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Psicanálise e ciência.

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Academic year: 2017

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retendem os dem onstrar que há com patibilidade lógica en-tre o pensam ento científico e o pensam ento psicanalítico. Para tal, partirem os da crítica ao realism o científico, ou m e-lhor, do que Bachelard cham a de ‘função realista’: a tentativa de situar algo que seja indubitável — seja ele um a realidade ou um pensam ento.

Doutor em Teoria Psicanalítica pelo Program a de Pós-graduação em Teor ia Psicanalítica da UFRJ; professor adjunto do Departam ento das Psicologias da Universidade Federal de São João Del Rei ( MG) .

RES UMO: Apresen tam -se as razões pelas qu ais tan to o pen sam en to

científico quanto o pensam ento psicanalítico recusam o realism o em todos os seu s m atizes para pen sar o qu e estr u tu ra u m a expe-riência. Desta análise, extrai-se com o conseqüência a irredutibilidade de qu alqu er tratam en to do su jeito por m eio de u m processo de objetivação, dem arcan do assim o cam po de atu ação próprio aos problem as pen sados e tratados pela psican álise. Tira-se tam bém com o con seqü ên cia qu e esta irredu tibilidade da psican álise a u m a objetivação não torna a psicanálise incom patível com o m undo cien-tífico, ao con trário, esta disju n ção se dá exatam en te pela com pati-bilidade lógica en tre o pen sam en to psican alítico e o pen sam en to científico.

Palavras - chave : Sujeito, psicanálise, realism o.

ABSTRACT: Psychoanalysis and science. This article show s the

rea-sons through w hich the scientific thought as well as the psychoana-lytic thought deny the realism in all its basis in order to think w hat structures an experience. The irreductability of any treatm ent of the subject through the m eans of an objective process is extracted from this analysis by the author; therefore, draw ing the field of the pro-blem s w hich are thought and treated by psychoanalysis. Further-m ore, this objective psychoanalytic process doesn’t Further-m ake psycho-analysis incom patible w ith the scientific world; in fact, this disjunc-tion just happens through the logics between the psychoanalytic thought and the scientific thought.

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Dem onstrarem os que um pensam ento científico efetivo se torna fecundo quando abandona as pretensões de buscar um a realidade e passa a estabelecer o processo de objetivação. Ou seja, quando abandona o naturalism o de um a reali-dade e volta sua atenção para a artificialização sem qualireali-dades que caracteriza o pensam ento científico. E que a psicanálise, a partir dos desdobram entos efetuados por Lacan em sua retom ada da obra freudiana, abandona o realism o ao conside-rar que seu problem a é de ordem ética por estar às voltas com um sujeito, sujeito esse definido não com o instância fundam ental, m as com o um efeito do sem -sentido de um m undo afetado pela existência da ciência.

A função realista, quando estam os às voltas com o pensam ento científico, n ós a podem os en con trar tan to em u m in du tivism o in gênu o1 qu an to n o positivism o lógico.2 Poderíam os dizer em linhas gerais que am bos postulam que há um a realidade independente de qualquer operação de pensam ento, da qual só nos restaria descobr ir suas leis de funcionam ento — indutivism o ingê-nuo — ou encontrar um a m aneira m ais adequada de com unicar algo sobre ela — teoria da linguagem do positivism o lógico. Entretanto, esse realism o em m om ento algum se questiona sobre o sentido am bíguo que o term o realidade pode apresentar.

Partam os então da definição da realidade, colocando um dos pressupostos de um pensam ento realista: um a realidade se desenvolve necessariam ente no tem po e no espaço. Ora, para um realista, o tem po e o espaço seriam dados de nossa experiência. Basta um pouco de pensam ento filosófico para dem onstrar a insufi-ciência de tal pressuposto realista.

Com o coloca Kant, o tem po e o espaço são condições de um a intuição. Por serem condições, não podem ser parte da realidade que é condicionada, isto é, em função de espaço e tem po serem condições sine qua non da experiência, não podem ser dados na experiência. Tanto que Kant denom ina o estudo das condições a priori

1 Segundo Chalm ers, um indutivista ingênuo postula que o “ crescim ento da ciência é

contí-nuo, para a frente e para o alto, conform e o fundo de observação aum enta” ( 1999, p.26) . Esse fundo de observações dos fatos é que possibilitaria afirm ar proposições e derivar leis e teor ias verdadeiras. “ A fonte da verdade não é a lógica, m as a experiência” ( 1999, p.31) . O fim últim o dessa perspectiva é a possibilidade de fazer previsões sobre a experiência vindoura. Ainda de acordo com Chalm ers, o indutivista ingênuo é aquele que quer transform ar certa visão popu-lar da ciência em sua im agem , ou seja, é relativo ao que Bachepopu-lard cham aria de “ senso co-m uco-m ”.

