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Alceu Amoroso Lima e o regime militar: 1964-1968

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Academic year: 2017

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FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS

CENTRO DE PESQUISA E DOCUMENTAÇÃO DE HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA DO BRASIL (CPDOC)

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA, POLÍTICA E BENS CULTURAIS (PPHPBC)

MESTRADO EM BENS CULTURAIS E PROJETOS SOCIAIS

Alceu Amoroso Lima e o regime militar 1964-1968

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil – CPDOC para a obtenção do grau de Mestre em Bens

Culturais e Projetos Sociais

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FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS

CENTRO DE PESQUISA E DOCUMENTAÇÃO EM HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA DO BRASIL (CPDOC)

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA, POLÍTICA E BENS CULTURAIS (PPHPBC)

MESTRADO EM BENS CULTURAIS E PROJETOS SOCIAIS

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História, Política e Bens Culturais do Centro de Pesquisa e Documentação em História Contemporânea do Brasil da Fundação Getúlio Vargas como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre.

Aprovada em _____________________________________ Pela Banca Examinadora:

______________________________________________ Professor Dr. Américo Oscar Guichard Freire (orientador)

______________________________________________ Professora Drª. Ângela Maria de Castro Gomes ______________________________________________

Professor Dr. Marcelo Timotheo da Costa

______________________________________________ Professora Drª. Christiane Jalles de Paula (suplente)

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AGRADECIMENTOS

A todos do CPDOC-FGV, por darem condições de tornar esse objetivo possível. Aos colegas do mestrado, por toda a troca ao longo desse período de crescimento, em especial Joandina, Marcelo e Thaís.

A todos os amigos do Centro Alceu Amoroso Lima para a Liberdade, pela disposição, atenção e solicitude.

A todos os entrevistados, que se dispuseram e contribuíram para que esta pesquisa se tornasse melhor.

Aos professores do CPDOC-FGV, pelo aprendizado ao longo desse tempo todo. Ao meu orientador, Américo Freire, essencial nessa caminhada e em cada linha desta dissertação.

À minha mãe, Olinda, e aos meus irmãos, Alexandre e Silvia, porque fazem tudo valer a pena.

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RESUMO

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ABSTRACT

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“Produzir uma história de vida, tratar a vida como uma história, isto é, como o relato coerente de uma seqüência de acontecimentos com significado e direção, talvez seja conformar-se com uma ilusão retórica, uma representação comum da existência que toda uma tradição literária

não deixou e não deixa de reforçar.”

Pierre Bourdieu

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO E METODOLOGIA...8

PARTE I - POSICIONAMENTO...22

Capítulo I...22

Três vidas

Primeira e segunda fases Terceira fase

Capítulo II...36

O livre atirador

PARTE II – RADICALIZAÇÃO...53

Capítulo III...53

De Dr. Alceu a Tristão de Athayde

Capítulo IV...69

A radicalização

BIBLIOGRAFIA...84

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INTRODUÇÃO E METODOLOGIA

“O integralismo, como reação histórica, é um movimento sadio e útil do nosso atual momento político. Repercussão brasileira dos movimentos de vitalidade nacional que salvaram a Itália, talvez a Alemanha e a Península Ibérica e, porventura, a América do Norte, da anarquia econômica e do imperialismo comunista, representa para a pátria brasileira a mais sólida garantia às mais puras tradições nacionais.”1

Aqueles que conheceram o pensador católico Alceu Amoroso Lima a partir de meados da década de 1960 poderiam garantir que a citação acima seria de qualquer intelectual reacionário, menos de alguém que, algum tempo depois, tornar-se-ia um dos principais paladinos da liberdade no Brasil, como é o caso de Tristão de Athayde – pseudônimo adotado por Alceu a partir de 17 de junho de 1919, quando iniciou sua atividade de crítico literário em O Jornal.

Pois a frase acima é, sim, de Amoroso Lima. Esta é parte de um artigo publicado nos idos de 1930, “Catolicismo e Integralismo”. Foi com ela, inclusive, que um jornalista da revista Visão, em 1968, iniciou uma entrevista com Tristão, intitulada “Quando eu era integralista”. As convicções mais conservadoras tangenciavam a forma de pensar de Alceu pelo menos até os anos 40. Ao ser deflagrado o golpe militar de 31 de março de 1964, o que se via era o oposto: uma mudança radical de sua postura política, abrindo para um cenário de consolidação da imagem de um progressista, um fervoroso defensor dos direitos humanos.

1 “Quando eu era integralista”. In: BARBOSA, Francisco de Assis. Alceu Amoroso Lima (Tristão de Athayde)

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Uma frase de Gramsci, utilizada como referência por Daniel Aarão no texto “Intelectuais e política nas fronteiras entre reforma e revolução”2, diz que “se a narrativa é bem concebida, a trajetória de um intelectual pode tornar-se a monografia de uma época”3. A narrativa da atuação de Alceu Amoroso Lima, crítico literário, escritor e considerado um dos principais pensadores católicos do século XX, em determinados períodos da história do Brasil no último século pode ser monografia de uma ou mais épocas.

Estudar o posicionamento político deste personagem, traçando paralelo com temas como a Igreja e a sociedade, é um exercício que pretende-se realizar nesta dissertação.

Serão três os temas principa is a serem desenvolvidos neste trabalho, do ponto de vista da trajetória de Alceu Amoroso Lima: política, sociedade e Igreja. O critério para chegarmos a esses tópicos foi a análise dos artigos publicados por Alceu no Jornal do Brasil e na Folha de S. Paulo ao longo do período que compreende os anos de 1963 a 1968 (estendendo-se, para o último capítulo, para alguns artigos publicados em 1969 e no início dos anos 1970) e reproduzidos na coletânea de cinco livros intitulada “Crônica do Tempo Presente” - Revolução, Reação ou Reforma?, Pelo humanismo ameaçado, A experiência reacionária, Em busca da liberdade e Revolução suicida, sendo que este último não foi utilizado para análise, uma vez que inclui artigos publicados depois do período utilizado para estudo nesta dissertação.

Ao todo são 419 artigos que abordam assuntos diversos, como inflação, partidos políticos, papa Paulo VI, política internacional, democracia, educação, comunismo, encíclicas da Igreja, operários, golpe militar e suas arbitrariedades, reforma agrária, esquerda e direita, cultura, voto dos analfabetos, Estado Novo, entre outros.

Tristão vai exercer sua atividade jornalística de forma que transforma esse espaço semanal em sua tribuna. É através de seus textos, analisa Marcelo Timotheo da Costa, que constrói a imagem de “católico inserido nos tempos modernos”. Nos artigos, Tristão comporta-se como um observador atento a acontecimentos diversos. Suas abordagens oscilam entre o universal e o local, passando por temas políticos, econômicos, culturais e de comportamento.4 Para José Oscar Beozzo, o seu espaço na imprensa brasileira funcionou

2REIS FILHO, Daniel Aarão. Intelectuais, História e Política (séculos XIX e XX). Rio de Janeiro: 7 Letras,

2000, pág. 13

3 Id.

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como uma “tribuna de diálogo”, onde ele apresentava seus ideais5. Era ali que ele dialogava com a sociedade, mostrando-se indignado, contente ou descontente, satisfeito ou decepcionado, e denunciando o que lhe parecia absurdo.

Dos temas mais amplos de discussão, três são fundamentais em todo o acervo, como mencionado acima – política, pano de fundo para todas as discussões, Igreja e sociedade. Dentro destes, foram selecionados subtemas que mais freqüentam as páginas escritas por Alceu. Em política, os subtemas são Revolução de 1964-Revolução de 1930, incluídas aí as críticas ao regime militar, comunismo/fascismo e a defesa de eleições diretas. O tema sociedade terá como subtemas estudantes, cultura e operários. O pontificado de Paulo VI, o Concílio Vaticano II e a repressão do regime militar contra a Igreja são as variações do tema Igreja.

Do ponto de vista da política, Amoroso Lima passa por figuras como (não sendo estas, necessariamente, enfatizadas nesta dissertação):

- Miguel Arrais: sua posse como governador de Pernambuco, considerado por ele um valor novo na política nacional, que ganhou as eleições sem compromissos políticos ou econômicos e, portanto, poderia exigir de todos os sacrifícios necessários a uma obra coletiva;

- Hélio Fernandes: ao falar de Hélio Fernandes, já começa a denunciar repressões. O autor defende o fato de o jornalista não querer denunciar sua fonte de informação ao mostrar documentos secretos das Forças Armadas: “Sua prisão só veio agravar um processo de radicalização de nossa política, que representa igualmente um dos rumos errados que vão lentamente ameaçando a nossa estabilidade democrática.” A coluna também protestava contra a prisão do padre Alípio e o interrogatório de Dom Jerônimo, em Salvador

- Carlos Lacerda: desmente Carlos Lacerda, que disse em Lisboa que Alceu, 30 anos atrás, havia recomendado à juventude brasileira que aderisse ao fascismo. “Não escreveria hoje exatamente o que escrevia há trinta anos passados, mas já então não confundia integralismo com fascismo, vendo apenas um e outro ‘inspirados no mesmo espírito’. Rejeitava três atitudes dos católicos em face do integralismo: a

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condenação, a exaltação, a expectativa.” (...) “A simpatia que nessa época, há trinta anos passados, nunca escondi pelo integralismo ou mesmo pelo fascismo era uma conseqüência da minha fobia pelo espírito burguês e a minha ainda imperfeita assimilação do verdadeiro espírito do cristianismo autêntico.”

