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De corpo e alma.

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Academic year: 2017

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Guilherme Werlang

Departamento de Humanidades e Saúde – UFF

RESUMO: As noções de “corpo” e “alma”, dentro do universo dual dos Marubo do sudoeste da Amazônia, aproximam-se de outras contribuições deste volume, primeiro, em vista da presente preocupação, em perspectiva universalizante, com questões epistemológicas na Amazônia; segundo, em vista da relevância, ora bem perene, da ontologia indígena (aqui mais en-quanto “presentificação” que “investigação” ou “relato” das origens do cos-mos e de todas as formas de ser que nele se dá) para com o conhecimento, de tendência particularizante, da performance dum ethos cognitivo. PALAVRAS-CHAVE: Amazônia, Brasil, Marubo, pessoa, cognição, onto-logias indígenas.

Uma vez que o pensamento é inseparável da ação e da motivação, não estamos lidando tanto com “lógicas” ou racionalidades diferentes, e sim com modos totais de ser, de inventar o eu e a sociedade. (Wagner, 1981, p. 117)

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Este ensaio coloca em questão a plausibilidade das noções “corpo” e “alma” desde dentro do universo dual dos Marubo do sudoeste da Ama-zônia.1 Há uma dupla implicação da questão na “familiaridade com as

epistemologias e ontologias de outras culturas” (Overing, 1985, p. 7). Uma, em vista do presente interesse – como este volume tão bem ilus-tra –, na perspectiva pós-estruturalista sobre questões epistemológicas na Amazônia. Outra, em vista do entendimento – mais de vinte anos após a publicação de Reason and Morality – da ontologia indígena como “presentificação”, aquém e além de “investigação” ou “relato”, das ori-gens do cosmos e de todos os seres que há nele, visando ao entendimen-to da performance dum ethos cognitivo.

Está clara a correspondência dessas duas visões àquelas que neste vo-lume expõe Dan Rosengren. Ao leitor serão elas familiares, levando-o no que virá a seguir a suas conclusões próprias. Enquanto ex-aluno de Joanna, minhas próprias conclusões propõem um passo adiante de suas antigas preocupações, passo que parece com ela condizer: partir duma “atenção ao linguajar comum, à pragmática dos atos de fala comuns”, para chegar à forma, poética ou o que for, com a qual “os outros falam de seus mundos sociais” (Overing, 1985, p. 7-19).2

* * *

O que segue é uma série de trechos etnográficos que até agora fica-ram de fora de meus escritos anteriores sobre a mítica dos Marubo, po-vos indígenas do Alto Vale do Javari (Amazonas, Brasil). Todos esses es-critos, meus ou de outros autores, até o momento configuram análises de alguns poucos fragmentos ou aspectos da mitologia dos Marubo – ver Melatti (1985, 1986, 1989) e Werlang (2002, 2003). Um cômputo exaustivo ainda está para ser feito.3 Minhas próprias explicações tiveram

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Como Fernando Santos-Granero nos faz lembrar neste volume, a psicofisiologia aristotélica concebe perceptos que afetam nossos corpos antes mesmo que nossas almas os cogitem.4 Tendo-os agora já em

men-te, meus ouvidos percebem saiti como o mito no canto, como o canto no mito. Aqui, assim como ocorre com os Yanesha, a psicofisiologia marubo dialoga com Aristóteles e Platão. Pois os Marubo encenam, no

saiti, um encontro entre eles mesmos, entre suas próprias almas como constitutivas do corpo, algo bem estranho àquelas hierarquias cognitivas. Por ser uma festa intercomunitária, saiti é um evento relevante, ainda que freqüente, em suas vidas sociais. Por ser música, saiti é mais do que um mero “discurso acerca de ‘deuses, semideuses, demônios, heróis e habitantes do Hades’”, nos dizeres de Platão; é sobretudo “pura expres-são do encontro de homens com deuses, num mundo que é, para cada encontro, o cenário em que o mesmo decorre” (Sousa, 1973, p. 118). Um encontro que envolve corpos e almas, humanidade e animalidade. A ontologia marubo é performática porque é saiti. Ela tem tanto a ver com “deuses” como com “corpos” e “almas”, porquanto tem menos a ver com epistemologia do que nossa própria ontologia.5 Tem mais a

ver com religião e ritual, como é o caso da cosmologia entre os pré-so-cráticos, do que com Platão e Aristóteles. E tal está tão longe de ser uma declaração positivista quanto de ser um lugar-comum (cf. Sousa, 1975).

Mito-música saiti

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Mokanawa Wenia: “a emergência dos povos acre-selvagens”:

Shane Memi Yõsha: “a velha Memi verde-azul”:6

Yawa Tivo: “o porco-queixada prototípico”:

Teté Teka: “o tiro no gavião”:

Vei Vai Yoya: “o guia do caminho das transformações perigosas”:

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Esses saiti tratam de alguma forma de seres humanos e animais. É com base nesse tratamento que poderemos inferir um dualismo indí-gena e a aplicabilidade, ou inaplicabilidade, da dualidade corpo-alma em nosso trato com os Marubo. O leitor decidirá até que ponto tal idio-ma é aplicável ao falar sobre esses povos – ou, ainda, sobre a mito-músi-ca saiti.

Dualismo mítico-musical

A precedente dialética dual, na forma dos saiti, nem bem se refere ex-clusivamente à dimensão musical dos cantos-mito nem, tão-somente, ao caráter tonal das palavras nos cantos acima. O conspícuo caráter for-mal do gênero vocal saiti fica também aparente quando se toma as pala-vras em sua dimensão “atonal”, na fonética silenciosa, no nível verbal: em estrofes, rimas, artifícios poéticos. A recorrência de certas fórmulas verbais é uma característica presente em todos os saiti. No mais das ve-zes, a estrutura verbal maior dos cantos-mito saiti fica visível no papel, na bidimensionalidade visual de sua transposição verbal. Ainda, nalguns cantos-mito, a divisão aparente num nível mais abrangente do que o da célula musical revela algo mais do que simples blocos semânticos ou es-tágios narrativos; a expressão mais alta se encontra nos grupamentos temáticos de vários versos, para além da dimensão celular de sua entoa-ção, embora tentando igualá-la: estrofes, rimas, artifícios poéticos. No mais das vezes, tal redunda em dualismo formal.