2 Pasquinelli ( 1983, p.20) , ao citar Carnap escrevendo sua autobiografia intelectual, destaca

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da experiência de “estética transcendental”,3 que seria o estudo do surgim ento de um a intuição sob determ inadas condições que são independentes da experiência. Mesm o que Kant recuse o realism o, ele, por outro lado, com ete um equívoco e recai sob o conceito de função realista de Bachelard:4 estipula que toda experiên-cia só pode se desenvolver no tem po e no espaço tal com o pensados pela física de New ton e pela geom etria euclidiana. Essa condição sine qua non da experiência seria o espaço tridim ensional e o tem po com o coordenadas da intuição a priori. Os dois seriam tom ados então com o absolutos. Desse m odo, ao situar um a con-dição de possibilidade da experiência, Kant os considera im utáveis e pretenderá avaliar todo conhecim ento possível que deve se desenrolar nessas condições geo-m étricas do tegeo-m po e do espaço. Ou seja, geo-m esgeo-m o que não sejageo-m realidades no sentido estrito, desem penham a m esm a função de indubitabilidade.

Entretanto, hoje nós tem os um a concepção do espaço riem anniano, topológico, que traz com o conseqüência dúvidas sobre a conceituação da geom etria euclidiana. O espaço riem an n ian o aparece tan to em fu n ção de im passes da geom etria euclidiana quanto em função de produção de realidades que não existiam antes. Desse m odo, tem os, em vez de um a realidade dada ou de condições indubitáveis, um processo de objetivação que produz tanto novos fenôm enos quanto novos problem as e teorias.

Mas o realista poderia responder que ainda assim essas objetivações são abs-trações e que toda ciência sem pre parte de um a realidade que é dada. Pouco im porta então se não há m ais um a consideração do tem po com o um a função da geom etria: a teoria m uda, a realidade ficaria. Entretanto, seria pertinente colocar em questão o que seria essa realidade. De saída, podem os conceber duas defini-ções distintas de realidade: ou com o um dado, ou com o resultado do processo de objetivação. Para dem onstrar a inanidade desse m odo de definir a realidade, façam os alguns questionam entos.

Partam os de um ponto sim ples: se a realidade é algo que nos é dado, é im por-tante então perguntar com o ele é dado. De um a m aneira geral responde-se que ele é dado por afetar um aparelho sensorial.

Entretanto, encontram os duas m aneiras de afetar um aparelho sensorial que não se justapõem : algo pode afetar um aparelho sensorial de m aneira física ou de m aneira biológica. Fisicam ente, tem os apenas um a variação de intensidade des-provida de qualidades ( variações de intensidade de lum inosidade, por exem plo) . Biologicam ente, algo só afeta um organism o se fizer parte de seu m eio

biológi-3 “ Denom ino estética transcendental um a ciência de todos os princípios da sensibilidade a priori ( KANT, 1980, p.40) .

4 “ Toda filosofia, explícita ou tacitam ente, com constância ou sub-repticiam ente, se serve de

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co; a onda sonora existe no m eio físico, m as dependendo de sua intensidade ela pode ou não afetar um organism o. Um exem plo do que estam os levantando nos é fornecido por Canguilhem ( 1992) . Um carrapato, após o acasalam ento, pode ficar 18 anos im óvel se o único excitante que o fará se m ovim entar estiver presente no m eio, ou seja, o odor de m anteiga rançosa que em ana das glândulas cutâneas do anim al. Apenas esse excitante pode fazer o carrapato se m ovim entar para sugar o sangue que irá dar continuidade ao processo de reprodução, desen-volvendo os ovos que ficaram encapsulados até então. E quando falam os em processo de reprodução, estam os às voltas com um processo biológico que não responde só aos estím ulos físicos do am biente.5