- Sobral Pinto: para Alceu, figura inconfundível em nosso cenário nacional, religioso, jurídico e político.

- Dom Helder Câmara: Alceu chama dom Helder de novo dom Vital e novo Júlio Maria (Júlio César de Morais Carneiro, considerado um inovador na Igreja). Segundo Tristão, dom Helder está desligando a Igreja de suas amarras com a alta burguesia, tentando desligar a Igreja de seus laços classistas.

Ainda dentro do tema política, Tristão trata da discussão, pelo Parlamento, do projeto de estado de sítio. Alceu diz que, independente do resultado, a opinião pública estava radicalmente contrária à sua proclamação, mesmo temporária. Ele se coloca radicalmente contra o estado de sítio, dizendo não acreditar que, se fosse aprovado, seria moderado e sem censuras à imprensa. “Creio que o Congresso, por grande maioria, negará o sítio e com isso reconquistará uma popularidade que tem perdido.”

Em alguns artigos, Alceu critica os boatos sobre a chegada do golpe (isso em janeiro de 1964):

Esses cupins de nossa vida cívica murmuram baixinho, em nossos ouvidos, cada amanhã, que é para já o golpe. Que o presidente esgotou a paciência. Que desta vez vem mesmo. Que não haverá eleições para 1965. Que o contragolpe também está preparado. Que a demissão de um grande ministro foi a gota de água. E com ela se rejubilaram as forças da Oposição, pois assim mais facilmente vai acabar a

indecisão. (...) Venha de onde vier o golpe, devemos repeli-lo. Mas saibamos

também ter consciência de que, se a detestável política oposicionista do ‘quanto pior melhor’ prosseguir, se as forças da Direita ou do Centro, reacionárias ou

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então a vitória os boatos será também a dos pescadores de águas turvas e a leucemia social fará do Brasil, ao menos por certo tempo, qualquer coisa de irreconhecível.6

A deflagração do golpe passa a ser comentada por Alceu de forma sistemática. Em “30 de Março”, diz: “Temíamos que ele viesse do próprio Governo, com propósitos

“continuístas”. Acabou vindo, por antecipação, da margem oposta” e fala sobre a tendência inata do humanismo brasileiro às soluções pacíficas das nossas mais graves crises políticas. “Mesmo com os tanques nas ruas... E a marca da nossa gente, da nossa história da nossa civilização.”7

Em muitos de seus artigos, Alceu compara a Revolução de 1964, de tipo direitista, com a de 1930, de tipo esquerdista. Alceu fala em “Novo Estado Novo”.

Para Amoroso Lima, assim foi recebida a Revolução de abril pelas três camadas da sociedade: as classes altas receberam o movimento com uma euforia transbordante e até, de certo modo, indiscreta. As classes médias o consideraram com uma alegria inegável, mas discreta e sobretudo com desafogo e esperança. Quanto ao povo, o que se viu foi o mais absoluto silêncio. Esse “trágico silêncio do povo”, diz Alceu, é o que mais o

impressiona.”Só há um caminho realista e honestamente democrático a seguir: pôr em prática o processo eleitoral. A começar pela eleição do Prefeito de São Paulo...”8

As eleições também foram tema de sua pena por várias vezes. Alceu condenava o fato de o povo brasileiro não poder dizer nas urnas o que queria.

No tema sociedade/política, Alceu passa várias vezes pela defesa dos direitos dos operários. Para eles, ao lado dos estudantes, os operários foram a categoria que mais sofreu com a mão forte dos militares: “(...) o mesmo ódio destruidor que eliminou os sindicatos operários, no campo do trabalho, também deu cabo das associações estudantis, no campo educativo. O operário e o estudante foram os dois espantalhos da Revolução, no triênio inicial (...) Qual foi então a tática do pensamento revolucionário para anular essas forças? Fracioná-las ao extremo.”9

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O comunismo é freqüentemente citado por Tristão. E se antes do golpe o autor declara guerra “preventiva ou defensiva” contra o comunismo, depois de abril de 1964 ele diz ser mais necessária a guerra contra o fascismo dos militares. “Julgar todo o mundo ‘comunista’, simplesmente porque não é conservador ou liberal é não julgar ninguém comunista”, diz ele em “Métodos de luta”, artigo de abril de 1964. Ele continua o seu raciocínio sobre comunismo, aqui relacionando também à Igreja, em “O Mel das Pedras”:

A concepção “burguesa” ou “protecionista” da Igreja, como um baluarte contra o comunismo ou como uma defesa patrimonial, acaba de ser vivamente revigorada entre nós. Enquanto não se falou em “reformas de base” ou em uma distribuição mais eqüitativa da propriedade, os terços ficaram tranqüilos entre os dedos das almas piedosas. Mas bastou que se acenasse para o fantasma do comunismo ou a ameaça aos bens materiais, para que se levantassem as pedras das calçadas...10

Os estudantes também freqüentam boa parte dos textos de Tristão. Em “Peleguismo estudantil” ele resume a situação do estudante brasileiro no final de 1964:

Um dos grupos sociais que mais tem se projetado na vida pública é o estudantil. Os moços e os adolescentes só foram considerados gente grande há pouco tempo e, como é natural, podem se exceder ou se mostrarem canhestros no manejo dessa nova arma. O nosso paternalismo governamental pretende extinguir as associações de estudantes, impedir ou adiar as eleições nos diretórios acadêmicos; isolar os estudantes em seus guetos ou dirigi-los de cima. Pretendem criar o peleguismo estudantil, depois do peleguismo operário?11

Em relação à Igreja, Paulo VI é o foco principal de muitos de seus textos. O Concílio Vaticano II e a figura de Paulo VI – para o escritor, o evento católico promoveria “o diálogo com o mundo moderno”12 - estão nos artigos, assim como o pensamento da Igreja em relação ao socialismo e comunismo. Alceu elogia as palavras de Paulo VI para o

10 Jornal do Brasil. O mel das pedras, abril de 1964 11 Jornal do Brasil, Peleguismo estudantil, outubro de 1964

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Brasil. Entre elas, “se quisermos evitar o perigo e a triste experiência do comunismo”13, não serão as represálias sangrentas nem os métodos policiais de reação que nos podem valer e sim as reformas básicas, econômicas, políticas, sociais em geral.

João XXIII e suas encíclicas sociais também são analisados por Alceu, junto com a viagem de Paulo VI à Terra Santa, como um “rumo à Nova Cristandade”14.

Ainda no cenário da Igreja, Alceu comenta as diferenças entre religiosos e políticos. Para Alceu, o choque entre autoridades militares e autoridades eclesiásticas (...) “é o

sintoma mais sadio da vitalidade da Igreja no Brasil e de sua participação efetiva em nossa evolução histórica”15.

Além de utilizar como fonte os artigos publicados por Alceu Amoroso Lima nos jornais, esta pesquisa se utiliza da metodologia de histór ia oral e das cartas trocadas entre Tristão de Athayde e a filha Lia – madre Maria Teresa, além de entrevistas concedidas por ele e depois publicadas em livros, como Memórias Improvisadas, de Cláudio Medeiros Lima, e Memorando dos 90, de Francisco de Assis Barbosa. A leitura dessa correspondência está associada à pesquisa em artigos e livros e às entrevistas com pessoas que conviveram com o educador, conforme relação abaixo, como Alberto Dines, Dom Paulo Evaristo Arns, Frei Betto, Luiz Alberto Gómez de Souza, Maria Helena Arrochellas e Wilson Figueiredo. Os entrevistados conviveram com Tristão de Athayde ou acompanharam sua trajetória durante o período estudado.