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cor-respondentes desse saiti. Daí o verso conclusivo, a “chave de ouro” desse discurso verbal, reafirmar o ponto de vista secundário ou, com efeito, o ponto de vista de um terceiro posto no decorrer da narrativa, por meio de uma fórmula recorrente nos cantos-mito: a ikiao i, “assim falou” Shane Memi Yõsha.7 A centralidade dessa personagem principal está em

sua voz influente na narrativa, mais do que em ser protagonista. Os músicos-narradoresdos saiti silenciariam a própria influência por meio do som de suas vozes.

Nas festas, os cantores sempre respondem a um líder. Esse líder-can-tor, yoya, entoa um verso que um coro repete ipsis litteris; e assim conti-nua, um após outro, sempre dentro da mesma célula musical. Em todo

saiti, cada verso corresponde a uma das respectivas células acima: para n

versos, para cada saiti, uma única e mesma célula musical. O “puxador” (líder-cantor) vai construindo assim a narrativa, enquanto os cantores respondentes caminham aos pares, em círculo, “viajando” – como dizem. Além da coreografia, o conteúdo verbal desse saiti pode derramar mais luz sobre a jornada musical da velha Shane Memi Yõsha. Pode des-viar nosso olhar para os rumos indígenas... assim como pode nos levar a cometer disparates essencialistas. Comparações e generalizações são um risco que pode valer a pena, conquanto nos devolva à dialética sônica

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Se os relatos dos Marubo e de outros povos amazônicos fossem varia-ções sobre um tema mítico, um silogismo estrutural nos faria acreditar que os primeiros cogitam relações com presas de caça semelhantes às que os últimos mantêm com animais em geral.

Com efeito, como nas histórias contadas por Rosengren (neste volu-me), Shane Memi sofre por ter relações predatórias impróprias com uma anta, um comportamento desviante que resulta numa identificação ex-cessiva com o animal. Conforme ocorre noutros casos, o protagonista mítico compartilha com o animal do mesmo alimento ou gera crias dele. Nesse como noutros casos, a identificação substancial com o animal desaparece quando um terceiro consangüíneo da espécie humana apa-nha o protagonista com armadilhas ou o acerta com flechas. O destino absurdo da velha transgressora, arrastada por um cu preênsil, é seme-lhante a uma viagem xamânica: promove o acesso a um reino celestial ou à transmutação do corpo. A caçada bem-sucedida põe fim ao inter-curso pseudopredatório, o qual identifica presa e predador aquém, ou para além, do ato predatório.

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Pessoas e povos, espíritos e duplos

Os Marubo pertencem à família lingüística pano – as linhas que seguem devem soar familiares aos panólogos.

Segundo os Marubo, para cada yora – uma autodenominação sem especificidade étnica –, existe uma série de “almas” autoconstitutivas. Para cada “corpo”, existem várias almas que, em sua integração, defi-nem o conceito de humanidade implícito em yora. Para cada yora hu-mano, existe a “alma do lado esquerdo” – mechmirí vaká, que é um po-tencial yochi~ –, um “duplo-animal” e agente causador de doenças, e existe, é claro, a “alma do lado direito” – mekiri vaká, um potencial “es-pírito” ou yové.

O yochi~ é o candidato mais conveniente para a hipóstase do mal nas pregações dos missionários.8 Os missionários traduzem yochi~como

bi-cho, no senso regional de “animal” ou “fera”. De fato, ele emana do intercurso irregular com animais durante a caça: condutas imorais entre o predador humano e sua presa, como a história anterior ilustra, libera o nocivo yochi~. Além do mais, esse “duplo” se identifica com excreções e cadáveres, com tudo que degenera, tudo que já passou. Em termos psicológicos, é a contrapartida material das reminiscências que impreg-nam os objetos pessoais e a moradia daqueles que já morreram.9

Os yochi~ têm preferência por florestas e pela solidão – donde, mais uma vez, minha glosa.

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À visão, o yové se manifesta mais como latência do que como atuali-dade. Quando a manifestação é outra, é como performance musical. Além da associação sinestésica de desenho e som, tão familiar aos panó-logos (por exemplo, Gebhart-Sayer, 1985), os yové se manifestam como homúnculos que habitam as copas das árvores na floresta. Tal como gnomos ou fadas, eles constituem uma realidade “sobrenatural” que ape-nas os xamãs podem ver. Inversamente, a percepção dos xamãs é coe-rente com a forma como eles se percebem a si. Cheirosos, melodiosos, ornamentais, seus corpos e transformações corporais neste mundo apon-tam para uma realidade espiritual, de outro mundo – a realidade do devir póstumo, da eterna renovação na morada celestial dos mortos (shoko nai shavaya). A realidade yové é performática, antropomórfica e, sem dúvi-da, sinestésica: sua latência nos seres humanos, sob a forma de alma di-reita mekiri vaká, tem inerência terrena.

A glosa “espírito”, ou espiritualidade, pode evocar para muitos de nós a dicotomia corpo versus alma, a excluir de si qualquer corporalidade. Mas a realidade “outra” do yové, enquanto homúnculo, exclui tal dico-tomia ao mesmo tempo em que sugere a dicodico-tomia natural versus sobre-natural. Por sua vez, uma contraposição com os duplos yochi~ levaria à dicotomia humanidade versus animalidade... Peço ao leitor que tome minhas glosas com reservas. Aqui, “espírito” refere-se mais a spirare, res-pirar, do que a “espiritualidade”; e duplicidade se refere mais a ambigüi-dade do que a dicotomia.

