I
UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA
FACULDADE DE CIÊNCIAS
CAMPUS DE BAURU
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO PARA A CIÊNCIA
Sérgio Guardiano Lima
UMA APROXIMAÇÃO DIDÁTICA POR MEIO DA HISTÓRIA DO
CONCEITO DE CIRCULAÇÃO SANGUÍNEA
BAURU
II
SÉRGIO GUARDIANO LIMA
UMA APROXIMAÇÃO DIDÁTICA POR MEIO DA HISTÓRIA DO
CONCEITO DE CIRCULAÇÃO SANGUÍNEA
Tese de Mestrado apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Educação para a Ciência, Área de
Concentração em Ensino de Ciências, Faculdade de
Ciências, UNESP – Universidade Estadual Paulista –
Campus de Bauru. Sob orientação do Prof. Dr. Marcelo
Carbone Carneiro
Bauru
III
SÉRGIO GUARDIANO LIMA
UMA APROXIMAÇÃO DIDÁTICA POR MEIO DA HISTÓRIA DO
CONCEITO DE CIRCULAÇÃO SANGUÍNEA
Banca Examinadora:
Presidente: Prof. Dr. Marcelo Carbone Carneiro
Instituição: Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – Bauru
Titular: Prof.ª Dr.ª Ana Maria de Andrade Caldeira
Instituição: Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – Bauru
Titular: Prof.ª Dr.ª Regina André Rebollo
Instituição: Universidade de São Judas Tadeu - SP
Bauru
IV
V
#
#
#
#$
$
$
$
% &##$%'""$ & (&
$ ' (& $ # $ $ & $ &
# #"
%'"" )&*$ !
$+ $& , !+ $-$("
%'""../& $(0$ (
*"
1 %'"
2"
2$ ! !&
$+$$ "
1%'"
2"
2# / &$$! 3
*'$( $(*34 (""
1 ,& & &,$ !*!
$ !!"
VI
# :$&;<&. +&7$& & #&*
!$# ,&' # $$ $&,
$(0= $'"
# %& $& & )& *
&'$ $ "
'&*!
*!*7&$&##$ &
$& & >"
1 & &474 &*$7'
$'&*! $ *&
$ "
17&7 &*, &' #'&
$ !& & $ ( " $&
##$8 7&4'&4'
>4')/&*!$ "
VII
9#$ & 3$!4*&#&#
!$+' !& !&
$ ' * ' $& 3# $ 3
& $& $ &
& $ '$& '
&*#$ $ (""
1%8&' $"
'& * $ (
*"
VIII
LIMA, S. G.
Uma aproximação didática por meio da história do conceito de
circulação sanguínea
. 2008. 129f. Dissertação (Mestrado em Educação para a Ciência). Faculdade de Ciências, UNESP – Universidade Estadual Paulista, Bauru, 2008.RESUMO
Muitas das vezes, o Ensino de Ciências e Biologia não apresenta os determinantes e
contextos que estão envolvidos na construção de um conceito, mostrando-o de modo
dogmático e memorístico. A perpetuação deste modelo deve-se, principalmente, ao
processo de formação dos atuais professores, e a forma como o conteúdo presente no
material didático utilizado por estes é apresentado. Visto que os conceitos são
construídos de forma lenta, gradual, com avanços e recuos, pois expressam as
tentativas de argumentação elaboradas ao longo da história; os fatores no Ensino de
Ciências e Biologia acima citados tornam-se obstáculos para a inserção da História da
Ciência no Ensino de Ciências e Biologia. O processo de construção dos conceitos
sobre circulação sanguínea não expressa tentativa de entendimento do movimento do
sangue no corpo humano. Além disso, o levantamento e pesquisa bibliográfica que
realizamos caracteriza de forma exemplar, a construção de uma explicação científica e
a influência do contexto social e religioso na produção de um conhecimento científico e,
também, a resistência às mudanças por parte principalmente de indivíduos respeitados
da época, evidenciam os percalços pelos quais a ciência passa. Enfrentamos diversas
dificuldades ao realizar esse levantamento e pesquisa bibliográfica. Entre algumas,
podemos citar a dificuldade de acesso às fontes primárias, barreiras lingüísticas e
problemas na interpretação dos determinantes históricos. Essas barreiras são também
enfrentadas por autores de livros didáticos e professores que desejam inserir a História
da Ciência, respectivamente, no material didático e na prática docente. Assim, esse
trabalho tem por objetivo produzir um texto didático para o ensino, apontando o
dinamismo e a não neutralidade da ciência e, com isso, contribui para minimizar
algumas das dificuldades encontradas na inserção da História da Ciência no Ensino de
Ciências e Biologia.
IX
Palavras-Chave: Circulação Sanguínea, História da Ciência, Filosofia da Ciência,
X
LIMA, S. G. A didactic approach through the history of blood circulation concept. 2008.
129f. Dissertation (Master's in Education for Science). Faculty of Science, UNESP -
Universidade Estadual Paulista, Bauru, Brazil, 2008.
ABSTRACT
Frequently, Science and Biology teaching does not present the determinants and
contexts involved in the building of a concept, showing it so dogmatic and rote. The
perpetuation of such a model is due, mainly, to the process of training of current
teachers, and how the content in the teaching material used by them is presented. Since
the concepts are built on a slow, gradual, with advances and setbacks, because
attempts to express the arguments made throughout history, factors in the Teaching of
Science and Biology mentioned above become obstacles to the insertion of the History
of Science in the Teaching of Science and Biology. The process of concepts
construction expressed on blood circulation does not attempt to understanding the
movement of blood in the human body. Moreover, the lifting and literature search
conducted in this study features in an exemplary fashion, the construction of a scientific
explanation and the influence of social and religious context in the production of
scientific knowledge and also the resistance to change, mainly from respected
individuals of the time , highlighting the mishaps faced by science. Various difficulties
were faced to achieve this survey and literature search. Among some, we can cite the
difficulty of access to primary sources, language barriers and problems in the
interpretation of historical determinants. These barriers are also faced by authors of
textbooks and teachers who wish to enter the History of Science, respectively, in the
educational materials and teaching practice. Thus, this work aims to produce a teaching
text for teaching, indicating the dynamism and non-neutrality of science and thereby,
helping to minimize some of the difficulties found in integrating the History of Science in
Science and Biology teaching.
XI
SUMÁRIO
RESUMO ...VIII
ABSTRACT...... X
) ?@AB?