Recorrer aos artigos e especificamente às cartas que trocava com a filha como método comparativo para tratar da trajetória de Alceu é um exercício riquíssimo. Isso porque, se em períodos muito anteriores, quando se correspondia com nomes como Jacques Maritain, Gilbert Keith Chesterton ou Jackson de Figueiredo, Alceu debatia “a superação das coisas efêmeras passageiras, fluidas, pelas coisas estáveis, sólidas, permanentes, sem prejuízos das outras”16, o que escrevia para Madre Maria Teresa era muito mais de cunho pessoal, até mesmo no tipo de palavra que usava. Era uma espécie de Alceu despido de qualquer pudor no que dizia respeito ao que estava acontecendo no país, do ponto de vista

13 Jornal do Brasil, A voz do alto, maio de 1964

14 Jornal do Brasil, Rumo à nova cristandade, janeiro de 1964

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social, político e também econômico. E em relação à Igreja isso era muito mais claro. São passagens que chegam a chocar, se pensarmos que o homem que aparecia publicamente no Jornal do Brasil era muito mais comedido17. Isso pode ser óbvio, uma vez que um intelectual da dimensão de Alceu Amoroso Lima teria mesmo que cuidar do que pregava em seus artigos. No entanto, como estamos nos utilizando dessa outra fonte – a correspondência com uma confessora – para tentar analisar a trajetória deste “guru católico”, torna -se importante mostrar o quão diferente e difícil é tentar traçar um paralelo entre essas duas fontes, somando-se a isso o fato de que, como escrito abaixo, as fontes orais guardam uma memória muito cristalizada acerca de Amoroso Lima, como um contraponto progressista da Igreja carioca.

A correspondência estudada foi publicada no livro Cartas do Pai – De Alceu Amoroso Lima para sua filha madre Maria Teresa. A publicação abrange as cartas trocadas entre Alceu e a filha entre 1958 e 1968. Amoroso Lima escrevia para ela rigorosamente todos os dias, ainda que fosse quase um bilhete, ou cartas de várias e várias páginas. Madre Maria Teresa funcionava para Alceu como uma confessora. É essa a idéia que Marcelo Timotheo da Costa desenvolve em seu trabalho “Um itinerário no Século” – que os textos de Alceu Amoroso Lima para sua filha Madre Teresa funcionavam como “exercícios confessionais”.

Em conversa com Dom Paulo Evaristo Arns, Alceu disse que escrever para a filha religiosa era um de seus momentos de maior prazer. “Pode ser meia noite, mas escrever para ela me descansa”18. Na mesma ocasião, Tristão mostrou a dom Paulo vários exemplares encadernados com as cartas que escrevia para ela. Posteriormente, o cardeal pediu à Maria Teresa que publicasse as cartas, por dois motivos: primeiro, porque só ela conseguia ler a letra de Alceu, deveras difícil; depois, porque a filha saberia escolher aquilo que interessaria ao público e o que era só de interesse pessoal dela.

17 Alguns exemplos dessas passagens são as cartas de 13 de maio de 1964, quando chama Gustavo Corção de

“jaguatirica das Laranjeiras”, e de 25 de março de 1964, ao falar de dom Jaime Câmara, cardeal do Rio de Janeiro: “Pois o que horripila nessa atitude do cardeal Câmara e dos bispos reacionários, aprovando e insuflando os comícios direitistas e proprietistas, é separar as elites das massas, colocando a religião com aquelas e o ateísmo com estas.”

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Nesse sentido, para estudar a atividade epistolar de Tristão de Athayde é importante recorrer à obra Escrita de si. Escrita da História, organizada por Ângela de Castro Gomes. A autora trata da “escrita de si”, gênero no qual se insere a correspondência, ao lado de biografias, autobiografias, entrevistas de história de vida ou memórias, e mostra as nuances dessa “produção do eu”, levando em conta como, por exemplo, esse material deve ser tratado como fonte histórica. Em seus escritos encontramos idéias que também sugerem a idéia de que as cartas para Alceu serviam como desabafo: “A escrita de si e também a escrita epistolar podem ser (e são com freqüência) entendidas como um ato terapêutico, catártico, para quem escreve e para quem lê. O ato de escrever para si e para os outros atenua as angústias da solidão, desempenhando o papel de um companheiro, ao qual quem escreve se expõe, dando uma “prova” de sinceridade.”19

Vejamos o que Ângela diz sobre esse material que conta com uma visão tão subjetiva de um determinado indivíduo:

(...) o tema da verdade como sinceridade, como o ponto de vista e de vivência do autor do documento, foi situado e discutido de maneira contundente. Isso porque a escrita de si assume a subjetividade de seu autor como dimensão integrante de sua linguagem, construindo sobre ela a “sua” verdade. Ou seja, toda essa documentação de ‘produção do eu’ é entendida como marcada pela busca de um ‘efeito de

verdade’ – como a literatura tem designado -, que se exprime pela primeira pessoa do singular e que traduz a intenção de revelar dimensões ‘íntimas e profundas’ do indivíduo que assume sua autoria. Um tipo de texto em que a narrativa se faz de forma introspectiva, de maneira que nessa subjetividade se possa assentar sua autoridade, sua legitimidade como ‘prova’. Assim, a autenticidade da escrita de si torna-se inseparável de sua sinceridade e de sua singularidade.

Ora, uma documentação construída nessas bases exige deslocamentos nos

procedimentos de crítica às fontes históricas, no que envolve questões relativas ao ‘erro’ ou à ‘mentira’, digamos assim, do texto sob exame. Nesses casos, está descartada a priori qualquer possibilidade de se saber “o que realmente aconteceu” (a verdade dos fatos), pois não é essa a perspectiva do registro feito. O que passa a

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importar para o historiador é exatamente a ótica assumida pelo registro e como seu autor a expressa. Isto é, o documento não trata de ‘dizer o que houve’, mas de dizer o que o autor diz que viu, sentiu e experimentou, retrospectivamente, em relação a um acontecimento. Um tipo de discurso que produz uma espécie de ‘excesso de sentido do real pelo vivido’, pelos detalhes que pode registrar, pelos assuntos que pode revelar e pela linguagem intimista que mobiliza. Algo que pode enfeitiçar o leitor/pesquisador pelo sentimento de veracidade que lhe é constitutivo, e em face do qual certas reflexões se impõem. Nesse sentido, o trabalho de crítica exigido por essa documentação não é maior ou menor do que o necessário com qualquer outra, mas precisa levar em conta suas propriedades, para que o exercício de análise seja efetivamente produtivo.20

Reconhecendo essas características na escrita de si, diz Ângela de Castro Gomes, historiadores têm se preocupado com sua utilização, o que resultou em algumas

advertências. Entre elas está a que diz respeito à “ilusão biográfica”,

isto é, da crítica que destaca a ingenuidade de se supor a existência de ‘um eu’ coerente e contínuo, que se revelaria nesse tipo de escrita, exatamente pelo ‘efeito de verdade’ que ela é capaz de produzir. A sinceridade expressa na narrativa, que pretende traduzir como que uma essência do sujeito que escreve, obscureceria a fragmentação, a incoerência e a incompletude do indivíduo moderno. O risco para o pesquisador que se deixa levar por esse feitiço das fontes pode ser trágico, na

medida em que seu trabalho é o inverso que é próprio dessas fontes: a verdade como sinceridade o faria acreditar no que diz a fonte como se ela fosse uma expressão do que ‘verdadeiramente aconteceu’, como se fosse a verdade dos fatos, o que

evidentemente não existe em nenhum tipo de documento.21

Outro aspecto importante e que pode ser aplicado à atividade epistolar de Alceu com a filha – observado por Ângela em sua obra – diz respeito a quem se destina a carta, no

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caso, a pessoa que vai arquivar e manter essa memória. Madre Maria Teresa tinha um vínculo privilegiado, por ser filha, mas não só por isso: era a filha que Alceu escolheu como interlocutora. Podemos desenvolver a hipótese de que foi ela a escolhida por tratar-se de uma religiosa, portanto, alguém que, pelo menos no que dizia respeito à Igreja, teria condições de compreender melhor as reentrâncias de uma instituição tão complexa.

A escrita epistolar é, portanto, uma prática eminentemente relacional e, no caso das cartas pessoais, um espaço de sociabilidade privilegiado para o estreitamento (ou o rompimento) de vínculos entre indivíduos e grupos. Isso ocorre em sentido duplo, tanto porque se confia ao “outro” uma série de informações e sentimentos íntimos, quanto porque cabe a quem lê, e não a quem escreve (o autor/editor), a decisão de preservar o registro. A idéia de pacto epistolar segue essa lógica, pois envolve receber, ler, responder e guardar cartas.

A metodologia de história oral é importante para a abordagem do tema tratado neste trabalho pois as entrevistas “com pessoas que participaram de, ou testemunharam, acontecimentos, conjunturas, visões de mundo”22 não apenas trazem as impressões e a memória do entrevistado a respeito do objeto estudado ou do contexto histórico no qual o personagem se insere, mas também porque, muitas vezes, oferecem elementos para a pesquisa que não estão disponíveis em bibliografia.

