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Corpos diferenciados e o processo de criação da performance Kahlo em Mim Eu E(m) Kahlo

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Academic year: 2017

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FELIPE HENRIQUE MONTEIRO

OLIVEIRA

CORPOS DIFERENCIADOS E O PROCESSO DE CRIAÇÃO

DA

PERFORMANCE

“KAHLO EM MIM EU E(M) KAHLO”

NATAL/RN

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CORPOS DIFERENCIADOS E O PROCESSO DE CRIAÇÃO DA PERFORMANCE KAHLO EM MIM EU E(M) KAHLO”

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da UFRN como requisito parcial para a obtenção do grau Mestre em Artes Cênicas sob orientação da Profa. Dra. Nara Salles.

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Oliveira, Felipe Henrique Monteiro.

Corpos Diferenciados e o Processo de Criação da Performance “Kahlo em Mim Eu E(m) Kahlo” / Felipe Henrique Monteiro Oliveira. – 2013. 111 f.: il.

Dissertação (Mestrado em Artes Cênicas) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas, Natal, 2013.

Orientadora: Profª.Drª. Nara Salles.

1. Teatro pós-dramático. 2. Corpos diferenciados. 3. Estigmas. 4. Frida Kahlo. 5. Performance. I. Salles, Nara. II. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. III. Título.

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À minha família, por não acreditar nos estigmas em mim imputados e por sempre persistir em me ajudar a alcançar meus objetivos;

À minha orientadora, Profa. Dra. Nara Salles, pela amizade e pelo incentivo, desde a graduação, em fazer acreditar que sou capaz de fazer arte;

Ao corpo docente do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da UFRN por me permitir cursar o mestrado semipresencialmente;

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A dissertação tem como objetivo realizar uma averiguação sobre o fazer artístico na existência dos seres humanos com corpos diferenciados na sociedade, em diferentes momentos históricos. Neste sentido e com base neste panorama, o estudo elabora uma descrição sobre a produção de estigmas e a forma como eles se instauram, se propagam e interferem na sociabilidade entre os seres humanos considerados normais e os com corpos diferenciados. No que tange as artes cênicas, o texto faz uma descrição acerca da participação dos artistas com corpos diferenciados na cena, especificamente do freak show e no teatro pós-dramático. O texto também investiga aspectos da biografia e da obra da artista plástica mexicana Frida Kahlo, os quais fundamentam os procedimentos metodológicos e produzem aportes para o processo criativo da performance “Kahlo em mim Eu e(m) Kahlo”, que consiste na investigação da prática da cena na dissertação.

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The dissertation intends to develop an investigation on the artistic existence in human beings with different bodies in society at different historical moments. In this regard and based on this scenario, the study develops a description of the stigmas production and how they are established, spread and interfere with the sociability among human beings regarded as normal and those with different bodies. Regarding the scenic arts, the text describes about the participation of artists with different bodies in the scene, specifically the freak show and postdramatic theater. The text also investigates aspects of the biography and the work of mexican artist Frida Kahlo, which underpin methodological proceedings and produce contribution to the creative process of performance “Kahlo em mim Eu e(m) Kahlo”, which is to investigate the practice of the scene in this dissertation.

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Figura 1 – Deus Bés. Altes Museum (Berlim/Alemanha). Foto: Site do Altes Museum...17

Figura 2 - Corpos diferenciados no Freak show. Foto: Site The Human Marvels...34

Figura 3 - Pessoas de diferentes idades eram exibidas no Freak show. Foto: Site The Human Marvels...36

Figura 4 - Diferentes tipos de corpos diferenciados exibidos no Freak show. Foto: Site The Human Marvels...36

Figura 5 - Raymond Andrews (no centro) no ensaio de Deafman Glance. Foto: Mel Andringa, 1970...38

Figura 6 - Espetáculo Corpo Estranho da Cia. Gira Dança. Foto: Affonso Nunes, 2007...39

Figura 7 - Espetáculo A Cura da Cia. Gira Dança. Foto: Rodrigo Sena, 2010...39

Figura 8 – Casamento de Guillermo e Matilde, 21 de fevereiro de 1898. Foto: Fotógrafo desconhecido...46

Figura 9 - Entrada da Casa Azul, hoje Museo Frida Kahlo. Foto: Profa. Dra. Nara Salles...46

Figura 10 - Coletes de gesso e couro usados por Kahlo expostos no Museo Frida Kahlo. Foto: Profa. Dra. Nara Salles...50

Figura 11 – Kahlo pintando em sua casa, com Miguel Covarrubias, ao seu lado. Foto: Nickolas Muray...52

Figura 12 – Kahlo e Rivera, no dia do casamento. Foto: Victor Reis...53

Figura 13 – Casa de San Ángel. Foto: Guillermo Kahlo...58

Figura 14 – Trotsky e Natália na Casa Azul. Foto: Guillermo Kahlo...59

Figura 15 - Pajera Extraña del País del Punto y la Raya………...63

Figura 16 – Retrato de Neferúnico...63

Figura 17 – Danza al Sol...63

Figura 18 – Yo soy la DESINTEGRACIÓN...63

Figura 19 – Desenho...64

Figura 20 – que fea es la << gente >>!...64

Figura 21 – Desenho...64

Figura 22 – Movimiento al danzar...64

Figura 23 – El cielo la tierra yo y Diego...65

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Figura 27 – Te vas? No. ALAS ROTAS...66

Figura 28 – Pies para qué los quiero Si tengo alas pa’ volar...66

Figura 29 – Apoyo numero 1. apoyo numero dos. 2...66

Figura 30 – con mi amor a mi niño Diego Diego...66

Figura 31 – Kahlo em tração. Foto: Nickolas Muray...67

Figura 32 – Kahlo no hospital em Nova York. Foto: Nickolas Muray...72

Figura 33 – Kahlo pintando seu colete no hospital. Foto: Juan Guzman...73

Figura 34 - Retrato de mi hermana Cristina...77

Figura 35 - Frieda y Diego Rivera...77

Figura 36 - Retrato de Luther Burbank...78

Figura 37 - Frida y la operación cesárea...78

Figura 38 - Henry Ford Hospital...78

Figura 39 - Mi nacimiento...78

Figura 40 - Unos cuantos piquetitos...78

Figura 41 - Yo y Mi Muñeca...78

Figura 42 – Recuerdo...79

Figura 43 - Mi Nana y Yo...79

Figura 44 - Retrato de Diego Rivera...79

Figura 45 - Recuerdo de la herida abierta...79

Figura 46 - Lo Que el Agua Me Dio...80

Figura 47 - Las Dos Fridas...80

Figura 48 - Dos Desnudos en un Bosque...80

Figura 49 - El Sueño...80

Figura 50 - Autorretrato como Tehuana...80

Figura 51 – Raíces...80

Figura 52 - Pensando en la Muerte...81

Figura 53 - La Columna Rota...81

Figura 54 - Sin Esperanza...81

Figura 55 - Arbol de la Esperanza, Mantente Firme...81

Figura 56 - El Venado Herica...82

Figura 58 - Diego y Yo...82

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Moreira Salles...95

Figura 62 – Figurinos confeccionados para performance “Kahlo em mim Eu e(m) Kahlo”...96 Figura 63 – Espectadores da performance “Kahlo em mim Eu e(m) Kahlo” nos modelos estético e mítico...100

Figura 64 - Palavras e frases escritas em meu corpo diferenciado pelos espectadores na performance “Kahlo em mim Eu e(m) Kahlo”... 101

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INTRODUÇÃO

Existe uma preocupação que permeia minhas ações acadêmicas e que venho discutindo desde a graduação, que diz respeito à reflexão e à prática que se estriba na lógica de que se faz necessário ampliar os conhecimentos para que se possa reconhecer e aceitar a diversidade, na vida em sociedade. Isto significa a garantia de todos ao acesso às diferentes oportunidades socioeconômicas e culturais, independentemente das peculiaridades de cada indivíduo e/ou grupo social, preocupação esta que advém justamente do fato de que nos deparamos cotidianamente com uma ação inversa e que se configura como exclusão social.

E é neste sentido que venho refletindo constantemente, desde a graduação e agora por meio desta pesquisa de mestrado, sobre o fato de que os seres humanos com corpos diferenciados vêm sendo em diferentes épocas, e de várias maneiras, excluídos ou pseudo-incluídos no contexto artístico, embora haja algumas exceções artísticas na contemporaneidade.