Ora, dessa m aneira, vem os que se falarm os de aparelho sensorial, devem os, de saída, considerar se estam os falando de um organism o ou de um a relação apenas física. Um a relação m ecânica não leva a um a afetação própria ao organis-m o, organis-m as soorganis-m ente a uorganis-m a de suas partes. E quando consideraorganis-m os o organisorganis-m o, devem os situá-lo em função de com o a biologia situa um organism o. Segundo François Jacob ( 1983) , o organism o é a realização de um program a genético. Sua finalidade é a de m anter-se vivo para a transm issão dos caracteres da espécie. Em outros term os, com o surgim ento da genética, o organism o passa a ser conside-rado apenas com o um a m odalidade de sustentar a reprodução. E esta não tem finalidade algum a, é um a finalidade nela m esm a. E, com o sustenta Jacob, um program a genético ao qual o organism o está subm etido “não recebe lições da experiência” ( 1983, p.13) . Assim , ao colocarm os a questão do que significa ‘ser afetad o ’ p o r u m a realid ad e, p o r u m a exp er iên cia, n ão en co n tram o s u m a univocidade dos term os: esse sintagm a não é algo óbvio.

Mas poderíam os interrogar sobre o sentido de realidade de outra m aneira. Esta, conform e verem os, tam bém não tem um sentido unívoco. Pois em um pri-m eiro sentido, a realidade é topri-m ada tapri-m bépri-m copri-m o upri-m dado. Mas aqui, upri-m dado seria definido, de acordo com Robert Blanché ( 1935) , com o algo que se apre-senta sem qualquer operação de pensam ento, sem que eu possa inferir algum a coisa sobre ele. Sei apenas o que é, sem saber explicar com o. Um a experiência pura, ou os elem entos da experiência.

Ora, com o encontrar algo definido desse m odo sem um a operação de pensa-m ento? Ao tentar encontrar esses dados brutos, desprovidos de qualquer operação de pensam ento, tem os que, de m aneira necessária, introduzir um a operação de pensam ento. Um bom exem plo desse procedim ento nos é ofertado pela quím ica:

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ao tentar separar os com postos, eu devo, em prim eiro lugar, saber qual reagente específico devo introduzir para ter o elem ento que desejo; e devo, em segundo lugar, acrescentar um dado que não estava inserido antes. Para realizar tal obra, devo estabelecer um a relação entre os dados. E som ente estabelecendo essa relação posso chegar ao que seria um dado. Mas este aparece em função de um a operação de pensam ento. Queira guiar-se pelo o olhar e encontrará apenas um m au pensa-m ento. Upensa-m exepensa-m plo de Lacan: upensa-m pensa-m enino recebe upensa-m tapa e pergunta se foi upensa-m a violência ou um carinho. Dependendo da resposta, ele chora ou fica encantado ( LACAN, 1955-1956/ 1985a, p.15) , ou seja, o sentido não está no tapa.

Mas realidade pode ter tam bém outro sentido: em vez de cham arm os de dado, que sem pre se apresenta a m im e por isso pode ser considerado subjetivo, cham am os de ‘realidade’ o objeto que é independente de m inha sensação. A terra, em nossa experiência, é aparentem ente im óvel, m as, na realidade, gira em torno de si. Ora, com o chegam os a esse saber de um a organização que ultrapassa a nossa experiência? Por m eio da m ediação que o pensam ento estabelece. E ele estabelece a relação entre os dados. É em função dessa relação calculada que o pensam ento determ ina cada dado — ou variável — em função dos outros dados. Só o pensam ento é capaz de estabelecer relações entre os dados para constituir os fatos. Um fato é obra do pensam ento.6