... 11. HISTÓRIA DA CIÊNCIA E O ENSINO DE CIÊNCIAS... 5
1.1 AS PESQUISAS EM HISTÓRIA DA CIÊNCIA ... 5
1.2 O DESENVOLVIMENTO DA HISTÓRIA DA CIÊNCIA ... 8
1.3 A HISTÓRIA DA CIÊNCIA E A SUA APLICAÇÃO NO ENSINO DE CIÊNCIAS .. 15
1.4 A HISTÓRIA DA CIÊNCIA NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES... 20
2. HISTÓRIA DAS EXPLICAÇÕES SOBRE O MOVIMENTO DO SANGUE E DA CIRCULAÇÃO SANGUÍNEA... 24
2.1 ESTUDIOSOS QUE INFLUENCIARAM GALENO E HARVEY... 26
2.2 CLÁUDIO GALENO (C. 129– 200 d.C.)... 31
2.2.1 O COMENTADOR DO CORPUS HIPPOCRATICUM ...31
2.2.2 AS CONCEPÇÕES DE GALENO EM RELAÇÃO AO MOVIMENTO DO SANGUE ...33
2.3 ANDREAS VESÁLIO E O QUESTIONAMENTO DO DOGMATISMO GALÊNICO ... 43
2.4 A CIRCULAÇÃO PULMONAR E AS VALVAS DAS VEIAS ... 46
2.5 AS VÁLVULAS DAS VEIAS E HIERONYMUS FABRÍCIO ... 57
2.4 WILLIAM HARVEY... 59
2.4.1 A BIOGRAFIA DE WILLIAM HARVEY ...59
2.4.2 AS OBRAS DE WILLIAM HARVEY...63
2.4.3 HARVEY E O CONTEXTO DE SUA ELABORAÇÃO...66
2.4.3 EXERCITATIO ANATOMICA DE MOTU CORDIS ET SANGUINIS IN ANIMALIBUS...71
2.5 OS ESTUDIOSOS PÓS-HARVEY ... 94
C"??9?%8D@8%E
... 1034. O DESENVOLVIMENTO DO CONCEITO DE CIRCULAÇÃO DO SANGUE E TRANSPORTE DE OXIGÊNIO: APROXIMAÇÕES DIDÁTICAS. ... 106
F"?)9@8G8
... 114XII
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Ilustração 1: retirada do livro De venarum ostiolis, mostrando as valvas de uma veia da perna humana ...57
Ilustração 2: Retrato do médico inglês, William Harvey. O médico é representado com as “mãos de tesoura”, pois destaca o aspecto de intervenção (anatomia) do corpo...59
Ilustração 3: Esquema do experimento de William Harvey com as veias ...87
2
Por estarmos em um momento em que as pessoas estão impregnadas de
informações e artefatos advindos dos conhecimentos produzidos pela ciência e pela
tecnologia, o Ensino de Ciências é hoje um dos componentes mais importantes na
educação básica (BRASIL, 2007). O livro didático (LD) é um recurso muito utilizado por
professores e alunos, além de servir de base para os professores na preparação de
suas aulas e na organização de seus planejamentos, desempenhando um papel
importante nas escolas brasileiras (CASAGRANDE, 2006).
O livro didático é concebido como uma ferramenta básica nas escolas e, em geral,
muitas vezes é tido como a única fonte de material disponível para professores e alunos
no processo de ensino-aprendizagem. Na maioria das vezes, questionar os livros
didáticos é questionar o próprio ensino, pois na maioria das escolas o livro didático faz
o papel de guia do aluno e professor (LEMOS, 2006).
Krasilchik (2004) aponta que o docente, por falta de autoconfiança, de preparo, ou
por comodismo, restringe-se a apresentar aos alunos, com o mínimo de modificações, o
material previamente elaborado por autores que são aceitos como autoridades. Os
professores se apóiam em material planejado por outros e produzido industrialmente,
deste modo, abrem mão de sua autonomia e liberdade, tornando-se simplesmente um
técnico.
O Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) foi criado pelo Ministério da
Educação (MEC), que tem por objetivo assegurar a qualidade das obras distribuídas às
escolas públicas do ensino fundamental analisando os livros inscritos neste programa.
Para o processo de análise do PNLD/2008, o MEC firmou convênio com a Universidade
de São Paulo – USP, que montou uma equipe de professores com diferentes perfis e
experiências, de forma a garantir representatividade ao processo de avaliação
(BRASIL, 2007).
A partir desse trabalho, foi criado o Guia de Livros Didáticos de 2008, no qual
todos os livros que reúnem qualidades suficientes para serem recomendados (com ou
sem ressalvas) são apresentados aos professores para que possam escolher aqueles
O PNLD de 2008 relata também que aprender ciências é conhecer os métodos da
ciência, suas dificuldades e como as teorias científicas são constituídas ao longo do
tempo. Aprender ciências envolve conhecer seus produtos, métodos e processos, além
de compreender o caráter histórico da construção do conhecimento científico. Quando
se concebe a ciência como produção humana, amplia-se a visão da sua natureza e de
seus limites. Aprender ciências deixa, assim, de ser uma atividade que vise
simplesmente dominar um conhecimento específico, passando a ser entendido como
apropriação de outra cultura (BRASIL, 2007).
O Ensino de Ciências se depara com um conjunto enorme de conhecimentos
oriundos da Física, Química, Biologia, Matemática, Geociências e Astronomia. É papel
do professor fazer a transposição didática para que o aluno consiga entender, abstrair e
refletir sobre os fenômenos que estão ao seu redor. Além do mais, é objetivo
fundamental fazer com que o aluno saia do Ensino Fundamental e Médio com uma
cultura científica que lhe permita discernir o que é ciência, sua importância para a vida
das pessoas, além de diagnosticar e propor soluções para seus problemas,
utilizando-se da teoria aprendida na escola (ZAMUNARO, 2006).
Entendemos que a formação inicial de professores de Ciências deve propiciar e
privilegiar discussões sobre os temas que as pesquisas em Ensino de Ciências indicam
como essenciais para a área, tais como: a experiência que os alunos trazem para a
escola, a História da Ciência, as relações Ciência, Tecnologia e Sociedade, o papel da
experimentação no Ensino de Ciências e Biologia e os aspectos biológicos, sociais e
afetivos que envolvem o ensino e a educação (ZAMUNARO, 2006).
Tendo isto em vista, a importância da ciência no aprendizado dos alunos, a
utilização da História da Ciência é uma importante ferramenta no Ensino de Ciências
por tornar este mais interessante e por facilitar a aprendizagem (MARTINS, 1998). A
prática do Ensino de Ciências é enriquecida pelas informações colhidas da História da
Ciência, podendo humanizar as ciências e aproximá-las dos interesses pessoais, éticos,
culturais e políticos da comunidade; as aulas de ciências podem tornar-se mais
desafiadoras e reflexivas, permitindo, deste modo, o desenvolvimento do pensamento
4
A História da Ciência pode contribuir para um entendimento mais integral da
matéria científica, dando um significado maior as aulas de ciências, além disso, pode
melhorar a formação do professor auxiliando o desenvolvimento de uma epistemologia
da ciência mais rica e mais autêntica, ou seja, de uma maior compreensão da estrutura
das ciências bem como do espaço que ocupam no sistema intelectual (MATTHEWS,
1995).
A História da Ciência surge também como uma das necessidades formativas do
professor de Ciências, para que ele compreenda como ocorreram os processos de
construção dos conhecimentos científicos, as mudanças de paradigmas e os
determinantes sociais, econômicos, culturais e políticos que influenciaram essa história.
Com a sugestão de se introduzir a História da Ciência no programa escolar, surgiram
muitas dificuldades, pois grande parte dos professores de ciências não tinham o
conhecimento necessário para inserir esse tema em suas aulas, o que os levou a não
trabalhar com a questão histórica no Ensino de Ciências (ZAMUNARO, 2006).
Entre os assuntos que são abordados no Ensino de Ciências, mais
especificamente em Biologia, o estudo da Circulação Sanguínea é, sem dúvida, um dos
mais importantes acontecimentos científicos. Ao longo dos séculos, por meio deste
estudo, foram proporcionados avanços no entendimento da fisiologia humana e animal,
o que forneceu suporte para o entendimento de muitos outros conhecimentos
(ZAMUNARO, 2006).
Fizemos uma pesquisa sobre as diferentes explicações sobre o movimento do
sangue, enfocando principalmente as teses de Galeno e Harvey. Galeno explicava que
o movimento do sangue era semelhante ao das marés e a tese de Harvey explicava
que o movimento do sangue circula por todo o corpo de forma contínua.
Para que o leitor possa entender estas teses, foi preciso que nós abordássemos
as teses de vários colaboradores a respeito do sangue e de como este se movimentava
pelo corpo. Estas teses foram imprescindíveis para a construção do conceito de
circulação de sangue e para que este seja entendido.
Esta pesquisa realizou um levantamento bibliográfico para verificar como o
conceito de circulação sanguínea se desenvolveu ao longo dos séculos e quais foram
objetivo de elaborar e disponibilizar um texto didático para professores de ciências e
biologia e autores de livros didáticos, contribuindo assim para minimizar algumas das
dificuldades encontradas na inserção da História da Ciência no Ensino de Ciências e
Biologia.