O porquê disto é que a lógica da exclusão ainda perdura firmemente em uma sociedade que marginaliza, rejeita a diferença e encara a questão sobretudo dos corpos diferenciados como um problema em si. Neste viés, este discurso está em consonância com o processo de exclusão, assim nos deparamos cotidianamente com denominações preconceituosas que tanto inferiorizam as pessoas com corpos diferenciados, como por exemplo: deficiente, incapacitado, mongolóide, cego, aleijado, doente, idiota, excepcional, demente, portador de necessidades especiais, imbecil, inválido, cretino, coxo, manco, defeituoso, portador de deficiência, anão, imperfeito.

Destarte, no campo das artes inseridas nesta sociedade, e ao compreender que um dos pressupostos para a possível instauração do processo inclusivo na sociedade é a utilização do discurso e que a linguagem humana é mediada por dispositivos discursivos e no seu cerne estão circunscritos os valores vigentes de cada época, iniciei uma busca por um termo que fosse mais politicamente correto e não estivesse carregado de qualquer espécie de discriminação, tarefa muito difícil nesta sociedade, especificamente em relação ao trabalho

artístico de pessoas que comumente são designadas de “deficientes”, cunhei em conjunto com

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Educativo” na Revista eletrônica Extensão em Debate1, para designar pessoas com alguma

chamada “deficiência” corpóreo/mental, pois nos parece a princípio que diferenciado tem o significado de apenas ser diferente, posto que no dicionário on-line Michaelis2, diferente vem do latim differentee designa aquilo que é diverso, alterado, mudado, modificado, variado.

Enquanto que o termo deficiências proposto por Romeu Kazumi Sassaki, já está carregado pelo imaginário popular de significados negativos e de incapacidade, e do qual desejamos nos esquivar é o seguinte:

Deficiências físicas (como nome genérico englobando todos os tipos de deficiência). TERMO CORRETO: deficiências (como nome genérico, sem

especificar o tipo, mas referindo-se a todos os tipos). Alguns profissionais não-pertencentes ao campo da reabilitação acreditam que as deficiências físicas são divididas em motoras, visuais, auditivas e mentais. Para eles,

deficientes físicos são todas as pessoas que têm deficiência de qualquer tipo. (apud VIVARTA, 2003, p. 16)

A investigação do termo corpos diferenciados surgiu no ano de 2009 nos projetos de pesquisa e extensão3 propostos pelo Programa de Extensão em Artes, do Núcleo Transdisciplinar de Pesquisa em Artes Cênicas e Espetaculares, da Universidade Federal de Alagoas. Participei dos projetos e fui bolsista do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Pesquisa - Ação em 2010, entrando desta forma em contato com o estudo teórico-prático-criativo do teatro e da dança e seus processos criativos. Enquanto professor de teatro e tendo corpo diferenciado4 tive a oportunidade, principalmente na experiência advinda do contato com os discentes da Escola Estadual de Cegos Cyro Accioly5, situada no município

1 In http://www.seer.ufal.br/index.php/extensaoemdebate/article/viewArticle/66 - Revista Extensão em Debate ·

Vol. 1, No 1 (2010).

2 In http://michaelis.uol.com.br/ <acessado em 30 de novembro de 2011.>

3O ensino do teatro para portadores de necessidades especiais (2009) e Cenas Urbanas: o teatro brechtiano

como instrumento de desalienação do indivíduo diferenciado (2010), coordenados pelo Prof. Dr. Sergio da Costa Borba; Corpos Diferenciados: O Teatro no Processo Educativo (2010), coordenado pela Prof.ª Dr.ª Nara Salles.

4 Tenho Amiotrofia Espinhal Progressiva. Pertence as Atrofias Musculares Espinhais (AME). Estas têm origem

genética e caracterizam-se pela atrofia muscular secundária à degeneração de neurônios motores localizados no corno anterior da medula espinhal. A AME, afeta aproximadamente 1 em 10.000 nascimentos , com uma freqüência de doentes de 1 em 50 portadores. Suas características principais são: hipotonia, paralisia, arreflexia, amiotrofia e miofasciculação.

5 Criada através do decreto nº 2.794 de 15 de junho de 1976 e incorporada ao Programa de Educação Especial da

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de Maceió no estado de Alagoas, de compreender que alguns profissionais de artes cênicas estão empenhados na sua prática, enquanto cidadãos conscientes de sua história e, dispostos a enfrentar as injustiças sociais, a discriminação e a falta de acesso ao fazer artístico destinado às pessoas com corpos diferenciados, o que, por sua vez, me possibilitou apreender a importância da arte para estas pessoas, contextualizada nesta sociedade vigente.

Diante da experiência que adquiri na Escola Estadual de Cegos Cyro Accioly, compreendi que o trabalho cênico pode ser um caminho a ser trilhado no processo artístico com corpos diferenciados, pois o fazer cênico permite coordenar atividade intelectual, destreza física, expressão de emoções, sentimentos e afetividade dentro de uma estética própria na busca de inovações. Preparando o corpo para a cena se faz necessário estar consciente da estrutura do corpo e de seu funcionamento, pois existe a oportunidade de experimentar nos corpos: coordenação, flexibilidade, elasticidade, ritmo, agilidade, força, resistência, equilíbrio, ajuste de postura, desenvolvimento da conscientização do corpo, experiências de movimento em relação ao tempo, à dinâmica e ao espaço. Nos aspectos criativos corpóreo/vocais pode-se descobrir a capacidade de cada um para criar novos meios de expressão e comunicação com os movimentos corporais, tendo a imaginação estimulada na inter-relação de criações corporais com o grupo, instigando o intelecto de cada participante no desenvolvimento de sua própria criatividade corpóreo/vocal.

No decorrer de minha investigação compreendi que se faz necessário ponderar que a exclusão social evidentemente, não costuma considerar o pressuposto de que a desigualdade socioeconômica desempenha um papel crucial no seu interior, pois quanto mais se aumenta a distância entre poder e qualidade de vida nos grupos humanos, maiores serão as probabilidades de segregação. Logicamente, isto remete ao caráter político e público da sociedade a um lugar secundário, onde ideais como justiça social, equidade, solidariedade e democracia resultem em palavras vãs, porque não são prioritariamente os ideais necessários em um mundo em que tudo passa pela métrica do capital.

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problematizar sobre a realidade, impedindo-o de exercer o direito de exprimir sua palavra, dialogar e dialetizar acerca da sociedade em que vive, o que, desta maneira, o torna um indivíduo alienado e fragmentado. Ou seja, é visível que a coisificação do ser humano está relacionada ao isolamento e a produção e manipulação dos afetos, pois sem a oportunidade de dialogar e privado de canais de debate e reflexão sobre suas relações com o mundo e com os outros, mais alienado político, social e culturalmente se encontrará e ficará o indivíduo. Em contrapartida, diante da garantia da passividade e a divisão entre os diferentes grupos sociais, os controladores levarão adiante a perpetuação do seu poder e assegurarão a ampliação de sua força de coerção no processo de domínio, e, claramente, os sujeitos virarão meros fantoches do ponto de vista político-sócio-cultural, o que intensifica cada vez mais o processo de exclusão social.

Mas o reconhecimento e aceitação da diversidade esbarram no desejo de assegurar a homogeneidade social, que é produzida a partir de uma aversão à diferença, fazendo com que o ideal de inclusão social, geralmente, tenha dificuldade para se instaurar na sociedade. A discussão em torno da inclusão se estende à afirmação da diferença, visto que há diferenças e há igualdades, e nem tudo deve ser igual e nem tudo deve ser diferente. É imprescindível que o ser humano tenha o direito de ser diferente quando a igualdade o descaracteriza e o direito de ser igual quando a diferença o inferioriza.

No sentido de aprofundar meus questionamentos entrei para o Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas e apresento minha dissertação de mestrado enfocando seguintes aspectos: Capítulo I "Corpos Diferenciados: Estigmas na Sociedade e no Teatro Pós-dramático", realizando um panorama histórico sobre a existência dos seres humanos com corpos diferenciados na sociedade, desde a Pré-história até a contemporaneidade. Com base no relato histórico, em um segundo momento, procedo uma descrição sobre a produção de estigmas e a forma em que eles se instauram, se propagam e interferem na sociabilidade entre os indivíduos considerados normais e os com corpos diferenciados. Por fim explicito a presença dos artistas com corpos diferenciados nas artes cênicas, especificamente desde o Freak Show até o teatro pós-dramático, observando que neste último os corpos diferenciados que, até então, eram postos à margem dos processos e produtos artísticos ganham espaço, pois há o reconhecimento de que estes sujeitos sendo diferentes podem e devem experimentar o que é dado como possibilidade a qualquer corpo: fazer arte.

