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Em defesa da reforma psiquiátrica :por um amanhã que há de renascer sem pedir licença

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Academic year: 2017

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Universidade Federal do Rio Grande do Norte Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes

Programa de Pós-Graduação em Psicologia

EM DEFESA DA REFORMA PSIQUIÁTRICA: POR

UM AMANHÃ QUE HÁ DE RENASCER SEM PEDIR LICENÇA

Ilana Lemos de Paiva

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Ilana Lemos de Paiva

EM DEFESA DA REFORMA PSIQUIÁTRICA: POR

UM AMANHÃ QUE HÁ DE RENASCER SEM PEDIR LICENÇA

Dissertação elaborada sob orientação do Prof. Dr. Oswaldo Hajime Yamamoto e apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Psicologia.

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Universidade Federal do Rio Grande do Norte Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes

Programa de Pós-Graduação em Psicologia

A dissertação "Em defesa da Reforma Psiquiátrica: por um amanhã que há de renascer sem pedir licença", elaborada por "Ilana Lemos de Paiva", foi considerada aprovada por todos os membros da Banca Examinadora e aceita pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia, como requisito parcial à obtenção do título de MESTRE EM PSICOLOGIA.

Natal, RN, __ de ________ de 200__

BANCA EXAMINADORA

Prf. Drª Maria Lúcia Boarini ___________________

Prof. Dr. Herculano Ricardo Campos ____________________

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Nesta hora, as vozes, que se

calam, são vozes que se

acumpliciam e os braços, que se

cruzam, são braços que

colaboram.

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Agradecimentos

Ao Prof. Dr. Oswaldo Hajime Yamamoto, meu orientador, cujo apoio, incentivo, carinho e paciência com que me orientou durante toda a minha trajetória acadêmica excedem qualquer possibilidade de agradecimento.

Ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia e seus professores, por todo o conhecimento adquirido e apoio fornecido para a realização do Mestrado.

À Comissão de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) pela bolsa de estudo que possibilitou a realização deste trabalho.

A todos os que fazem a Base de Pesquisa Marxismo e Educação, em especial a Alex Reinecke, Denis Carvalho, Isabel Fernandes e Herculano Campos, por todas as contribuições que deram a este trabalho.

À Coordenação de Saúde Mental de Natal pela atenção e disponibilidade em contribuir com este trabalho e pelos dados fornecidos.

A todos os entrevistados que me receberam com carinho e me ajudaram a contar um pouco dessa história.

Aos técnicos e usuários dos NAPS que fazem diariamente a verdadeira defesa da reforma psiquiátrica.

A minha família, por absolutamente TUDO, em especial à minha mãe, Eliana, pela dedicação e disponibilidade em me ajudar com este trabalho, ao meu pai, Hugo, pela presteza em todas as horas que precisei, e à minha irmã Uliana, pela sua alma poética que me ajudou nos momentos de pouca inspiração.

A todos os amigos que me apoiaram e me ajudaram, em especial a Vander Adriani, por ser companheiro de todas as horas.

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Sumário

Lista de Figuras . . . vii

Lista de Tabelas . . . viii

Resumo . . . ix

Abstract . . . x

Introdução . . . 11

Parte I: A exclusão social da loucura e as primeiras experiências de reforma psiquiátrica . . . 24

Capítulo I: Breves considerações sobre a loucura e sua marcha histórica.. . . . 25

Capítulo II: O sopro da idéia de mudança: a luta pela derrocada do modelo asilar à guisa de lançar um novo trato da questão da loucura. . . . . 56

Parte II: Da reforma psiquiátrica brasileira à experiência do Rio Grande do Norte. . . . 73

Capítulo I: A reforma psiquiátrica no Brasil: Corações insones em defesa dos “insanos”. . . . 74

Capítulo II: Ressignificando a loucura: contribuições à história da reforma psiquiátrica no Rio Grande do Norte . . . . 101 Capítulo III: Diagnóstico da situação atual: o papel da Psicologia e do NAPS em concretizar os ideais de ressocialização . . . 141

Considerações finais . . . 155

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Lista de figuras

Figura Página

1 Histórico de internação dos usuários antes do tratamento nos NAPS . . . 123

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Lista de tabelas

Tabela Página

1 Financiamento para saúde mental no Rio Grande do Norte. . . . 143 2 Média de custo mensal e diário dos pacientes internos em hospitais

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Resumo

A loucura foi vítima de inúmeras arbitrariedades cometidas em nome da ciência. A reforma psiquiátrica constitui um importante movimento que tenta resgatar a dignidade e a humanização no tratamento dos portadores de transtornos mentais. Alguns países avançaram na implementação de modelos substitutivos que constroem um novo lugar social para a loucura. O modelo de atenção à saúde mental brasileira também sofreu amplas modificações em face do esgotamento do modelo manicomial. No município de Santos, localizado no estado de São Paulo, encontraremos um dos marcos mais importantes na concretização de uma política antimanicomial, através da criação de um serviço de atenção diária com proposta de atendimento voltado para a reabilitação psicossocial. É nesse contexto que são criados em Natal, Rio Grande do Norte, os NAPS e o CAPS (Núcleos e Centro de Atenção Psicossocial), estratégias municipais para a efetivação da lei nº 10. 216/2001, que prevê a gradativa extinção dos Hospitais Psiquiátricos. Este trabalho constituiu-se de um estudo acerca do processo histórico de implantação da reforma psiquiátrica no estado do Rio Grande do Norte, destacando-se os atores envolvidos nesse processo, sua trajetória, conquistas, avanços e perspectivas desse movimento em concretizar os ideais de ressocialização do portador de doença mental. Para realizar este resgate, fez-se necessário compreender o processo ocorrido na Secretaria Municipal de Saúde de Natal, a partir do ano de 1992, por ter sido a experiência impulsionadora das reflexões sobre a reforma psiquiátrica em todo o estado do Rio Grande do Norte. Os instrumentos utilizados para esse estudo foram a análise documental, através de relatórios, legislações e prontuários, bem como a coleta de depoimentos das pessoas envolvidas nesse processo. Através da análise dos depoimentos, buscou-se construir a identidade dos atores sociais, sua percepção dos fatos, ressaltando-se congruências e incongruências a respeito da história da reforma psiquiátrica no estado do Rio Grande do Norte. Analisou-se também o papel da Psicologia nesse processo, que se tornou um protagonista na luta pelos direitos dos portadores de transtornos mentais.

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Abstract

Insanity was victim of several arbitrary acts perpetrated on behalf of the science. Psychiatric reform constitues an important movement which has attempted to rescue dignity and humanity in the treatment of mental disorder patients. Some countries have advanced in the implement of substutive models that work on the construction of a new social place for madness. The model of attention to mental health in Brazil has also suffered extensive modifications due to the wearing out of the psychiatric hospital model. In Santos, a town in the State of Sao Paulo, we have found a landmark in the development of an anti internment politics, through the creation of a dail care service, including psychosocial assistance. It is in this context that it has been founded in Natal, Rio Grande do Norte, the NAPS and CAPS ( Nucleus and Centres of Psychosocial Attention), municipal strategies that put into effect the law # 10.216/2001, which estabilishes the gradual extinction of psychiatric hospitals. This work has the purpose of carrying out a study about the historical process of psychiatric reform implantation in the State of Rio Grande do Norte, emphasizing the actors involved in process, their trajectory, achievements, improvements, and the movement’s perspectives of achieving the ideal of reinstating mental disorder patients. In order to accomplish this purpose, it was necessary to understand the process occurred at the Municipal Secretary’s Office for Health, since 1992, for it was the impelling experience towards the reflections about the psychiatric reform in the State of Rio Grande do Norte. The instruments used for this work were documentary analysis, through reports, legislation and handbooks, as well as the staments of people involved in this process. Through the statements analysis, we attempted to estabilish the social actors identity, their perception, emphasizing congruences and incongruences concerning the history of psychiatric reform in the State of Rio Grande do Norte. It is also analyzed the contribution of Psychology in this process, which has become a protagonist in the struggle for the rights of mental disorder patients.