Além disso, realizamos um levantamento dos livros didáticos propostos pelo
PNLD/2008 e posteriormente, discutimos a presença, ausência e contextualização do
conceito de circulação sanguínea presente nestes livros.
1. HISTÓRIA DA CIÊNCIA E O ENSINO DE CIÊNCIAS
1.1 AS PESQUISAS EM HISTÓRIA DA CIÊNCIA
Esta pesquisa, fundamentou-se no que retrata a literatura sobre como devemos
proceder ao fazer uma pesquisa que envolve a História da Ciência.
Segundo Martins (2005), para se pesquisar em História da Ciência há uma
necessidade de delimitar o assunto que vai ser tratado no trabalho, não se pode fazer
uma pesquisa sobre a História da Matemática ou História da Biologia como um todo.
Quanto mais restrito for o assunto, mais fácil será dominá-lo. Entretanto, se o
restringirmos demasiadamente, poderemos correr o risco de desenvolver uma pesquisa
pouco relevante e que não provoque o interesse dos leitores.
Em uma pesquisa que envolve História da Ciência, são utilizados documentos de
vários tipos, que costumam ser classificados em fontes primárias (material da época
estudada escrito pelos pesquisadores estudados) e fontes secundárias (estudos
historiográficos e obras de apoio a respeito do período e dos autores investigados)
leitores (MARTINS, 2005).
Embora geralmente a distinção entre fontes primárias e secundárias seja simples,
há casos em que esta vai depender do objeto de estudo da pesquisa. Por exemplo, se
o objeto de estudo for o sistema de comunicação entre os membros da Royal Society1,
1
6
todas as correspondências entre seus membros serão fontes primárias. Mas, se o
objeto de estudo for a obra de Francis Bacon, os comentários biográficos
eventualmente encontrados nessa correspondência poderão ser considerados como
fontes secundárias pelos leitores (MARTINS, 2005).
Os trabalhos chamados de “originais” são documentos produzidos diretamente por
um autor, geralmente únicos. São comumente chamados de “manuscritos”, mesmo
quando são datilografados ou digitados. Algumas vezes, a partir do original pode ter
sido feita uma “cópia” manuscrita. Desta forma, quanto mais pudermos nos aproximar
dos “originais” de um autor, mais fiéis poderemos ser em relação a seu trabalho
(MARTINS, 2005).
É preciso analisar de modo fiel os trabalhos originais, assim, o pesquisador deve
tomar cuidado com cópias de manuscritos antigos, traduções, citações e descrições
indiretas. Em geral, em cópias manuscritas de originais são introduzidos erros e
omissões. No caso de manuscritos antigos, como os de Platão, Aristóteles ou Epicuro,
normalmente eram feitos várias cópias. Entretanto, os copistas muitas vezes faziam
anotações suas e introduziam sua própria interpretação ou idéias nos originais
(MARTINS, 2005).
Além disso, Martins (2005) ressalta que há vários vícios encontrados em
pesquisas feitas abordando a História da Ciência, sendo que o primeiro deles, consiste
em uma História da Ciência puramente descritiva, repleta de datas e informações que
não têm qualquer relevância para aquilo que está sendo estudado. Este tipo de História
da Ciência apresenta, muitas vezes, alguns indivíduos como gênios que tiraram suas
idéias e contribuições do nada e outros como verdadeiros imbecis que faziam tudo
errado.
Solbes e Traver (1996) descrevem que a visão que os estudantes formam sobre a
ciência é distorcida e a este respeito os autores reforçam os seguintes aspectos:
Considerar a ciência como descobrimento e não como uma construção de conhecimentos;
Ignoram o papel dos problemas do desenvolvimento da ciência e, em particular, os problemas que originaram o desenvolvimento de algumas teorias importantes;
O formalismo (a ciência constituída basicamente pelas “fórmulas”, cuja aplicação mecânica permite resolver os problemas);
Um planejamento linear e acumulativo do desenvolvimento científico que não mostra a existência de crises (que se traduzem na aparição de novos paradigmas ou de mudanças conceituais nas idéias aceitas pelos cientistas).
A ciência é fruto do trabalho de uns gênios (cujas contribuições são desconhecidas em alguns casos) ou não como uma atividade humana coletiva, de homens e também de mulheres;
Uma imagem das ciências físicas distantes do contexto histórico e social da qual fazem parte (SOLBES e TRAVER, 1996, p. 103-112).
Um segundo tipo de vício historiográfico seria o que Herbert Butterfield
(1900-1979) chamou de interpretação whig da História, que seria sinônimo de História da
Ciência anacrônica e que consiste em “estudar o passado com os olhos do presente”
(MARTINS, 2005).
Um outro vício é o que os historiadores da ciência chamam de apudismo, em um
dicionário veremos que apud é uma expressão latina empregada geralmente em
bibliografia para indicar a fonte de uma citação direta. Quando uma pessoa não leu
nenhum trabalho de Linné e cita uma idéia ou frase dele indiretamente, a partir de uma
outra fonte (MARTINS, 2005).
Além destes vícios, Martins (2005) acrescenta que o ideal é que o historiador da
ciência nunca deve confiar inteiramente em uma tradução, pois muitas vezes nela são
introduzidos erros. Trabalhar com uma tradução para a língua portuguesa de um texto
de Descartes não é o mesmo (não tem o mesmo valor) que trabalhar com o texto em
seu idioma original.
Segundo Martins (2000), as pesquisas em História da Ciência possuem algumas
abordagens tradicionais, nos quais ele classifica em História da Ciência dos
pesquisadores ativos, História da Ciência dos textos didáticos, biografias de
pensadores, História da Ciência dos filósofos, História das instituições de estudo e
8
História das Ciências e, por último, os instrumentos para a História da ciência:
bibliografias e textos.
O que parece ser interessante na visão de Martins (2000), é que um historiador da
ciência precisa ter a capacidade de perceber o contexto histórico no qual foi construído
certo conceito, pois, caso contrário, o conceito estudado muitas das vezes pode ser
banalizado julgando um texto medieval como sendo uma mera superstição. É muito
importante entender a construção dos argumentos elaborados no interior daquele
explicação.
1.2 O DESENVOLVIMENTO DA HISTÓRIA DA CIÊNCIA
Para se entender melhor a História da Ciência iremos, primeiramente, pontuar
como ela se desenvolveu ao longo dos anos e quais foram os caminhos que ela
percorreu até chegar ao que conhecemos hoje por História da Ciência.
A História da Ciência começa bem antes de sua institucionalização. Na
Antiguidade Clássica, os manuais científicos que possuíam curtas introduções
históricas são provavelmente os mais antigos gêneros de História da Ciência
(ABRANTES, 2002).
Seu surgimento assume um papel filosófico no século XIX; para os estudiosos da
época, a História da Ciência descreve que a ciência se desenvolve através da
continuidade de “acertos” e a superação dos “erros” obtidos ao longo da ciência
(ALFONSO-GOLDFARB, 1993).
Deste modo, a História da Ciência era, na verdade, a descrição de uma ciência
construída por sucessos, ou seja, era a história da evolução dos conceitos científicos e
os obstáculos e problemas enfrentados por outras teorias não possuíam importância
alguma se comparado com a teoria que predominava perante as demais
Com exceção de Pierre Duhem (1861-1916), em sua época, outros estudiosos
não estudavam a ciência construída em toda a Antigüidade ou período Medieval, o
estudo era priorizado a partir dos gregos, pois se tinha a idéia de que era o início da
ciência; além disso, não se estudavam outros tipos de áreas e culturas, privilegiava-se a
ciência física e a cultura européia (ALFONSO-GOLDFARB, 1993).