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da artista mexicana, seus processos criativos, suas produções artísticas e como sua arte estava intrinsecamente ligada ao seu corpo diferenciado.

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CAPÍTULO I

CORPOS DIFERENCIADOS: ESTIGMAS NA SOCIEDADE E NO

TEATRO PÓS-DRAMÁTICO

1.1 Corpos Diferenciados na Sociedade: da Pré-história à Contemporaneidade.

Para entender como as pessoas com corpos diferenciados são tratadas nas sociedades contemporâneas, se faz necessário explicitar as informações sócio-históricas e culturais a respeito delas desde Pré-história até o presente momento. Os corpos diferenciados existem desde o surgimento do ser humano na Terra, e os tratamentos dados a eles têm variado em diferentes épocas e civilizações.

Na Pré-história, embora não existam vestígios arqueológicos que provem as atitudes dos primeiros seres humanos perante a questão do corpo diferenciado, é possível deduzir que era pouco provável que o ser humano que tivesse corpo diferenciado sobrevivesse ao ambiente adverso do período. Sendo pertencente a grupos que não tinham moradia adequada para suportar as bruscas mudanças climáticas, que colhiam frutos, raízes e que precisavam ir à caça diariamente em busca de alimentos e peles de animais para se proteger, era pouco provável que o ser humano com corpo diferenciado sobrevivesse nestas condições. Portanto é dedutível que o indivíduo com corpo diferenciado fosse caracterizado como um empecilho aos grupos, visto que a garantia de sobrevivência estava intrinsecamente ligada somente àqueles indivíduos que podiam atender às expectativas de seus grupos. Logo podemos supor que os seres humanos com corpos diferenciados provavelmente morriam ou eram abandonados por seus companheiros.

No Egito Antigo, evidências arqueológicas mostram que pessoas com corpos diferenciados, especialmente as que tinham nanismo6, participavam das classes sociais e exerciam normalmente postos de trabalho. Dentre os ofícios desempenhados por eles estão: cuidadores de animais domésticos, dançarinos, caçadores, escultores, joalheiros, ourives, assim como assumiam cargos públicos relevantes, como sacerdote dos ritos funerários e chefe do guarda-roupa do faraó7.

6 O nanismo é uma doença genética que gera problemas na glândula hipófise, e que consequentemente prejudica

o funcionamento hormonal do indivíduo, fazendo com que seu corpo não cresça e se desenvolva normalmente.

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No cotidiano egípcio a presença e aceitação destes seres humanos eram tão corriqueiras, que no panteão de seus deuses há a devoção a um com corpo diferenciado: Bés. Deus da benevolência, do prazer, da alegria, protetor das mulheres grávidas e do parto, patrono da música e companheiro das crianças8, Bés tinha nanismo e é representado nos afrescos e papiros como um ser gordo, barbudo, com pernas arqueadas e possuidor de características felinas.

Figura 1 – Deus Bés. Altes Museum (Berlim/Alemanha). Foto: Site do Altes Museum9.

De acordo com José Tonezzi (2008), pesquisador e professor da Universidade Federal da Paraíba, a integração dos indivíduos com corpos diferenciados na vida social egípcia está alicerçada na crença da transmigração entre os espíritos dos animais e dos seres humanos após a morte: metempsicose10. Os principais pontos desta crença são: a imortalidade do espírito, a

8 Os egípcios com o objetivo de evitar complicações colocavam e recitavam quatro vezes orações para uma

estátua de Bés posta na cabeça da mulher em trabalho de parto. Acreditavam também que durante o parto, Bés dançava e balançava seu chocalho para afastar os espíritos malignos que poderiam amaldiçoar o recém-nascido. Após o nascimento, Bés ficava ao lado da criança entretendo-a, por isso os adultos diziam que quando a criança estava sorrindo sem nenhum motivo aparente, era Bés que estava fazendo caretas para ela. In http://leopoldina-emummundodistante.blogspot.com/2009/12/desus-bes.html <acessado em 08 de outubro de 2011>.

9 In http://www.smb.museum/smb/standorte/index.php?p=2&objID=24&n=2&lang=en <acessado em 18 de

outubro de 2011>.

10 É válido salientar a diferença entre metempsicose e metensomatose: enquanto a primeira considera a

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transmigração do espírito, a fé no mito do eterno retorno dos espíritos dos mortos e o parentesco entre todos os seres vivos. Então por meio da metempsicose, os animais e os seres humanos transmigram seus espíritos, permitindo que cada um deles retorne reencarnado em espécies diferentes da sua vida passada.

Diferente do contexto egípcio, na Grécia Antiga, especialmente nas cidades de Esparta e Atenas, onde se cultivava corpos bonitos e perfeitos, as práticas jurídicas permitiam o infanticídio11 ou o abandono de seres humanos com corpos diferenciados. Tais premissas estão escritas nos livros de Platão (República, Livros III, V e VII) e Aristóteles (Política, Livro IV – Capítulo 14). Vejamos alguns dos preceitos ideológicos platônicos:

[...] (a Medicina e Jurisprudência) cuidarão apenas dos cidadãos bem formados de corpos e alma, deixando morrer os que sejam corporalmente defeituosos [...] é o melhor tanto para esses desgraçados como para a cidade em que vivem. (PLATÃO apud AMARAL, 1995, p. 44)

[...] os (filhos) dos homens inferiores, e qualquer dos outros que seja disforme, escondê-los-ão num lugar interditado e oculto como convém. (Idem)

Por não saberem discernir essas qualidades (temperança, coragem, grandeza de alma e demais virtudes) os Estados ou os particulares incorrem, sem saber, em erro ao escolherem coxos e bastardos quando elegem os primeiros como magistrados ou fazem dos segundos seus amigos. (Ibidem)

Semelhante ao platonismo, a ideologia aristotélica defende o seguinte ponto:

[...] com respeito a conhecer quais os filhos que devem ser abandonados ou educados, precisa existir uma lei que proíba nutrir toda criança disforme. (ibidem)

A partir da Lei das XII Tábuas - primeira legislação elaborada pelos romanos – o Estado romano passou a intervir diretamente sobre a presença das pessoas com corpos diferenciados no lugar social. O Estado tinha o direito através da IV Tábua de não permitir a existência de cidadãos com corpos diferenciados, e em decorrência desse fato obrigava o pai a

11 A prática do infanticídio ainda acontece em mais de quinze tribos indígenas brasileiras, como os suruwahás e

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matar imediatamente o seu filho recém-nascido que tivesse o corpo com estas características, e mesmo se o genitor não consentisse com a execução, a sobrevivência da criança dependia da aceitação dos vizinhos. Salvaguardados em alguns casos em que os indivíduos com corpos diferenciados fossem autorizados a viver, suas heranças e seus direitos civis eram limitados ou cassados.

Do ponto de vista do pesquisador Otto Marques da Silva (1986), a intervenção estatal romana e grega, e consequentemente a profilaxia social, estavam intrinsecamente relacionadas ao investimento militar na época, pois por intermédio da seleção das qualidades corporais de seus cidadãos, se observava que aqueles que não se enquadrassem fisicamente às necessidades da produção bélica ou as guerras deveriam ser mortos.

De acordo com os códigos sócio-históricos e culturais greco-romanos na Antiguidade, nota-se que aos seres humanos com corpos diferenciados resultavam simplesmente dois caminhos: a morte ou o abandono. Aos indivíduos abandonados que tinham a sorte de serem frequentemente acolhidos por plebeus, restava somente a prática da mendicância. A plebe os explorava com o objetivo de, a partir da exposição eufemística destes seres, obter lucros que viessem a aumentar seus poucos recursos, através dos sentimentos de caridade e piedade do restante da população.

Assim, no período compreendido entre a Antiguidade e a Idade Média, sobretudo com o desenvolvimento do cristianismo, abordava-se a questão dos corpos diferenciados sob a ótica fatalista, seja natural ou sobrenatural, na qual a causa da aparição de tais características corporais preexistia ao ato de concepção dos indivíduos.