Além disso, existem detalhes nas narrativas que também não são encontrados em documentos, ou mesmo, como analisa o Manual de História Oral, “recuos e evocações paralelas, repetições, desvios e interrupções, que lhe conferem um potencial de análise em grande parte diverso daquele documento escrito: a análise da entre vista tal como efetivamente transcorreu permite que se apreendam os significados não diretamente ou intencionalmente expressos; permite que o pesquisador se pergunte por que a questão x evocou y ao entrevistado; por que, ao falar de z recuou para a; por que não desenvolveu a questão c assim como fez em b e assim por diante.”23

22 ALBERTI, Verena. Manual de História Oral. 2a edição revista e atualizada. Rio de Janeiro: Editora FGV,

2004, p. 18

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O texto “Histórias dentro da história”, de Verena Alberti, analisa as possibilidades de pesquisa pela história oral e mostra que um dos principais atributos desta é possibilitar o estudo das experiências passadas de pessoas ou grupos. Isto “torna possível questionar interpretações generalizantes de determinados acontecimentos e conjunturas”24.

No entanto, no caso de Alceu Amoroso Lima, há uma memória construída que o trata como monumento católico. Trata-se de uma tarefa dificílima encontrar pessoas que tenham um depoimento que contradiga, ou que analise de forma imparcial ao menos, a trajetória do pensador. Isso pode ser um sinal de que a memória que se construiu a respeito de Alceu diz respeito à essa que chamaremos neste trabalho de “terceira fase” de sua vida, aquela na qual ele se utiliza de sua tribuna para defender idéias progressistas. É essa a imagem que se guarda de Alceu – a de um homem do catolicismo renovado E é assim que ele ficará para a história da Igreja.

Foram realizadas oito entrevistas. A relação de entrevistados, por ordem alfabética, é a que segue:

Alberto Dines – Jornalista desde 1952, esteve por 12 anos à frente da redação do Jornal do Brasil, desde 1962, portanto foi o editor que acompanhou a trajetória de Alceu Amoroso Lima enquanto articulista do diário ao longo do período abordado nesta pesquisa (1964-1968). Em 1968, ao ser decretado o Ato Institucional 5, Dines afrontou a censura, preparando uma edição com muitas ironias e linguagens figuradas sobre a situação política no país.25

Dom Paulo Evaristo Arns – Cardeal e arcebispo emérito de São Paulo, conheceu Alceu nos anos 60 e intensificou seus contatos com o jornalista no início dos anos 70, quando assumiu a liderança da Igreja de São Paulo, reconhecidamente mais progressista que o clero do Rio de Janeiro. Alceu encontrou em Dom Paulo um interlocutor para questões como a defesa de presos políticos.

24 ALBERTI, Verena. “Histórias dentro da história”. In: PINSKY, Carla (org.). Fontes históricas. São Paulo:

Contexto, 2005, p.165

25 Observatório da Imprensa. Alberto Dines: O trabalho no JB – a morte de Allende. Disponível em:

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Frei Betto - Frei dominicano, encontrou em Alceu um mestre no período em que, ao lado de outros amigos frades, esteve preso pela ditadura militar. Trocou extensa correspondência com Alceu Amoroso Lima. Trocava correspondências com Alceu Amoroso Lima durante o período de regime militar.

Luiz Alberto Gómez de Souza – Sociólogo, líder estudantil de destaque, atuou na Ação Católica, foi um dos fundadores da Ação Popular (AP), o chamado Grupão, junto com nomes como Herbert de Souza, o Betinho. Integrou a equipe que assessorava dom Helder Câmara no Brasil durante o Concílio Vaticano II.

Maria Helena Arrochellas – Teóloga e diretora do Centro Alceu Amoroso Lima para a Liberdade, em Petrópolis.

Wilson Figueiredo – Jornalista do Jornal do Brasil durante 45 anos, inclusive no período da administração do Conde e da Condessa Pereira Carneiro. Chegou a ser vice -presidente do jornal.

Por fim, segue a forma como foi dividida esta dissertação, destacando que foram incluídos nos anexos apenas as cartas e os artigos dos quais foram extraídos trechos para o texto, além de uma cronologia de Alceu Amoroso Lima.

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A idéia é mostrar como era seu posicionamento político em relação aos fatos que estavam ocorrendo no país de João Goulart – uma gangorra política, caracterizada pela polarização esquerdista por parte do governo e direitista por parte da oposição, que, para ele, foi o que provocou o golpe de 30 de março; como ele se articulava dentro da Igreja e qual era a imagem pública que alimentava por meio de seus artigos semanais nessa época. Alceu não está aposentado, ao contrário do que considerava o jornalista em suas cartas.

O Capítulo II traz a publicação do artigo “Terrorismo Cultural” e os seus efeitos para Alceu e a opinião pública. Este é considerado um marco entre seus artigos no período que abrange esta pesquisa – e talvez em toda sua trajetória pós-1964 –, já que inaugura uma fase que consolida Alceu como o paladino da Igreja Católica no Rio de Janeiro no

momento de arbitrariedade do regime militar.

Aqui, o objetivo é estudar a sua postura a partir desse artigo e/ou marco e de que forma acontece o processo de intensificação de sua postura contra a ditadura, levando em conta as reações no âmbito da política e da Igreja.

A Parte II é intitulada “Radicalização” e trata de como vai se desenvolvendo para Alceu essa postura contra o regime, estando ele já posicionado contra as arbitrariedades. Fala de seu processo de radicalização diante do contexto político. No Capítulo III é feita uma análise da evolução de Alceu Amoroso Lima como articulista político e católico nesta fase de posicionamento e radicalização. Mostrar como foram suas reações públicas (através dos artigos) e particulares (pela troca de cartas com a filha) em momentos desde a

deflagração do golpe até a instauração do AI-5. O objetivo aqui é mostrar a consolidação de Alceu como um progressista a o longo dos anos compreendidos entre 1964 e 1968.

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PARTE I

Capítulo I Três vidas

Primeira e segunda fases

“Do meu canto, do meu observatório de aposentado, em todos os sentidos, de livre atirador, de peregrino e mais nada, sinto perfeitamente que o impulso dado por João XXIII ainda não será neste século que se incorporará à Igreja.”26

A observação de Alceu Amoroso Lima em carta escrita ao jovem estudante Luiz Alberto Gómez de Souza, no dia 8 de março de 1964, parecia desprovida da consciência de que o seu papel como crítico social iniciava ali uma etapa jamais vista anteriormente em sua trajetória. O escritor respondia, naquele dia, a uma carta de Luiz Alberto sobre a dor de perder amigos. No caso, o afastamento entre Alceu e o jornalista Gustavo Corção – um comunista convertido em conservador e que, de amigo de Alceu, tornou-se um de seus principais desafetos, especialmente, a partir do momento em que Alceu passa a condenar a ditadura militar publicamente; Corção passou a defini-lo como um hábil e talentoso comunista infiltrado na vida religiosa27. O escritor chegou a dizer, em 1956, numa entrevista a Gómez de Souza que entrou para os anais da JUC (Juventude Universitária Católica), que pouca coisa de sua obra ficaria para a história, talvez a crítica literária e um ou outro texto sobre sociologia e política.

Alceu, ou Tristão de Athayde28, pseudônimo adotado por ele a partir de 17 de junho de 1919, quando iniciou sua atividade de crítico literário em O Jornal, não esteve aposentado em nenhum momento no período que compreende às vésperas da instauração do regime militar até a sua morte, em 14 de agosto de 1983. Apesar disso, cobrava de si

26 SOUZA, Luiz Alberto Gómez de. “Alceu Amoroso Lima: Entre a razão e o mistério”. In: BINGEMER,

Maria Clara Lucchetti. Exemplaridade ética e santidade. São Paulo: LOYOLA, 1997

27 Quando eu era integralista. Revista Manchete, 12 de outubro de 1968. In: BARBOSA, Francisco de Assis.

Alceu Amoroso Lima (Tristão de Athayde) – Memorando dos 90. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984

28 O pseudônimo Tristão de Athayde será usado neste trabalho para nos referirmos apenas à atuação de Alceu

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mesmo mais pulso firme. O líder católico, que escrevia diariamente à filha Lia (madre Maria Teresa), reclamava da pequena capacidade de influência, dizia ele, que os seus artigos tinham no cenário político e social de seu país naqueles primeiros anos da década de 1960, como mostra em carta escrita à madre Maria Teresa no dia 1 de abril de 1964, ainda com as impressões impactantes a respeito do golpe militar: “Voltamos ao clima de 22 a 45 ou mesmo 55, por culpa... de mim mesmo antes de tudo, pois se tivesse minha voz o mínimo de ressonância, nem a oposição nem o governo teriam chegado ao ponto a que chegaram.”29

Estudar a trajetória de vida de Amoroso Lima é estudar também a não linearidade presente na vida das pessoas. É analisar, como bem escreveu Allain Robbe-Grillet, ficcionista do chamado roman nouveau, como o real é descontínuo, “formado de elementos justapostos sem razão, todos eles únicos e tanto mais difíceis de serem apreendidos porque surgem de modo incessantemente imprevisto, fora de propósito, aleatório”.30

Esta observação é importante para olharmos o conjunto de acontecimentos e mudanças ocorridos na vida de Alceu. Para Gómez de Souza, se dividíssemos a trajetória amorosiana em fases, a que se iniciou em 1964 seria a terceira delas. A primeira corresponde a de Alceu jovem, agnóstico e crítico literário. A partir de 1928 – a segunda fase -, um novo homem nasce diante de sua conversão ao catolicismo, provocada por nove anos – de 1919 a 1928 - de correspondência trocada com o reacionário pensador católico Jackson de Figueiredo, que foi influenciado pela visão conservadora dos católicos franceses Joseph De Maistre e Charles Maurras31.