Já no século XX, a História da Ciência começa a tomar espaço dentro das
instituições e por meio do estudioso George Sarton (1884-1956), a História da Ciência
toma um lado de ciência positiva. Sarton excluía de forma geral o estudo de todo e
qualquer conhecimento anterior, pois, segundo ele, os gregos foram os primeiros a
trabalharem com as teorias da natureza (ALFONSO-GOLDFARB, 1993).
George Sarton apoiava-se em um modelo historiografia positivista, os textos de
História da Ciência eram relatos lineares de trabalhos isolados, e que se sobrepunham
ao longo do tempo. Estes relatos, em sua maioria, apreciavam lances de genialidade
individual e desconsideravam os desafios socioeconômicos em que um pensador
desenvolveu seu trabalho (SANTOS e CALUZI, 2005).
Segundo Santos e Caluzi (2005), a linha positivista defendida por Sarton era
dominante, contudo, havia exceções, como os trabalhos publicados por Thornidke em
19282 e por Pagel em 19303.
Contudo, para Debus (1991), a História da Ciência teve início com George Sarton,
que dedicou toda a sua vida a ela, tendo escrito diversos artigos, livros e organizando
inúmeros encontros nacionais e internacionais, criando assim uma ampla rede de
contatos com os estudiosos da área.
No primeiro volume da obra de Sarton intitulada Introduction to the History of
Science, relata que não havia motivo para incluir sobre a ciência anterior aos gregos,
como a ciência oriental, já que esta carecia de teoria (DEBUS, 1991). Contudo, Sarton
chega a mencionar que seria preciso fazer um levantamento histórico do conhecimento
2
THORNIDKE, L. A. A history of magic and experimental science. New York: Columbia Univ. Press, 1928-58. v.8
3
10
produzido anteriormente aos gregos para melhor compreendê-los
(ALFONSO-GOLDFARB, 1993).
Alfonso-Goldfarb (1993) defende que o trabalho de Boris Hessen (1893-1936), que
foi apresentado no ano de 1931, no II Congresso de História da Ciência na cidade de
Londres foi importante por apresentar novos aspectos a serem abordados na História
da Ciência. Neste congresso, Hessen apresenta um trabalho que não era nenhuma
novidade se levarmos em conta que este tratava da discussão da mecânica
newtoniana, contudo, Hessen discutia que a obra de Newton era produto do meio,
relacionando questões socioeconômicas.
Foi a partir de então que jovens estudantes, baseados no trabalho de Hessen,
começam a escrever sobre a História da Ciência levando em consideração a
perspectiva social (ALFONSO-GOLDFARB, 1993).
Em 1931, o historiador da Universidade de Cambridge, Herbert Butterfield
(1900-1979) publica o ensaio intitulado The Whig Interpretation of History, o qual argumentava
que certos historiadores analisavam a História da Ciência sob seu ponto de vista
progressista, valorizando as teorias que prevaleceram sobre as suas concorrentes
(DEBUS, 1991).
Abrantes (2002) relaciona este tipo de historiografia da ciência com uma
abordagem tipicamente “presentista”, ou seja, ela estuda o passado com os olhos do
presente, focando alguns conhecimentos como aceitáveis baseado no conhecimento
que se tem no momento em que o cientista-historiador está estudando determinado
assunto.
Para Butterfield, a História da Ciência não deveria ser construída por julgamento
de valores, ela deveria permanecer imparcial entre as teorias concorrentes, segundo
ele, é preciso ter em mente o contexto histórico das teorias para se analisar sua
construção. Apesar disso, o próprio Butterfield mostra-se claramente parcial ao fazer o
julgamento de valores em um de seus estudos (DEBUS, 1991).
Na década de 50, certas lacunas de estudos de História da Ciência anteriores à
(1899-1990), que estudou as ciências físicas no Oriente. Além deste, o trabalho feito
por Joseph Needham (1900-1995), mostrava-se muito inovador por estudar a ciência e
a civilização chinesa (DEBUS, 1991).
Os estudos até então, concentravam-se basicamente sobre as ciências físicas até
a época de Isaac Newton, poucos estudos preocupavam-se com épocas anteriores ou
em relação a outras áreas como a de ciências biológicas (DEBUS, 1991).
A História da Ciência enquanto disciplina autônoma é muito recente, o
crescimento e a profissionalização da área só ocorreram após a II Guerra Mundial,
provavelmente relacionado ao fato do aumento exagerado do conhecimento científico,
particularmente, evidenciado no desenvolvimento tecnológico militar (ABRANTES,
2002).
Após este período, os cientistas começaram a dar maior importância para a
História da Ciência, por acreditarem que esta pode contribuir para uma melhor
compreensão das relações entre a ciência e a sociedade e em relação à inserção da
ciência no contexto cultural mais amplo (ABRANTES, 2002).
Nos Estados Unidos, depois da segunda guerra mundial, a História da Ciência
tinha um lugar de destaque nas disciplinas de ciências dirigidas a estudantes da
graduação. A voz de maior influência então era a de James B. Conant (1893-1978),
presidente da Universidade de Harvard, cuja abordagem do estudo de caso era
largamente difundida (MATTHEWS, 1995).
Conant colaborou para o desenvolvimento da História da Ciência no período em
que foi o pró-reitor geral da graduação em Harvard e tornou-a popular através de uma
série de relatórios oficiais e best-sellers de bolso. Sua obra em dois volumes, “Estudo
de casos de Harvard sobre história nas ciências experimentais” (1957), tornou-se o
livro-texto de muitos cursos de ciências (MATTHEWS, 1995).
Foi por influência de Conant, que Kuhn (1922-1996) teve o primeiro contato com a
História da Ciência, assim como sua influencia foi importante para outros historiadores
12
ciência da universidade de Harvard e que também argumentou a favor da introdução de
material histórico nos programas das faculdades de ciências (MATTHEWS, 1995).
Foi por volta da década de 60, que os departamentos das universidades
norte-americanas de história começaram a expandir seus horizontes de estudo, procurando
novas áreas como a História da Ciência, não se concentrando somente na História da
Ciência produzida na Europa e América do Norte e em trabalhos de outras ciências
além da física (DEBUS, 1991).
As principais reformas dos currículos de ciências na década de 60 ocorreram sem
qualquer participação de historiadores ou filósofos da ciência. Houve apenas duas
exceções: uma delas foi o Projeto de Física de Harvard, e a outra inclui várias versões
do BSSC-American Biological Science Curriculum Study (MATTHEWS, 1995).
O Projeto de Física de Harvard era o currículo escolar de ciências fundamentado
em princípios históricos e preocupado com as dimensões cultural e filosófica da ciência
mais amplamente utilizado. Seu sucesso em evitar a evasão dos estudantes, atrair
mulheres para os cursos de ciências, desenvolver a habilidade do raciocínio crítico e
elevar a média de acertos alcançada em avaliações deu suporte e evidências
suficientes para que alguns estudiosos fossem a favor da abordagem História, da
Filosofia e da Sociologia da Ciência (MATTHEWS, 1995).
O BSSC foi alimentado com as idéias do educador, filósofo e biólogo J.J. Schwab,
que promoveu a doutrina pedagógica da ciência como investigação. Schwab escreveu
o Manual do professor do BSSC, no qual defendia a abordagem histórica, pois segundo
ele, esta diz mais respeito ao homem e aos fatos do que a concepções propriamente
ditas (MATTHEWS, 1995).
Foi Walter Pagel (1898-1983) que reconheceu que ao se fazer a História da
Ciência, não se deveria abordá-la como se esta fosse um progresso, era preciso olhar
os fatos contextualizando-os e não interpretá-la aos olhos modernos, quando isto fosse
feito, a História da Ciência iria mostrar-se mais complicada do que na visão progressista
No início dos anos 60, a Comissão Internacional de Educação em Física levantou
a questão da utilidade da História da Física para o seu ensino (MATTHEWS, 1995). No
ano de 1968, Thomas S. Kuhn compara a tradição da História da Ciência “internalista” e
“externalista”, que para ele, são dois modos de ver a ciência, a primeira trata da leitura
interna das razões levantadas no texto, já a segunda, procura estabelecer um contexto
ao seu estudo (DEBUS, 1991).