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aqueles que tinham corpos diferenciados, o clero exercia sua caridade12 e tinha a oportunidade de tratar das almas destes. Porém, ao mesmo tempo em que os protegia estes indivíduos castigados pela vontade divina eram isolados do convívio com os outros, posto que eram considerados como um incômodo no ambiente social.

Neste sentido Jean-Jacques Courtine diz:

[...] Povoando as margens da natureza, o monstro era assimilado ao animal; escapando às suas regras, ele encarna o fracasso da Criação; vivendo nos confins do mundo conhecido, ali ele proliferava em raças estranhas,

blemmyes” acéfalos, monópodes claudicando sobre sua única perna,

ciápodes repousando à sombra de seu imenso pé. Aristóteles explicava a natureza dos monstros, Plínio contava suas maravilhas: a Antiguidade já os descrevia e constituía as primícias de uma teratologia. A silhueta do monstro projetava sua sombra grotesca atrás da figura humana, desde a origem dos conhecimentos. E os humanos temiam os monstros, ou os veneravam. A cristianização dessas representações no imaginário medieval quase não modificou esta herança antiga, limitando-se a incorporá-la à pastoral cristã danação e do pecado. A deformidade corporal tornou-se um dos sinais mais evidentes do pecado e o monstro um temível cúmplice do diabo ou um enviado miraculoso de Deus, funesto presságio de sua cólera. Testemunha da onipotência dos céus e mensageiro da desgraça na terra. (2010, p. 489)

Mas decerto o tratamento funesto paradoxal aplicado aos indivíduos com corpos diferenciados dentro dos muros das instituições eclesiásticas estava assentado no entendimento religioso cristão de doença, posto que esta “se torna a chance do pecador, a

ocasião de purificar sua alma dos miasmas da corrupção que comprometem sua salvação”

(GÉLIS, 2010, p. 7)

Acreditando-se que o ser humano era criado à imagem e semelhança de Deus, fica elucidado que as pessoas com corpos diferenciados eram negativamente depreciadas pelo restante da população. Pois se tendo a convicção da semelhança a um ser onipresente, onisciente, onipotente, e, por conseguinte perfeito, se levava a cabo a ideia de perfeição como inerente aos seres humanos, por consequência aqueles que não se assemelhavam ao divino não restava senão serem estigmatizados e postos à margem da sociedade. O motivo de tal estigmatização se baseia no entendimento de que

12 O clero para manifestar sua caridade, se apoiava em uma das principais premissas da moral cristã: a crença de

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Oficialmente desprezado, sistematicamente ocultado e sempre renascente, o corpo particularizado dos indivíduos só é glorificado quando faz um todo

com outros corpos e se torna então parte de um “verdadeiro corpo” [...] Num

corpo impregnado de religiosidade cristã, o corpo não é [...] senão o habitat temporário de uma alma imortal. Tristemente sexuado, verminado para sempre, votado à corrupção e encerrando em si esta alma, o corpo não pode

– na melhor das hipóteses – passar de um instrumento a serviço da salvação, salvação pessoal e salvação comunitária que se confundem. Não obstante, porque ele ressuscitará e porque é também a imagem de Deus que escolheu fazer dele a experiência na sua própria vida humana, este corpo deve ser respeitado em vista dos fins últimos. (PELLEGRIN, 2010, p. 133)

É neste contexto que as pessoas com corpos diferenciados, sobretudo as que tinham algum tipo de diferenciação intelectual, na Idade Média foram estigmatizadas, pela religião católica da população, que tinha uma aversão à diferença e a considerava como produto demonológico, como seres portadores de poderes malignos e diabólicos.

O período medieval foi caracterizado como supersticioso em relação aos seres humanos com corpos diferenciados, e teve seu auge com a publicação de Malleus

Maleficarum13 (traduzido para português como Martelo das Bruxas), manual elaborado pelos monges alemães dominicanos que tinha por objetivo ir contra a bruxaria na Europa. Devido ao fanatismo religioso e a ignorância da população da época, as próprias pessoas com corpos diferenciados acreditavam que seus corpos eram daquela forma devido aos feitiços praticados pelas bruxas que, por meio das ações demoníacas, as deixaram com tais características corporais. E não é de se surpreender que durante a Inquisição, somente na Alemanha do século XVII mais de cem mil pessoas, dentre elas as com corpos diferenciados14, junto às consideradas bruxas, foram mortas nas fogueiras.

Como aponta Penélope Campos (2008), a noção de que estas pessoas com corpos diferenciados eram seres possuídos pelo demônio continua no período da Reforma protestante protagonizada por Martinho Lutero. Este postulava que o indivíduo com corpo diferenciado deveria ser morto por afogamento junto à sua mãe. Vejamos o que ele sugeriu, no século XV,

13 Suas principais ideias basearam-se no pressuposto de que diante da permissão de Deus, o demônio procurava

fazer ações malignas intensas aos seres humanos com o intuito de se apropriar de suas almas. Estas ações eram feitas diretamente através do corpo, único meio em que o demônio podia predominar. A influência demoníaca era praticada por meio do controle da sexualidade, e através dela, o demônio se apropriava do corpo e depois da alma do indivíduo. O manual ainda ressaltava que devido à fragilidade feminina, as mulheres eram consideradas o maior meio de propagação das ações demoníacas.

14 Se o indivíduo não melhorasse, ou piorasse, com os remédios ministrados pelos sacerdotes, sua doença era

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ao Príncipe de Anhalt sobre qual o destino deveria ser dado a criança com corpo diferenciado, especificamente a que tivesse diferenciação intelectual:

[...] Há oito anos vivia em Dessau um ser que eu, Martinho Lutero, vi e contra o qual lutei. Há 12 anos, possuía vista e todos os outros sentidos, de forma que se poderia tomar por uma criança normal. Mas ele não fazia outra coisa senão comer, tanto como quatro camponeses na ceifa. Comia e defecava, babava-se, e quando se lhe tocava, gritava. Quando as coisas não corriam como queria, chorava. Então, eu disse ao príncipe de Anhalt: se eu fosse o príncipe, levaria essa criança ao Moldau que corre perto de Dessau e a afogaria. Mas o príncipe de Anhalt e o príncipe de Saxe, que se achava presente, recusaram seguir o meu conselho. Então eu disse: pois bem, os cristãos farão orações divinas na igreja, a fim de que Nosso Senhor expulse o demônio. Isso se fez diariamente em Dessau, e o ser sobrenatural morreu nesse mesmo ano [...]. (PESSOTTI, 1984, p. 12)

O repúdio de Lutero contra as pessoas com corpos diferenciados estava assentado no fato de que:

[...] eles eram vistos como um signo da cólera dos deuses, como a punição de uma depravação extrema. Assim, um monstro não era tido apenas como ser alterado por imperfeições corporais, mas ainda mais, no pensamento que se construía, se inseriam noções tomadas ao universo moral, a suspeita de copulações culpáveis, e inúmeras outras preocupações produzidas pela ignorância e pelo fanatismo. (SAINT-HILAIRE apud TONEZZI, 2008, p. 44)

No século XVI, embora ainda houvesse resquícios da herança medieval sobre os modos de compreensão e tratamento oferecidos aos corpos diferenciados, surgem algumas inovações epistemológicas que reorientam o olhar do âmbito supersticioso para o científico. Essas tinham como função analisar cientificamente o corpo e os comportamentos que não tinham sidos explicados até então. Deste modo, a partir do interesse pelo corpo e sua anatomia, ocorre o desenvolvimento da medicina.