Alceu tornou-se, nessa segunda fase, o substituto de Jackson (que morrera afogado em São Conrado, no Rio de Janeiro) no Centro Dom Vital e na revista A Ordem, ambos com a marca forte do conservadorismo de seu antecessor; secretário-geral da Liga Eleitoral Católica, em 1933; presidente da Ação Católica Brasileira, em 1935; e inicia seus escritos sobre Pierre Teilhard de Chardin, padre jesuíta e paleontólogo francês, cujos estudos só foram publicados após a sua morte, em 1955, uma vez que suas idéias evolucionistas,

29 LIMA, 2003

30 Apud BOURDIEU, Pierre. “Ilusão biográfica”. In: FERREIRA; AMADO, Janaína (coord.). Usos & abusos

da história oral. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1996

31 Apud SOUZA, 1984. In: COSTA. J. Cruz. Contribuição à história das idéias no Brasil. Rio de Janeiro:

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combinando “reflexão teológica e ciências físicas”32, não eram bem vistas no meio eclesiástico – é atribuído a Alceu o primeiro registro sobre a obra de Chardin no Brasil33.

Até aqui quem aparece é o Alceu oficial da Igreja, um homem conservador e que defendia os interesses católicos. É aí também que ele ingressa na Academia Brasileira de Letras, cuja candidatura acontece a pedido de dom Sebastião Leme, cardeal do Rio de Janeiro, que considerava importante a Igreja ter uma cadeira na instituição. Alceu candidatou-se contrariado, assim como parece ter sido também a sua entrada no Centro Dom Vital. Anos depois afirmaria: “E nunca fui homem de grupo. Colocaram-me à força dentro do Centro Dom Vital e em todos os grupos em que tenho vivido, nunca os escolhi, nem mesmo a Academia, onde nunca teria entrado se não fosse a pressão de Dom Leme...”34 Em 1936, no livro Indicações Políticas, Alceu chegou a recomendar aos católicos que quisessem fazer política para entrarem para a Ação Integralista Brasileira (AIB), arrependendo-se depois. “Naquele momento ele achava que era o melhor lugar para um cristão, diante da polarização burguesia X antiburguesia.”35 A Ação Integralista Brasileira é um movimento político que teve início no Brasil durante a década de 30 e era considerado fascista36.

O escritor dizia que sua posição política nos anos 30 correspondia às tendências à direita da Igreja. A criação da LEC – instrumento da Igreja que recomendava a eleitores candidatos que defendessem as causas católicas e que, em 1934, influenciou nas eleições da Assembléia Constituinte, apoiando os candidatos favoráveis às suas reivindicações, como capelães militares nas Forças Armadas e indissolubilidade matrimonial37 –, para a qual foi nomeado secretário-geral, coincide com a criação da AIB.

32 COSTA, 2006

33 JANUÁRIO, Marcelo. A arte da palavra – Alceu Amoroso Lima e o jornalismo como missão civilizadora.

Trabalho apresentado no II Encontro Nacional da Rede Alfredo de Carvalho. Florianópolis, 15 a 17 de abril de 2004

34 SOUZA, Luiz Alberto Gómez de. “Alceu Amoroso Lima: Entre a razão e o mistério”. In: BINGEMER,

Maria Clara Lucchetti. Exemplaridade ética e santidade. São Paulo: LOYOLA, 1997

35 Id.

36 Para saber mais sobre a Ação Integralista ver: ARAÚJO, Ricardo Benzaquen de. Totalitarismo e Revolução

– O integralismo de Plínio Salgado. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1987

37 Apud SOUZA, 1984. In: BEOZZO, J.O. Les mouvements des universitaires catholiques au Brésil. Lovaina:

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Havia entre as posições da LEC e o integralismo coincidências de ponto de vista no tocante a reivindicações sociais e espirituais. Muitas de suas teses pareciam coincidir com as teses do catolicismo social, então objeto particular de minhas preocupações e estudos. Daí a simpatia que despertou nos meios católicos, inclusive em mim. No meu caso particular devo dizer ainda que me agradava particularmente a ênfase que o integralismo emprestava à sua posição anti-burguesa. Tinha eu por essa época publicado o Problema da Burguesia, livro no qual atacava fortemente o espírito burguês e o espírito de mentalidade burguesa, que eu confundia com o liberalismo.38

Essa postura mais reacionária era justificada por ele por meio da influência de Jackson de Figueiredo em sua vida.

Essa minha posição está muito ligada à minha conversão em 1928 e à morte, logo em seguida, de Jackson de Figueiredo. Tendo assumido a presidência do Centro Dom Vital e a direção da revista A Ordem senti-me forçado a seguir uma orientação mais de acordo com a posição de meu antecessor. Em 1928 um acontecimento importante para mim foi a minha aproximação com D. Sebastião Leme. Tive para com D. Leme um sentimento verdadeiramente filial. Através do nosso convívio vim a perceber o espírito extremamente liberal que ele era.39

Quando trata da representação do indivíduo na vida cotidiana, Erving Goffman analisa que determinados fatos, características negativas, por exemplo, da trajetória ficam guardados, pois, se apresentados, podem causar constrangimento. Diz o autor que a vida passada e o curso habitual de determinado ator contêm fatos que “se fossem introduzidos durante a representação “desacreditariam ou, no mínimo, enfraqueceriam as pretensões relativas à sua personalidade, que o ator estava tentando projetar, como parte da definição da situação”40. Esta é uma observação que podemos considerar adequada para Amoroso

38 LIMA, 1973 39 Id.

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Lima no que diz respeito à sua postura diante dos questionamentos sobre essa mudança. Ao falar dela, Alceu dizia que foi já a partir de 1940 que iniciou o processo de revisão de seu comportamento e de suas idéias “em face dos problemas sociais e do destino da criatura humana em sua passagem pela Terra”.41 Essa transformação, na verdade, essa constatação de não coerência do indivíduo foi sempre tema para questões dirigidas a Alceu Amoroso Lima. São diversos os exemplos, mas fiquemos em dois deles, os livros de entrevistas Memórias Improvisadas, de Cláudio Medeiros Lima, e Memorando dos 90, uma coletânea de matérias publicadas. No primeiro, ao ser perguntado sobre a sua anterior postura política e religiosa, o intelectual responde:

Eu creio que a evolução que se processou em meu pensamento foi uma espécie de volta a mim mesmo. Após a minha oscilação à direita, quando ingressei no catolicismo, era natural que viesse mais tarde a corrigi-la. Considero direita e esquerda posições unilaterais e temporárias, posições insuficientes, não ilegítimas, mas insuficientes.

Estou convencido de que tanto o liberalismo econômico como o socialismo econômico contêm verdades intrínsecas, que são ignoradas pela posição antagônica em que se situam. O liberalismo econômico trouxe consigo a liberdade política como o socialismo fez emergir o sentimento da justiça social.

Julgava, há vinte anos passados, que o liberalismo levava fatalmente ao socialismo e o socialismo ao comunismo. Era insensivelmente uma posição marxista de um antimarxista. Como considerava o comunismo contrário à liberdade humana, estava certo de que era preciso reagir ao liberalismo para que não se transformasse em socialismo e o socialismo em comunismo. Hoje em dia, revendo minhas posições, inclusive as posições sociais, considero que o socialismo se desenvolveu em virtude dos erros do liberalismo.

No segundo livro, Alceu elabora a resposta a partir da influência de Jackson de Figueiredo em sua trajetória. Segundo ele, o que o norteava então era a necessidade de

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seguir o pensamento de Jackson de Figueiredo42, um catolicismo mais conservador. Após a morte de Jackson e a partir dos contatos com dom Sebastião Leme, cardeal do Rio de Janeiro, de linha mais liberal, Amoroso Lima parece ampliar suas convicções em direção a uma atuação mais democrática. Isso se intensifica nos anos 1940. Nesta época, o cardeal do Rio de Janeiro passa a ser dom Jaime Câmara, em 1943, um ferrenho conservador que exerce muita pressão e até mesmo censura sobre Alceu, a ponto de este deixar a direção da Ação Católica, importante instrumento de mobilização dos leigos que chegou ao Brasil seguindo o modelo proposto pelo papa Pio XII, como uma tentativa de arregimentar os católicos diante da ameaça do fascismo. A visão de dom Jaime é voltada para as questões internas da Igreja, sem se preocupar com a abertura da instituição à sociedade civil e política43.