Por essa razão, podem os afirm ar que não encontram os o dado puro, pois não há com o abrir m ão do pensam ento para atingi-lo: um dado só é um dado em um sistem a específico de pensam ento que o considera com o tal. Do m es-m o es-m odo que não encontraes-m os ues-m a realidade inteiraes-m ente organizada, pois isto suporia um a articulação com pleta de todos os dados. Ora, um dado só é um dado em um a problem ática específica, que estabelece relações específicas. Assim , não faz m ais sentido falar em um a experiência/ realidade inteiram ente organizada da qual se ignoraria apenas a lei de funcionam ento. O estabeleci-m ento da lei e a realização é uestabeleci-m único e estabeleci-m esestabeleci-m o estabeleci-m oviestabeleci-m ento da atividade científica. Desse m odo, encontram o-nos sem pre situados diante de um a série que organiza os fatos. Daí a necessidade de pensar a série. E pensar a sér ie é percorrer todo seu esforço de realização experim ental. Um fato, portanto, será sem pre um tecido de afirm ações que deve, com o indica Bachelard ( 1996, p.76) , “ incor porar as condições de aplicação de um conceito no próprio sentido do conceito”. Essa realização experim ental denom ina-se, de acordo com Jean Ullm o ( 1967, p.27) , ‘definição operatória’: “ a descrição de um processo regular para

6 “ Deste m odo, a realização leva a m elhor sobre a realidade. Esta prim azia da realização

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referir, m edir, m ais geralm ente atingir e identificar o conceito definido” . Essa definição com porta o postulado da repetição, ou seja: a definição, por produ-zir um real, abre m ão de um sujeito. A sua precisão se com porta justam ente nesta condição: a de que, seja quem for, possa repetir e atingir os m esm os resultados definidos de m odo operacional, desde que esteja atento a qual pro-blem a está tratando.

Chegam os assim ao ponto que nos interessa: toda vez que considero um pensa-m ento que produz upensa-m real a partir da integração epensa-m upensa-m a rede conceitual daquilo que a própria rede considera com o dados — as variáveis — e quando caracterizo esse pensam ento com o sendo um pensam ento desprovido de qualidades, eu só posso referi-lo a um a espécie de problem as: os problem as objetivos, nas quais não encontro qualquer consideração sobre um valor. Afinal de contas, o que seria um valor senão dotar de im portância algo, alguém , ou m esm o um a idéia?

Ora, um a idéia valorizada é um a idéia que alguém supõe m ais im portante do que as outras. Desse m odo, com o abrir m ão dessa idéia? Por essa razão, não podem os deixar de considerar que o pensam ento abandona os problem as em que se encontram valores. Um exem plo m aior é o de Einstein: o abandono, na física, da m ecânica new toniana se faz em função dos im passes dessa teoria; e quando se adota a teoria da relatividade, esta se faz a partir do estabelecim ento de um a nova articulação conceitual que passa a prom over tanto o que é considerado objetivo com o o que é considerado critério de avaliação da objetividade física.

Ora, a partir do m om ento em que podem os pensar que um a teoria pode ser ultrapassada em função de um a nova articulação conceitual, nada nos im pede de pensar que os im passes da nova teoria levarão à ultrapassagem da teoria nova. Um pensam ento científico é sem pre provisório. Dessa feita, quando Einstein re-clam a que não pode haver um a teoria quântica, é em função de querer que a sua teoria seja a m ais im portante, saindo, desse m odo, do pensam ento científico. Einstein é o caso do conceito da m áxim a citada por Bachelard ( 1996, p.19) : “os grandes hom ens são úteis à ciência na prim eira m etade de sua vida e nocivos na outra m etade”. Retom ando: quando há um valor envolvido, há a questão de que algo é, ao m enos em um prim eiro m om ento, insubstituível.

Não há, portanto, um a realidade que possa ser considerada em si, nem com o um dado, nem com o um a organização m isteriosa cuja lei de funciona-m ento nos escapa; desse funciona-m odo, a realidade perde as qualidades e passa a ser situada com o variáveis. O pensam ento perde suas am arras e pode se colocar sob a m arca de um infinito: ao diversificar e precisar as relações, eu posso, de m aneira infinita, produzir novos fenôm enos — e novos problem as — que não estavam previstos antes.

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de tentar buscar a realidade de um pensam ento. Um pensam ento, conform e apon-tam os antes, não pode ser considerado um a passividade que seria ora um dado, ora o resultado de um a operação. O pensam ento não pode ser um dado: pois se este é suposto pelo pensam ento, com o poderia o pensam ento ora supor, ora ser suposto? O pensam ento não pode ser um a realidade objetiva: pois esta é justa-m ente o resultado da operação do pensajusta-m ento. Logo, o pensajusta-m ento é a condição de produção de um real, e abandona de vez o registro de um a realidade que se im pusesse por si só.