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[...] Paracelso (1493 1541), talvez tenha sido um dos primeiros a iniciar a idéia de que os deficientes mentais não eram pessoas endemoniadas, mas sim, doentes que necessitavam de tratamento. A visão organicista de deficiência mental inaugura-se com Thomas Illis (1621 - 1675) [...] que começa a entender a deficiência como proveniente do cérebro. A partir dele e de outros teóricos como Torti (1658 - 1741) começa a retira-se da deficiência o fundo sobrenatural. É válido lembrar ainda que loucos e idiotas eram agrupados na mesma classe quanto às formas de tratamento e locais de internação. Somente a partir do século XIX ocorrerá a diferenciação entre doenças mentais e deficiência mental. Essa diferenciação aparece em Esquirol [...] que distinguia o demente ou imbecil (louco) do idiota (deficiente). De acordo com ele, os imbecis seriam geralmente bem-formados, aparentemente normais, teriam faculdades intelectuais e afetivas em um grau menor que a de um homem perfeito. As causas da insanidade seriam ligadas ao clima, às estações do ano, à idade, ao temperamento, às profissões, aos modos de vida, às leis, à civilização, às condições morais e políticas das pessoas. Já os idiotas não teriam faculdades morais e intelectuais. Elas não foram destruídas, mas nunca se desenvolveram. Eles também apresentariam características físicas bem-definidas, como crânio pequeno e grande face, o que significaria um grau inferior de inteligência. Ainda, para ele, a idiotia não seria uma doença, mas uma condição em que as faculdades intelectuais nunca se manifestam, ou não se desenvolvem o suficiente para que se adquira conhecimento. Segundo esta teoria, a condição do demente poderia mudar, mas a do idiota nunca. (CAMPOS, 2008, p. 13 –

14)

Todas essas mudanças de pensamentos atribuídas aos corpos diferenciados estão relacionadas ao novo paradigma do corpo surgido na Modernidade. As representações do corpo na Antiguidade até a Idade Média estavam baseadas na noção de que o ser humano estava diretamente ligado ao universo, não havia a separação entre o corpo dele e o cosmos, por este motivo as pessoas com corpos diferenciados eram estigmatizados como sendo produtos de ações demoníacas e/ou castigos divinos. Conforme estas representações David Le Breton aponta para a circunstância de que:

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Entretanto, com a transformação ontológica ocorrida na Modernidade, o ser humano, que até então era inseparável da sua comunidade, da natureza e do cosmos, se encontra envolvido numa trama social, sobretudo nas sociedades ocidentais, na qual seu corpo acaba sendo separado do cosmos, dos outros e de si mesmo. Então a “[...] noção moderna de corpo é

um efeito da estrutura individualista do campo social, uma conseqüência da ruptura da solidariedade que mescla a pessoa a um coletivo e ao cosmos por meio de um tecido de correspondências na qual tudo se entrelaça.” (Idem, p. 21).

Resultante do individualismo, que preconiza a distinção corpo (matéria) e pessoa (ser), o corpo concretiza-se como fronteira de um indivíduo e seu semelhante, e é nesse viés que a ciência aproveita o abandono da visão teológica e dessacralização da natureza pela individualização do ser humano para desenvolver pesquisas anatômicas no corpo humano,

posto que o “estudo da alma devia ser entregue aos padres e aos metafísicos: a medicina devia estudar as causas segundas, não as causas primeiras, o como mas não o porquê nem o para quê (a finalidade).” (PORTER; VIGARELLO, 2010, p. 464)

A ideia dualista que agregava o corpo ao ter e não mais ao ser foi acentuada, em 1543, com a publicação de De corporis humani fabrica do anatomista André Vesalius. Interrogado cientificamente como realidade autônoma e podendo ser pesquisado por si mesmo, o corpo passou a ser virtualmente desagregado do indivíduo e foi colocado como suporte, objeto, passível de ser dissecado e estudado em partes. René Descartes, influenciado pelas descobertas anatômicas, compartilha e continua o dualismo vesaliano, e em seu pensamento cartesiano, faz do corpo um análogo à máquina15. Deste modo, sob a perspectiva da medicina,

[...] A mecanização do corpo admite vários graus de complexidade e metáforas variadas, mas, fora desta diversidade, ela progride inexoravelmente na literatura anatômica desde a segunda metade do século XVI, subtendida por alguns traços comuns fundamentais. É a ideia, de um lado, de que basta entender bem a organização das partes para compreender as funções vitais e explicá-las. E, de outro lado, que o princípio de fragmentação traz, pela segmentação do corpo, os elementos constitutivos da máquina: dissecação e composição das partes, desmontagem e montagem das peças. (MANDRESSI, 2010, p. 436)

15 A ideia cartesiana de corpo-máquina, na qual defendia a submissão do corpo biológico perante a mente, foi

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E com o avanço da racionalização e das pesquisas sistemáticas no âmbito da medicina científica, as percepções e as práticas previsíveis acerca das curiosidades, dos tratamentos, das formas de comércio e de exibições das pessoas com corpos diferenciados adquirem apaziguamento diante dos discursos proferidos pela ciência da teratologia16, entre a metade do século XVI e ao longo do século XVIII. Portanto, com o desenvolvimento da observação, dos anseios e do rigor do saber teratológicos, os indivíduos com corpos diferenciados aos poucos foram ultrapassando as resistências teológicas cristãs para se tornarem objetos desmistificados da observação da ciência moderna, uma vez que “uma canalização do olhar curioso expulsam

aos poucos o sagrado e o oculto do território da ciência, submetem o acaso das coletas a interrogações e classificações mais rigorosas, e fazem entrar, não sem resistência, a exceção

teratológica no espaço ordenado do laboratório de história natural.” (COURTINE, 2010, p.

491)

Neste período ocorre também a proliferação de instituições17 cujo o interesse principal era segregar e dominar as pessoas consideradas inúteis e inválidas, dentre elas as que tinham corpos diferenciados, do convívio com os outros nas sociedades modernas.

Dentro das instituições de caráter segregacionista (manicômios, hospitais e prisões) “o

corpo encontra-se [...] em posição de instrumento ou de intermediário; qualquer intervenção sobre ele pelo enclausuramento [...] visa privar o indivíduo de sua liberdade [...] o corpo é

colocado num sistema de coação e de privação [...]” (FOUCAULT, 2009, p. 16). E no decorrer dos séculos XVII e XVIII, através de excessiva vigilância e utilização de métodos disciplinares, as instituições passam a ter, em suas dependências, total domínio sobre os corpos diferenciados, “não simplesmente para que façam o que se quer, mas para que operam como se quer [...]” (Idem, p. 133).

O poder disciplinar instaurado nessas instituições, inicialmente está preocupado em vigiar e regular os corpos diferenciados internados em suas dependências, em seguida, disciplinar individualmente o sujeito e seu corpo. Por conseguinte, o policiamento e disciplinamento têm por objetivo isolar e individualizar, cada vez mais, o sujeito, ou seja, produzir um indivíduo que tenha a possibilidade de ser tratado como um corpo dócil, pois

16 Ramo da medicina que estuda os fatores genéticos e ambientais que interferem na normalidade pré-natal.

17 As primeiras instituições foram construídas na Idade Média. Além de internarem, e por consequência,

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[...] visa não unicamente o aumento de suas habilidades, nem tampouco aprofundar sua sujeição, mas a formação de uma relação que no mesmo mecanismo o torna tanto mais obediente quanto é mais útil, e inversamente. Forma-se então uma política das coerções que são um trabalho sobre o corpo, uma manipulação calculada de seus elementos, de seus gestos, de seus comportamentos. O corpo humano entra numa maquinaria de poder que o esquadrinha, o desarticula e o recompõe. Uma "anatomia política", que é também igualmente uma "mecânica do poder" [...] ela define como se pode ter domínio sobre o corpo dos outros, não simplesmente para que façam o que se quer, mas para que operem como se quer, com as técnicas, segundo a rapidez e a eficácia que se determina. A disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados, corpos "dóceis". A disciplina aumenta as forças do corpo (em termos econômicos de utilidades) e diminui essas mesmas forças (em termos políticos de obediência). Em uma palavra: ela dissocia o poder do corpo; faz dele por um lado uma "aptidão", uma "capacidade" que ela procura aumentar; e inverte por outro lado a energia, a potência que poderia resultar disso, e faz dela uma relação de sujeição estrita. Se a exploração econômica separa a força e o produto do trabalho, digamos que a coerção disciplinar estabelece no corpo o elo coercitivo entre uma aptidão aumentada e uma dominação acentuada. (Ibidem, p. 133 - 134)

Em um contexto, no qual o corpo é tratado como objeto passível de se tornar dócil, se desenvolvem, no século XIX, a partir do aparecimento da Revolução Industrial, as relações trabalhistas, que têm em seu bojo a presença das pessoas com corpos diferenciados. É sabido que devido às péssimas condições de trabalho nas fábricas, muitas pessoas sofreram, em demasiadas proporções, acidentes que as fizeram ter corpos diferenciados.