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Introdução

Apesar de você amanhã há de ser outro dia

Ainda pago para ver o jardim florescer qual você não queria

Você vai se amargar vendo o dia raiar sem lhe pedir licença

E eu vou morrer de rir que esse dia há de vir antes do que você pensa

(Chico Buarque de Holanda)

Analisando a história social e cultural do Brasil, encontraremos marcas indeléveis de dominação e exploração de um povo. Tais marcas refletem hoje uma cultura darwinista em que impera a lei do mais forte sobre o mais fraco. Marilena Chauí (2000) questiona-se: o que podemos comemorar em 500 anos de História do Brasil? Para a autora, não há muito a comemorar, tendo em vista que o Brasil ocupa o terceiro lugar mundial em índice de desemprego e o segundo lugar mundial nos índices de concentração de renda e má distribuição da riqueza: dois por cento possuem noventa e oito por cento da renda nacional.

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O autoritarismo social e político que se instaura no Brasil, desde então, vem reforçando a predominância de um capitalismo semi-feudal, em que o Estado deveria harmonizar as relações entre capital e trabalho. No entanto, harmoniza-se apenas com o capital, tornando a ascensão dos trabalhadores um sonho distante.

Há de se pensar, no entanto, que vivemos uma democracia, um país onde todos os seus cidadãos deveriam ter vez e ter voz, ter as suas necessidades atendidas e, enfim, viver com dignidade.

Não se faz necessário dizer que a nossa democracia é bastante distorcida e a realidade social brasileira está muito longe de se chamar democrática. Basta lembrar que cidadania e democracia andam juntas, e numa nação onde existem milhares de pessoas sem-teto, sem-comida, sem-educação, não poderia se intitular democrática, a bem da verdade.

Poderemos encontrar as raízes dessa cultura de exploração na formação do Brasil.1 Basta analisarmos a questão dos grandes latifúndios, a má distribuição das terras e a colonização dos índios ao longo de toda a história do país.

Nessa sociedade autoritária, que se constituiu baseada numa cultura senhorial, as diferenças e desigualdades são naturalizadas. Os altos índices de concentração de renda e de pobreza não são vistos como socialmente inaceitáveis, mas como algo normal, atribuído à preguiça, à ignorância e à incompetência dos miseráveis.

Além disso, a formação da sociedade brasileira trabalhou historicamente no sentido de bloquear a emergência dos conflitos advindos das contradições sociais, econômicas e políticas. Uma sociedade organizada, que expõe esses conflitos e essas

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contradições, é vista como perigosa para o Estado. Por outro lado, a classe dominante brasileira é extremamente eficaz em inibir as ações sociais, como assistimos claramente na época da ditadura. Atualmente, ocorreram mudanças estruturais nos mecanismos que controlam a sociedade: a dominação baseada na força perde espaço para a dominação baseada no convencimento.

Assistimos a 500 anos de exploração, de domínio, de poder... Será que raízes tão profundas, culturas senhoriais tão arraigadas no nosso povo, marcas tão dolorosas podem ser modificadas?

Infelizmente, o modelo econômico vigente no nosso país, sustentado nas raízes do liberalismo, não aponta para a construção de uma sociedade diferente. A política neoliberal reforça a estrutura histórica da sociedade brasileira, focalizada na divisão social e nos privilégios da classe dominante. No Brasil, essa política econômica leva ao extremo o abismo entre as classes sociais e a exclusão das camadas pobres, através do desemprego, da desorganização política e da difusão da alienação. A sociedade brasileira, outrora organizada em movimentos sociais e populares, caminha para trás na história da construção da cidadania.

Diante do esfacelamento das conquistas históricas de cidadania as relações sociais são vistas sempre hierarquicamente, verticalizadas em todos os seus aspectos, com um superior que manda, e um inferior que obedece. Segundo Chauí (2000), as diferenças e assimetrias são sempre transformadas em desigualdades:

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assume a forma nua da opressão física e/ou psíquica (p. 89).

Em nome de uma sociedade “indivisa, pacífica e ordeira” (Chauí, 2000, p. 91), as relações tornaram-se intoleráveis às diferenças e aos conflitos, utilizando diferentes mecanismos de opressão para excluir as “minorias” da paisagem social.

O presente estudo faz referência a um tipo de opressão e exclusão de minorias: a opressão física e psicológica sofrida por milhares de portadores de doença mental ao longo de décadas.

Lembrando as palavras de Maltzman (citado por Desviat, 1999): “E eles se deram conta de que as necessidades das pessoas com distúrbios mentais não são fundamentalmente diferentes das do resto: moradia digna, trabalho, renda fixa, amigos, vizinhos receptivos e tudo o mais” (p. 87). É impossível, então, pensar isoladamente a cidadania dessas pessoas, sem compreender minimamente a realidade social brasileira e o que é ser cidadão no nosso contexto atual. Como se não bastassem todos os desafios para que sujeitos expurgados do meio social, em nome dessa ordem citada anteriormente, pudessem ser reinseridos na sociedade, os desafios desse movimento não estão desvinculados de todas as conquistas que as classes oprimidas deste país terão que efetuar.

Os manicômios, encarregados de “curar” e “tratar” os ditos insanos, são a materialização concreta dos mecanismos de opressão e de ditadura instaurados na nossa sociedade. Historicamente, eles sempre se constituíram como espaços de violência e arbitrariedade contra a população por eles assistida, como se reflete na argumentação de Castel (1978a):

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de decisão caracterizados pela total ausência de harmonia, a lentidão com que caminham as informações percorrendo os circuitos mais irracionais, o desperdício de tempo e de energias, a estagnação na ociosidade e no tédio (p. 150). Diante da crise desse modelo de assistência, o debate mundial acerca do destino social do doente mental ganha força e começa a fazer eco entre os setores profissionais, governamentais e sociais, que vêm manifestando-se sobre os efeitos nocivos das práticas manicomiais. No Brasil, é inegável o percurso de transformação que ocorreu nas últimas décadas no campo da saúde mental.

No município de Santos, localizado no estado de São Paulo, encontramos um dos marcos na concretização de uma política antimanicomial, através da criação de um serviço de atenção diária, com proposta de um atendimento voltado para a assistência psicossocial. Entre os anos de 1990 e 2001 são criados em todo o Brasil cerca de 300 NAPS e CAPS (Núcleos e Centros de Atenção Psicossocial).

É nesse contexto que são criados em Natal, Rio Grande do Norte, os NAPS e CAPS, estratégias municipais para a efetivação do que se denominou reforma psiquiátrica.

Após essas significativas conquistas, o projeto de uma rede substitutiva ao modelo manicomial parece estagnar. Em Natal, o movimento apóia-se, atualmente, em três núcleos de assistência. Dessa forma, como podemos pensar na eficiência desses serviços, quando não se encontram estruturados como uma grande rede de apoio? Quais os objetivos atuais desses serviços diante da presente configuração e qual o seu grau de resolutividade?

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um movimento em prol da construção da cidadania. E se, como cidadãos, temos o dever de sermos engajados socialmente, como profissionais que lidam com seres humanos, nossos deveres são duplamente cobrados.

É importante ressaltar que a noção de cidadania utilizada neste trabalho vai muito além do conhecimento dos direitos e deveres, conceito admitido por grande parte da população brasileira. Tal conceito não é suficiente, tendo em vista que apresenta direitos e deveres como algo pronto, transformando o sujeito em ser passivo e a-crítico da realidade. O conceito de cidadania proposto por este trabalho está baseado em Gramsci, entendendo a cidadania como uma perspectiva ético-política, ou seja, cidadão é o sujeito do seu próprio destino e da comunidade em que vive. Nessa perspectiva, cidadania é a participação dos indivíduos em determinada comunidade, em busca da igualdade, ajudando a construir a sua própria história.

O conceito de reforma psiquiátrica (bem como demais categorias teóricas nela presentes), utilizado neste trabalho, será tratado detalhadamente ao longo da sua apresentação. No entanto, acredita-se que qualquer perspectiva de reforma que não leve em consideração a construção da cidadania dos usuários, não concretizará plenamente os seus ideais.

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Temos hoje pela frente, em relação à reflexão sobre a extinção dos manicômios, que enfrentar um desafio: desvendar as brechas através das quais os processos manicomiais continuam a se insinuar sob as vestes dos novos discursos e das novas práticas. A incorporação de um discurso e a criação de novas modalidades de ação em saúde não garantem a extinção dos mecanismos de exclusão e segregação (p. 39).