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muito em comum. Pois tanto yochi~como yové são entes encontráveis no discurso xamânico; e neste ambos os entes são igualmente análogos a animais em primeira instância, embora não apenas à animalidade lite-ral – mas também a seres humanos mortos e a xamãs vivos. A distinção binomial entre animalidade e espiritualidade dessas entidades tem mais a ver com psicofisiologia e escatologia – o que a pessoa é em relação ao que ela pode vir a ser. Depois da morte, enquanto a alma esquerda

mechmirí vaká deixa-se ficar na terra, a alma direita mekiri vaká ascen-de ao céu.

Não há, porém, conformação possível de yochi~ e yové com a anti-nomia da esfera sublunar da geração e degeneração perante o âmbito eterno das idéias, como na hierarquia ontológica de Platão: as glosas “animal” e “espírito” não podem ser vistas como manifestas – as inflexões semânticas desses termos são temporais, presentes nas palavras e notas musicais dos cantos-mito –, as sucessivas linhas verbais e os círculos musicais reiterativos de sua poética.

Os cantos-mito saiti representam uma dualidade de entes transfor-mantes na medida em que são inflexões latentes: as almas vaká do corpo

yora são múltiplas e transformativas, embora o substrato delas seja uma integração individual. As almas e os corpos marubo mantêm entre si relações ambíguas – a saber, um conflito complementar que não é re-ceptivo a nossos silogismos ordinários. Se as primeiras transcendem os últimos como um devir fatídico, todos são literalmente imanentes aos seres humanos, visto que as linhas circulares saiti, o antes e o depois mítico-musicais, ocorrem em todos os níveis da humana “consciência respirante” (chinã) – isto é, não como conceito, mas como performance: o líder-cantor xamânico e o coro genérico, o homem adulto e o apren-diz, jovens de ambos os sexos.

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toda a Amazônia. Os corpos marubo na verdade mudam ao longo do tempo em resposta à dinâmica espaço-temporal das almas cósmicas – ou como causa dessa dinâmica: há pouco espaço para teleologia aqui – tanto dentro como fora dos seres humanos. Mas a definição de huma-nidade mais ampla e mais coletiva para esses povos, sua autodenomi-nação etnonímica como -nawa, sua noção de ser de uma espécie, per-manece distinta do corpo como tal, a saber, yora. Da mesma maneira que entre outros ameríndios, os Piaroa por exemplo (Overing, 1996), aqui “ser de uma espécie” representa o parentesco mais íntimo, mais sociável. Contudo, embora esses povos -nawa cultivem a sociabilidade, são eles epítomes duma perspectiva exógena, pilar da etnicidade indíge-na. Entre os Marubo, não é possível confundir alteridade com corporei-dade diferencial. Aqui, contrariamente aos Matsigenka de Rosengren, a multiplicidade homogênea ganha um valor identitário positivo, embo-ra essencialmente exógeno: simplificando, a palavembo-ra nawa sozinha, sem afixos, significa “estrangeiro”. Eis o que ficou conhecido entre panólogos como “alteridade constituinte” (Erikson, 1986, 1996).

Entre os Marubo, todos os povos -nawa ganham nomes -nawa to-mados de formas corporais como pássaros, plantas, coisas... todo tipo de animal. Entretanto, é dentro dos corpos yora em si que a latência de

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iden-tidade dada pela interseção de atributos comuns da alma que contradi-zem a variabilidade dos corpos. A tese segundo a qual as habilidades xamânicas na Amazônia, notadamente as cinegéticas, pressupõem que uma mesma alma é capaz de assumir formas corporais variáveis, ao in-vés dum mesmo corpo material comportar várias almas alheias, parece suficientemente válida entre os Marubo... desde que se assuma haver uma oposição manifesta entre corpos e almas.10

A premissa das distinções entre corpo e alma acaba por tolher uma comparação fascinante e promissora entre essas práticas xamânicas. É preciso profundidade em nível performático para tornar inteligíveis tais distinções percepto-conceituais entre corpos yora e entes anímicos como yochi~ e yové, mechmirí e mekirí vaká. Desde seu uso puramente lingüístico – yora com uma qualidade pronominal, na verdade um su-jeito qualquer, “alguém”, às vezes um marcador da identidade indígena – até a distinção mútua entre yochi~ e yové no reino animal e seus análo-gos mechmirí e mekirí vaká na psicofisiologia humana, todos esses ter-mos têm mais relevância do que o procustiano corpo versus alma (ver Storrie, neste volume).

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Entretanto, para esses povos, corpos versus almas como transforma-ções e transpositransforma-ções das diferenças entre natureza e cultura são relevantes na medida em que estas se revelam paradoxais – transitórias e, na quali-dade de performance, temporais. Pois, ao invés de incorporar almas, os xamãs as excorporam por meio do som. Os Marubo dizem que, median-te convimedian-tes musicais duranmedian-te as sessões, os yovevo (plural de yové) vêm visitar o corpo do xamã, a morada das almas xamânicas, para fazer dele sua habitação transitória, como ocorre entre os Matsigenka de Rosen-gren. Contudo, será que isso significa que, durante essa troca espiritual, os corpos ficam vazios? Não, porquanto nem as almas dos xamãs nem os espíritos yové de fato “habitam” os corpos: o movimento deles em relação ao corpo yora é centrífugo, não centrípeto – já que se manifesta no cantar. A confluência das almas para dentro dos corpos é latente como uma tautologia pragmática, esquerda versus direita; corpos e almas se fundem como seres humanos e animais, como espíritos e duplos na atua-lidade da música. A música que os xamãs entoam é espiritual; é a atuali-zação de uma identidade latente entre a alma direita, mekirí vaká, e o espírito yové. Essa expressão espiritual abarca, em células musicais reite-rativas, a sucessão de versos verbais que narram a geração e a degenera-ção originais que o duplo-animal yochi~ representa.

