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Adelbert von Chamisso e o narcisismo primário.

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Academic year: 2017

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RES UMO:Adelbert von Cham isso foi um escritor e poeta de língua alem ã, nascido em fam ília aristocrática francesa em igrada para a Ale-m anha eAle-m 1792. Este artigo, exaAle-m inando o conto “L’étrange histoire de Peter Schlem ihl”, prim eiro trabalho publicado por Cham isso, apon-ta os aspectos autobiográficos dessa obra que antecipa a vida de seu autor até na exatidão das m inúcias. O artigo m ostra com o a sublim a-ção artística perm itiu que o escritor encontrasse para si m esm o um cam inho pelo trabalho científico e pela criação literária, e indica que essa espécie de “aceitação intelectual” do recalcado poderia ser vista com o equivalente a um resultado de tratam ento psicanalítico.

Palavras - chave : Rom antism o alem ão, narcisism o prim ário, sublim

a-ção, ideal do Eu.

ABSTRACT: Adelbert von Cham isso and the pr im ary narcissism .

Cham isso was a Germ an writer and poet born in an aristocratic French fam ily em igrated to Germ any in 1792. This paper, inquiring into Cham isso’s tale “L’étrange histoire de Peter Schlem ihl”, his first is-sued w riting, points to its autobiographical features that anticipate the life of its author even in its precise details. This paper show s how artistic sublim ation allowed the w riter to succeed in finding for him -self a path towards scientific work and literary creation, and em pha-sizes that this kind of “intellectual acceptation” of the repressed could be seen as equivalent to the result of a psychoanalysis treatm ent.

Ke y w ords : Germ an rom anticism , prim ary narcissism , sublim ation,

Ego ideal.

Psicanalista, m em bro do Espace Analytique, Paris

Tradução Pedro Henr ique Bernardes Rondon

Sa b in e Pa rm e n tie r

*Texto tradu zido do or igin al fran cês “ Adelber t von Ch am isso et le

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N

a rica história do rom antism o alem ão, há m uitos autores cuja vida e obra se im bricam de m odo estreito; cuja vida anuncia e esclarece a obra com o a anam nese esclarece o sintom a, um a vez que o rom antism o é em essência auto-biográfico. Mas são poucos aqueles cuja obra antecipa a vida e a prefigura até na precisão das m inúcias. Este é o caso de Adelbert von Cham isso e de seu conto “Peter Schlem ihls w undersam e Geschichte” , relato estranham ente auto-biográfico.

A tradução do título tem variado m uito em francês e a escolhida pelo próprio Cham isso, em 1821, era apenas “Peter Schlem ihl”; em 1838, o texto ganhou a versão “A m aravilhosa história de Peter Schlem ihl”. A edição póstum a de 1934 — houve 33 edições até hoje — se intitula “A história extraordinária de Peter Schlem ihl”, por referência às “Histórias extraordinárias” de Edgar Allan Poe na tradução de Charles Baudelaire, e, afinal, a edição m ais recente, de 1992, intitu-lada “A estranha história de Peter Schlem ihl”.

O surgim ento desse conto — prim eiro trabalho escrito publicado por Cham isso — trouxe-lhe um a celebridade que se espalhou com rapidez incrível. Num a car-ta escricar-ta a seu am igo Louis de La Foye em 1818, quatro anos após a publicação de Peter Schlemihl, Cham isso conta com o ele próprio encontrou esse livrinho, por ocasião de sua viagem de três anos em volta do m undo, em Copenhague e no Cabo da Boa Esperança: “nas bibliotecas que em prestam livros a regra é que ele seja roubado” ( LAHNSTEIN, 1987, p. 143) . A Bibliotheca Schlem ihliana assinala em cem anos — entre 1814, data da prim eira edição estabelecida por Friedrich de La Motte Fouqué, e 1919 — , e sem contar as reedições sem m odificações: 80 edições na Alem anha, 14 na Inglaterra e nos Estados Unidos, dez na França, quatro na Rússia. A história tinha sido traduzida em 12 línguas, algum as durante a vida de Cham isso. E por que tal celebridade? Diferentes interpretações foram dadas à perda da som bra, m as os críticos estão de acordo quanto a dizer que esse relato propõe “o problem a da identidade individual e da diferença em relação aos outros sem elhantes” ( LORTHOLARY, 1992, p. 21) , exatam ente num período da história européia em que todas as velhas identidades se estilhaçavam . Tam bém nisso a história é autobiográfica.

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construir ou para reform ar construções existentes. Bem m ais tarde, Cham isso escreveu um poem a que gerações de estudantes alem ães decoraram , e que tem por título “Das Schloss Boncourt”:

“Sonho com a época de m inha infância

E balanço a cabeça encanecida.

Por que m e obsedais, im agens

Que eu acreditava estivessem esquecidas há m uito tem po?

Do m eio da m ata cheia de som bra

Surge ao sol um castelo:

Conheço suas torres, suas am eias,

A ponte de pedra, a grande porta.