Podem os, então, definir que a recusa do realism o — ou m elhor, da função realista — e de seus pressupostos — o estudo de um a realidade dada ou a instau-ração de um princípio de pensam ento que seja indubitável — tem por princípio a afirm ação de que, em um a atividade científica, os dados são organizados em função do sentido do problem a, o que pressupõe a perda de qualidade tanto dos objetos de pesquisa quanto das teorias que dão sustentação de afirm ação de existência desses objetos. E as conseqüências disso é a assunção do infinito — um a vez que a ciência se define pelo artifício — e a im possibilidade de tentar tratar um pensam ento com o se fosse um a realidade. Ao contrário: o pensam ento, com o condição de realização, retira do m undo qualquer pretensão de realidade autônom a. E a diversificação dessas condições retira qualquer pretensão de um princípio de organização que seja indubitável.

Isso posto, podem os colocar com o fica a questão do sujeito em psicanálise? Com o podem os dar consistência ao tratam ento dessa questão? Em prim eiro lugar, não podem os esquecer o aforism o de Lacan: “o fato de a psicanálise haver nascido da ciência é patente. Que pudesse ter surgido de outro cam po, é inconcebível” ( LACAN, 1966/ 1998, p.232) . Isso significa que antes do aparecim ento da ciência, de seu m odo de fabricação de problem as e de objetividades, não seria possível pensar em psicanálise. Daí Milner (1996, p.120) afirm ar que a psicanálise é síncrona com a ciência: ela é logicam ente com patível com a atividade científica. Essa com -patibilidade lógica leva a psicanálise a abandonar o realism o, a buscar um a realida-de para tratar realida-de um sujeito. Afinal, se a atividarealida-de científica se caracteriza por um a produção de redes de conceito estabelecido pelo pensam ento, a psicanálise não poderia recorrer à tentativa de tratar um pensam ento com o se fosse um a realidade. É esta a tese inaugural de Freud: a de que há pensam entos inconscientes. E a razão de Lacan, em seu retorno a Freud, valorizar a função e o cam po da linguagem :

“Afirm am os, quanto a nós, que a técnica não pode ser com preendida nem

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Todo o encam inham ento anterior nos perm ite afirm ar que a recusa do realis-m o no pensarealis-m ento científico se dá erealis-m função das conseqüências da atividade científica, a saber: valorização do artifício em detrim ento do natural e retirada de qualidades do pensam ento. A psicanálise, por ser logicam ente com patível com a atividade científica, tam bém será partidária do artifício — em que não podem os afirm ar que algum a coisa seja dada — e do pensam ento sem qualidades — que im pede a consideração de um princípio indubitável. Eis a razão de a psicanálise tratar do sujeito com o um efeito da falta de qualidades que afeta um m undo em que a atividade científica é possível. O sujeito é um a resposta frente à perda de qualidade tanto do m undo quanto do pensam ento. E nessa dem anda de um a qualidade — ou de um a resposta que sirva de ponto de parada para o sujeito — apresentam -se apenas soluções parciais, fruto de um resíduo: não elim inável que introduz aqui tam bém a função do infinito.

Nessa seqüência de com patibilidades, podem os traçar m ais um a: a psicaná-lise irá, assim com o a ciência, considerar os dados que ela recebe em função de um problem a específico. Isto é: irá considerar o sujeito em função do proble-m a que ele indica, a saber, o probleproble-m a ético.7 Um problem a se torna ético quando não posso deixar de responder a ele, m esm o que não haja solução algum a dada ou evidente sobre ele. Desse m odo tem os um a distinção entre dois registros de problem as: um em que é possível traçar um encam inham ento objetivo e traçar um a definição operatória; outro, em que estão em jogo o sujeito e a questão da validade de suas decisões. A psicanálise, por ser logicam ente com patível com a atividade científica, não irá apenas recusar o realism o, m as irá tam bém afirm ar a especificidade de seu cam po de ação e abandonar a pre-tensão de ser um a ciência. Essa afirm ativa não deve de m odo algum ser consi-derada com o um a insuficiência da psicanálise; é antes um a precisão do proble-m a que ela pretende tratar. Seproble-m essa precisão, corre-se o risco de a psicanálise perder a sua or ientação na clínica.

