se const rói nada a não ser enf rent ando e supe-rando obst áculos.
A n ova soci edade pressu põe ai n da o aprendizado da ação polít ica, da ut ilização da vont ade da criação de uma disponibilidade para ajudar e ser ajudada, bem como da capacidade de f ruir colet iva e igualit ariament e a vida. Ist o t udo, ent ret ant o, só se pode alcançar no cont ext o de uma sociedade ant i- aut orit ária. Ent endo aqui a expressão contexto anti- autoritário no sentido de uma sociedade que despreze e lut e cont ra as f orças opressivas e homogeneizadoras, que per-ceba a f orça da singularidade no igualit ário.
Cert ament e, o respeit o à singularidade não pode excluir a solidariedade e ajuda mút ua, que precisam nort ear as relações ent re indiví-duos e grupo, e precisam excluir a emulação com pet i t i va, o dom ín i o e a depen dên ci a, o preço de cada um no mercado e a subserviên-ci a a obj et i vos gerai s abst rat os.4 Em t ermos
mais radicais, uma at it ude desse t ipo implica o f im da criação e t ransmissão da cult ura separada da vida, t raço f undament al da educação mera-ment e volt ada para a reprodução da exploração e da opressão. Evident ement e, a grandeza da t aref a, pode desest imular os muit o ávidos, que não percebem a nat ureza processual e lent a da verdadeira t ransf ormação.
O passo i n i ci al parece est ar em u m a mudança de at it ude, e isso se ref ere a t odos os part icipant es diret os e indiret os das unidades e sist emas escolares. Com isso quero f risar que as m u dan ças n a edu cação são u m assu n t o de t odos. Con st i t u em u m t em a qu e se ref ere a educadores e educandos e, de uma f orma mais geral, educadores e educandos são, simult a-neament e, t odos os membros de uma socieda-de. Por essa razão a com u n i dade n ão pode deixar de part icipar, a menos que, suicidament e, ela opt e pela não educação, pela est agnação, pela repet ição, pelo ret rocesso.
No âm bi t o da escol a, a part i ci pação const it ui t ema de est udant es, prof essores, ad-minist radores, supervisores, orient adores e f un-cion ários. Aos admin ist radores edu caun-cion ais, cabe especialment e o desaf io não pequeno de descobrir e delinear f ormat os organizacionais que, adequados a cont ext os específ icos, asse-gurem a educação part icipat iva volt ada para a const rução de uma sociedade verdadeirament e igualit ária, não apenas em t ermos econômicos, mas em t ermos de dist ribuição do poder.