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PERISCóPIO
ENTREVISTA
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A
advogada americana Diane Rosenfeld trabalha nocomba-te à violência contra a mulher desde o início da década de 1990. Tanto tempo depois, ain-da demonstra forte comoção e revolta ao narrar os assassinatos brutais que, se depender dela, vão forçar governos a tomar providências para impedir que novas mortes aconteçam.
Nascida em Chicago, no Estado de Illinois, Diane se formou em Direito pela Universidade de Wisconsin. Logo no iní-cio da carreira, como assistente do procu-rador-geral de Illinois, passou a trabalhar em um departamento dedicado aos Di-reitos da mulher (o primeiro do gênero a ser criado nos Estados Unidos). De lá para cá, tornou-se uma especialista em questões ligadas à violência doméstica.
Professora de Direito da Universi-dade Harvard há dez anos, ela traba-lha para aplicar em diferentes Estados americanos um sistema que tenta evitar abusos às mulheres: o monitoramento eletrônico de seus agressores. O sistema funciona de forma simples: quando um
homem é considerado perigoso ou viola a ordem de proteção que uma mulher possui contra ele, é obrigado pela Jus-tiça a usar um aparelho de GPS que informará as autoridades e a vítima so-bre qualquer tentativa de aproximação. Para Diane, trata-se de uma resposta para as duas questões-chaves: criar con-sequências para o agressor e dar a devida atenção aos sinais de perigo que podem levar a uma escalada da violência.
Em maio, quando ministrou na Di-reito GV um curso sobre perspectivas internacionais relativas à agressão con-tra as mulheres, Diane conversou com
Getulio sobre os benefícios do moni-toramento eletrônico de agressores, sugeriu formas de tornar a lei Maria da Penha mais eficaz e fez um alerta: a violência doméstica é uma emergência mundial e uma forma de terrorismo.
No Brasil, a lei Maria da Penha trata da violência contra a mulher. Como a legis-lação dos EUA trata o problema?
Diane Rosenfeld O grande marco é o Ato da Violência contra a Mulher,
assinado em 1994 pelo presidente Bill Clinton. Foi a primeira vez que o go-verno federal reconheceu que esse tipo de crime é substancialmente diferente da violência comum e que exige abor-dagem específica. O presidente tam-bém criou o Escritório de Violência contra a Mulher para implementar as provisões da lei e garantir que elas fossem cumpridas. Em 1996 fui traba-lhar nesse escritório, ligado ao Depar-tamento de Justiça. Minha tarefa era dar consulta legal sobre como trazer a questão da violência conta a mulher para um nível nacional de discussão e importância. No Brasil, ao assinar a Lei Maria da Penha, o presidente Lula de-veria ter feito o mesmo: criar um escri-tório oficial para garantir a aplicação da lei. Se você apenas aprova o documen-to, mas não oferece o suporte institu-cional necessário para implementá-lo, ele se torna menos eficaz. Junto com os alunos da Direito GV, estou preparan-do uma carta para o presidente Lula e para todos os candidatos à eleição que se aproxima. É um documento com
re-Por Luísa Pécora Foto Gustavo Scatena
ENTREVISTA
DIANE ROSENFELD
Para a professora de harvard, nessa luta é preciso adotar sistemas, como o gPS, que
previnam os perigos que ameaçam a vítima, criando consequências para o agressor
COMBATE A VIOLENCIA
CONTRA A MuLhER:
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ainda ligou para a polícia e disse: fui esfaqueada pelo meu ex-namorado. São histórias realmente horríveis e que passam uma mensagem às mulheres de todo o mundo: não há nada que possa-mos fazer para proteger você.
O que deve ter em mente o juiz respon-sável por determinar o uso do sistema de GPS?
Diane Rosenfeld Ele deve acreditar nas mulheres, reconhecer o perigo da violência doméstica e tratar absoluta-mente todos os casos como potencial-mente letais. O homicídio ligado à vio-lência contra a mulher não acontece de um dia para o outro. Há sinais de perigo que estão sempre ligados à concepção de que as mulheres são propriedade dos homens. Cerca de 80% das mulheres mortas pelos parceiros tentaram acabar com o relacionamento, o que mostra que o assassinato é uma punição por ter ido embora. A violência está ligada a poder e controle. Quando a mulher deixa o agressor, ele sente que perdeu o controle e o tenta retomar por meio da violência. E isso é algo muito contra-ditório, porque quando a mulher é ata-cada pela primeira vez, ela pensa: “Ele me odeia, ele deve querer que eu vá embora”. E aí o homem diz: “Não, eu não te odeio, só quero que você se man-tenha em uma posição subordinada”.
Aqui no Brasil há uma ideia de que a vio-lência doméstica é problema das classes mais pobres, embora estudos mostrem que não há um perfil de vítimas. Como é nos Estados Unidos?