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cordas vocais corporais que vibram em simpatia musical quando sob o estímulo de uma voz yové exógena, espiritual e animal, sobrenatural e natural. Por isso, essas categorias qualificativas de “espiritual” e “animal” são estranhamente antinômicas, visto que os corpos yora, ainda que dis-tintos em hemisférios anímicos, não soam em oposição a suas almas anatômicas constitutivas – a saber, mekirí e mechmirí vaká. A oposição pertinente jaz entre essas almas mesmas e em sua relação com entes cós-micos supra-humanos, extracorpóreos, os duplos yochi~ e os espíritos yové

– ou entre seres humanos e animais, se preferir –, muito embora tal re-lação repouse numa oposição com um quê de aristotélico: em lugar de latência e atualidade, leia-se temporalidade. Os Marubo resistem ao tem-po através do temtem-po: assim como suas almas são impermeáveis à idéia de oposição a seus corpos, também os xamãs e as práticas xamânicas são onipresentes e resistentes entre esses povos -nawa – para o fatalismo do missionário proselitista.

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Dualismo etnonímico

A animalidade dual, a dualidade de alma da anatomia indígena e a con-seqüente conexão de seres humanos com pássaros e animais, que no dia-a-dia podem ser ou presas ou predadores dos Marubo, tornam-se reais na execução das histórias lineares dos saiti, em particular nas histórias que eles denominam “surgimento” ou “emergência” (wenia). Um saiti

como Mokanawa Wenia, “o surgimento dos ‘povos acre-selvagens’” (isto é, povos da floresta), projeta o corpo-alma da futura humanidade emer-gente em duas formas animais – o espírito yové e o duplo yochi~ – ao longo de versos que se sucedem, do princípio ao fim, dentro de células musicais recorrentes. Em tais gêneses saiti, a criação dos seres humanos é coincidente com a criação desse par de entidades-alma que surgem menos como citações literais em palavras do que como melodias. Nos dizeres dos cantos-mito de emergência wenia, a humanidade surge an-tes duma identificação indireta, mas sucessiva, com aves e animais pre-datórios; ou seja, os povos emergem de substâncias originais da terra, as quais se associam a presas ou predadores, enquanto cada povo emergen-te mokanawa recebe primeiro seu nome e então sua língua em associa-ção com um pássaro. O fato de yové e yochi~, autoconstitutivos anímicos e anatômicos da humanidade, identificarem-se no canto-mito com cada animal prototípico é coerente com as associações que a onomástica es-tabelece – tanto nesses mesmos saiti quanto no dia-a-dia – entre o mun-do mun-dos Marubo e a palavra que entoam os Marubo: os animais etnoní-micos são um protótipo primário de seres humanos como seres sociais, uma humanidade com nomes nawa.

Embora já bem conhecidos graças à literatura que trata dos Pano, esses nomes -nawa ainda pedem explicação. Tanto nos cantos-mito saiti

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plantas e coisas em geral: Shanenawa, Inonawa, Varinawa... Esses povos são os Pássaros Azuis-Verde (Shane), as Onças (Ino) e, dentre outras plan-tas e coisas, eles também são Sóis (Vari). São os povos -nawa. Eles con-cebem e mantêm a humanidade numa fenda: o eu é o protótipo do outro e vice-versa. O “outro” animal é o “eu” humano por meio de uma equa-ção etnonímica: ao passo que os seres humanos ganham nomes de ani-mais, os animais tornam-se paradigmas tanto da alteridade quanto da identidade graças ao status ambíguo de nawa – que é um sufixo, mas também pode ser uma palavra em si. Em lugar de ser uma categoria monovalente, “animal” é dual – exatamente como sua humanização em poética musical, dentro dos etnônimos nawa, contempla-o com uma latência dual, yochi~e yové.11

Esse ponto merece mais esclarecimentos. Em alguns saiti, como o de

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essenciais – sua essencialidade está no seu caráter nawa. Essas categorias não se inserem, em mútua exclusão, nos rígidos compartimentos de natural e sobrenatural. Graças ao lugar peculiar que a animalidade assu-me em tal ontologia, os status etnonímicos e antropogênicos dos ani-mais colocam esses povos, ani-mais uma vez, numa posição de resistência a universalidades conceituais.

Essas afirmações são apenas indícios daquilo que somente os cantos-mito da criação, desenvolvimento que são de estruturas temporais, po-dem desvelar: isto é, em lugar de substância material, “mera matéria-prima” ao estilo dos corpos chetsots dos Yanesha de Santos-Granero, os corpos yora, na qualidade de substratos, são a atualização subjetiva das almas feitas objetos potenciais, a subjetivação atual das potencialidades objetivas. A hipóstase animal dentro dos seres humanos é a contraparte lógica e transformacional da alma que materializa no exterior como doença yochi~ exógena e imoral ou como paradigma yové exosférico e moral – ou, ainda, como a contraparte-alma do etnônimo-animal. Isto é, as almas marubo são doenças-duplo ou auxiliares-espírito potenciais, e originalmente, do princípio ao fim, nomes -nawa – objetificações po-tenciais de subjetividades supra-yora. O animal externo é, potencialmen-te, o equivalente corporal das almas humanas internas. Corpos yora são duplo-yochi~ e espírito-yové potenciais, ao passo que suas almas-vaká cor-po-constitutivas não são uma essência exclusiva da humanidade: pelo contrário, almas da esquerda e da direita – que se manifestam como perceptos no olho (vero yochi~)e excreções (isõ yochi~ e poi~ yochi~, duplos da “urina” e das “fezes”) em pensamentos-fôlego (chinã) e sombras (noke yochi~) – também são emblemas da não humanidade se tal distinção da esfera humana for de alguma forma pertinente.