Segundo Boarini (2000), ainda são pálidos os sinais de implantação de uma rede de atendimento que paulatinamente vá substituindo os hospitais psiquiátricos. A autora chama a atenção para a aplicação da portaria 224, do Ministério da Saúde, que prevê o atendimento às pessoas portadoras de transtornos mentais na rede pública extra-hospitalar e por equipe multiprofissional. O que assistimos, na realidade, é a falta de equipes mulitiprofissionais nas unidades básicas de saúde, havendo muitos municípios que contam apenas com o psicólogo para dar conta das demandas em saúde mental. E aqui encontramos um outro problema, tratado por este estudo, que é a confusão de papéis na chamada Psicologia da Saúde. Para Boarini, a questão central da reforma psiquiátrica, a desinstitucionalização, não está clara para a maioria desses profissionais. A implantação de uma rede articulada de serviços substitutivos é uma outra grande dificuldade dos estados que iniciaram o processo de reforma psiquiátrica tardiamente. Daúd Jr. (2000) aponta que muitos municípios acabam optando pela criação de “modelos espaçocêntricos” em detrimento da utilização da rede de atenção integral à saúde (p. 58).

Tudo isso faz com que o conjunto de produções que subsidiam a nossa reforma psiquiátrica, como Conferências, Resoluções e Portarias, vá se transformando em “letra morta” (Boarini, 2000, p. 68)

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substitutivo, ou apenas “criando uma nova demanda, formando uma rede paralela, talvez medicalizante/psicologizante, talvez cronicizante” (Amarante et al., 2001, p. 58).

O momento atual, no que diz respeito à reforma psiquiátrica no nosso país, é de avaliação destes novos serviços. É preciso, então, conhecer este passado, para que possamos vislumbrar aonde queremos chegar e como caminharemos até lá.

Este trabalho objetiva contribuir para esta avaliação, através da realização de um estudo acerca de como se processou a reforma psiquiátrica no Rio Grande do Norte, os atores envolvidos no processo, sua trajetória, conquistas, avanços e perspectivas do movimento em concretizar o ideal de ressocialização do portador de doença mental.

Acreditamos que os resultados deste estudo, ao enfocar a implantação da reforma no âmbito estadual, podem trazer algumas reflexões à compreensão da reforma psiquiátrica brasileira. Afinal, a reforma psiquiátrica no Rio Grande do Norte é um exemplo do que está se configurando no país; apesar das especificidades desta experiência, ela não deixa de fazer parte do todo desse processo histórico.

Para realizar este resgate, fez-se necessário compreender o processo ocorrido na Secretaria Municipal de Saúde de Natal, a partir de 1992. A experiência do município de Natal foi a impulsionadora das reflexões sobre a reforma psiquiátrica no estado do Rio Grande do Norte, tornando-se a referência de uma proposta de mudança, sendo, por isso, o foco principal deste trabalho.

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dificuldades enfrentadas pelos protagonistas do movimento para efetivar o modelo proposto pela reforma psiquiátrica no estado? Que contribuição traz a Psicologia para o debate teórico a respeito do destino social do doente mental?

Os instrumentos utilizados para a realização desta análise foram a análise documental, através de relatórios, legislações e prontuários, bem como coleta de depoimentos das pessoas envolvidas nesse processo. A perspectiva adotada foi a de que os depoimentos orais, além de completar as lacunas das fontes escritas, possuem valor próprio, na tentativa de reconstrução de um processo vivido historicamente. Através da história oral, buscou-se construir a identidade dos atores sociais envolvidos, sua percepção dos fatos, ressaltando-se congruências e incongruências nos depoimentos a respeito do percurso da reforma psiquiátrica. Com estes instrumentos, foram obtidos os seguintes dados:

- Dados sobre o processo de implantação da reforma psiquiátrica no estado (nos níveis da legislação, do planejamento e da execução);

- Dados sócio-demográficos;

- Dados sobre a avaliação do processo de reforma psiquiátrica no estado, na percepção dos atores sociais envolvidos.

Uma primeira etapa do trabalho constituiu-se na identificação das pessoas envolvidas nesse processo, sendo ouvidos membros das equipes dos serviços substitutivos, incluindo NAPS-Leste, NAPS-Oeste e CAPS, protagonistas da reforma psiquiátrica no estado e membros da comunidade que contribuíram com o movimento.

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de ações necessárias, que trazem reflexões importantes para a consolidação de uma reforma psiquiátrica no estado.

Por isso, é extremante importante a reconstrução dessa trajetória, para que se possa entender como caminhou a reforma psiquiátrica após a implantação dos NAPS, quais avanços foram obtidos, o que de fato consegue ser efetivado do projeto original, quais motivos seriam determinantes para o seu desenvolvimento e investigar se os profissionais que adentraram este trabalho encontravam-se devidamente preparados para efetuar esta proposta inovadora.

Os pontos discutidos abaixo são norteadores da compreensão do processo que se deu no estado e confirmadas pelos depoimentos:

- Os profissionais que atuaram e ainda atuam nestes serviços não conseguiram falar a mesma língua, tornando suas posições pessoais e referenciais teóricos como verdades absolutas para desenvolver o seu trabalho. Isso se deveu, em grande parte, à fragilidade teórica do modelo proposto, já que este ainda está em construção;

- A formação precária dos profissionais na área de saúde mental, a má-vontade política, o lobby dos hospitais psiquiátricos, bem como a resistência de outros setores da sociedade, bloquearam os avanços, prejudicando o êxito pleno do trabalho;

- Os profissionais de Psicologia ocuparam um papel decisivo no processo de implantação da reforma psiquiátrica no estado, tornando-se um dos seus principais protagonistas, estando o modelo de assistência à saúde mental em Natal, condicionado aos posicionamentos teóricos dos psicólogos que se encontravam à frente do movimento.

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para esses profissionais. Acontece que a formação das universidades ainda é muito tímida com relação à prática do psicólogo na rede pública. No entanto, a inserção desses profissionais na rede é uma realidade concreta e importante, que precisa ser analisada.

Durante a minha formação no curso de Psicologia, passei a me interessar por trabalhos de cunho social, que ultrapassassem as paredes do consultório e atingissem uma parcela maior da população, considerada excluída. Por que esperar as pessoas adoecerem e virem bater à sua porta, enquanto você passivamente espera nas confortáveis salas da clínica? A minha grande preocupação sempre foi como o psicólogo poderia atuar de forma a contribuir com a transformação social, sendo um agente ativo no despertar de consciências.

Com a realização deste trabalho, pude também resgatar um pouco dessas questões, na tentativa de reconstruir a história do “louco” em busca de sua dignidade, reconhecendo os atores que estão envolvidos nesse processo.

Trabalha-se com a defesa da reforma psiquiátrica, por ela estar imbuída dos ideais de uma sociedade realmente igualitária e humana, primando pela reinserção social dos excluídos, como são os loucos, baseando-se nos princípios da liberdade, igualdade e fraternidade. Enfim, por uma sociedade livre da opressão, preconceito e ignorância.

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Desta forma, o trabalho divide-se em duas partes. Na primeira, discorre-se sobre a exclusão social da loucura, durante o tempo, e sobre as primeiras experiências

de reforma psiquiátrica no mundo. No primeiro capítulo, há uma breve reconstrução dos caminhos sombrios percorridos pela loucura desde a idade média até a chamada medicalização da loucura, quando ocorre o nascimento dos hospitais psiquiátricos. O surgimento dos primeiros hospitais e tratamentos, baseados na manutenção da ordem pública, são tratados neste capítulo. O segundo capítulo trata do início da efervescência das idéias reformistas. Várias experiências iniciais de reforma psiquiátrica são citadas, inclusive a experiência italiana, fonte de inspiração para a reforma psiquiátrica brasileira.

A segunda parte do trabalho descreve o processo de reforma psiquiátrica no Brasil e no Rio Grande do Norte.

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Capítulo I: Breves considerações sobre a loucura e sua marcha

histórica

1. A loucura através dos tempos

“Não espereis que, de acordo com o costume dos retóricos vulgares, eu vos dê a minha definição e muito menos a minha divisão. Com efeito, que é definir? É encerrar a idéia de uma coisa nos seus justos limites. E o que é dividir? É separar uma coisa em suas diversas partes. (...) Como poderia limitar-me, quando o meu poder se estende a todo o gênero humano?” (Erasmo de Rotterdam)

Árdua tarefa a de conceituar a loucura, pergunta que acompanha

a humanidade há séculos. Mentes racionais inquietas que acreditavam a tudo

compreender e controlar, perguntam-se perplexas: afinal, o que é a loucura? É

possível defini-la? Os questionamentos em torno da loucura vão ainda além.

Por que as pessoas enlouquecem?