Segundo Debus (1991), o livro de Thomas S. Kuhn, A estrutura das revoluções
científicas é basicamente um estudo internalista que explica as revoluções científicas
em termos da substituição de um paradigma por outro, pois as argumentações das
teorias possuem uma lógica interna que as sustentam.
Debus (1991) relata que no final do século XX, a discussão sobre a História da
Ciência expandiu-se, indo muito além de suas origens técnicas, e os estudiosos da área
influenciados por questões sociais passam a fazer novas interpretações sobre a
ciência. A História da Ciência possui, portanto, a tradição internalista e a externalista,
contudo, a segunda tem adquirido contornos que a evidenciam como aquela possui
maior interesse aos historiadores da ciência.
As duas tradições são importantes, uma pode complementar a outra, já que ao
estudarmos algum fato, queremos saber tanto o seu contexto, quanto o método
experimental pelo qual o cientista construiu sua teoria (DEBUS, 1991). Martins (2005)
acrescenta que um estudo completo envolveria os dois tipos de abordagem, entretanto,
embora em termos práticos tudo ocorra ao mesmo tempo, ou seja, os processos de
proposta/fundamentação e o de aceitação ou rejeição não sejam independentes um do
outro, esta distinção pode proporcionar maior clareza à análise de História da Ciência.
Assim é possível, para efeito de estudo, dividir o processo em duas partes e,
normalmente, um estudo não-conceitual deve ser precedido de um estudo conceitual
bem-feito.
O Ensino de Ciências pode ser beneficiado pela adoção de uma concepção
externalista de História da Ciência, desde que se evite simplismos perigosos. Por outro
lado, a análise rigorosa dos conceitos, sua fundamentação e a lógica do encadeamento
14
Segundo Matthews (1995), foi ao longo das décadas de setenta e oitenta que a
Associação Britânica para o Ensino da Ciência, em alguns de seus relatórios indicou a
incorporação de materiais mais históricos e filosóficos ao currículo das ciências,
apontando como problemas principais, o fato de que os professores não estavam
devidamente preparados para ensinar ciências contextualizadas dessa maneira.
Contudo, na década de 70 houve críticas da aplicação de História da Ciência no
Ensino de Ciências. Existindo duas vertentes destas críticas, a primeira delas aborda o
fato de que a história que é usada no Ensino de Ciências é uma pseudo-história e a
segunda é de que o uso da história dificultará o aprendizado de cientistas (FREIRE
JUNIOR, 2002).
Em relação a primeira vertente, Freire Junior (2002) relata que muitos dos que
defendem a abordagem contextual, ou seja, a da história, também constatam que os
livros-textos muitas das vezes possuem uma pseudo-história, isto porque a ciência e a
história possuem perspectivas antagônicas.
Entretanto, Freire Junior (2002) menciona que o ensino deve sempre proporcionar
aos estudantes uma diversificação de perspectivas, enriquecendo o aluno
intelectualmente. Além disso, a história que é abordada pelo historiador é uma forma
selecionada, ou seja, o historiador seleciona algumas informações, introduzindo-as de
forma simplificada para construir narrativas que confiram inteligibilidade aos processos
sociais.
A segunda vertente só deve ser levada em conta quando se discute a formação do
cientista, ou seja, que esta vertente possui pouca argumentação quando se discute a
formação de professores de ciências e a generalização da educação científica, deste
modo, relacionado também à discussão de qual deve ser o Ensino de Ciências pra
aqueles que não seguirão carreira científica (FREIRE JUNIOR, 2002).
Ainda na década de 70, a Sociedade Americana de Física estabeleceu uma seção
sobre a História da Física e, concomitantemente, a Sociedade da História da Ciência
que Stephen Brush teve influência em ambos, produzindo inúmeros estudos históricos
para serem usados em salas de aula (MATTHEWS, 1995).
Para Freire Junior (2002), apesar de a abordagem histórica ser bem vista no
Ensino de Ciências há tanto tempo quanto à própria introdução de ciências no ensino, a
relação entre esta abordagem e o ensino tem se revelado contraditório por se
desenvolverem de modo não linear.
1.3 A HISTÓRIA DA CIÊNCIA E A SUA APLICAÇÃO NO ENSINO DE CIÊNCIAS
A História da Ciência é, na verdade, um microcosmo dentro de um macrocosmo,
que é a história em sua totalidade (DEBUS, 1991). Este tipo de historiografia tem como
objetivo principal a introdução de conceitos, métodos, teorias, técnicas entre outras
coisas mais. Neste caso, o que se nota é que este tipo de historiografia é produzido por
historiadores dominantes dos conceitos da área em questão, produzindo um trabalho
com uma visão da História da Ciência feita por um acúmulo contínuo de conhecimento
(ABRANTES, 2002).
Os enfoques que levam em conta a História e a Filosofia da Ciência se
apresentam pouco presentes nas atividades de ensino. Por serem importantes para o
entendimento da natureza da Ciência, deveriam fazer parte de um currículo. As
questões históricas e filosóficas auxiliam na construção de uma concepção de Ciência
não-dogmática, apresentando rupturas e não se constituindo meramente pelo acúmulo
linear de dados, na qual a elaboração de um quadro teórico é essencial para a
realização de experimentos, em que se reconhece a divergência de opiniões -
manifesta na existência de tradições ou programas de pesquisa rivais - e originada num
contexto social e histórico específico (MACHADO e NARDI, 2006).
Há hoje em certos países uma preocupação em proporcionar uma educação mais
abrangente e liberal de alfabetização científica, que é vista, por exemplo, nas Diretrizes
Nacionais para o Ensino de Ciências e no Projeto 2061 nos Estados Unidos da
16
de Ciências do Canadá, Norueguês, Dinamarca e do Estado de New South Wales na
Austrália (MATTHEWS, 2002).
Nestes países, o objetivo é proporcionar não somente o conhecimento de um
determinado assunto ou conteúdo científico, mas fazer com que o aluno também tenha
a capacidade de visualizar o “quadro geral” da ciência, isto é, da História e Filosofia da
Ciência e suas inter-relações (MATTHEWS, 2002).
Segundo Matthews (2002), nestes países, os objetivos dos cursos de ciências são
promover o conhecimento da ciência e também sobre a ciência, ou seja, o Ensino de
Ciências abordará desta forma as questões disciplinares e culturais.
Matthews (2002) defende que para se entender e solucionar adequadamente
muitos dos assuntos teóricos do atual Ensino de Ciências é imprescindível se obter o
conhecimento da História e a Filosofia da Ciência.
A História, a Filosofia e a Sociologia da Ciência, aproximam os interesses éticos,
culturais e políticos dos indivíduos e, dentro do quadro de dificuldades de acesso ao
entendimento da ciência, torna seus assuntos mais estimulantes, reflexivos e
incrementam as capacidades do pensamento crítico (VALENTE, 2005).
A prática do Ensino de Ciências é enriquecida pelas informações (e
reconstruções) colhidas da História da Ciência, podendo humanizar as ciências e
aproximá-las dos interesses pessoais, éticos, culturais e políticos da comunidade
(MATTHEWS, 1995).
A História das Ciências, ao fornecer informação contextualizada dos conceitos e
teorias científicas que prevaleceram em vários momentos da história, pode facilitar e
enriquecer a compreensão conceitual (DUARTE, 2004).
A História da Ciência juntamente com a Filosofia da Ciência, quando utilizadas no
Ensino de Ciências, podem colaborar para a compreensão dos mecanismos pelos
quais a ciência é elaborada (MEGLHIORATTI, 2004).