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tais modelos categoriais como corpos versus almas, enquanto análogos analíticos à natureza versus cultura, não são de forma alguma pertinen-tes na estase: tais “duplos” e “espíritos” existem apenas como aspectos potenciais no interior e em relação a corpos yora, isto é, a seres huma-nos. A peculiaridade de tal oposição de valores é que os duplos yochi~ e os espíritos yové estão para além do corpo humano e ao mesmo tempo o constituem como potencialidades.13

Embora isso seja algo dado no saiti, não está perdido no passado mítico. Assim como para os Ayoreo de John Renshaw (neste volume), tal noção cronológica do mítico como algo remoto seria por si mesma um mito. Aquelas distinções anteriores – espírito yové e duplo yochi~, pássaro e animal predatório, sujeitos e objetos, seres humanos e coisas no mundo – são elas mesmas a fundação recorrente da humanidade in-dígena. Esses povos -nawa são objeto de denominações culturais, isto é, são eles os próprios humanos yora, porquanto sua subjetividade se igua-la temporariamente à subjetividade da natureza objetiva – animais, plantas, demais coisas. Os Marubo são povos do Pássaro Azul-Verde (Shanenawa), da Onça (Inonawa)... e do Sol (Varinawa): a criação hu-mana é cosmogonia – de plantas, animais e demais coisas no mundo. A hipóstase da humanidade é, sobretudo, um estado somático de sínte-se sinfônica.14

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emble-mático para os seres humanos, porém é extremamente embleemble-mático em caçadas – uma presa preferencial.15

A caça aos porcos é um evento social por excelência, pois reúne um grande número de pessoas de várias malocas vizinhas – homens, mulhe-res e também crianças. Essas expedições de caça servem para criar, con-solidar e revelar laços de con-solidariedade na vida em família, especialmen-te entre jovens casais, que prefiguram um casamento feliz quando são vistos caçando juntos. Perseguir e matar esses bandos numerosos e peri-gosos exige uma estratégia coletiva; os frutos da caça são suficientes para um banquete, uma oportunidade para promover festivais. Da mesma maneira que nas demais festas saiti, a coreografia e os cantos saiti especí-ficos dessa festa parecem uma pantomina simbólica em que homens, mulheres e crianças, alternadamente, representam os atores duma caça-da ritual. Os porcos yawa, sua presa favorita, requerem uma identifica-ção com seres humanos diferente daquela que ontologicamente existe entre a humanidade e a animalidade homônima por meio dos etnônimos, das dualidades da alma – dos cantos-mito saiti da criação

wenia. Outra vez, é ao ouvir Yawa Tivo, mito-música que canta ao mes-mo tempo a criação e a transformação, que essa identidade desseme-lhante tende a fazer um sentido maior.

Se pássaros e predadores estabelecem relações com o homem -nawa

como índices de nominação no mito e nos tratos diários, os homens estabelecem relações com os porcos na caça e no saiti de Yawa Tivo. As relações entre o caçador humano e a presa arquetípica porco-quei-xada, que o festival saiti antecipa ao buscar boas graças na caça, tor-nam-se realidade durante a caça real. São relações de ancestralidade co-mum, como aquele saiti nos mostra: desta vez, ao invés de descrever os seres humanos emergindo da substância animal – como no surgimento

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constitutivas entre pássaros e animais de predação dum lado e seres hu-manos de outro, a humanidade ancestral dos porcos, no canto-mito

Yawa Tivo, associa a presa ao predador humano. As presas-queixadas são entes humanos degenerados e corruptos, mas a moralidade dessa dege-neração parece menos relevante: a associação moral entre homens e ani-mais repousa ani-mais claramente nos laços originais de parentesco. O saiti Yawa Tivo suscita associações de parentesco alternativas àquelas que ou-tros cantos-mito estabelecem entre seres humanos e seus homônimos seccionais. Se na criação wenia a humanidade é o nawa arquetípico, transformação substancial de animais etnonímicos, os porcos, os yawa

do saiti, são por sua vez tivo, uma maneira de indicar seu status especial com respeito à predação humana.

Assim como nawa, a palavra tivo também denota por si só “prototí-pico” e “grande”; não tem a mesma denotação “estrangeiro”, mas sim uma conotação com sutil inflexão para o interior, seja por consangüi-nidade, seja por afinidade. A presa prototípica, o porco-tivo, não par-tilha da mesma natureza intrínseca dos seres humanos, do tipo “se-melhança familiar”, como seus homônimos animais partilham (ver Werlang, 2001). Se animais etnonímicos de alguma forma geram hu-manos, por meio de laços comuns de substância metonímica ou meta-fórica, alguns humanos, quando no mito, geram porcos-queixadas.

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mito-música original, persistem em sua busca por uma morada na terra. No caso em tela, txai tivo denota algumas inflexões que partilham duma base conotativa comum. A frase significa literalmente “grande primo-adversário”, “parente prototípico por afinidade ou cunhado” – é um ente aparentado, mas também um “inimigo”. Sua denotação imediata é aque-la da grande ave de rapina teté,o protagonista do saiti; mais além, pode conotar “local de residência” e “morada prototípica”. Em suma, o ga-vião teté na qualidade de txai tivo é o “primo-cruzado-da-maloca”. Quando ele morre, atingido eufemisticamente (teka) pela humanidade original, inaugura a afinidade com base numa alegação anterior de consangüinidade – exatamente como a transformação dos porcos-quei-xadas, em Yawa Tivo, inaugura a predação humana sobre os animais. Noutras palavras, tivo significa “amplamente outro”, com referência tan-to ao gavião teté quanto ao porco yawa – ecoando assim a “alteridade constituinte”. Mas tivo significa afinidade baseada na consangüinidade, exatamente o status que a predação deve ter, enquanto nawa é o inverso, seguindo o princípio da identidade baseada na diferença. Pois tivo é ani-mal; nawa é humano.

Dualismo ontológico

Entre os Marubo, a distinção entre nawa e tivo é apenas mais um nível de significação girando em torno das noções de humanidade e animali-dade. Dentro dum espírito de aversão às categorizações explicitamente definidas – evitando assim essencialismos iminentes e com vistas a uma conclusão –, resumirei três pontos que têm relação estreita com uma possível elaboração indígena sobre nossos conceitos de corpo e alma.