Os trabalhadores não tinham direito a insalubridade, cabia a eles se protegerem do ambiente perigoso e cuidarem da própria saúde, posto que se sofressem acidentes, ficassem doentes ou se lesionassem, nenhum benefício trabalhista seria a eles oferecido, pois aos olhos dos empresários a produção estava acima das suas miseráveis vidas. É nesse período que se difundem organizações que prestam serviços especializados de reabilitação, participação social e educação a pessoas com corpos diferenciados e aos trabalhadores acidentados, isto

porque “o século XIX conservará a honra de ter também dado nascimento à idéia de

reabilitação e reintegração dos enfermos, considerados através do prisma de uma corporeidade ferida pela sociedade, de uma corporeidade reparável e da qual somos

coletivamente devedores.” (STIKER, 2009, p. 370)

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pessoas, tendo congenitamente ou adquirindo corpos diferenciados, continuavam sendo seres humanos, e tinham que ser integradas socialmente. Isto, junto aos trabalhadores acidentados que por consequência tiveram corpos diferenciados, gerou cotidianamente práticas cirúrgicas de amputação e a produção de próteses que visavam compensar a restrição ou a incapacidade que o indivíduo com corpo diferenciado tinha para realizar as atividades do dia a dia.

O reconhecimento e a aceitação da alteridade dos indivíduos com corpos diferenciados no seio da sociedade se constituíram a partir das mutações das sensibilidades que deram a estes indivíduos o caráter de serem indubitavelmente humanos, diferente do que acontecia em épocas precedentes.

Mas no que tange à humanização dos seres humanos com corpos diferenciados no período da Segunda Guerra Mundial, percebe-se que este direito não foi assegurado pelo nazismo, visto que um de seus princípios ideológicos se baseava no mérito da manutenção e da propagação qualitativa e quantitativa da raça humana superior (ariana), e a esterilização das demais: eugenismo. E os seres humanos que não se enquadrassem no princípio eugenista, incluindo os corpos diferenciados, deveriam ser controlados, mortos e/ou tidos como cobaias de experimentos científicos nos campos de concentração, em especial o de Auschwitz. Pois a

premissa primordial da prática nazista era “livrar-se dos indesejáveis, multiplicar os

desejáveis” (PEARSON apud COURTINE, 2009, p. 207).

Observemos a seguir alguns dos discursos que certamente influenciaram incisivamente as atitudes desumanas do nazismo perante os indivíduos considerados inferiores:

Os que sucumbem merecem sucumbir [...], sua inferioridade explica, justifica e legitima o seu esmagamento. Da mesma forma, em nossas sociedades humanas, os mais inteligentes, os mais fortes, os mais bravos devem levar a melhor sobre os que são moles, efeminados e imbecis [...]. Mas nossas civilizações possuem tesouros de indulgência pelos medíocres, protegem os doentes, os poltrões, os miseráveis, os enfermos, e cercam de tocantes cuidados os fracos, os feios e os cretinos. (RICHET apud Idem, 308)

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As efetivas noções de inclusão, reabilitação, educação e habilitação das pessoas com corpos diferenciados, depois das guerras, passaram a ser discutidas a partir da existência de documentos oficialmente instituídos que tiveram e ainda têm a finalidade de alavancar e assegurar os seus direitos no sentido da garantia de direitos igualitários e a liberdade, como por exemplo: a Declaração Universal dos Direitos Humanos, instituída no ano de 1948, manifestada pela Organização das Nações Unidas – ONU; a Declaração dos Direitos das Pessoas Deficientes – ONU (1975); a Carta para a Década de 80 – ONU destinada a estabelecer metas dos países-membros visando assegurar igualdade de direitos e oportunidades para as pessoas com deficiência; a Década das Nações Unidas para as Pessoas com Deficiência (1983-1992); a Declaração de Salamanca – Princípios, Política e Prática em Educação Especial (1994); a Convenção Interamericana para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Pessoa Portadora de Deficiência (1999); a Declaração de Caracas (2002); a Declaração de Sapporo (2002); o Ano Iberoamericano da Pessoa com Deficiência (2004); e mais recentemente a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (2008) ratificada pelo Brasil, por ser membro integrante da ONU.

Em todos esses documentos pode-se observar a reivindicação de um modelo de sociedade abrangente baseada no princípio de que todas as pessoas têm o mesmo valor e que, portanto, a sociedade em geral deve empenhar-se para atender as diferentes necessidades de cada cidadão. A noção de sociedade igualitária envolve inúmeras mudanças nos âmbitos político, filosófico, ideológico e funcional e para sua efetivação se faz necessário interesse, vontade política e fomento de todos.

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1.2 O Estigma dos Corpos Diferenciados.

Como já foi exposto, as pessoas com corpos diferenciados no decurso da história da humanidade sempre foram, de diversas formas, estigmatizadas pelos outros, considerados normais, em decorrência de suas características corporais.

O termo estigma foi cunhado pelos gregos para designar sinais corporais que destacavam qualquer coisa maravilhosa ou maligna sobre o status social de quem os tinha. Intencionalmente produzidas, através de cortes ou de ferro incandescente, as deformidades e/ou as cicatrizes, marcavam o indivíduo pelo resto de sua vida, e serviam para denunciar se ele era um criminoso, um escravo ou um traidor, o que enfim demonstrava que o indivíduo deveria ser mal-visto e evitado em todas as esferas sociais.

Com o início da filosofia teológica cristã, dois diferentes aspectos explicavam os estigmas nos corpos dos indivíduos: o primeiro considerava que os sinais corporais que se assemelhavam as chagas de Cristo e/ou que apareciam em forma de flores eram frutos da vontade divina; a segunda explicação se referia às doenças que provocavam erupções na pele ou por deformidades, congênitas ou adquiridas, no corpo. Porém na contemporaneidade o estigma se imputa mais nas relações interpessoais que podem ser determinadas por características corporais.

Destarte, cada sociedade seleciona, dentro das suas características sociais, históricas e culturais, uma determinada quantidade de atributos e valores que ajustam a maneira como cidadãos devem ser corporal, intelectual e moralmente. Esses atributos devem ser iguais, mesmo havendo poucas diferenças, para todos os cidadãos, grupos e classes da sociedade, o que acaba resultando em expectativas normativas. Os sujeitos que não se encaixam nelas acabam sendo estigmatizados, como é o caso das pessoas com corpos diferenciados.

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de geração em geração, os quais produzem atitudes discriminatórias em relação a religião, a nação e raça.

Assim, um indivíduo com corpo diferenciado, se não o tivesse, poderia participar normalmente das relações sociais do seu cotidiano, mas como apresenta singulares características corporais que fogem dos padrões normativos da sua sociedade, seu corpo diferenciado acaba acentuando as atenções alheias, e por consequência destas, os outros esquecem que o indivíduo é um ser humano como outro qualquer.

Todas as barreiras atitudinais aplicadas nas pessoas com corpos diferenciados –

preconceito, discriminação e estigma - são oriundas do entendimento e contribuem para o fato de que o corpo é uma construção social e cultural, ou seja:

As representações do corpo, e os saberes que as alcançam, são tributários de um estado social, de uma visão de mundo, e, no interior desta última, de uma definição de pessoa. O corpo é uma construção simbólica, não uma realidade

em si.” (LE BRETON, 2001, p. 18)

Portanto, a construção social e cultural do corpo está crivada por códigos que estabelecem estereótipos corporais (feio/bonito, deficiente/eficiente, improdutivo/produtivo, anormal/normal) que delineiam expectativas normativas, onde os parâmetros em relação aos diversos corpos cooperam para o estabelecimento de estigmas.