Tais perguntas trazem à lembrança a obra de Goethe

(1774/2001) – “Os sofrimentos do Jovem Werther”, em que seu personagem

principal afirma: “a natureza humana (...) é limitada: ela suporta a alegria, a

tristeza, a dor, até certo ponto; se o ultrapassar, irá sucumbir” (p. 50). Será

verdade, então, que “todo homem tem um ponto de ruptura” que poderá levá-lo

a paixões extremas, ações impensadas, ou quem sabe, à loucura?O escritor

Lima Barreto (1993)2 descreveu sua experiência como interno em hospital

psiquiátrico, onde conviveu com vários tipos de loucura. A sua definição,

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então, é um problema que o inquieta, pois, apesar das várias nomenclaturas e

terminologias designadas à loucura, não se consegue uma explicação para ela:

“Todas essas explicações da origem da loucura me parecem absolutamente

pueris. Todo problema de origem é sempre insolúvel”, e mais adiante,

questiona a credibilidade científica nesta área: “(...) e os doutores mundanos

ainda gritam nas salas diante das moças embasbacadas, mostrando os colos e

os brilhantes, que a ciência tudo pode” (p. 8).

Segundo Porter (1997), até hoje não encontramos um consenso

com relação à natureza da doença mental3, ela continua sendo algo que nos

escapa. Quando recorremos ao dicionário, encontramos a seguinte definição:

“falta de discernimento, irreflexão, absurdo, insensatez”, ou ainda: “tudo o que

foge às normas, que é fora do comum, extravagante”. São muitas palavras

para designar um termo que é, na verdade, essencialmente complexo e

impreciso.

Ao analisarmos o sentido histórico da loucura, iremos nos deparar

com significações diversas, variando de acordo com o contexto social,

econômico e cultural de cada época. O que há de comum é o fato de o

sofrimento mental ser inerente ao ser humano, sendo sua presença registrada

em todas as fases da história da civilização (Foucault, 1972).

Pessotti (1999) também encontra um ponto de convergência nesta discussão. Para ele, apesar das inúmeras variações de espécies ou subespécies atribuídas à loucura durante esse percurso histórico, há conservado um conceito básico que a define como “(...) perda da liberdade e da autonomia psicológica, perda do

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autogoverno, seja porque a razão se perde ou se perverte, seja porque a força do apetite atropela o controle racional do comportamento” (p. 7).4

Na verdade, essa figura denominada louco e, posteriormente, doente mental, traz consigo comportamentos considerados inadequados e muitas vezes incompreensíveis para os homens. Para Foucault (1989), é preciso olhá-lo sem medo, porque veremos muitas verdades a nosso respeito refletidas naquela figura:

O louco desvenda a verdade elementar do homem: esta o reduz a seus desejos primitivos, a seus mecanismos simples, às determinações mais prementes de seu corpo. A loucura é uma espécie de infância cronológica e social, psicológica e orgânica, do homem (p. 512).

É essa incapacidade, presente nas definições de Pessotti e Foucault, atribuída ao louco, que fará com que ele vá perdendo paulatinamente sua essência humana, tornando-o um ser estranho, diferente de nós, que num determinado período histórico precisou ser expurgado do convívio social. Não caberá aqui, então, um “elogio à loucura”, como “a única que pode trazer alegria aos homens e aos deuses” (Rotterdam, 1509/2000, p. 15), mas o reconhecimento do sofrimento psíquico que aflige as pessoas tidas como loucas.

No entanto, o debate acerca da loucura não se esgota nesta questão. A sua história traz marcas profundas de preconceito e estigmas que permitiram inúmeras arbitrariedades cometidas em nome de um “tratamento científico”. É nesse sentido que se tenta atualmente um tratamento eficaz, que, ao mesmo tempo, resgate a dignidade e a humanidade dessa condição.

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Para entender o destino social do portador de doença mental nos dias atuais, é necessário compreender, minimamente, como se dá este processo histórico de total intolerância com a figura do louco. Faz-se conveniente lembrar ainda que, ao estudar o passado, não se deve partir da premissa de que a fase atual da humanidade sinaliza o final de um progresso, o que legitimaria o homem moderno a lançar um olhar de superioridade aos primórdios do mundo e a conceber como perfeito o tempo presente. A esse respeito, pontifica Foucault (2000) que se faz necessário “(...) ter em relação a nós mesmos, a nosso presente, ao que somos, ao aqui e agora, este ceticismo que impede que se suponha que tudo isto é melhor ou que é mais do que o passado. (...)” (p. 140). Veremos, ao longo de todo este trabalho, que as questões relacionadas à loucura não se encerram com a construção de rumos diferentes, mas que tais caminhos são embrionários na construção de um novo olhar sobre a loucura.

Enfim, pretende-se desvendar onde e quando nasce a exclusão social do louco, para compreendermos a origem do conceito de doença mental e o conseqüente processo de desumanização que ocorre nas internações em instituições psiquiátricas. A esse processo de desumanização refere-se Carrano (2001): “Era uma visão triste: aquelas pessoas reduzidas àquilo. Eram pessoas sim, seres humanos, mas pareciam feras torturadas, agoniadas, com alguma coisa mordendo seus corpos e rasgando-lhes também a alma” (p. 54).5

5 Carrano (2001) escreveu sua história como interno em hospitais psiquiátricos na época da ditadura militar, tornando-se hoje membro do Movimento da Luta Antimanicomial. Seu depoimento nos faz pensar em alguns procedimentos dolorosos vividos em instituições psiquiátricas. Lembramos ainda que seu livro deu origem ao filme “Bicho de Sete Cabeças”, dirigido por Laís Bodanzk, que se transformou em importante aliado do movimento da Reforma Psiquiátrica. No entanto, um erro de interpretação pode

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Os manicômios, na tentativa de salvaguardar a sociedade dos temores da loucura, criaram verdadeiros “cemitérios de vivos”, que desqualificaram, excluíram e seqüestraram dessas pessoas o direito à dignidade e à vida.

1.1. “Os Deuses devem estar Loucos”: um olhar sobre a Antiguidade e o Renascimento

“A loucura zomba de todas as vaidades e mergulha todos no insondável mar de seus caprichos incompreensíveis”

Lima Barreto

Na Idade Antiga, os fatos encontravam explicação no misticismo, logo, a loucura era significada como manifestação dos deuses. Não havia status algum de doença atribuído à loucura, sendo perfeitamente possível o convívio com ela. Temos aqui a loucura sendo cultuada e reverenciada. Durante todo o período que se estende da Antiguidade à Idade Média, o louco gozava de um certo privilégio, que tempos depois parecer-lhe-ia impossível: a liberdade (Foucault, 1972; Resende, 2000).

Na Idade Média, contraditoriamente, o louco era visto como pobre de espírito, digno de pena e caridade. Ao analisarmos esse contexto histórico, perceberemos que a manipulação e o domínio da Igreja foi a grande responsável pela construção deste imaginário social da loucura.

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fosse mais ameaça à Igreja.6 Mackay (2001) lembra-nos de que as execuções ocorridas neste período refletiam perseguições político-religiosas. O autor alertou para a loucura das massas, representada aqui pelo aval dado pela sociedade para tamanha arbitrariedade, afirmando que muitas vezes os homens enlouquecem em bandos, ao passo que só recobram a lucidez lentamente e um a um.

Manifestações dos deuses, pobreza de espírito, periculosidade...O louco sempre esteve presente no imaginário social, que constrói e desconstrói significados para lidar com ele, inclusive, segregando-o de uma forma ou de outra.

Percebemos, então, que havia uma maior tolerância na Idade Média, que, entretanto, não significava um “paraíso” para os loucos. Na história ocidental, a loucura percorreu caminhos sombrios que a levaram a pactos com demônios, bruxarias, domínio de tendências de animais selvagens etc. Entretanto, ainda a convivência com a loucura era suportável; como referido alhures, conseguia-se ouvir a sua voz sem ser atormentado pelo discurso da razão. Apenas com a transformação da ideologia religiosa numa ideologia científica e com o nascimento da ciência experimental, durante o Renascimento, esqueceu-se da caça às bruxas, e a antiga ignorância a respeito das feitiçarias deu lugar aos novos conhecimentos científicos (Szasz, 1984).