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é um estado de mutabilidade transiente – um estado de inconstância temporária entre os Marubo. Se acompanharmos a forma de sua expres-são e manifestação na poética saiti, na música e no movimento, obser-varemos que as características comuns a homens e animais vivem uma transmutabilidade que jaz entre aqueles campos ontológicos que se re-ferem respectivamente a pássaros, e a predadores e presas, assim como a plantas e demais coisas. A condição humana é em si uma condição liminar, não apenas com relação a referências ocasionais no saiti à inicia-ção, nem aos cantos-mito somente: o destino humano é uma reencena-ção ritualística, ao longo da vida, na caça, na doença, na cura e, por fim, na morte e no limbo pós-morte, quando as almas ou bem se demoram na terra ou ascendem ao céu da renovação. Embora alguns saiti sejam prenhes de referências propiciatórias, possíveis remanescentes de rituais da fertilidade, a maioria das festas é genérica e periódica; saiti é uma condição geral, humana e social de crescimento, decadência e renova-ção. Aqui não há lugar para idéias eternas – pois o dualismo indígena não é bidimensional.

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exe-cução, por sua vez, cria seres humanos a partir de yochi~ e yové, tornan-do-os potencialidades yochi~ e yové – possibilidades de doença e saúde, destinos em potencial ao longo da vida e destinações reais na morte. Em sua execução ao longo do tempo – incluindo gênese, vida e mor-te –, almas humanas vivas como constituinmor-tes de corpos yora são antes animais e depois espirituais, puras potencialidades para devirem sucessi-vamente na vida póstuma: após a morte, o caminho yochi~ cheio de trans-formaçõesescatológicas, vei vai, precede a morada shoko nai shavaya da renovação yové, a morada cósmica que paira acima dessa “nossa terra”, dessa “perigosa terra das transformações” (noke~ mai, vei mai shavaya). Tanto neste quanto noutro mundo, os espíritos yové são a periodicidade circular do fugidio, duplos yochi~ em sua linearidade descontínua. Na terra, a jornada escatológica ocorre no saiti Vei Vai Yoya, o canto-mito que faz as vezes de guia no perigoso caminho pós-morte – realizando, em forma mítico-musical, numa coreografia especial, essas transmu-tações de formas vivas e mortais. Aqui o líder-cantor yoya conduz não só o canto-mito saiti como também os demais cantores, quando guia os dançarinos-cantores por uma linha sinuosa em lugar do círculo habitual. O saiti do vei vai é o yoya – o próprio guia é o canto-mito mesmo – e, assim como em tantos cantos-mito saiti, eis a ontologia indígena em suma: se vai significa “caminho”, vei significa ao mesmo tempo os peri-gos da morte e das transformações no pós-vida.

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ori-gem em relação à presa anormal: os ovos do pássaro espiritual yové. O destino dos homens originais que passam por transformação depen-de depen-de tais homens ou bem comerem os ovos do yawa chai, o pássaro-porco, ou bem cheirarem simplesmente as cascas dos ovos – este emble-ma de elo filial.16 Alguns dos humanos ex-nawa transformados em

porcos, ancestrais daqueles que hoje são presas dos seres humanos, per-manecem nas florestas terrenas. Alguns porcos ficam às margens de rios estrangeiros, nos domínios do estrangeiro-nawa, e com isso se tornam porcos domésticos – os ocidentais não exibem etnônimos seccionais, da mesma maneira como os nomes seccionais indígenas não incluem um suposto yawanawa, “povos-filhos do porco-queixada”: os brancos estão semanticamente mais próximos dos queixadas do que do Sol e do Pás-saro Azul, da Onça e de outros seres e entes do mundo indígena. Por fim, alguns dos porcos gerados a partir de homens ascendem aos

céus-yové da regeneração.

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presas de humanos feitas de gente, em algum momento e de algum modo, transformam-se substancialmente em espíritos yové, exatamente como a mudança corpórea na iniciação xamânica significa vir-a-ser yové. No canto-mito Yawa Tivo, aqueles que morrem por ter provado ou chei-rado o ovo fértil do pássaro-porco acabam congregando com criaturas espirituais – corpos ornamentais, cheirosos, sensuais.

Ainda no mesmo saiti, outros homens feitos porcos permanecem no domínio original nawa, às extensas margens do rio (noa mato) dessa morada humana terrena(mai shavaya) – e, por conseguinte, cam-se. Isso é mais um atributo de exterioridade do que de domesti-cação: porcos-queixadas são sempre selvagens; porcos estrangeiros são sempre domesticáveis. Neste caso, os Marubo originais, os povos nawa, tornaram-se verdadeiros estrangeiros nawa, verdadeiros outros, por-quanto domésticos. Bem como ocorre com animais etnonímicos – pás-saros e animais predadores –, os queixadas caem num domínio ambivalente, igualmente de alteridade e identidade. Contudo, o domí-nio relacional do porco yawa, da presa prototípica, é posterior àquele dos espíritos yové e dos animais-duplo, almas-com-corpos, o pássaro etnonímico seccional e predador ou presa. Os porcos-queixadas são uma categoria nawa genérica, não uma categorização indígena específica dos povos nawa. São tivo.

Este é o terceiro argumento que particulariza as idiossincrasias maru-bo contra os essencialismos amazônicos – argumento esse que implica outra referência à história, seja ela mítica ou não. Ao longo do tempo mítico e histórico, esses povos constroem gradualmente a noção nawa

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paralela à origem mítica da predação-tivo humana. Os queixadas foram, em tempos remotos, povos nawaVari~, Shane~, Inõ, Kanã e Chai~, res-pectivamente, povosdo Sol, do Pássaro Verde-Azul, da Onça, da Arara-Amarela e do Pássaro Genérico –, para então se tornarem uma dentre três categorias: ou porcos-yové, “espirituais”; ou porcos-queixada do tipo comum, o animal de caça que se identifica com o duplo-animal yochi~; ou ainda porcos domésticos, os nawa genéricos ocidentais. As três cate-gorias de porcos ex-nawa – porcos espirituais, simples porcos-presas ou porcos estrangeiros-nawa – passam à existência numa atribuição mútua de valores diacríticos da humanidade, tanto cósmica quanto etnicamen-te. No canto-mito, a alteridade predatória acompanha a identidade pre-liminar, semelhante às ações praticadas nos rituais de caça – em oposi-ção à variabilidade de animal, planta ou coisa antropogênicos a gerar o eu indígena. Tal como ocorre no saitiYawa Tivo – em que os seres hu-manos originais nawa migram para o domínio estrangeiro da nawa-dade (“estrangeiridade”), inaugurando dessa maneira a predação –, na histó-ria, os homens eram índios nawa, belicosos outros, e se tornaram Maru-bo – ou “mansos” como eles dizem, “domésticos” – quando encontra-ram os nawa brancos (ver Werlang, 2001). Essas noções de humanidade e animalidade são uma função da história – no mito e no cotidiano.17