Por seu caráter visual, os estigmas efetivados nos corpos diferenciados dos sujeitos provêm e se estabelecem nas relações interpessoais a partir da hegemonia do olhar. Na vida cotidiana contemporânea, foi atribuído ao olhar a responsabilidade de regular as manifestações e as atividades do corpo; no seio das relações entre os sujeitos, o olhar dos normais submete aqueles com corpos fora dos padrões de beleza e normalidade vigentes, a possibilidade deles serem evitados a todo instante da sociabilidade, ora pelo contato físico ora pela distância traçada de seus corpos, engendrando nos outros um incômodo ou uma hesitação durante a interação. Esse poder coercitivo, estigmatizante e normalizador do olhar perante aos indivíduos com corpos diferenciados se estriba na seguinte constatação:

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desencantamento, a radical alteridade que nele a sociedade tradicional temia ou venerava [...] (COURTINE, 2009, p. 259 – 260)

Na perspectiva das pessoas com corpos diferenciados, o estigma não é apenas relacionado às referências atribuídas aos estereótipos difundidos socioculturalmente, mas também nas relações de linguagem estabelecidas entre o estigma e suas consequências sobre os indivíduos estigmatizados. É, pois, neste ínterim que o sujeito:

[...] se dá conta e se sente a simples proximidade de um isolamento, tornado possível por meio de uma deficiência, de uma falha intermitente ou de uma

“anormalidade” exposta [...] no qual a pessoa atingida é vista e aprende a se

ver como diminuída, devendo isolar-se e manter-se oculta, abstendo-se das relações sociais, que [...] a estigmatização ganha força e se impõe tanto por meio do comportamento retraído do sujeito quanto do tratamento que lhe é dado por aqueles que o circundam. (TONEZZI, 2007, p. 45)

Todavia, o sujeito com corpo diferenciado pode reagir de forma diferente. Mesmo tendo consciência de que seu corpo é diferenciado dos demais, o indivíduo, que está incessantemente sob os olhares preconceituosos, pode aceitar o fato de ser este corpo diferenciado e se sentir normal como qualquer ser humano. Desta forma,

O indivíduo estigmatizado [...] tende a ter as mesmas ideias que nós sobre a identidade [...] certamente, aquilo que experimenta no mais profundo dele

mesmo talvez seja o sentimento de ser uma pessoa ‘normal’, um homem semelhante a todos os outros, uma pessoa, portanto, que merece sua chance e um pouco de descanso. (GOFFMAN apud LE BRETON, 2011, p. 217)

É válido lembrar que o estigma neste caso está ligado, principalmente, ao corpo. E,

sendo a atualidade uma “época em que prevalecem a economia de mercado e o valor simbólico das mercadorias, é preciso atentar para o fato da importância que o corpo adquire e alçá-lo a um patamar condizente com a sua condição e significação.” (TONEZZI, 2007, p. 57).

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valores desiguais e preconceituosos da sociedade, influenciando, sobretudo, na maneira como pensam e idealizam sobre seus corpos.

Compreendendo que o corpo é construído historicamente, pode-se entender o significado e a percepção individual e coletiva do que vem a ser ideário sobre o corpo para cada época ou ao longo da história. Assim, a sociedade atual, enraizada da ideologia capitalista neoliberal, transforma os imaginários sociais das pessoas com corpos diferenciados através dos meios de comunicação de massa.

Diante da nova forma de dominação política e social, nada, nem mesmo o corpo fugirá da métrica mercadológica, onde a soberania da força da imagem determina o padrão de corpo perfeito, esquecendo das variadas funções que o corpo pode realizar seja completo, inteiro ou não.

Ocorrendo a proliferação de imagens de pessoas com corpos malhados, esculpidos cirurgicamente e, por outro lado em contraste, os deteriorados, muitas vezes ocasionados pelo uso de drogas, a publicidade nos meios de comunicação em massa evoca, sob a égide da valorização corporal, no imaginário social, as imagens de corpos, que na maioria das vezes os indivíduos não têm: saudáveis, jovens, sedutores, bonitos, magros. Neste sentido, o sujeito com corpo diferenciado passa cotidianamente, nas trocas sociais, por atitudes preconceituosas e estigmatizantes, haja vista que seu corpo impede que os outros se identifiquem fisicamente com ele, e consequentemente

[...] Em decorrência de sua enfermidade, este último encontra-se mais ou menos imediatamente excluído das trocas mais correntes por causa da incerteza que envolve todo encontro com ele. Perante esses atores, o sistema de expectativa é rompido, o corpo se dá subitamente com uma evidência inquestionável e se torna difícil negociar uma definição mútua fora dos referenciais costumeiros. (LE BRETON, 2011, p. 215)

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desígnios divinos. No sarcasmo o indivíduo com corpo diferenciado é considerado inferior aos demais e por isso se torna alvo de especulações que variam da ironia ao escárnio. Já o constrangimento promove reações tensivas entre os ‘normais’ e os ‘anormais’, pois quem tem corpo diferenciado é classificado como fora da normalidade, e por este fato deve ser excluído do convívio em sociedade.

Mas fica evidente que quanto mais o indivíduo, considerado dentro das expectativas normativas, não saiba como se comportar diante daquele ser diferenciado e quanto mais suas características corporais não são semelhantes as do sujeito com corpo diferenciado, mais potencializada e difícil será a possibilidade de se começar e permanecer uma relação entre eles. Isso acontece porque os seres humanos com corpos diferenciados fragmentam simbolicamente a imagem convencional do corpo que não tem nenhuma diferenciação.

A respeito das relações entre os sujeitos, a insegurança não é exclusividade somente dos indivíduos que não têm nenhuma diferenciação corporal. Para Goffman (1975), as pessoas com corpos diferenciados compartilham a insegurança com os outros a cada novo encontro, isso tende a acontecer por que a todo instante eles se perguntam sobre de qual maneira serão percebidos e incluídos no convívio social. Entretanto, mesmo havendo reações adversas dos outros, como por exemplo, a inclusão, as solicitudes, dentre outras, os indivíduos com corpos diferenciados se angustiam diante da possibilidade de não conseguirem atender, no mínimo, as expectativas normais de qualquer relação.

Entre todos os aspectos que possibilitam a existência e a instauração do processo estigmatizante, o que mais se transparece é a concepção de que os indivíduos com corpos diferenciados não são considerados seres humanos completos, capazes de efetuar normalmente atividades cotidianas como os outros. Na sociabilidade, eles não são, em grande parte, considerados sujeitos, pois diante da maneira como seus corpos são exibidos na vida cotidiana, os discursos, geralmente, não explicitam as causas que levaram os corpos a serem diferenciados, mas proliferam a ideia de que estes indivíduos nas suas identidades serem essencialmente diferenciados, ao contrário de serem corpos diferenciados, ou seja, os indivíduos normalmente julgam as pessoas com corpos diferenciados como sendo diferenciadas no lugar de terem corpos diferenciados.

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simples presença dos seres humanos com corpos diferenciados, no seio das variadas relações sociais, se torna um fator de perturbação entre os demais, uma vez que suscita neles a recordação de que por mais que se tente escapar da precariedade e da fragilidade da condição humana, por meio de procedimentos obstinados a prolongar suas vidas, seus corpos não conseguirão fugir da progressiva morte.

1. 3 Corpos Diferenciados na Cena: do Freak Show aoTeatro Pós-Dramático.

Sendo a arte um fenômeno sociocultural de cunho estético e realizado pelo e para o ser humano através de um ato intencional comunicativo, percebe-se que no decurso de sua história os seres humanos com corpos diferenciados nem sempre foram partícipes de processos artísticos e encenações teatrais, como na atualidade. De acordo com Rosemarie Thomson (1996) e Tonezzi (2008), o artista com corpo diferenciado era fortemente renegado dos espetáculos de sala, entre os séculos XVII e XIX, e esporadicamente participava das montagens, e quando participava, a ele ficava delegado a disfarçar sua diferenciação corporal. Enquanto isso, com base em constatações históricas, é a partir do século XVIII, com o aparecimento do Freak Show (espetáculo de excentricidades), que há a apreciação e utilização espetacular dos seres humanos com corpos diferenciados.

Figura 2 - Corpos diferenciados no Freak show e no entre-sort. Foto: Site The Human Marvels18.

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Considerado uma prática reprovável e eticamente dúbia, para os parâmetros contemporâneos, o Freak Show ganhava cada vez mais importância como modo de entretenimento para a população da época mencionada acima e se tornara um potencial negócio de extremo lucro para seus produtores. Suas apresentações ocorriam em feiras e eventos populares, onde eram exibidas pessoas com diferentes graus de diferenciação corporal e, posteriormente, indivíduos capazes de realizar atividades incomuns (pirofagia, contorcionismo, deglutição de objetos, adestramento de animais selvagens). Com o passar do tempo, foram integradas nas apresentações pessoas cujos corpos tinham marcas e alterações decorrentes de costumes culturais ou feitas de forma voluntária, ação esta que a partir de 1960 viria a ser conceituada como body art.