Segundo Resende (2000), foi o fim do campesinato como classe e o declínio dos ofícios artesanais que possibilitaram tachar a loucura como problema social. Novas formas de divisão social do trabalho, surgidas na Europa ao final do século XV, desenvolveram um espírito de avidez pelo lucro e de luta pela sobrevivência, levando as pessoas ao pensamento de que deveriam viver para trabalhar. Na sociedade capitalista, o conceito de indivíduo e de cidadania decorre da noção

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burguesa de propriedade. O indivíduo era livre, dono de si mesmo para, inclusive, vender a sua força de trabalho. Dessa forma, a liberdade individual deveria tornar-se compatível com a subordinação a um processo de trabalho. Fez-se necessário varrer do cenário social tudo e todos que fugissem ao novo conceito de normalidade, inspirado pela nova ordem de produção.

Interessante observar que os conceitos de “normal” e “anormal”, “normal” e “patológico”, são frutos tanto da cultura quanto das necessidades econômicas de uma sociedade (Porter, 1997; Resende, 2000). A mendicância, a ociosidade e a própria loucura começam a sofrer repressões. É nesse contexto que a loucura é silenciada. Quando ela começa a assombrar a imaginação do homem e a gerar incômodo no seio da sociedade, várias são as tentativas de reprimi-la. Esta fica sendo a principal preocupação: tirá-la defronte dos olhos assustados das pessoas ditas normais, afastá-la dos ouvidos perturbados pelos absurdos proferidos pelos insanos, ocultar, excluir, manter longe o discurso da “desrazão”.

No século XVII, tais mudanças ocorridas na Europa resultaram

num “grande enclausuramento” como resposta para a desorganização social e

a crise econômica. Oito mil pessoas foram recolhidas em Salpêtrière (Hospital

Geral de Paris). Dörner (citado por Desviat, 1999) enumera os cidadãos

possíveis de serem presos, incluindo-se os mendigos e os vagabundos,

pessoas sem trabalho e sem domicílio, criminosos, rebeldes políticos e

hereges, as prostitutas, os loucos, os idiotas, entre outros que precisavam

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2. A Medicalização da Loucura e o surgimento dos Hospitais Psiquiátricos: um

mal necessário?

“Não tem dó no peito, não tem jeito, não tem ninguém que mereça, não tem coração que esqueça”.

Geraldo Azevedo

Até então, os loucos estavam nas mãos da justiça, destinados a cumprirem medidas legislativas de repressão em hospitais gerais, que apesar da nomenclatura, não tinham função curativa. Sua única função, como vimos alhures, era manter a cidade limpa “desses perturbadores da ordem pública” (Resende, 2000, p. 24).

Segundo Foucault (1972), foi ao final do século XVIII que a figura do médico e a do louco começam a se aproximar mais intimamente, na tentativa de tornar a doença algo privado, ou seja, transformá-la em assunto de exclusividade e domínio médico. Assistimos à entrada de um novo ator social, o médico, no desfecho da história da loucura. A questão que se coloca neste contexto é: como um sujeito com transtorno mental deve ser tratado? Será ele culpado ou não pelo seu “pathus”?

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O que veremos a seguir é que esta apropriação total, por parte da Medicina, daqueles comportamentos que implicam no desvio da norma social dominante, respondia a um mecanismo social de controlar a diferença na sociedade capitalista.7

Castel (1978a) relata-nos o percurso da responsabilidade sobre a loucura durante o Antigo Regime e após a Revolução Francesa. No Antigo Regime, a “Lettre de Cachet”, ou ordem do rei, foi responsável por arbitrariedades cometidas em nome do poder. O poder judiciário também foi responsável pela efetivação de leis severas de repressão, que igualavam os loucos a animais ferozes que, quando não domesticados, precisavam ser recolhidos do convívio. Na história da assistência psiquiátrica, a França foi o primeiro país a institucionalizar a atenção médica ao louco.

Em 27 de março de 1790, a Assembléia Constituinte decretava, no artigo 9, que abolia as “Lettres de Cachet” (Castel, 1978a):

As pessoas detidas por causa de demência ficarão (...) sob os cuidados de nossos procuradores, serão interrogadas pelos juízes (...) visitadas pelos médicos (...) a fim de que, segundo a sentença proferida sobre seus respectivos estados, sejam relaxadas ou tratadas nos hospitais indicados para este fim (p. 9).

Com a abolição da ordem do rei, o alienado não podia mais ser enclausurado, mas destinado a um tratamento específico. Faz-se necessário compreender quais circunstâncias propiciaram determinantes mudanças. Como bem nos lembra Desviat (1999), tais mudanças foram possíveis “(...) porque as novas normas sociais necessárias ao desenvolvimento econômico proibiam a privação da liberdade sem garantias jurídicas” (p. 17). É assim que o isolamento passa a ter uma função

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terapêutica. A justiça não poderá mais se responsabilizar pelo controle da loucura, cabendo à Medicina este papel.

A lei francesa de 30 de junho de 1838 foi a primeira grande medida legislativa que reconheceu um direito à assistência e à atenção para a categoria dos doentes mentais, idealizando os famosos asilos, que tempos depois viriam a se chamar hospitais psiquiátricos. A loucura assume um novo caráter e é vestida com o status de doença.

Convém lembrar que os internamentos, ou melhor chamados, confinamentos do louco, nada tinham a ver com o pensamento médico. Dessa forma, a Psiquiatria demora a firmar-se como parte importante da ciência médica, justamente por não se enquadrar na orientação materialística, mecanística e racional dominante. O psiquiatra era incumbido de guardar o louco, não de curá-lo: “Ao mesmo tempo em que era suspeita, a Psiquiatria era também necessária e, por isso, foi limitada principalmente ao cuidado custodial de casos adiantados, em sua maioria sem esperanças ou perigosos para si próprios e para os outros” (Alexander & Selesnick, 1980, p. 25).

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conseguiram perdurar até os dias atuais). Tais análises levam-nos a questionar as funções terapêuticas dos hospitais psiquiátricos e colocar em xeque a sua existência.8

Basta lembrarmo-nos de que o aparecimento dessa nova ciência

é mais conseqüência do que causa do surgimento dos asilos. A Psiquiatria

floresce quando os manicômios já estão abarrotados dos ditos “lunáticos”

(Porter, 1997). Convém evocar as palavras de Foucault (2000) para reforçar a

discussão:

A crise atual dessas disciplinas não coloca em questão simplesmente seus limites e incertezas no campo do conhecimento. Coloca em questão o conhecimento, a forma de conhecimento, a norma sujeito-objeto. Interroga as relações entre as estruturas econômicas e políticas de nossa sociedade e o conhecimento, não em seus conteúdos falsos ou verdadeiros, mas em suas funções de poder-saber. Crise por conseqüência histórico-política. (p. 118) Dessa forma, a partir do século XVIII, temos um novo saber especialista, que se utilizava de tratamentos bastante distintos e bizarros, como choques, banhos quentes, sangrias, chuveiradas frias, uso de algemas e camisas de força. Ainda segundo Porter (1997), as intenções de tais métodos eram de contenção: “Acabando com as agitações do físico, o objetivo último era acalmar a mente, e assim torná-la receptiva às carícias da doce razão” (p. 28).

Szasz (1980) descreveu o novo quadro que se delineia para a loucura: “(...) enquanto que na Idade Média a ideologia era a cristã, a tecnologia era clerical e o perito era o sacerdote, na Idade da Loucura a ideologia é médica, a tecnologia é clínica, e o perito é o psiquiatra” (p. 12). O que se pretende mostrar com o início do saber

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especialista da Psiquiatria, é a responsabilidade que esta tomou para si ao reivindicar o poder sobre a loucura. Os especialistas definem a realidade para a sociedade leiga. Ao diagnosticar o louco, o psiquiatra traça o seu destino, transformando-se em seu deus e carrasco. Segundo Castel (1978a), quem dá ao psiquiatra o seu mandato para transformar completamente a definição de loucura e condicionar o status antropológico do louco é o outro sistema de poder. E desta negociação é definido o destino social do doente: “É sempre uma questão de equilíbrio, de intercâmbio, de concorrência entre representantes de aparelhos: da justiça, da administração, da polícia...” (p. 145).

No século XVIII, numerosos são os gêneros e as classificações da loucura, época em que se consolida o domínio hegemônico da Medicina neste campo (Pessotti, 1999). Sobre isso, Basaglia (1979) afirma que a história da Psiquiatria é a história dos psiquiatras, com suas extravagantes classificações da doença mental. De lembrar-se, entretanto, que não se pode negar o pioneirismo de alguns médicos da época, como o francês Philippe Pinel, o inglês William Tuke, o italiano Chiaruggi e o alemão Reil, além de outros apontados pela literatura, introduzindo técnicas na “melhora” do tratamento dos doentes mentais. Sob sua orientação, os hospitais deixaram de acorrentar seus pacientes e começaram a tratá-los de modo mais “humano”: “sua contribuição primordial foi mudar atitude da sociedade em relação aos insanos, de modo que esses pacientes pudessem ser considerados seres humanos enfermos, merecedores e necessitados de tratamento médico” (Alexander & Selesnick, 1980, p. 161).