Segundo Machado e Nardi (2006), discussões de caráter histórico e filosófico
possibilitam revelar problemáticas ético-sociais relevantes para o ensino de temas da
fatores sociais, políticos, econômicos e ideológicos atuantes sobre essas áreas e o
impacto destas no modo de vida em Sociedade. Além disso, explicita-se a
responsabilidade tanto dos pesquisadores que as promovem quanto dos cidadãos em
geral, os quais podem influenciar sua aplicação.
Segundo Brush (1989) apud Meglhioratti (2004), o uso da História da Ciência no
ensino pode contribuir para mudar a percepção pública dos cientistas, incentivar a
participação em decisões sobre o uso das tecnologias e gerar uma apreciação da
ciência como parte da cultura.
As aulas de ciências podem tornar-se mais desafiadoras e reflexivas, permitindo,
deste modo, o desenvolvimento do pensamento crítico dos alunos, sendo que a História
da Ciência pode contribuir para um entendimento mais integral de matéria científica,
dando um significado maior as aulas de ciências (MATTHEWS, 1995).
Para Carvalho et al (1990) a abordagem histórica de algum conteúdo se mostra
mais interessante por trazer para mais perto do universo cognitivo não só do aluno, mas
do próprio homem, que antes de conhecer cientificamente constrói historicamente o que
conhece.
Zamunaro (2006) relata que apesar de ser claro que a História da Ciência
apresenta grande potencialidade na educação científica, contudo, observa-se ao
mesmo tempo que o professor não está preparado para trabalhar com conceitos
históricos em sua prática docente, devido a problemas como a ausência durante a
formação inicial de disciplina relacionada à História da Ciência, dificuldade de obtenção
de material histórico para trabalhar em sala de aula, dificuldade de compreensão da
linguagem utilizada, concepções inadequadas sobre a construção do conhecimento
científico e, por último, a falta de referencial teórico sobre a História e Filosofia da
Ciência.
Meglhioratti (2004) aponta que ao fazer tal abordagem, os conceitos construídos
no passado não são analisados com preconceitos, pois são vistos de forma integrada
18
A respeito da necessidade de adoção de uma perspectiva histórica no Ensino de
Biologia, Carneiro e Gastal (2005) defendem que somente ela não basta, isto porque é
preciso desenvolver os instrumentos para que esta proposta seja levada adiante de
forma satisfatória.
A História da Ciência desempenha um papel fundamental na compreensão do
conhecimento científico, pois ela capacita que os alunos compreendam que as ciências
são o produto de uma complexa atividade social, que antecipa e precede o ato
individual da descoberta ou criação. Permite que os alunos conheçam como as teorias
atualmente aceitas evoluíram em conseqüência de uma atividade humana, coletiva,
desenvolvida em determinados contextos sócio-históricos e culturais e, dessa forma,
apreciem o significado cultural e a validação das teorias à luz do contexto em que foram
aceitas (DUARTE, 2004).
Além disso, a abordagem da História da Ciência tem a capacidade de mostrar aos
alunos que a ciência muda com o decorrer do tempo e que esta é feita por seres
humanos sujeitos a falhas que podem aperfeiçoar o conhecimento, deste modo, o aluno
é capaz de entender que as teorias vigentes podem não ser de uso definitivo, podendo
ser trocadas por uma outra teoria mais elaborada (MARTINS, 1998).
Com isso, a História da Ciência tem a capacidade de demonstrar aos alunos que
suas dúvidas são cabíveis em relação ao conceito que se desenvolveram através de
um processo lento até chegar à concepção atual (MARTINS, 1998).
A integração da História da Ciência permite que o aluno tenha uma perspectiva
mais articulada e consciente de como acontecem as teorias desenvolvem-se na ciência,
e que estas não são fatos criados por um único grande homem, isolado e independente
de outros eventos, pois para que tal fato fosse descoberto, houve uma construção de
conceitos já estabelecidos dando uma base para a elaboração de novas teorias
(MATTHEWS, 1991).
É a História da Ciência que pode combater o cientismo e o dogmatismo, que são
freqüentes nos textos científicos e nas aulas de ciências, e tal fato baseia-se na
independência da mente, a exaltação das ciências como algo absoluto (cientismo),
como uma capacidade quase ilimitada na resolução dos problemas da humanidade,
além de combater o dogmatismo, evitando que se julguem como ingênuas as teorias
científicas de outras épocas vistas à luz dos dados e das idéias de hoje (DUARTE,
2004).
De acordo com Araujo Neto e Santos (2001, p. 74):
Um dos contravenenos para o dogmatismo no Ensino de Ciências consiste em ensiná-las em sua história. Muitos cientistas buscaram verificar a validade de seus instrumentos de análise, confrontando-os com a história anterior de sua ciência. O retorno ao passado constitui uma espécie de estratégia para melhor se interpretar e transformar o presente.
Deste mesmo modo, Pedrinaci (1994) exalta que a História da Ciência, quando
abordada, facilita a aprendizagem do processo do conhecimento científico, na medida
em que apresenta entre outras coisas, como surgem as teorias, como a comunidade
científica oferece resistência ao desligar-se do paradigma vigente até determinado
momento, como tem um período de aceitação mais ou menos longo e como, finalmente,
são separadas por outras idéias com maior poder de explicação. A História da Ciência é
o melhor antídoto contra a visão dogmática da ciência como verdade absoluta.
Para Valente (2005, p. 56):
A História da Ciência focalizada nesta direção permite um reconhecimento mais rico do método científico, uma vez que pode mostrar as pautas de mudança da metodologia consensual, rompendo-se com o mito único e infalível do método científico, assim concebida, a História da Ciência representa um meio para solucionar a questão da barreira artificial entre os diferentes estudos científicos, uma vez que se articula no sentido de procurar eliminar os preconceitos, as idéias cristalizadas e significados arraigados ao saber científico, e que bloqueiam qualquer tentativa de aproximação. Para compreender uma concepção teórica, é necessário entender seu desenvolvimento histórico. Busca-se em última estância, não o conhecimento de resultados isolados, como um conjunto de conteúdos sistematizados, mas do entendimento do processo que é um conhecimento necessariamente histórico.
Estudantes que possuem contato com abordagens da História da Ciência, obtêm
uma imagem da ciência mais contextualizada e próxima da realidade e na maioria dos
casos, se diferenciam de forma significativa dos alunos que não têm contato com esta
20
Hoje há certo desinteresse dos alunos pelo passado e é comum notar que a
maioria dos estudantes e seus instrutores não possuem interesse pelo conhecimento
da história da área na qual ele estuda ou atua, porém, um senso de história pode dar
aos estudantes um sentimento do movimento, progresso, e contínuas mudanças
inerentes na ciência (MATTHEWS, 1991).
Matthews (1991) acrescenta ainda que o estudante que não possui contato com
alguma história é apto somente a entender a ciência em um texto ou em um laboratório,
em que a ciência é considerada como um produto acabado, imutável e gravado em
uma pedra; enquanto aquele que possui contato com a história é capaz de perceber
que a ciência possui uma estrutura mais dinâmica do que estática.
É importante que durante o aprendizado no Ensino Fundamental, o estudante
possa refletir sobre a natureza do conhecimento e do fazer científico e tecnológico que,
por serem de difícil entendimento, podem ser mais bem compreendidos quando estão
sob orientação do professor e apoiados em exemplos de fácil percepção. Este tipo de
aprendizagem se inicia na escola fundamental e poderá se completar na fase adulta e,
devido a isso, é interessante a introdução mais freqüente de tópicos de História da
Ciência como parte de estudos da área (MATTHEWS, 1991).
A partir desses pressupostos, desenvolvemos um trabalho sobre a importância da
História da Ciência para o aprendizado dos conteúdos sobre a circulação sanguínea e,
fundamentado nessa idéia, caracterizamos a utilização da História da Ciência na
explicação sobre a circulação sanguínea em diferentes livros didáticos (dentre os que
figuram no PNLD/2008).