Diane Rosenfeld Acho que em todo o mundo a ideia é de que a violência doméstica acontece em outras comuni-dades, mas não na que fazemos parte, que acontece em outros lares, mas não no nosso. É uma ideia equivocada. Os dados mostram que o problema aconte-ce em todas as classes sociais, religiões e culturas. E é algo que ainda continua sendo mantido em segredo, porque há a concepção de que a casa de um homem é seu castelo, e ninguém pode dizer a ele o que fazer dentro de seu castelo.
Há algum crescimento no número de denúncias?
Diane Rosenfeld Quando uma mulher é morta e o caso ganha muita
repercussão, outras mulheres vítimas de abuso pensam que aquilo pode acontecer com elas. Nesse momento há um aumento nas denúncias. Mas, em geral, acho que tanto os homens quanto as mulheres não querem levar a violência doméstica a sério porque isso demandaria que tomassem algu-ma atitude sobre o assunto. Então eles desconsideram e apenas torcem para que não aconteça com eles. É uma grande falha.
A senhora realiza trabalhos ligados à violência contra a mulher nas universi-dades. Isso é algo comum nos EUA?
Diane Rosenfeld O abuso sexual nas universidades é um problema enor-me, porque é muito comum os alunos morarem no campus, o que não acon-tece tanto no Brasil. Hoje, estimativas apontam que uma em quatro mulheres será abusada sexualmente durante seu período na universidade. Realizo um tra-balho em conjunto com o governo e as escolas para verificar a aplicação da Title IX, a lei federal que garante direitos ci-vis iguais no acesso à educação. Por essa legislação, as escolas têm a responsabi-lidade de oferecer um ambiente educa-cional livre de hostilidade e assédio.
Como funciona esse trabalho?
Diane Rosenfeld É uma iniciativa educacional “peer to peer”. Alunos de Direito conversam sobre a importân-cia do respeito a ambos os sexos com alunos universitários. Eles, por sua vez, falarão com alunos do ensino médio, que falarão com alunos do ensino fun-damental. Treinamos noções ligadas à
igualdade dos sexos e tentamos acabar com concepções como “meninas são fracas e meninos são fortes”.
Ao fazer esse tipo de discurso, seja en-tre governantes ou estudantes, em algum momento a senhora sente que alguns dos ouvintes encaram a discussão como femi-nista demais e deixam de levá-la a sério? Diane Rosenfeld Não. Sinto-me muito legitimada, principalmente porque a Universidade Harvard, onde leciono há dez anos, é uma fonte de respeito. Além disso, há todas as legis-lações que ajudei a aprovar. E acho também que as mulheres precisam se levar a sério para serem levadas a sério. Então não me sinto desrespei-tada. Mas é verdade que sou feminista
[risos]. Qualquer pessoa que acredita
que as mulheres são seres humanos merecedores de direitos iguais é femi-nista. Há muitos conceitos negativos associados ao termo feminismo, mas eu rejeito todos eles.
Que mensagem mandaria aos jovens ad-vogados que têm interesse em trabalhar na área de combate à violência contra a mulher?
Diane Rosenfeld Eu diria o seguin-te: você vai conseguir um diploma em Direito e com ele pode fazer coisas fan-tásticas para melhorar o mundo. Sem-pre encorajo as pessoas a se direciona-rem para a área de interesse público, e também a serem conscientes em sua própria vida. Você precisa fazer algo construtivo em cada um dos dias que recebeu para viver neste planeta, e o Direito é uma língua e uma habilidade muito poderosa para lidar com a injus-tiça. Então meu conselho é: use a lei para melhorar o mundo, corra atrás dos seus sonhos e não aceite “não” como resposta. Em 1996 escrevi pela primeira vez sobre o monitoramento eletrônico de agressores. Naquela época o GPS nem era publicamente disponível. Eu não estava pensando exatamente nesse sistema, mas ali havia a ideia de que era preciso criar consequências para o agressor. Continuei falando sobre isso e trabalhando nisso, mesmo quando me dedicava a outros assuntos, até que em 2006 conseguimos aprovar a lei do GPS em Massachusetts. Esse é outro conse-lho: acredite e confie na sua visão. comendações sobre como tornar mais
eficaz a lei Maria da Penha.
Que tipo de recomendação estará na carta? Diane Rosenfeld Vamos recomen-dar, por exemplo, o fortalecimento das delegacias da mulher. Essa é uma ótima ideia na busca pela eficácia, então esta-mos pensando formas de construir em cima da infraestrutura que já existe. Mas a principal recomendação, na verdade, é elaborar um sistema operacional que reconheça a real dimensão do perigo que uma mulher corre em uma situ-ação de violência doméstica. Quando uma mulher denuncia que está sendo agredida pelo marido e o sistema não a leva a sério e trata o assunto como uma questão cotidiana, as chances de ocorrer uma escalada de violência aumentam e ela passa a correr mais risco. Foi o que vimos aqui no Brasil no caso da cabelei-reira [Maria Islaine de Morais] que foi
morta a tiros pelo ex-marido dentro de
um salão de beleza [crime ocorrido em
janeiro de 2010, em Belo Horizonte]. É
uma história horrível, porque ela clara-mente estava em perigo e já havia ido à polícia, que precisa tratar essas situa-ções como potencialmente letais, não como algo que acontece todos os dias. Nós levamos a sério os indicativos de perigo em outros contextos, como no terrorismo, por exemplo, e agimos para impedir que crimes aconteçam. Preci-samos fazer o mesmo com a violência doméstica, que também é uma forma de terrorismo. É preciso reconhecer que não é aceitável que mulheres sejam assassinadas por seus parceiros. Trata-se de uma emergência nacional em todos os países, embora seja perfeitamente possível contê-la.