Dom Helder Câmara torna-se assistente nacional da Ação Católica em 1947 e fica para a história da entidade como sua principal figura nos anos seguintes. Dom Helder logo depois, em 1952, foi nomeado bispo-auxiliar de dom Jaime Câmara e funda a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), da qual torna-se secretário -geral. O trabalho de dom Helder também serve para dar liga à Ação Católica e CNBB, fazendo com que a segunda tenha tido sua base fundamentada na prática de movimentos leigos. De acordo com Luiz Alberto Gómez de Souza, a CNBB reforça o trabalho da Ação Católica, possibilitando sua sobrevivência material e defendendo-a de pressões de outras estruturas de poder. Em troca, segundo o autor, os movimentos especializados (“movimentos de base”) traziam à CNBB os dados da realidade brasileira e das Igrejas locais, dos quais tomavam conhecimento através das viagens dos membros de sua direção nacional, os chamados “permanentes”. Com a ida de dom Helder para Recife em 1964 e a reorganização da estrutura da CNBB – quando dom Helder vai para Pernambuco, quem assume a secretaria-geral da instituição é dom José Gonçalves, bispo conservador mais preocupado com problemas administrativo-financeiros – para algo mais burocratizado a partir desse mesmo ano que Ação Católica e CNBB passam a se separar44.

42 Jackson de Figueiredo é considerado o organizador do movimento católico leigo. Combateu o comunismo.

Para saber mais: http://www.cpdoc.fgv.br/nav_historia/htm/biografias/ev_bio_jacksondefigueiredo.htm. Acesso em: 30/6/2006

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Amoroso Lima sai da Ação Católica em 1945. Volta a dirigir uma fábrica de tecidos de propriedade de sua família. De 1949 a 1953, vive na Europa e nos Estados Unidos. Nos Estados Unidos fica de 1951 a 1953, assume um cargo na Organização dos Estados Americanos (OEA), o de diretor do Departamento Cultural da União Pan-Americana, e volta “reconciliado” com a América, uma vez que imaginava encontrar um país desumanizado e o que viu foi um cenário de diversidade “- da paisagem à convivência democrática das opiniões políticas – com valores religiosos arraigados, onde a mão do homem se faz onipresente, com a economia passível de humanização, com cultura e educação saudáveis”45. A viagem causou-lhe tamanha surpresa que valeu um livro, “A Realidade Americana”, no qual relata a sua experiência por lá.

Aqui, já não há mais sinais do Alceu influenciado por Jackson de Figueiredo. Ele está liberto do que simbolizava o compromisso com o passado. O homem que aparece aqui segue a linha das novas idéias presentes entre as correntes mais liberais do catolicismo, no sentido de conciliar a doutrina e a realidade política e social do mundo moderno. “A partir daí percebe que a liberdade e a luta pelo aperfeiçoamento das instituições através da implantação da justiça social não são abstrações nem idéias que se choquem com os preceitos cristãos.”46 Após uma longa entrevista com Amoroso Lima, que rende o livro Memórias Improvisadas, Cláudio Medeiros Lima conclui para esta fase que o rompimento de Alceu com o passado aqui está feito e que nada mais o liga ao pensamento tradicionalista. “Eis um ponto capital de diferença entre o Alceu convertido de 1928, que julgava infalíveis os católicos, e o Alceu de hoje, que só julga infalível a Igreja, em matéria de Fé e de costumes.” A linha de pensamento de Alceu vai evoluindo no sentido de criticar uma Igreja que se pretende tornar um império e se distancia das bases. “Confesso que me sinto muito mais longe de muitos católicos que defendem e mesmo pregam a violência, o chicote, a guilhotina, do que de muitos não-católicos ou mesmo anticatólicos que defendem a liberdade, e que sejam contra a imoralidade de invocar a liberdade de Deus quando lhes convém e a autoridade do Estado quando lhes convém.”47

45 MATOS, Maria Lucia Gomes de. O inesquecível Alceu Amoroso Lima – Entrevista com Marcelo

Timotheo da Costa. Amai-vos. Disponível em

http://amaivos.uol.com.br/templates/amaivos/amaivos07/noticia/noticia.asp?cod_noticia=4694&cod_canal=4 1. Acesso em 28 de maio de 2007

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Em 1958, Alceu passa a escrever semanalmente para o Jornal do Brasil e a Folha de S. Paulo, ao mesmo tempo em que a Igreja também é marcada pelo Concílio Vaticano, que começa em 1962 e termina em 1965, e é um dos mais representativos acontecimentos católicos do século XX, já que, a partir dele, a instituição começa a se democratizar, adquire uma estrutura menos centralizada, mostrando-se mais comprometida com setores marginalizados da sociedade. A partir desse quadro inicia-se o que será a terceira fase de Alceu. E é nela que focaremos esta pesquisa, buscando analisar as circunstâncias históricas e a influência do intelectual, conforme Bobbio nos mostra ao falar do poder de escritores na Itália e na União Soviética.

Enquanto na Itália, em um período de política não só sem ideais mas também sem projetos, do qual talvez estejamos saindo, os intelectuais contavam cada vez menos e suas polêmicas apareciam e desapareciam sem deixar marcas e sem que os homens do poder sequer se preocupassem minimamente com elas, em um grande país como a União Soviética, dominado por uma impiedosa e obtusa ditadura, alguns poucos escritores, poetas e cientistas, com seus textos de protesto, obtiveram vasta ressonância em todo o mundo e tiveram enorme importância na dissolução de um poder que parecia destinado a durar uma eternidade.48

Terceira fase

Ao iniciar sua atividade jornalística no final dos anos 50, Alceu vive um novo momento, uma época de liberdade, sem posto oficial na Igreja, portanto, livre das amarras da hierarquia da Igreja. É a fase em que joga todo o peso do líder católico que é em sua tribuna e dá um testemunho de liberdade e ousadia, tornando-se uma das primeiras vozes a se ouvir contra os desmandos dos militares, grito este que vai se intensificando até o final de sua vida. Mas, como nos faz pensar Antônio Houaiss, chamar Alceu de pensador católico pode restringir o alcance de sua obra, uma vez que essa classificação pode condicionar o pensador ao âmbito religioso. Para Houaiss, Alceu é homem sem

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especialidade, especialista de idéias gerais, definição que, segundo o autor, o próprio escritor propôs para si mesmo, ainda que com uma ponta de ironia e autocrítica.49 E Tristão vai exercer sua atividade jornalística de forma que transforma esse espaço semanal em sua tribuna. É através de seus textos, analisa Marcelo Timotheo da Costa, que constrói a imagem de “católico inserido nos tempos modernos”. Nos artigos, Tristão comporta-se como um observador atento a acontecimentos diversos. Suas abordagens oscilam entre o universal e o local, passando por temas políticos, econômicos, culturais e de comportamento.50

O início da década de 1960 é marcado por uma Igreja muito mais ligada ao Estado do que ao povo. O leigo e sua participação não eram valorizados. Marcos de Castro, em seu livro “A Igreja e o autoritarismo”, diz mais. Para ele, por quatro séculos, sendo esse período vigente até o século XIX, “o leigo não valeu rigorosamente nada na Igreja em nosso país, nele não tinha qualquer peso específico”51. Com o Concílio Vaticano II isso sofre uma mudança. João XXIII convocou o Concílio e, na primeira sessão, certo de que seus projetos seriam bem recebidos, o papa apresentou cerca de 70 documentos aos bispos e cardeais que ali estavam, mas estes não foram aceitos pelos conciliares, sendo considerados conservadores – a liturgia permanecia em latim, sem que muitas pessoas entendessem o que diziam, os padres continuariam recebendo rigorosa formação e seria mantido o distanciamento entre o clero e o povo, além da estrutura piramidal da Igreja - e causando grande tumulto no Vaticano e em todo o mundo, já que a imprensa nacional e internacional acompanhava a reunião. O Concílio tornou-se um acontecimento turbulento e demorado: durou três anos. O Vaticano II, então, voltou à estaca zero e, só em 1965, terminou, com 16 resoluções que tornavam a Igreja mais democrática52.