Contra ideologia

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amazônica: atributos culturais virtuais abarcando o domínio natural num nível sobrenatural, onde corpos variáveis fragmentam uma consti-tuição unificada de almas em perspectivas espécie-específicas. Tal pode-ria parecer explanatório no caso dos Marubo, caso esses povos não fos-sem tão resistentes a uma dicotomia alma-corpo universalizante como um dado atemporal e aespacial, ou como uma estrutura invariante. As hipóteses de neo-animismo, perspectivismo e seus desmembramentos exigem tantos ajustes práticos neste e em outros casos, que é de se per-guntar se valeria a pena o engajamento no debate. A atenção à ontolo-gia indígena exige obrigatoriamente a não subscrição a qualquer tipo de “ismo” modernista – assim minha mestra ensinou.

Seria mais seguro dar ênfase às idiossincrasias: neste planeta indíge-na, “natureza” é uma glosa incompleta para uma miríade de aconteci-mentos e relações que só fazem sentido dentro de uma estrutura mais ampla que, no entanto, é tão imanente que é difícil distinguir o que está “acima”, o que é sobrenatural. O que nós distinguimos é a temporalida-de: cronologia histórica e musicalidade mítica, e vice-versa. O que te-mos em terte-mos de organização espacial entre esses povos está, primeiro, firme na forma temporal; segundo, essa forma encontra a sua voz na música, e essa música traduz a gênese humana, enquanto toda a ontogê-nese provém da antropogenia; terceiro, essa criação humana é um amál-gama de modalidades de exterioridade.

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classificá-la numa esfera “metafísica”, mais-do-que-natural. Mas mesmo isso exi-giria que se excluísse de tal expressão musical qualquer traço de metafí-sica pós-socrática, fosse ela platônica, aristotélica ou judaico-cristã. Afi-nal, o que é a physis amazônica? As Musas podem responder – em música. Na análise precedente, é no corpo humano que as disposições espiri-tuais e de duplos-animais se conjugam em síntese, numa estrutura de alma universal; e, se essa síntese somática é analisável em saiti, a disjun-ção e subseqüente realizadisjun-ção dos termos do saiti se efetivam na caça, na doença e na morte. Isso parece se encaixar bem noutros contextos re-gionais, onde a primazia cultural humana ou, se o leitor preferir, a rea-lidade cultural dos homens deve passar por uma negociação simultâ-nea, uma tarefa que pode ser xamânica e/ou predatória sob o exercício de diferentes agentes – xamãs e caçadores, espíritos e animais. A predação objetifica a presa real no ato predatório e atualiza sujeitos humanos, ao passo que xamãs subjetivizam predadores e presa. Mas, para os Marubo, os homens-nawa, os pássaros-yovés e os duplos-yochi~ da animalidade predatória são os interlocutores dum diálogo musical. A base comum dessas partes confluentes – aquela que estabelece a humanidade – é o ponto de convergência da voz cantante entre os modos musicais yochi~ e

yové, as células melódicas e os versos circulares. É nos cantos-mito saiti

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De novo a mito-música

Agora é possível concluir este ensaio com seu tema de abertura: a repro-dução da dialética formal-musical dos cantos-mito saiti em seu nível poético-verbal.

Como eu disse acerca do canto-mito Shane Memi Yõsha, uma expres-são idiomática corrente no saiti é a iki a nã, ou a ikiao i (“assim falou...”). Como numa peça de teatro, as falas são atribuição duma terceira pessoa em relação à platéia – a terceira pessoa real –, a saber, um atributo de algum personagem ou do narrador no decorrer da história. Aquela frase musical mítica nada mais é do que a versão ritual duma fórmula frasal típica na linguagem cotidiana dos Marubo, yorã vana. Quando alguém diz iki‚ “eles [ele, ela] falaram” após qualquer declaração, a agência da elocução pertence a um terceiro, não importando quem falou. Se o xamã araweté é “como um rádio” (Viveiros de Castro, 1992, p. 224), se o xa-mã juruna “não passa de um porta-voz” (Stolze Lima, 1999, p. 119), o cantador marubo é tido como um gravador: seu canto é um playback

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epistemológico familiar na Amazônia (ver Santos-Granero, neste volu-me). Talvez valha mesmo a pena aventar a hipótese de suas bases onto-lógicas serem musicais (cf. Seeger, 1987; Bastos, 1999).

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(Overing, 1996, 1997; Storrie, neste volume) –, não existe matéria car-nal morta cuja vida seja em forma de alma. Para os Marubo, nami é a “carne” que se pode comer; ocasionalmente o nosso “corpo”, que di-ficilmente se enquadra na noção de “corpo” como oposto a “alma”. O curso da enfermidade, a ação dos agentes da enfermidade, por exem-plo, se dá sobre o corpo nami; a ação do curandeiro se dá sobre o corpo

yora; mas a efetivação da cura ocorre por meio da representação, invoca-ção e articulainvoca-ção de entidades semelhantes a yochi~ e yové nos cantos de cura. Sem recobrar o equilíbrio justo, o fado do corpo yora é seguir seu destino pós-morte, que faríamos melhor em representar, invocar e arti-cular como dissolução anímica do que como carnalidade vazia: nada resta para representar um “corpo-em-si-mesmo” depois que cada com-ponente físico semelhante a alma atualiza seu destino desintegrativo, divergente – mekirí vaká e chinã, para o domínio celestial de rejuvenes-cimento como espíritos yové, e mekirí vaká e outras formas yochi~,para o vagamundear sobre a terra como duplo. Pelo fato de a morte despojar o corpo yora de sua subjetividade suprapessoal, um cadáver é equivalente a algum objeto do morto, a seu ambiente. Duas ou três gerações atrás, os parentes em luto o queimariam e o comeriam, e talvez até ateassem fogo à maloca inteira com todos os pertences do morto. Pois um corpo morto é coisa nenhuma, é uma “não coisa”: é espaço linear que, por si só, não pode alcançar a temporalidade circular dos espíritos musicais.