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Convém, neste momento, ressaltar que não podemos perder de vista que o tratamento moral, bem como outras formas posteriores de tratamento, falaram prioritariamente em nome da repressão, da ordem social. A liberdade, neste contexto, não significa o direito de sair do asilo, mas ao tratamento na instituição que é autorizada para isso. Amarante (1996) também analisa o tratamento moral, ressaltando que sua principal base encontra-se no isolamento. Concorda-se aqui com Castel (1978a), quando o mesmo afirma que o movimento alienista visa, fundamentalmente, abolir da paisagem social esse foco que é a loucura.

É, no entanto, o século XIX que merece, de acordo com Pessotti (1996), o título de “século dos manicômios”. Para esse autor, também é o manicômio o núcleo gerador da Psiquiatria como especialidade médica, este lugar que “aparece como um cenário de grandes combates, de uma imensa tragédia” (p. 9), onde o homo sapiens se encontra com sua negação.

No começo do século XIX, os médicos de todo o mundo reconheceram as doenças mentais como uma forma de enfermidade, e elas se tornaram objeto de pesquisa e tratamento médico. Seguindo um critério nosológico de classificação, a loucura passa a ser entendida como qualquer outra doença, devendo ser descrita e classificada segundo os padrões clínicos9 (Amarante, 1996; Foucault, 2000; Pessotti, 1999). O prestígio da Neurologia começa a questionar o tratamento moral. Modernas teorias sobre a loucura encaixam-se perfeitamente com a solidez das bases científicas que dominavam o pensamento da época. Em 1892, Kraepelin na Alemanha classificou a loucura em dois grandes grupos de doenças, que eram as manias e depressões e as

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demências precoces. Os estudos psiquiátricos de Kraepelin são considerados um passo decisivo na consolidação da Psiquiatria como ciência médica (Elói, 1989).

O hospício passa a ser o lugar da loucura, como nos afirma Machado (1978): “De todas as moléstias a que o homem é sujeito, nenhuma há cuja cura dependa mais do local em que é tratada do que a loucura” (p. 380). Para o isolamento do louco, muitas eram as necessidades terapêuticas que o justificavam, como por exemplo, garantir a segurança da própria pessoa e da família, a imposição de novos hábitos intelectuais e morais, liberá-los de influência externa etc.

Atualmente, percebe-se claramente que a evolução dos conceitos psiquiátricos que observamos no trajeto histórico de Pinel a Kraepelin não elucida o dilema da institucionalização: o traçado miserável do destino do doente mental, relegado à estigmatização e à invalidação social (Amarante, 1996). A Psiquiatria de hoje ainda é incapaz de responder à indagação inicial que encetou a nossa discussão. No entanto, fala-nos com bastante propriedade sobre sintomas e novas doenças que surgem a cada dia, sem conseguir enxergar a pessoa que adoece.

Faz-se interessante a abertura de um parêntese, para que se possa analisar cenas assistidas diariamente em hospitais psiquiátricos, públicos ou privados10. Um desses episódios será descrito aqui por ter sido assistido com bastante estranheza: quando um novo paciente é trazido pela família para ser internado pela primeira vez, todos estão sentados na sala de espera junto a outros que aguardavam, e a recepcionista, ali mesmo, começa um verdadeiro inquérito, sem ao menos olhá-lo nos olhos. E nem poderia, pois olhava fixamente para a tela do computador, digitando as respostas dadas pelo novo paciente:

- Já teve alucinações?

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- Hum?!? Pergunta o senhor sem compreender.

- O senhor já teve ALUCINAÇÕES? Repete a recepcionista impaciente.

- Já... Responde o paciente meio vacilante. - Tentativa de suicídio?

O paciente olha em volta, desconfiado e encontra olhos curiosos que tentam compreender aquele diálogo.

- Não...

Após uma série de questionamentos, o paciente já pode ser internado, pois preenche os requisitos de “louco”. Do outro lado, a irmã que o trouxe, dirige-se a ele com bastante raiva:

- Você vai ficar aqui para aprender a lição! Vai ficar de castigo! Agora eu quero ver você se comportar! Enfermeira, ele vai ficar aqui sem visita, viu?

Diante da cena exposta acima, são muitas as questões que se colocam. A primeira, e mais importante, é sobre a propriedade deste procedimento. Quem é essa pessoa? Quais os seus medos, suas angústias? O que foi tão forte emocionalmente para ele que não agüentou e “sucumbiu”? E, principalmente, essa internação era de fato necessária?

Além disso, podemos perceber que o papel exercido pelos hospitais psiquiátricos é de fato, de controle e coerção, e que o papel da família e da sociedade leiga em geral, é muitas vezes imprescindível na perpetuação do modelo manicomial. Szasz (1980) faz uma crítica à internação de um paciente, na tentativa de atender às expectativas da família que estaria cansada da situação, com a qual concordamos:

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mentalmente perturbadas requer que se faça algo aos pacientes não por eles. Aqui o objetivo é salvaguardar a sensibilidade não do paciente, mas daqueles a quem perturba. Esse é um problema moral e social, não médico (p. 86).

A política da segregação propriamente dita traz à lembrança a fantástica obra de Franz Kafka (1912/1997) – “A metamorfose”, em que a família do jovem Gregor Samsa, ao vê-lo metamorfoseado num “inseto monstruoso”, simplesmente segrega-o em seu quarto e, quando muito, envia-lhe algum alimento. Deixam-no à míngua, abandonado à própria sorte, até que a morte vem ceifar uma existência triste e solitária. Mas a consciência não se fazia pesar para a nobre família: “(...) procuramos fazer o que é humanamente possível para tratá-lo e suportá-lo e acredito que ninguém pode nos fazer a menor censura” (Kafka, 1997, p. 74). Esta tem sido também a resposta da sociedade leiga em relação à loucura. Acreditam que os manicômios cumprem bem o seu papel, independente do tratamento degradante e desumano. É como se essas pessoas tivessem perdido sua humanidade ao enlouquecerem, tornando-se seres grotescos, cujo convívio seria impensável.

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O avanço dos psicofármacos acaba por prometer “paraísos artificiais” à sociedade, além de ampliar de forma assustadora o terreno de intervenção psiquiátrica.11

Neste ponto, impossível é olvidar a impecável obra machadiana - “O Alienista”, que perfeitamente reproduziu o terror provocado pela internação compulsória de todo aquele que por um motivo qualquer, vinha a ser tachado de louco. Este é o rumo mais perigoso em que pode a Psiquiatria enveredar-se, como afirma Porter (1997): “A Psiquiatria tinha uma tendência a ser grandiosa porém circular: via loucura em toda parte” (p. 30).12

Szasz (1980) reforça este argumento:

A partir do início do século [XX], especialmente depois de cada uma das duas guerras mundiais, o ritmo dessa conquista psiquiátrica cresceu rapidamente. O resultado é que hoje, em particular no “rico” Ocidente, todas as dificuldades e problemas da vida são considerados doenças psiquiátricas e todos (exceto aqueles que diagnosticam) são considerados doentes mentais (p. 12). O autor alerta para o argumento que pretendemos discutir. Hoje, existem cerca de 70.000 (setenta mil) pessoas internadas em hospitais psiquiátricos somente no Brasil. Grande parte são pacientes crônicos, a vagar pelo que Carrano (2001) batizou de “canto dos malditos”:

O conceito geral daquele pátio é uma grande jaula, onde as feras ficavam, umas deitadas, outras sentadas em diversos lugares, os olhares perdidos horas e horas, olhando não se sabia para onde. Todos mantidos escondidos, como animais contaminados e que deviam ser trancados em algum lugar (p. 55).

11 Não se trata aqui de negar a evolução dos medicamentos na área da Psiquiatria. No entanto, os medicamentos concentram-se no controle dos sintomas, o que faz com que os psiquiatras concordem que não é o bastante.

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As marcas de sofrimento, maus tratos e preconceito são indeléveis. E, por isso, a nossa questão central, a substituição do modelo manicomial, é perpassada por princípios éticos, políticos, técnicos e estéticos, que pretendem reconhecer a pessoa portadora de doença mental como um sujeito de direitos.