As mudanças políticas no Brasil nesses primeiros meses de 1964 acontecem enquanto também ocorrem mudanças na Igreja e favorecem o elo entre autoridades eclesiásticas e o poder estabelecido. A Igreja, como dito acima, estava ligada ao Estado. Como argumenta Luiz Alberto Goméz de Souza, o novo secretário-geral da CNBB, dom

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José Gonçalves, não desempenha um papel político como dom Helder o fazia e a Igreja se isola. No entanto, alguns integrantes dos sub-secretariados da CNBB fazem uma reorganização interna que vai ter como resultado o Plano de Pastoral de Conjunto, aprovado pelos bispos de Roma. Isso faz com que ela passe a ter uma estrutura de acordo com método de planejamento experimentado em países da América Latina e organismos internacionais. “Essa organização mais articulada, em torno de seis ‘linhas de pastoral’, vai dar à CNBB uma consistência que, com riscos a longo prazo de burocratização, nos anos difíceis da década seguinte, e já com outra direção mais ousada e aberta, poderá enfrentar os embates de um aparelho de Estado autoritário e repressivo.”53

A política é pano de fundo para os artigos de Tristão de Athayde no Jornal do Brasil. Já no início de 1963, Alceu falava das novas esperanças que chegavam junto com a posse de Miguel Arrais. Para o jornalista, Arrais significava um novo valor na política nacional brasileira – era um nordestino que falava a linguagem social, condenava os sectarismos e havia ganho as eleições sem compromissos políticos ou econômicos. Alceu recebe críticas por ter aplaudido o discurso de posse de Arrais, dizendo que ele estaria “fazendo o jogo dos comunistas”. Em artigo intitulado “Seráficos”, o escritor discorre sobre os que, em sua opinião, estão realmente “fazendo o jogo dos comunistas”. Se gundo ele, estes são os que estavam favoráveis a situações que davam condições para a conquista do poder através de um golpe – queriam pior situação política do Brasil, menos entendimento entre as classes e sofrimento das massas espoliadas.

Em janeiro de 1964, Tristão dedicou alguns artigos para tratar (e criticar) os boatos sobre a chegada de um golpe.

Esses cupins de nossa vida cívica murmuram baixinho, em nossos ouvidos, cada amanhã, que é para já o golpe. Que o presidente esgotou a paciência. Que des ta vez vem mesmo. Que não haverá eleições para 1965. Que o contragolpe também está preparado. Que a demissão de um grande ministro foi a gota de água. E com ela se rejubilaram as forças da Oposição, pois assim mais facilmente vai acabar a indecisão.

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No mesmo artigo, Amoroso Lima diz que, venha de onde vier, o golpe deveria ser repelido e que era importante o povo brasileiro ter consciência de que a continuidade da política oposicionista do ‘quanto pior melhor’ levaria à vitória dos boatos. Finaliza, lamentando que “a leucemia social fará do Brasil, ao menos por certo tempo, qualquer coisa de irreconhecível”.

Tristão também faz do comunismo um tema freqüente em sua coluna. Sob o título “Convivência ou morte”, também em janeiro de 1964, ele critica a opinião de grande parte dos católicos que prega que a Igreja deve declarar guerra contra o comunismo. Alceu admite que há uma incompatibilidade radical entre a doutrina marxista-leninista e o Cristianismo. Mas que concorda com a postura de João XXIII e Paulo VI, de promover a convivência “de todos os homens e de todos os regimes em vez de incentivar a guerra, o isolamento ou a divisão do mundo em áreas incomunicáveis”.

Nada do que lembrava o Alceu dos anos 40 se vê por aqui, o homem que dizia ser o ceticismo de mocrático algo perigosíssimo que preparava o terreno para a campanha totalitária do Partido Comunista, disposto a todas as dissimulações para alcançar o poder.54 Na década de 1960, Amoroso Lima criticava a maneira como o comunismo estava sendo combatido pelos direitistas. “Julgar todo o mundo ‘comunista’, simplesmente porque não é conservador ou liberal é não julgar ninguém comunista.” E também era contrário ao modo como a Igreja lidava com a questão, dizendo que torcia para que o que chamou de mobilização apostólica realmente levasse a uma cristianização da sociedade, à luta contra as injustiças sociais, contra a miséria e contra o “mundanismo ateu”. Poucos dias depois, Alceu vai confessar à filha, em carta, não temer o comunismo, mas sim o militarismo e o golpismo.

Ao mesmo tempo em que acompanha toda a movimentação político-social dos dias anteriores ao 31 de março, ele ressalta com sua pena que considerava importante distinguir ação religiosa da ação política. Foi assim que fez em “O indiferentismo”, ao comentar um comício político em Belo Horizonte.

A situação política do Brasil no início de 1964 era crítica. O clima no país era tenso antes da deposição de João Goulart. Em discurso preocupado, o presidente falara da aproximação do golpe. Um cheiro de pólvora no ar denunciava a tomada militar de 31 de

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março. Exército, Marinha e Aeronáutica declararam guerra contra Jango. Com a subida dos militares ao poder, o país se abre ao capital estrangeiro, há compressão salarial, concentração de renda nas mãos de pouc os e os sindicatos são silenciados.

A mão forte do regime militar, imposto ao país no dia 31 de março daquele ano, mexeu de forma entranhada com as idéias de Amoroso Lima, a ponto de ele acusar o golpe de ser um retrocesso, “um novo Estado Novo de tipo getulista e paratotalitário, direitista e neofascista”55. No próprio dia 31 de março de 1964 e nos dias seguintes ao golpe, Alceu se mostrava descontente com Jango e temia que o golpe viesse do próprio Governo com propósitos “continuístas”. Já no dia 1º de abril, porém, em carta enviada à filha, Alceu lamentava o rompimento da continuidade civil do governo e a transferência para a área militar. “E por quem? Pelo nosso amigo Magalhães Pinto, que inicia assim a nova era dos golpes e contragolpes”56. No mesmo dia, críticas ao cardeal do Rio de Janeiro, dom Jaime Câmara, não faltaram. “E a esta hora o inefável cardeal do Rio estará aplaudindo o golpe, como acaba de justificar o uso do ‘rosário em cerimônias cívicas’... O cúmulo. Entendam-se – cerimônias cívicas que estejam de acordo com suas próprias preferências políticas. No caso: o mais obscurantista reacionarismo.” 57

Alceu opina, em sua coluna, sobre os motivos que resultaram no movimento que ele definiu “ao mesmo tempo militar e civil de 30 de março”. Daí ter intitulado o artigo de “Polarizações”. Segundo Tristão, o golpe se deu por uma gangorra política, dividida pela polarização esquerdista por parte do governo e direitista por parte da oposição.

Assim como o regime de JG caiu por ter inclinado perigosamente para a esquerda, estamos agora ameaçados de pender para o pólo oposto, na base das tendências extremistas dominantes. Ora, a ação reacionária é tão perigosa e unilateral como a ação revolucionária. O direitismo é tão antidemocrático como o esquerdismo, embora a Esquerda e a Direita devam conviver pacificamente e estimular-se reciprocamente numa democracia autêntica.

55 Id.

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A Marcha da Família com Deus pela Liberdade foi um grande movimento de oposição ao governo de João Goulart, organizado por setores da Igreja Católica e defensores da direita. Reunindo milhares de pessoas, foi um dos estopins da derrubada do presidente. Quando aconteceu a Marcha no Rio de Janeiro, em 2 de abril de 1964, Alceu já reconhecia ser o militarismo o maior problema a ser enfrentado e não o comunismo.

Até abril de 1964, o pensador tinha uma posição política fervorosamente anti-comunista, demonstrada em entrevistas, artigos e livros. A sua coluna no Jornal Brasil a partir de 7 de maio daquele ano representou um marco na vida do militante católico, mas não só para ele. Alceu tornou-se ali, quando publicou o texto “Terrorismo cultural”, uma das primeiras vozes a se ouvir publicamente contra o golpe militar.

Com o artigo “Terrorismo cultural”, Tristão denuncia a existência de uma política cultural caracterizada por atos violentos, a repressão sobre a liberdade de pensamento58. E inaugura em sua vida intelectual uma nova fase, como paladino a favor da liberdade e contra o autoritarismo. No próprio dia em que foi publicado, Alceu previa que o texto ainda o traria muitas amarguras, já que a repercussão foi grande, inclusive com um telefonema do então presidente Castelo Branco, que ligou pessoalmente para o escritor no dia 7 de maio para dizer que este não estava bem informado sobre a infiltração comunista.