Que medidas são importantes para garan-tir a aplicação das leis e conter a violên-cia contra a mulher?
Diane Rosenfeld Uma das coisas que estamos fazendo nos Estados Uni-dos – e que seria muito útil para o Brasil – é a criação de um sistema de avaliação de risco. Trata-se de uma simples série de perguntas que a polícia pode fazer à vítima. Pelas respostas, avalia-se se a situação é de alto risco. Em caso positi-vo, é preciso dar outro nível de atenção ao caso, que será trabalhado por uma equipe especial. Essas equipes são
for-madas por funcionários da Justiça, po-liciais, promotores, advogados e pessoas que trabalham em hospitais e até dire-tamente com os agressores. Eles deci-dem o que precisa ser feito para manter a vítima segura e quais serão as conse-quências para o agressor. Isso é muito importante, pois a única coisa que pode impactar o agressor é a consequência. Então é preciso criar mecanismos para que a ordem de proteção concedida a uma mulher funcione. Caso contrário, será apenas um pedaço de papel.
É nesse contexto que se usa o sistema de monitoração por GPS? Como funciona?
Diane Rosenfeld A ideia é que as mulheres não devem ter de se esconder, recorrer a abrigos ou fugir para proteger sua vida, enquanto os homens podem aproveitar sua liberdade e todos os seus direitos. Essa é uma injustiça estrutural e o GPS busca resolver isso. Ele pode ser usado em dois casos: ou quando um agressor viola a ordem de proteção da Justiça, ou seja, volta a aterrorizar a vítima; ou quando o caso é de alto risco e o juiz pede que o agressor seja monitorado por GPS. O sistema foi de-senvolvido e aprovado primeiramente em uma área do Estado de Massachu-setts em 2004. Nessa região, o sistema funcionou muito bem. Tivemos 100% de sucesso, o que significa que nenhum dos agressores violou a ordem de prote-ção ou voltou a agredir a mulher.
Hoje, quantos Estados adotam o sistema de GPS?
Diane Rosenfeld Dezessete Estados, embora as leis tenham particularidades
em cada um deles. Costumo aconselhar os governos no momento em que a lei é elaborada, mas muitas vezes quando ela é aprovada fico pensando: o que ocor-reu entre a nossa ocor-reunião e a legislação final? [Risos.] Geralmente acontece da
seguinte forma: uma mulher que tinha ordem de proteção é assassinada, o caso ganha grande repercussão e o governo começa a se perguntar: “Meu Deus, ela fez tudo certo, o que será que nós pode-ríamos ter feito?” Aí eles nos procuram, depois que a tragédia já aconteceu. Um exemplo é Kentucky, o último Estado a aprovar o sistema de GPS, onde a lei se chama Ato Amanda Ross sobre Violên-cia Doméstica. Amanda Ross é o nome da jovem morta em 11 de setembro de 2009 pelo ex-namorado, contra quem ela tinha uma ordem de proteção. Dois dias antes de ser assassinada, ela o en-controu e depois disse a uma amiga: “Ele vai me matar” [pausa]. E ele a
matou. Em Illinois foi a mesma coisa. O sistema de GPS foi aprovado após a morte de Cindy Bishop, que tinha três ordens de proteção diferentes contra o ex-namorado. Ele sempre voltava ao tri-bunal e até pediu o GPS, mas a Justiça disse que não sabia como usar o sistema. Após a morte, trabalhei com o irmão dela, Michael, e juntos apresentamos a lei, que foi aprovada pelo legislativo estadual e assinada pelo governador.
Em que caso a senhora trabalha agora? Diane Rosenfeld Estamos tentando aprovar o sistema de GPS em Connec-ticut. Estou trabalhando com os pais de uma jovem chamada Tiana Notice, morta pelo ex-parceiro em 14 de feve-reiro de 2009, dia dos namorados nos Estados Unidos. Ela tinha uma ordem de proteção contra ele e foi à delegacia denunciar violações dessa ordem no mesmo dia em que foi morta. Era uma sexta-feira e os policiais disseram que estavam com falta de pessoal e muito o que fazer no fim de semana, mas que prenderiam o agressor na terça-feira. A mãe de Tiana ligou para a delegacia e ouviu a mesma coisa, mas disse ao poli-cial: torça para que nada aconteça, pois caso contrário a responsabilidade será sua. A polícia ainda fez algo terrível: indicou ao agressor que ele seria preso na semana seguinte. Horas depois ele esfaqueou Tiana, que antes de morrer