Ao analisarmos os manicômios da nossa atualidade, veremos que instituições encarregadas de “cuidar” do louco, curá-lo, não parecem estar conseguindo cumprir bem o seu papel. O ambiente intra-muros é extremamente degradante e desumano, fazendo o sujeito se despir de sua individualidade e de seus papéis sociais. O controle exercido pela instituição é tão repressor que impossibilita qualquer tentativa de individualização. “Será que realmente precisamos mais desta espécie de Psiquiatria?”, pergunta-se Szasz (1977, p. 87).

Na verdade, não. As evidências mostram que é preciso romper com certas “verdades cientificas” incorporadas pela Psiquiatria. Michel Miaille (1989) explicita muito bem essa idéia:

E se o que é afirmado como “verdade” evidente pudesse ser objecto de um ataque radical? Talvez seja possível ir mais longe, ou melhor, por outro caminho, em relação às vias já traçadas. Talvez haja portas que possamos abrir que as doutrinas precedentes e as afirmações de hoje mantêm fechadas. É esse ultrapassar a que vos convida toda a reflexão científica: e, como qualquer reflexão científica, ela reveste de algum modo o caráter de uma aventura. Ninguém sabe o que afinal de contas será descoberto, ninguém sabe que dificuldades nos esperam nessa exploração. Mas vale bem a pena tentar a experiência, mesmo se ela nos conduzir por caminhos solitários, mesmo se ela nos opuser a tudo o que se encontra “normalmente” dito e explicado (p. 25). (grifos nossos)

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essenciais para enfrentar novos desafios em relação ao tratamento de pessoas portadoras de doenças mentais, evitando-se cometer os mesmos erros. Afinal, não se trata de melhorar o pensamento anterior, mas “propor um outro modo de colocar o problema” (Miaille, 1989).

3.Notas sobre a história da Psiquiatria em terras brasileiras

“Só se entra no hospício para não sair ou, na melhor das hipóteses, para logo depois voltar”.

Machado

“O hospício é como um poço profundo no qual se entra rápido mas do qual é difícil sair, pois suas paredes são escorregadias como na incompreensão e no abandono e não há onde agarrar-se”.

Moffatt

Vimos que a Psiquiatria surgiu na Europa em determinado período histórico e que a loucura nem sempre foi considerada doença mental, passível de tratamento. E no Brasil, como se configura a chamada medicalização da loucura?

Ao falar sobre a institucionalização da loucura no Brasil, corre-se o risco de ser repetitivo e seguir um pensamento circular. No entanto, é exatamente este aspecto da Psiquiatria no Brasil que será enfatizado: a repetição de um modelo importado da Europa e a hegemonia do pensamento da chamada Medicina mental.

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Se, na Europa, a loucura como problema social emerge diante do estabelecimento concreto da sociedade rural pré-capitalista, aqui esse processo se dá no período do Brasil colônia. Neste período, o trabalho era baseado na atividade servil, caracterizado pela presença maciça de escravos encarregados de todo o trabalho pesado das propriedades, tanto no que diz respeito às atividades de produção, quanto às atividades domésticas: “Enquanto na Europa se transita da servidão feudal para o salariato, através do trabalho independente de camponeses e artesãos, no mundo colonial acentuava-se a dominância do trabalho compulsório e, no limite, a escravidão” (Novais, 1997, p. 33).

Percebe-se, então, um grande estreitamento das relações de trabalho. Existiam, de um lado, grandes senhores, poderosos proprietários de terras, representando, é claro, uma ínfima parcela desta sociedade, e, do outro, estava aquela massa de escravos, constituindo a maioria social. Alheia a tudo isso, restava uma classe indefinida, composta por homens livres, “sem trabalho”, “sem renda”, como mestiços, mulatos e também brancos “puros”.

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Neste eterno retorno, voltamos ao ponto de partida: depois de quase 300 anos sem incomodar nossos olhos e ouvidos, a loucura nos obriga a enxergá-la em nome da ordem e da paz social e contra a vagabundagem e a ociosidade daqueles que não possuíam bens.

Quando Foucault (1972) nos relata as circunstâncias que envolveram o “grande enclausuramento”, não encontramos diferenças com o que ocorreu no Brasil, embora vivendo um contexto econômico distinto. Para serem varridos deste cenário em terras brasileiras, os loucos também eram seqüestrados da sua liberdade e recolhidos às Santas Casas de Misericórdia, onde recebiam tratamento marcado por maus tratos, que por muitas vezes levavam à morte.

Em 1841, o imperador Dom Pedro II determinou a criação de um hospício no Rio de Janeiro, para o tratamento dos doentes mentais, que viria a ser inaugurado em 1852, marcando o nascimento da Psiquiatria brasileira13. As Santas Casas de Misericórdia não podiam mais se responsabilizar pelos loucos, que se misturavam com todo tipo de “despejo humano”.

Desde 1830, alguns médicos engrossavam o debate acerca do destino social do louco, indicando o hospício como o único lugar possível de tratamento. Segundo Machado (1978), é a Medicina Social que legitima no Brasil o conceito de periculosidade relacionado à loucura e a necessidade de seu afastamento social. A construção do hospício aparece aqui como parte integrante deste projeto normalizador que caracteriza a Medicina Social.

Após o marco institucional da assistência psiquiátrica, em 1852, vários são os hospícios construídos ao longo do tempo, como construções que se seguiram em São Paulo, Pernambuco, Bahia e Pará. Vale a pena lembrarmo-nos de que a estrutura

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do primeiro hospício inaugurado no Brasil tinha as mesmas características da estrutura elaborada por Pinel e Esquirol na França (Resende, 2000). Sua função segregadora e normalizadora da ordem é evidente, como faz referência Daúd Jr. (2000):

O Hospital Psiquiátrico desde o primeiro criado em 1841 no Rio de Janeiro, capital do império, passando pelo mais moderno do mundo criado em 1898, o Juquerí, e todos os outros criados pelo poder público até 1960, vêm se somar às outras instituições de repressão e controle social voltados a disciplinar a obra excedente, a mão-de-obra fabril, a pobreza, a reprodução da raça negra (...) (p. 36).

Após a proclamação da República, a Psiquiatria empírica começa a ceder espaço para a considerada Psiquiatria científica. O que ocorre nesse período é um ordenamento no processo de urbanização no país, que vem responder ao desenvolvimento mercantil e suas novas políticas.

No início do século XX, alvorecer da República, o Brasil foi cenário de violentas transformações político-sociais, com movimentos sociais operários em organização e respostas agressivas do Poder. O caos social fez com que a disciplinarização da sociedade fosse ainda mais necessária, como bem explicita Luz (1979):

A formação de favelas, cortiços, vilas operárias, confirma cada vez mais o espaço urbano como espaço social, espaço político, isto é, desenhado pela lógica da hierarquia social. Sujeito, portanto à organização e ao controle políticos, isto é, à institucionalização da Ordem (p. 158).

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O tratamento basicamente restringia-se à chamada praxiterapia, a qual pretendia devolver os indivíduos aptos para o trabalho. Dentro desse recorte histórico, a Psiquiatria mais uma vez assume os mesmos critérios da ordem vigente para definir o que é normal e o que é patológico. Baseava-se na crença de que o trabalho seria responsável em recolocar o louco, recuperá-lo para o convívio social, como nos explica Machado (1978):

Trabalho significa coordenação de atos, atenção, obediência a um encadeamento de fases da produção que permitirá chegar ao produto; significa existência de regras às quais o alienado deve se adequar. É uma fonte poderosa de eliminação de desordem, de submissão a uma seqüência coordenada e ordenada (...). O trabalho é, portanto, em si mesmo terapêutico, ocupando assim uma posição central no tratamento (p. 441).

Ainda segundo Daúd Jr. (2000), na década de 1850, ocorreu no Brasil a Reforma Teixeira Brandão, que inaugurou a “Era das Colônias Agrícolas”, sendo estimulada por todo o país a criação de campos de trabalho (p. 39). Com a implantação de colônias, o trabalho agrícola torna-se o mais usual, principalmente entre os pobres, pois a ocupação daqueles que tinham condições financeiras favoráveis era restrita a jogos e leituras.