O golpe militar de 1964 não encontrou má vontade por parte da Igreja. As Marchas da Família com Deus pela Liberdade foram motivadas pela hierarquia católica, que estava engajada na campanha anticomunista junto com as elites conservadoras. A Comissã o Central da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) lançou um documento no dia 2 de junho que endossava o que estava acontecendo. Era assinado por dom Jaime Câmara, cardeal do Rio de Janeiro, dom Augusto Álvaro da Silva, arcebispo da Bahia, dom Vicente Scherer, arcebispo de Porto Alegre, dom Carlos Carmelo de Vasconcelos Mota, arcebispo de São Paulo, dom José de Medeiros Delgado, arcebispo de São Luís do Maranhão, e dom Fernando Gomes dos Santos, arcebispo de Goiânia. Entre outras coisas, dizia: “Ao rendermos graças a Deus, que atendeu as orações de milhões de brasileiros e nos livrou do perigo comunista, agradecemos aos militares que, com grave risco de suas vidas, se levantaram em nome dos supremos interesses da nação, e gratos somos a quantos concorreram para libertarem-na do abismo iminente.”

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Mas, se por um lado a Igreja era, em grande parte, conservadora, alguns nomes já apareciam como contraponto a essa situação. Como mostrado, Dom Helder Câmara e Alceu Amoroso Lima, este no papel de leigo, eram exemplos disso. São homens que podem ser chamados renovadores da Igreja, que defenderam o primado do bem comum, em que o indivíduo se subordina à coletividade e a coletividade se subordina à pessoa, à liberdade e à justiça, usando palavras do próprio Alceu. Nesse sentido, Amoroso Lima considerava a dissidência entre o catolicismo tradicional e o catolicismo renovado um bem – que ele próprio ajudou a estabelecer59.

As CEBs (Comunidades Eclesiais de Base) surgem nessa época e são tema para vários artigos de Amoroso Lima. As CEBs foram um caminho para que a Igreja chegasse ao povo. “Disto resultou uma intensa meditação dentro da Igreja sobre a religiosidade popular (até então tratada com desprezo e como sinal de ignorância religiosa) e um compromisso cresce nte com as lutas populares.”60 As comunidades eclesiais de base foram nascendo em igrejas locais de várias partes do Brasil e se constituíam em grupos de discussão, com a participação de representantes de setores diferentes da comunidade, sobre os problemas do dia-a-dia em relação a saúde, educação, trabalho, entre outros, além de serem um espaço para celebração da fé. Foram um braço muito importante para que a Igreja chegasse ao povo.

Todo esse quadro passa a ser matéria-prima para o que Tristão passa a dizer em sua coluna. Os efeitos de Terrorismo Cultural e o peso de Alceu como pensador de uma época é o que estudaremos na parte seguinte desta pesquisa.

59 LIMA, 1973

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Capítulo II O livre atirador

“Agora, quando pretendemos ter feito uma ‘revolução democrática’ começam logo utilizando os processos mais antidemocráticos de cassar mandatos, suprimir direitos políticos, demitir juízes e professores, prender estudantes, jornalistas e intelectuais em geral, segundo a tática primária de todas as revoluções que julgam domar pela força o poder das convicções e deter a marcha das idéias.”

A impressão que se tem ao ler Terrorismo Cultural – o artigo que vai inaugurar uma faceta mais intransigente do líder católico, do ponto de vista da crítica social – é que ele esmurrava a mesa enquanto escrevia sua coluna naquele 7 de maio de 1964. Alceu chamou de terrorismo cultural as demissões de Anísio Teixeira – homem considerado por ele de reputação mundial no plano da educação, embora tenha sido também perseguido por Alceu nos anos 30, uma vez que Anísio fazia parte do grupo de professores do movimento Escola Nova, considerado de esquerda; Amoroso Lima estava à frente de uma campanha contra Anísio Teixeira e que teve como resultado a demissão deste da Secretaria de Educação do Distrito Federal em dezembro de 193561 –, Josué de Castro – no plano da sociologia -, Celso Furtado – no plano da economia -, “simplesmente por pensarem de modo diferente da nova ideologia dominante”; as prisões do filósofo Ubaldo Puppi, do líder estudantil Luiz Alberto Goméz de Sousa, “simplesmente porque se considera que seus métodos de alfabetização são ‘subversivos’; as instruções da Polícia para o ‘saneamento’ do país, dando como exemplo a advertência feita à Ação Católica para que seus membros se afastassem de atividades políticas, nas palavras do Estado “atividades incompatíveis não somente com seu programa, como – e é o que interessa ao Governo – com interesses permanentes da Nação e gerais da população”; e o fato de a Igreja no Brasil estar sob a tutela de um Estado autoritário.

Alceu cita o poeta Boris Pasternak, na Rússia Soviética, o deputado socialista Giacomo Mateotti, na Itália fascista, o jurista e escritor Jesús de Galindez, na ditadura do

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dominicano Trujillo, a religiosa Edith Stein, na Alemanha nazis ta, e o poeta Federico García Lorca, na Espanha de Franco, como exemplos de vítimas do terrorismo cultural em outros países. No Brasil, ele finaliza, são os estudantes, jornalistas, professores, sacerdotes, intelectuais e filósofos o alvo. “O direitismo autoritário é tão implacável como o esquerdismo revolucionário”, diz Tristão, emendando com a idéia de que ambos tentam dobrar as consciências e destruir as idéias.

Terrorismo Cultural foi um belo chute a gol, cuja publicação pelo JB deixou Tristão surpreso, dado, de acordo com suas próprias palavras, o reacionarismo do jornal62 - desenvolveremos mais adiante essa posição de Alceu em relação ao jornal e o poder. Se a idéia de Alceu era incomodar o Estado e, ao contrário do que disse em carta dias antes, mostrar a força de sua pena, ele acertou em cheio. Atingiu o presidente Humberto de Alencar Castello Branco, por exemplo, que, apesar de considerar Tristão um panteão ou aquilo que representava a voz do Brasil63, telefonou para o escritor para reclamar. Logo no dia seguinte à sua publicação. Alceu vai contando que quase caiu para trás ao ouvir a voz do presidente. Ficou mudo, achando se tratar de uma brincadeira. Mas era o próprio, dizendo mais ou menos o seguinte, segundo o próprio Alceu:

Há muito tempo que acompanho o que o senhor escreve e tenho aprendido muito com o senhor. É a propósito do seu artigo de ontem ‘Terrorismo cultural’. O senhor talvez não esteja bem informado da profundidade da infiltração comunista... Quanto ao professor Anísio Teixeira, foi exonerado do cargo do Inep, porque está comprometido com um inquérito administrativo e só patrocinava os que pensavam como ele... O diálogo, que o senhor tanto preconiza, e que eu quero manter, não era permitido a essa gente. Eles só queriam era conversa e não diálogo. E conversa entre si, em torno de uma mesa, e com um copo de uísque na mão. Só admitiam subservientes ou???. Eu nunca fui disso64.

62 Carta de Alceu à filha Maria Teresa no dia 8 de maio de 1964 63 Entrevista de Dom Paulo Evaristo Arns à autora

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Amoroso Lima respondeu dizendo que temia que, se perdessem a linha de temperamento e de espírito de justiça, o comunismo poderia se tornar realmente uma conspiração perigosa.

Mas eu me congratulo por este seu telefonema. É a primeira vez, creio eu, que um presidente da República desce de seus cuidados para falar com um simples jornalista. Eu escrevi isso e outras coisas para me queixar do clima de perseguição e de abusos. Ainda há dias escrevi ao ministro Milton Campos, nesse sentido. Ainda hoje leio que um coronel prendeu um padre na Cúria episcopal de Ribeirão Preto por organizar sindicatos cristãos, quando suas organizações se fazem certamente para impedir que os lavradores entrem para os sindicatos comunistas. Aquele aviso a que me refiro no meu artigo é da Guanabara e representa uma intromissão indébita do estado nos domínios da Igreja. Mas, marechal, o senhor me dá, com este telefonema, uma grande honra e uma grande alegria e um grande conforto.

Alceu estava se referindo ao aviso dado aos membros da Ação Católica sobre não se envolverem em atividades políticas. Castello Branco mostrou, em seguida, que conhecia a trajetória de Alceu. Chamou-o de livre-atirador, sem compromisso e elogiou sua obra.

Há muito que o admiro e leio tudo o que senhor escreve. O seu livro Idade, sexo e tempo65 tem sido um breviário de toda a minha família. Li todos os seus ensaios, especialmente o ensaio sobre o Nordeste66, que recomendei aos meus colegas, e o ensaio sobre o dever da riqueza paulista em relação ao Brasil67. Aprecio os homens livres e não gosto de me cercar de aduladores. O senhor é um livre-atirador, sem compromisso. Desejo ter a oportunidade de conversar pessoalmente com o senhor. Na primeira oportunidade, pedirei que venha conversar comigo. Muito obrigado. Até breve.

65 Idade, sexo e tempo: três aspectos da psicologia humana. Rio de Janeiro: José Olympio, 1938

66 Segundo o livro Cartas do Pai, trata-se, provavelmente, de Visão do nordeste (Rio de Janeiro: Agir, 1960) 67 Segundo o livro Cartas do Pai, trata-se, provavelmente, de A segunda revolução industrial (São Paulo:

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