1.4 A HISTÓRIA DA CIÊNCIA NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES
O papel dos professores é de suma importância, visto que eles podem disseminar
uma educação mais rica aos seus alunos, com a abordagem histórica da ciência.
que é simplesmente formada em ciências, é que o primeiro irá receber um
conhecimento da dimensão cultural e a história da própria disciplina.
A História da Ciência pode melhorar a formação do professor auxiliando o
desenvolvimento de uma epistemologia da ciência mais rica e mais autêntica, ou seja,
de uma maior compreensão da estrutura das ciências bem como do espaço que
ocupam no sistema intelectual das coisas (MATTHEWS, 1995).
Em seu estudo, Meglhioratti et al (2005) aborda a história da construção do
conceito de evolução no contexto da formação dos professores e conclui que a sua
utilização, não só permite uma compreensão aprofundada da natureza da ciência pelos
professores, como também, elucida a coerência dos conceitos elaborados dessa época.
Carvalho et al (1990) ressaltam que apesar de muitas vezes ausente na formação
do professor, a História da Ciência parece ser imprescindível nesta formação. O
professor que possui em sua formação a História da Ciência, também irá adquirir a
capacidade de compreender o processo da ciência e, desta forma, ajuda a entender
que a ciência é como um recorte da realidade que se relaciona com outras atividades
humanas, com diferentes outros recortes.
Esta idéia se complementa com o que Carvalho et al (1990, p. 68) explicitam:
Ao entender a evolução histórica dos conteúdos científicos, o professor poderá interar-se dos obstáculos que travaram seu desenvolvimento, das dificuldades do percurso ao longo da evolução das idéias e conteúdos e isto poderá orientar-lhe na elaboração de atividades desequilibradoras, de estratégias de ação em sala de aula, na análise que ele fará sobre a pertinência e prioridade de conteúdos que vai ensinar.
Carneiro e Gastal (2005, p. 38) alertam que:
Se pretendemos que a História da Biologia seja apresentada numa perspectiva distinta daquela que vem prevalecendo nos livros didáticos, é necessário repensar os cursos de formação inicial e continuada de professores. Tal necessidade também implica um esforço concentrado na produção de materiais curriculares que possam fornecer aos professores indicadores a respeito de como trabalhar esta abordagem em mais aulas.
Apesar de tudo isso, há em alguns professores a preocupação de utilização de
22
acréscimo de conteúdo. No entanto, o que se conclui é que a introdução adequada da
História da Ciência, mostrando de que forma os conhecimentos científicos são
produzidos, em que contexto histórico e social tem aparecido determinadas teorias e a
influência que estas têm exercido sobre o próprio entorno social, são motivos para
aumentar o interesse dos alunos no Ensino de Ciências, já que esta abordagem pode
mostrar uma imagem mais correta e próxima da realidade da ciência e dos trabalhos
dos cientistas (SOLBES e TRAVER, 2001).
Somando a este fato, em seu trabalho, Duarte (2004) relata que resultados de
diversos estudos em que se procurou investigar se e como os professores utilizam a
História da Ciência na sua prática pedagógica revelaram que muitos deles continuam a
omitir a História da Ciência ou a veicular uma concepção do progresso científico como
cumulativo e linear. Esses resultados mostram, de forma inequívoca, a insuficiência das
medidas tomadas e remetem-nos para a necessidade de repensar a formação de
professores.
Para Duarte (2004), os professores que se utilizam de uma abordagem histórica,
conseguem antecipar as concepções adotadas pelos alunos, e tem a capacidade de
obter uma percepção das dificuldades conceituais dos alunos, que muitas das vezes
acabam por assumir o caráter de verdadeiros obstáculos epistemológicos e
metodológicos na construção do conhecimento científico, desta forma, capacitando-os a
articular a construção de explicações.
Meglhioratti (2004) propõe que os professores deveriam possuir um espaço para
discutir História e Filosofia da Ciência e, deste modo, visualizar a ciência como um tipo
de conhecimento específico, mas que convive com outros tipos de conhecimento.
A abordagem histórica permite ao professor discutir as variadas formas de
conhecer o mundo sem perder a noção de que a educação formal é um contexto
privilegiado para discutir aspectos dos conceitos científicos e o conceito de ciência
(MEGLHIORATTI et al, 2005).
Para Meglhioratti (2004), a revisão histórica evidencia aos professores, que a
Ciência pode contribuir para demonstrar os obstáculos epistemológicos na formulação
de um conceito e auxiliar na compreensão do professor.
Compreender a utilização ideológica da ciência, e o contexto em que foi
formulada, permite uma visão crítica da realidade e a quebra de preconceitos que são
reafirmados pelos movimentos ideológicos. A utilização da História da Ciência na
formulação de professores pode levar a formação de professores que se posicionem
criticamente perante a realidade. (MEGLHIORATTI et al, 2005). Porém, deve articular o
entendimento dos conceitos construídos ao longo da história.
Deste modo, a abordagem histórica mostra-se importante na prática docente, é
preciso que haja um incentivo para que tal prática seja feita, contudo, é necessário que
estes professores tenham em sua formação, um espaço para a discussão de assuntos
relacionados à História da Ciência, capacitando-os de uma forma crítica a este respeito.
O professor que obtiver uma visão crítica do que é a História da Ciência, de sua
importância e de seu uso, terá a capacidade de demonstrar aos alunos de que forma a
ciência é construída, de forma que, estes alunos, que um dia poderão se tornar
professores, também tenham uma visão crítica dos assuntos científicos e, deste modo,
fechando um ciclo de ensino e aprendizado contínuo de futuros professores com
24
2. HISTÓRIA DAS EXPLICAÇÕES SOBRE O MOVIMENTO DO SANGUE E DA CIRCULAÇÃO SANGUÍNEA
A anatomia juntamente com a fisiologia formam a base fundamental para os
estudos nas áreas biológicas, inclusive a médica. A anatomia é a ciência sobre a
estrutura e a fisiologia sobre os processos de funcionamento do organismo vivo. A
anatomia humana tem por objetivo de estudo a compreensão do corpo humano
(LLORCA, 1969).
A pesquisa médica nasceu muito antes das primeiras pesquisas em que se
utilizaram animais não-humanos para a experimentação e observação. O advento da
experimentação sistematizada com animais de várias espécies, inclusive o homem,
representou um marco para os diagnósticos, para consolidação de uma medicina que
levou ao aumento da expectativa média de vida (TIMO-IARIA, 2001).
Para Llorca (1969), muitas das explicações médicas têm sido feitas e seguidas por
descobrimentos anatômicos. A grandeza da anatomia aparece com toda sua força
quando, esta constitui um corpo de conhecimentos sistemáticos, como um ramo da
biologia e apoiada em feitos de observações experimentais.
A anatomia adquiriu uma importância crucial para a medicina, pois como
compreender a fisiologia do funcionamento dos órgãos e aparatos sem conhecer as
características morfológicas e estruturais destes? (LLORCA, 1969).
MARTIRE (2004) relata que apesar de os egípcios terem em sua cultura o
princípio de preservação do corpo após a morte pois realizavam mumificações, não
conheciam bem a anatomia humana. No entanto, segundo Persaud (1984) apud Moore
e Dalley (2001), as descrições mais antigas de anatomia foram escritas em papiros
entre 3000 e 2500 a.C.
Dentro dos estudos de anatomia e fisiologia, a explicação sobre o movimento do
sangue pelo corpo levou a construção de diferentes teorias. Nos escritos mais antigos
qualquer relação com as características anatômicas e as funções do sistema
cardiovascular (PORTO et al, 1991).
A construção da explicação sobre a circulação sanguínea resultou de uma série
de estudos e elaborações ou hipóteses sobre a questão, fruto de um processo histórico
que pensadores participaram.