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Rotelli (1994) não concorda com a relação simplificada de trabalho como fato terapêutico, mas trabalho deve ser entendido como direito. Segundo ele, terapêutico, na verdade, seria tudo aquilo que dá acesso aos direitos, que nos permite viver com um mínimo de dignidade e qualidade. Dessa forma, é importante compreender o trabalho como um dos aspectos constituintes do sujeito de direitos. O trabalho alienado do sistema capitalista, tão bem retratado no filme “Tempos Modernos”, contribui apenas para a constituição de seres automáticos e impensantes, obedientes às regras do nosso sistema de produção. Para o portador de doença mental, é importante fazê-lo sentir-se integrado no mundo do trabalho, sem ser visto como incapaz, por não se adequar ao rigor do trabalho formal (Silva, 2000). Dessa forma, o trabalho não deverá ser mais um fator de alienação desse sujeito, mas a sua expressão de criatividade e capacidade produtiva.

Encontraremos ainda duas reformas no cenário psiquiátrico brasileiro que ampliaram a “assistência” aos doentes mentais em instituições manicomiais. A reforma Adauto Botelho, na década de 1940, utiliza-se da assistência médica como estratégia de sedução de novas massas populares, sendo criados hospitais psiquiátricos em todo o país, também como resposta aos problemas de saúde14 (Daúd Jr., 2000; Luz, 1979).

Na década de 1960, assistimos a um papel ainda mais assustador dos hospitais psiquiátricos. Com a reforma Leonel Miranda, inaugura-se a “Era de Ouro dos Hospitais Privados”, fazendo com que o número de hospitais psiquiátricos crescesse

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rapidamente15. Durante a ditadura militar, esses hospitais acolheram presos políticos em sessões de tortura, a serviço do Estado: “Os presos políticos, dados como desaparecidos, foram submetidos a condutas médicas de tortura, como aplicação de escopolamina, como medida punitiva, e... mortos” (Lopes, 1999, p. 29).16

15 Sampaio, citado por Daúd Jr., mostra que de 1964 a 1982 os leitos psiquiátricos cresceram dezesseis vezes mais rapidamente do que a população brasileira.

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3.1. Histórico da evolução psiquiátrica no Rio Grande do Norte

“Às vezes é bom acreditar na evolução e pensar que o homem ainda não está

concluído”. (Jonh M. Henry)

A vinculação entre a história da Psiquiatria do Rio Grande do Norte com todo o processo de assistência à saúde mental no estado, que vem a se desenvolver posteriormente, faz-se mister no desenrolar deste trabalho. É importante perceber o discurso sinuoso, cheio de avanços e retrocessos, também marcado pelos erros da prática assistencial no país. A primeira etapa da Psiquiatria hospitalocêntrica – a ocupação de enfermarias das Santas Casas – aconteceu no Nordeste da mesma forma que nas outras regiões do país.

No período da República, foram inaugurados hospícios destinados ao trato exclusivo dos “insanos”, instalando-se em Recife - Hospício da Visitação de Santa Isabel, em 1864 -, Salvador - Asilo de João de Deus, em 1874 -, Fortaleza - o Asilo São Vicente de Paula, em 1886 -, Maceió - Asilo Santa Leopoldina, em 1891 - e na Paraíba - Asilo do Hospital Santa Ana, em 1892.

Seguindo os mesmos passos da trajetória percorrida pela assistência psiquiátrica no Nordeste, foi inaugurado em Natal, no ano de 1882, a sua primeira instituição, o Lazareto da Piedade.17 O Lazareto abrigava toda espécie de indigentes que necessitassem de abrigo. Apenas em 1911, quando o Lazareto é transformado em Asilo da Piedade de Natal, passa-se a atender exclusivamente os indigentes considerados loucos. A atuação médica no asilo inicia-se algum tempo depois, no ano de 1916.

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A imagem social que se tinha do asilo era de uma “prisão de doidos” (Sucar, 1993, p. 25). O louco era visto como essencialmente perigoso, e as reformas feitas no asilo restringiam-se ao aumento do número de grades, reforçando-se o imaginário social. Os tratamentos resumiam-se a confinamentos nas celas, camisas de força e outros tipos físicos de contenção.

O que chama mais atenção, durante esse período de assistência psiquiátrica no Rio Grande do Norte, é o rápido crescimento do número de internos, bem como dos casos de óbitos dentro dessas instituições (Elói, 1989; Sucar, 1993). O caos tomava conta dos asilos, que chegavam a comportar mais de duzentos internos, quando só se dispunham de setenta leitos, obrigando os pacientes a dormirem no chão, sem vestimentas, sem alimentação e sem os cuidados médicos necessários.

Em 22 de abril de 1921, para dar respostas aos questionamentos da sociedade em torno da eficiência desse modelo, realiza-se a primeira reforma no asilo, que culminou com a elaboração de um regulamento, passando a instituição a denominar-se “Hospício de Alienados”. Em contrapartida, as estatísticas mostram que mesmo após a publicação do decreto, o quadro de óbitos aumentou, não havendo melhora alguma na situação de penúria na qual viviam os doentes mentais. O descaso das autoridades locais era massacrante para aqueles que de alguma forma denunciavam as arbitrariedades cometidas no local.

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desnecessários e o reinternamento freqüente, e o início da praxiterapia. Segundo ele, Natal estava atrasada em mais de um século de “avanços” na área da Psiquiatria.

Seguidor de Ulisses Pernambucano, psiquiatra responsável pela disseminação de uma Psiquiatria Social no Brasil que tivesse como base a profilaxia e a higiene mental, João da Costa Machado lutou pela implantação de suas idéias em Natal. No entanto, o que se observava na cidade era a estagnação de um modelo considerado ultrapassado e inútil para o fim a que se propunha. Os anos passavam e o modelo vigente parecia se perpetuar também no imaginário social, dificultando ainda mais as tímidas propostas de mudança, que exigiam uma reformulação do que se entendia por loucura até então. Tentava-se, na verdade, separar o joio do trigo. Não se poderia inserir todo tipo de loucura na categoria de doenças mentais, como enfatizou Sucar (1993):

A denominação do louco, não era, ou é dada apenas a quem seja doente mental, mas a todos aqueles que não se enquadram nos esquemas de trabalho produtivo normatizado, aos poetas que revelam a possibilidade e a transcendência do amor e da liberdade, aos escritores que de um modo geral estabelecem uma crítica à realidade e criam possibilidades de mudança, aos cientistas que são capazes de ir além do método, ou ainda, como vimos, ao cidadão comum, que no seu cotidiano descobre e tenta revelar as diferenças do seu momento histórico-vital (p. 63).

Em 1947, as denúncias contra os abusos cometidos no Hospital de Alienados levam o governo a concordar com a construção do Hospital Colônia, que deveria atender pacientes e crônicos em condições mais adequadas, e também utilizando-se de novos tratamentos baseados na cura pelo trabalho (laborterapia), na arteterapia, na assistência hetero-familiar18 e na assistência social.

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hetero-A construção do Hospital Colônia demorou cerca de dez anos para ser finalizada. Essa lentidão na concretização de um novo espaço para assistência ao louco leva um grupo de psiquiatras, os doutores Otto Marinho, Aldo Xavier e Severino Lopes, a criar a Casa de Saúde de Natal, uma instituição de caráter privado. Na década de 1970, há uma maior proliferação deste tipo de instituição no Rio Grande do Norte, seguindo uma tendência observada em todo o território nacional, inaugurando-se instalações como a Casa de Repouso Santa Maria, em Natal, e a Casa de Saúde São Camilo de Lélis, em Mossoró.

Com o fechamento definitivo do Hospital de Alienados, é inaugurado no dia 15 de janeiro de 1957 o Hospital Colônia, que passa a atender, ainda em situação precária, todos os pacientes transferidos do antigo hospital.

A morte do psiquiatra João Machado, em 1965, é considerada por Sucar (1993) uma quebra no movimento da Psiquiatria Social e um retrocesso aos tempos das arbitrariedades cometidas no Hospital de Alienados. Além disso, ele atribui a grande volta à “era das trevas” ao novo sistema de governo, a ditadura, que cria um Estado totalitário, reforçador das arbitrariedades, em nome das repressões e proibições no âmbito social e individual.

Após um longo período de silêncio, em que todos pareciam estar conformados com o destino do doente mental, os hospitais psiquiátricos do Rio Grande do Norte parecem querer provar, atualmente, que podem desenvolver um tratamento digno e humano.

Isso é percebido claramente ao analisarmos diversas reportagens publicadas n os principais jornais da cidade, que apontam para esta tendência. Como exemplo, podemos citar o Diário de Natal, na reportagem intitulada “Pacientes Ganham

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Figura 2. Histórico de internação psiquiátrica dos usuários durante o tratamento nos NAPS

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