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não é nem instantâneo nem o “zero” duma escala de tempo linear; é uma condição “corpórea”, mas também “espiritual”; uma condição “mu-sical” – diriam esses povos, caso tivessem necessidade de expressá-la em palavras. Porém preferem entoá-las.

É verdade, esta é uma visão de mundo local. Mas de quem é esta visão se assumirmos o “ponto de vista dos nativos”? No que diz respeito aos Marubo, não podemos confiar em perspectivas visuais, porquanto não podemos opor o universal ao particular. Para esses povos, a cultura não é um atributo exclusivamente humano do qual a humanidade de-veria estar fausticamente orgulhosa – seja em termos absolutos, seja em termos relativos. Embora seja preciso ficar com o pé atrás em relação ao vocabulário metafísico ocidental e às oposições que este acarreta – por exemplo, a dicotomização a priori de sensações versus intelecto ou natu-ral versus sobrenatural –, não se pode prescindir do diálogo etnográfico com tais dualidades e com aqueles que as invocam, mesmo se – mas somente se – essa posição nos levar a declarações paradoxais. Se a condi-ção humana é, entre os Marubo, um atributo cultural, é um atributo que existe por meio da incorporação e da “excorporação” temporais das afecções animais e espirituais, que escancara as portas da percepção ao mundo e lhe dá voz. O mundo marubo está em contínua tradução sinestésica... como se fora uma performance musical.

Notas

1 Para antecedentes etnográficos, ver Melatti (1977, 1981), Montagner Melatti (1985) e Werlang (2000, 2001).

2 Heidegger: “[...] subsiste, todavia, a necessidade de, nas diferentes etapas do cami-nho, falar justamente na linguagem que convém” (1990, p. 73).

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4 Exceto pelas funções mais altas da alma – que prescindem de afeição, tal como o “motor imóvel” da Metafísica, de Aristóteles, uma versão antiga do Deus judaico-cristão. Ver Aristóteles (1986).

5 Ver Viveiros de Castro (1999) e sua contribuição em Bird-David (1999). 6 Metonimicamente, shane significa também uma espécie de pássaro “azul-verde”

(Cesarino diz azulão, conferindo uma inflexão “azulácea” à percepção indígena). 7 Cesarino disseca: a iki aoi = demonstrativo + intransitivo auxiliar “dizer” +

nova-mente? – a locução pode ter uma inflexão inconclusiva, imediata.

8 A Missão das Novas Tribos está presente na área desde o início dos anos 1950. 9 “Poder-se-ia dizer que, em última análise, o ‘espírito’ das pessoas ou das coisas

re-duz-se a sua capacidade de serem lembradas e imaginadas após a percepção delas haver cessado” (Freud, 1999, p. 117).

10 Ver Descola (1994), Stolze Lima (1999) e Århem (1993), para explicações repre-sentativas da caça xamânica na Amazônia, Erikson (1996), para os povos pano, e Viveiros de Castro (1998), para uma síntese etnográfica.

11 O Vari de Varinawavo seria uma categoria residual, porém bem conspícua no saiti. É decerto plena de significado exógeno também, já que a associação entre o “Sol” e o “Inca” é um tema mitológico conspícuo entre os Pano, tal como entre os Kaxinawa (cf. Lagrou, 1998).

12 Como a “vida dos pensamentos” versus a “vida dos sentidos” dos Piaroa (Overing, especialmente 1988), e a yechoyeshem “sombra” versusyecamquëñ “vitalidade” dos Yanesha (Santos-Granero, neste volume).

13 Overing observa entre os Piaroa: “[...] a singularidade dos seres humanos terrenos deve-se à particular combinação de forças pela vida que eles hoje são capazes de conquistar” (1999, p. 10).

14 De novo Overing: “Pelo fato de os animais existirem eternamente no ‘tempo de antes’ […], eles afetam os seres humanos terrenos de um modo literal” (1999, p. 12).

15 Embora Yawanawa seja um etnônimo real – de povos que vivem na vizinhança, no Acre, e que são parentes próximos dos Marubo –, aquele etnônimo é uma de-signação combinatória inaudita entre as seções matrilaterais dos Marubo. Para as-sociações históricas entre os dois povos, ver Coffaci de Lima (1994).

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para designar com precisão a sua origem natal: “lá onde deixei minha casca de ovo”. Um invólucro genérico – a associação entre “ovo”, “saia” e, digamos, “as ca-pacidades reprodutivas femininas”, ou simplesmente “o útero” ou “as páreas” – conduz às origens humanas dos porcos-queixadas.

17 Compare com o sentido de domesticação para os Piaroa, igualmente “externalista”, segundo Overing (1988, 1996).

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ABSTRACT: The notions of “body” and “soul”, within the dual universe of the Marubo from Southwestern Amazonia, intersect other contributions to this volume: firstly, in view of the present concern, from an universalizing perspective, on epistemological issues in Amazonia; and secondly, in view of a now ever-present relevance of indigenous ontology (here more as the “pre-sentation”, rather than the “investigation” or “account” of the origins of the cosmos and all forms of being therein) vis-à-vis the knowledge, with a par-ticularizing tenure, of the performance of a cognitive ethos.

KEY-WORDS: Amazonia, Brasil, Marubo, personhood, cognition, indige-nous ontology.

Tradução de Telma Franco Diniz.

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