Podemos apontar três principais problemas nas explicações elaboradas até
chegarmos à construção do conceito da circulação do sangue aceito atualmente.
• O primeiro problema foi a crença de que as artérias continham somente ar;
• O segundo, a crença de que o septo entre os dois ventrículos do coração era perfurado;
• Por último, a crença de que as veias carregavam o sangue para as extremidades.
A partir destas três crenças, veremos que as pesquisas dos antecessores de
Harvey, considerado o descobridor da circulação sanguínea, tiveram grande
importância para a elaboração de sua teoria acerca da circulação do sangue.
Segundo Gottschall (1999), a elaboração do conceito de circulação do sangue,
publicada em 1628, possui extrema importância para os problemas do movimento do
sangue, pois levou a fisiologia e a cardiologia a rever seus conceitos.
Essa grande importância atribuída à circulação deve-se a esta ser a condição
primária para que células funcionalmente diferentes se agrupassem num organismo.
Portanto, constitui-se a própria base cuja evolução permitiu criar seres superiores. Além
disso, o modelo de Harvey é um fato aceito que serviu de base para outras elaborações
e teorias que a desdobraram e continuam aumentando seu alcance, sem necessidade
de alterar o modelo (GOTTSCHALL, 1999).
A seguir, faremos uma exposição histórica do conceito de circulação do sangue,
demonstrando quais eram as concepções iniciais em relação ao movimento de sangue
dentro do organismo e como este conceito foi sendo alterado até ser construído o
26
2.1 ESTUDIOSOS QUE INFLUENCIARAM GALENO E HARVEY
Para discutirmos como o conceito da circulação sanguínea foi elaborado,
descreveremos algumas explicações anteriores com o objetivo de perceber a
complexidade envolvida na questão.
Galeno sofreu a influência de muitos estudiosos de sua época, contudo, para este
trabalho, enfocaremos os estudiosos que lhe trouxeram maior influência no campo da
prática médica e da filosofia natural, ou seja, aqueles que lhe proporcionaram base
intelectual para a discussão do movimento do sangue no corpo.
O primeiro destes estudiosos foi Hipócrates4 (460 a.C.-ca. 370 a.C.), que possui
influência decisiva nos trabalhos de Galeno.
Segundo Rebollo (2006), a segunda e historicamente mais importante
interpretação do legado hipocrático foi realizada pelo trabalho de exegese de Galeno,
que ainda hoje é considerado o maior intérprete de Hipócrates. Além de comentar os
principais tratados da coleção hipocrática, Galeno foi o primeiro compilador dos
comentadores anteriores.
Para Rebollo (2003), Galeno teve um papel essencial na difusão do hipocratismo,
uma vez que até os séculos XV e XVI, com o surgimento de novas traduções, o Corpus
Hippocraticum será quase que exclusivamente conhecido a partir dos seus
comentários.
A fisiologia contida no Corpus Hippocraticum deriva de uma anatomia teorizada,
fortemente comprometida com a filosofia natural do final do século V e primórdios do
século IV a.C. No Corpus Hippocraticum é encontrado uma medicina que repousa em
concepções fisiológicas e anatômicas, que não recorria a dissecação e devido a isso, o
corpo e suas partes eram rudemente conhecidos. (REBOLLO, 1998).
Segundo Rebollo (1998, p. 55), no interior do Corpus Hippocraticum, há a concepção de dynameis, que é concebida de três maneiras distintas: (1) como princípio de movimento (virtudes ou forças operativas) causado
4
por forças qualitativas elementares (o quente, o frio, o úmido, o seco, o doce, o amargo, o salgado etc.); (2) como resultado da quantidade e intensidade de ação dessas forças qualitativas elementares; e (3) como resultado da interação entre matérias elementares (água, fogo, ar e terra). A maior parte das concepções a respeito da dynameis serviu como pano de fundo da teoria humoral, uma vez que cada humor resulta na interação de tais dynameis ou virtudes operativas.
Dentro da doutrina humoral, os elementos primários constituintes do corpo são a
água, o fogo, o ar e a terra. Tais elementos geram as qualidades (quente, frio, seco e
úmido) que, organizadas em pares, dão origem aos quatro humores (chymós). Todas
as partes líquidas e sólidas do corpo são compostas por uma mistura ou mescla (krásis)
de tais humores. As doenças dependerão, na sua maioria, de uma discrasia ou
desequilíbrio entre a composição natural de tais humores (REBOLLO, 2006).
Rebollo (1998) relata que cada humor possui a sua própria dynamis (sua
qualidade operativa ou força), para estabelecer o diagnóstico, o médico que segue os
preceitos hipocráticos, deve avaliar sua quantidade e sua intensidade no organismo e,
em seguida, estabelecer a relação com o aspecto ou a forma específica do paciente,
isto é, o sexo, a idade, os tipos temperamentais e as raças.
Portanto, Galeno utiliza-se destes e outros conceitos hipocráticos dentro de sua
proposta fisiológica, a concepção galênica de funcionamento do corpo está muito
arraigada às concepções encontradas no Corpus Hipocraticum.
Foi devido a Galeno que Hipócrates e os seus tratados foram conhecidos à luz de
sua filosofia natural, ela própria um esforço monumental para reconciliar Hipócrates,
Platão e Aristóteles. Esse esforço resultou no hipocratismo galênico, que predominou
até o século XV, quando médicos e filósofos influenciados pelos humanistas passaram
a exigir obras livres de comentários e interpretações (REBOLLO, 2006).
Um segundo colaborador para a construção do conceito de circulação do sangue,
foi Aristóteles5, que influenciou tanto Galeno como Harvey. Deste filosofo Galeno reteve
vários aspectos, tais como a predominância da forma sobre a matéria. Contudo,
diferentemente de Aristóteles, Galeno acreditava que a alma não era concebida como
princípio motor do corpo, mas como o resultado último da matéria corporal (REBOLLO,
5
28 2006).
Aristóteles concebia o equilíbrio dos elementos e, conseqüentemente, dos
humores. Além disso, acreditava que a alma ligada ao corpo é, ao mesmo tempo, forma
e princípio de movimento. Sediada no coração, ela anima o corpo por meio do calor e
do pneuma, ar vivificante respirado pelo nariz e pela pele, cuja função é refrigerar o
corpo e fornece-lhe vida (REBOLLO, 2006).
Um conceito aristotélico exposto por Rebollo (2006), no qual veremos mais a
frente sendo reforçado por Galeno é o de que, na nutrição, a cocção transforma o
alimento em sangue com a ajuda do fígado e do calor natural do corpo; o sangue nutre
e recompõe os tecidos compondo a matéria corporal, e esse trabalho de irrigação é
feito através dos vasos do corpo.
Não somente Galeno foi influenciado por Aristóteles, as idéias deste filósofo
influenciaram profundamente os médicos por muitos séculos, inclusive William Harvey.
Segundo Rebollo (1998), na Universidade de Pádua6, além do aprendizado dos temas
de ensino médico, Harvey também foi treinado na filosofia aristotélica e nos métodos do
raciocínio aristotélico. Segundo Young (1951), desta fortaleza do aristotelismo, Harvey
carregou muito do ponto de vista de Aristóteles.
Segundo Cohen (1994), a teoria de circulação do sangue por Harvey, na verdade,
se mostrava semelhante ao espírito matemático daquele período já que esta
elaboração estava baseada sobre cálculos repletos de investigações empíricas. Os
raciocínios quantitativos deram a Harvey, uma breve introspecção da necessidade de
uma nova fisiologia provida de uma poderosa argumentação para as suas idéias a
respeito da circulação (COHEN, 1994). No entanto, Harvey apóia-se na tradicional e
nada moderna filosofia de Aristóteles.
O caminho da elaboração de Harvey, assim como a sua apresentação no De Motu
Cordis estava solidamente baseado em um método de investigações anatômicas
6