Comumente associado a uma atividade desumana e posto à margem da cena cultural, o Freak Show foi considerado como uma manifestação artística inferior às demais. As razões que caracterizam este entendimento estão relacionadas a questões éticas, morais, estéticas e aos estigmas. Diferente do que se crê, o Freak Show não maculava nem diminuía as pessoas com corpos diferenciados exibidas. Pelo contrário, nele os sujeitos, que eram tidos como escaras da sociedade, podiam conviver e compartilhar com outros na mesma situação, e até mesmo obter um status social mediante o comércio de excentricidades.

Semelhante ao Freak Show, na França da segunda metade do século XIX e nas primeiras décadas do século XX, surgiu e se proliferou nas festividades populares uma prática espetacular de cunho comercial de entretenimento denominada entre-sort. Esse tipo de espetáculo exibia animais selvagens, modelos anatômicos de cera de patologias sexuais, fetos de exemplares teratológicos, rituais exóticos, números de mágicas e ilusionismos, além de seres humanos com diferentes tipos de corpos diferenciados.

Sobre o entre-sort Jules Vallès faz uma interessante explicação:

Este é o nome que se dá [...] das estranhezas anatômicas que povoam as feiras e ruas parisienses, o teatro, numa cortina numa viatura ou barraca, onde se colocam os monstros, bezerros ou homens, ovelhas ou mulheres. A palavra é característica. O público sobe, ergue-se o fenômeno, emite um balido ou fala, muge ou estertora. Entra-se, sai-se, é isto aí. (apud

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Figura 3 - Pessoas de diferentes idades eram exibidas no Freak Show e no entre-sort. Foto: Site The Human Marvels19.

Figura 4 - Diferentes tipos de corpos diferenciados exibidos no Freak Show e no entre-sort. Foto: Site The Human Marvels20.

Todavia no paradigma da arte contemporânea, os corpos diferenciados que, até então, eram postos à margem dos processos e produtos artísticos ganham espaço, pois artistas, como Robert Wilson e mais próximos de nossa realidade a Companhia Gira Dança, percebem que

19 Idem.

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os corpos diferenciados, sendo diferentes, podem e devem experimentar o que é dado como possibilidade a qualquer corpo: fazer arte, como já afirmado anteriormente.

Iminentemente é possível atentar que o processo de estigmatização, a qual os artistas com corpos diferenciados sofrem, está relacionado, sobretudo, a maneira como seus corpos são e se apresentam, já que suas diferenciações corporais fazem surgir uma corporeidade peculiar em cena. Ao apresentar seu corpo, o artista considerado fora de padrão, ainda que não seja de sua vontade, interfere e provoca reações de cunho social e estético que se opõem aos cânones cênicos tradicionais. Porém, antes da inclusão efetiva no âmbito artístico, a presença destas pessoas em cena se instala no âmago social e antropológico, visto que concerne a um grupo, explícita ou implicitamente, excluído na medida em que suas condições físicas se contrapõem aos padrões de corpo e de beleza estabelecidos.

O corpo humano, sendo diferenciado ou não, tanto na sociedade como na cena, se caracteriza como uma matriz corpóreo/vocal, conceito defendido por Nara Salles (2004), com o qual coaduno, onde o corpo é compreendido inicialmente dentro de uma matriz identitária de auto-reconhecimento, relacionado ao meio ambiente cultural,levando em consideração sua subjetividade: que corpo é esse; que movimentos do cotidiano podem-se decodificar em extracotidianos para ter um corpo significante; como se move este corpo nos vários ambientes vivenciados e o que traz na memória e percepção corpórea, o imaginário deste corpo e as formas de lidar com o corpo culturalmente estabelecidas.

No teatro pós-dramático, o corpo diferenciado entendido como matriz corpóreo/vocal está presente nos trabalhos do diretor de teatro norte-americano Robert Wilson. No mesmo período que iniciou sua carreira artística como encenador, Wilson passou a conviver com pessoas com corpos diferenciados. Ainda na universidade, sob a orientação da bailarina Byrd Hoffman, desenvolveu atividades com crianças com corpos diferenciados (alterações de comportamento). Esta experiência o levou a notar que o contato entre a cena e os corpos diferenciados, ao invés de ser prejudicial, contribuiria para a construção de uma linguagem teatral e de uma expressão cênica singular.

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Figura 5 - Raymond Andrews (no centro) no ensaio de Deafman Glance. Foto: Mel Andringa, 1970.

Já no contexto da dança contemporânea no Brasil, em 2005, na cidade de Natal no estado do Rio Grande do Norte foi fundada pelos dançarinos, ex-integrantes da Roda Viva Cia. de Dança, sobre a qual falarei mais adiante, Anderson Leão e Roberto Morais a Cia. Gira Dança. Tendo como proposta artística ampliar a discussão sobre a dança, a Cia. Gira Dança através da busca por uma linguagem própria, voltada, sobretudo nos últimos trabalhos com a cooperação da bailarina Jaquelene Linhares para um conceito do corpo como meio de criação de experiências únicas no público e no artista, tem em seu elenco artistas com e sem corpos diferenciados.

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Figura 6 - Espetáculo Corpo Estranho da Cia. Gira Dança. Foto: Affonso Nunes, 2007.

Figura 7 - Espetáculo A Cura da Cia. Gira Dança. Foto: Rodrigo Sena, 2010.

Segundo a dançarina, coreógrafa e educadora Carolina Teixeira (2010), antes da Cia. Gira Dança ser reconhecida, outra companhia potiguar fez grande sucesso no cenário artístico brasileiro e internacional, esta intitulava-se Roda Viva Cia. de Dança21. Nascida no Departamento de Fisioterapia da Universidade do Rio Grande do Norte, em 1995, especificamente no projeto de pesquisa coordenado pelo professor Ricardo Lins, a Roda Viva

21 Como fazia parte de um projeto de extensão universitária, era chamada de Roda Viva Dança Sobre Rodas. E,

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Cia. de Dança inicialmente fazia parte de um programa de atividades de cunho pedagógico/terapêutico que tinha por objetivo reabilitar e reinserir socialmente as pessoas com corpos diferenciados, sobretudo as que tinham sido vítimas de algum tipo lesão medular traumática. Nesta mesma época, Henrique Amoedo insere a dança nas atividades do projeto, e consequentemente este se torna um projeto de extensão universitária na área de dança voltada às pessoas com e sem corpos diferenciados.

A Companhia teve, desta forma, no seu elenco pessoas sem e com corpos diferenciados. A transição de atividade pedagógica/terapêutica para o campo artístico na área da dança aconteceu com a primeira turnê da companhia no sudeste brasileiro, em 1996, com o espetáculo Pernas pra que te quero, com direção de Henrique Amoedo e coreografia de Edson Claro. Desde 2009 a companhia se encontra em um hiato sem previsão de volta às atividades.

A efetiva participação de artistas com corpos diferenciados nas artes cênicas, sobretudo no teatro, se dá essencialmente, a partir dos anos 1960, com o surgimento e o contato com uma prática artística experimental disposta a ultrapassar as fronteiras entre as artes: a performance. O que está por trás da performance, tanto no sentido ideológico como no formal, é a tentativa de romper com o que se chamava de arte pura e, por conseguinte, a descoberta e a valorização de elementos e procedimentos considerados não artísticos.

Na procura por um entrecruzamento entre vida real cotidiana e vida esteticamente organizada, o artista da performance se converte em mediador do processo político-social e revalida que é possível pensar "o político" sem aderir à política partidária. Está em pauta não mais a representação de um personagem, mas a experiência do real pelo e no corpo do artista, tendo o corpo como força motriz da ação, e desta forma se caracteriza não mais como a interpretação do real como ele é, mas sua utilização auto-reflexiva, ou seja, ela é aquilo que é comunicado por aqueles que a comunicam e as provocações e questionamentos gerados a partir da ação.

Imagem

Figura 1  – Deus Bés. Altes Museum (Berlim/Alemanha). Foto: Site do Altes Museum 9 .
Figura 2 - Corpos diferenciados no Freak show e no entre-sort. Foto: Site The Human Marvels 18
Figura 3 - Pessoas de diferentes idades eram exibidas no Freak Show e no entre-sort. Foto: Site The Human  Marvels 19 .
Figura 5 - Raymond Andrews (no centro) no ensaio de Deafman Glance. Foto: Mel Andringa, 1970
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Referências

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