Som ente quando se abandonam os referenciais próprios à função realista, quando se abandonam as pretensões de fazer da psicanálise um a ciência e quando se torna logicam ente com patível com o pensam ento científico, que a psicaná-lise pode ser considerada um pensam ento e um a clínica do real e o sujeito de fato subvertido. Isso significa que só a partir dos questionam entos operados sobre o cam po da psicanálise com o um cam po ético não reduzido à ciência, com o pretendem as ciências hum anas, não reduzindo a ciência à ética, com o pretende a filosofia, e levando em consideração o sentido do problem a, é que

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a psicanálise pode tratar as suas questões em função de um pensam ento e um a clín ica do real.

A conseqüência dessa posição é a subversão do sujeito. E esta posição se situa-rá tanto no princípio de colocação do problem a do sujeito quanto em sua relação com a ciência. Se a psicanálise pretende ser com patível logicam ente com a ciên-cia, deve, em prim eiro lugar, abandonar a pretensão de tratar o seu problem a — o sujeito — a partir de um a ciência; e, em segundo lugar, desistir de tentar subordinar a ciência a um procedim ento que lhe é exterior. A psicanálise seria desse m odo logicam ente com patível com a ciência por seguir o sentido do seu problem a, tal com o faz a ciência, sem pretender ser um a ciência. A pretensão tanto da filosofia, quando pretende se fundam entar em um sujeito, quanto das ciências hum anas foram reunidas sob a rubrica da função realista. Mas para am -bos, o sujeito, seja ele transcendental, seja ele reduzido a um suposto fato psíqui-co, pretende ser um a resposta ao problem a da ética. Para a psicanálise, essas propostas, por tentarem tratar do problem a com conceitos ou direções que não são próprios aos problem as, acabam provocando um resíduo que fica excluído. É justam ente isso que a psicanálise cham a de sujeito. Em outros term os: enquan-to para a filosofia o sujeienquan-to é um a resposta, para a psicanálise é ele m esm o quem será colocado em questão: ela articula o efeito dessa aspiração de um a orientação válida para todos.

Mas, ao dizer que trata de um sujeito, a psicanálise não pode deixar tam bém de lado a questão: com o tom ar um a decisão? “Se não houver falta, não há sujeito” ( MILLER, 1998, p.452) . Ou seja, enquanto para a filosofia o sujeito é um a res-posta, para a psicanálise é a questão. Enquanto para a filosofia é o fim de sua procura, para a psicanálise é o início de seu em preendim ento clínico.

É por essa via que se torna possível um encam inham ento positivo à subversão do sujeito. Com efeito, se a psicanálise é logicam ente com patível com a atividade científica, e se estas se unem em torno da recusa de se valerem da função realista, ela não ignora que a m aneira de colocar a questão já indica o encam inham ento a ser dado.

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situá-lo sob um a experiência repetível — , devem os tratá-lo com o um a função que avalia. E nesse registro chegam os ao registro da linguagem . Um sujeito só pode julgar a partir do m om ento em que é afetado pela linguagem . E ser afetado pela linguagem significa perder um a orientação natural. Desse m odo, torna-se patente a seguinte questão: um sujeito aparece quando a orientação falha. É por essa razão que a linguagem deve ser colocada, no estudo do que se refere a um psiquism o, com o um a m atriz principal.

E é por isso que a linguagem irá servir de referência para a psicanálise. E todas as vezes que a psicanálise pretende apresentar algo para fora da linguagem , ela perde a sua orientação. Não por que não queremos coisas diferentes, mas por perder o sentido de seu problema — ético — a maneira própria de tratá-lo — a fala e a linguagem, e o universo em que esse problema pode surgir — sem qualidades e infinito. É som ente com o abandono do realism o que essa posição é possível. Ape-nas com o abandono do realism o em epistem ologia pode-se chegar à conclusão de Lacan: a de que o pensam ento psicanalítico, sua práxis, só pode surgir em um m undo que perdeu as qualidades; afinal de contas, o que é o sujeito do significante senão este sem qualidades, esse vazio que fica entre um ponto identificatório que não lhe dá consistência e um infinito que não lhe dá um suporte?

Recebido em 21/ 9/ 2005. Aprovado em 5/ 6/ 2006.

REFERÊNCIAS

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MILNER, J-C. ( 1996) A obra clara: Lacan, a ciência e a filosofia. Rio de Janeiro: J. Zahar.

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Roberto Calazans

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