[ ...]

Eis a esfinge perto do poço,

Lá longe a figueira que enverdece.

Lá, por trás dessas janelas,

Sonhei m eu prim eiro sonho.

[ ...]

É assim , castelo de m eus pais,

Que vives hoje no m eu coração

Agora que de ti só resta

Um a terra onde o arado labora.

Eu te abençôo, terra querida,

Eu te bendigo sem am argura,

E bendigo em dobro aquele

Que labuta nesses locais onde exististe.

Mas eu, eu quero m e apoderar novam ente,

Eu irei em bora, com a lira nas m ãos,

Percorrendo terras longínquas,

Cantando de país em país.”

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“Recentem ente desenhei na m inha m em ória o jardim , até a m ínim a curva da aléia

m ais afastada, até a m enor m oita, e a força de m inha im aginação era tão viva que

representava para m im com a m áxim a precisão todos esses porm enores intactos. Eu

estava fora de m im !”

E em 1837, um ano antes de sua m orte, ele escreve a Louis de La Foye: “Eu não paro de sonhar com o castelo de Boncourt” ( LAHNSTEIN, 1987, p.15) . Aliás, esse poem a inspirou ao rei Frederico Guilherm e IV um a carta dirigida a Cham isso, considerada “um a das cartas m ais bonitas que um príncipe alem ão já escreveu” ( idem , p.14) .

“Onde foi que o senhor aprendeu o alem ão goethiano que escreve? Sem dúvida há

m ais de um francês cujo coração se abriu à Alem anha e aos alem ães, m as nunca

nenhum igualou ou m esm o superou os m elhores em seu idiom a ( ...) Eu gostaria de

ouvir seu ‘Castelo de Boncourt’ cantado: basta lê-lo que as lágrim as brotam nos olhos

de cada um , e involuntariam ente nos vem os dando ao senhor a bênção que o senhor

dá àquele que trabalha o solo precioso!” ( RIEGEL, 1950, p. 34)

Depois de um a passagem por Flandres e pela Holanda, e em seguida pela Alem anha em Düsseldorf, Wurtzburg e Bayreuth, a fam ília Cham isso se estabele-ce em Berlim , onde os filhos m ais velhos entram com o m iniaturistas na fábrica real de porcelanas, para sustentar a fam ília — e o jovem Adelbert, tendo m udado o prenom e, entra com o pajem a serviço da Rainha Frederica Luísa. A rainha, cuidadosa quanto à educação de seus pajens, fê-lo entrar no liceu francês de Berlim , onde Cham isso teve seus prim eiros contatos com aquilo que se cham ava a “colônia”, isto é, os protestantes franceses que se refugiaram em Berlim após a revogação do Edito de Nantes, em 1685. Naquela ocasião, os cerca de dez m il habitantes originais de Berlim acolheram m ais de cinco m il franceses, pessoas austeras, trabalhadoras, sérias. Théodore Fontane, que provinha do m esm o m eio, descreve da m aneira seguinte, em 1888, aquele m om ento, em “Die Marker und die Berliner”:

Aqueles que vinham então da França não eram parisienses, eram puritanos, austeros,

sérios, cheios de m elindres quanto à honra — o que em sua m aioria continuaram

sendo até hoje. Eles exerceram profunda influência não apenas sobre o m odo de

vida, que se tornou m ais refinado, m as tam bém sobre as profissões...” ( FONTANE,

1977, p.143)

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ele tom ou conhecim ento da literatura alem ã contem porânea, Klopstock, Schiller, com a filosofia de Moses Mendelssohn. Estes anos fizeram com que o católico de origem nunca m ais se sentisse à vontade entre seus pares.

Saindo do liceu, um a questão se antepôs ao jovem Adelbert, questão inaudita que até então ninguém em sua fam ília tinha tido que enfrentar: a questão do seu futuro. De fato, em bora já houvesse m uito tem po que a nobreza perdera qual-quer papel político real, e em bora as Luzes e a burguesia tivessem penetrado m esm o intelectualm ente nessa nobreza — em especial nas cidades — a nobreza que vivia em suas terras tinha conservado firm em ente as tradições que faziam com que um indivíduo que fizesse parte dela não tivesse nenhum papel a repre-sentar com o pessoa particular que tivesse um destino tam bém particular. O indi-víduo era apenas um “representante de seu estado ( ...) garantia da im ortalidade da raça”. Quanto ao direito que esse indivíduo pudesse reivindicar, o direito a um a vida pessoal, quanto a sua pretensão a ser feliz — é aí que, segundo um con tem porân eo, Lu dw ig Au gu st von der Marw itz, se situ a “ essa prem issa indefensável” do m undo m oderno, de onde provêm “todas essas m aquinações que desde então puseram a Europa inteira de pernas para o ar” ( ARENDT, 1986, p.55) . Tal “representante” da nobreza tem sua existência inteiram ente determ i-nada pelo nascim ento: tudo o que se exige dele é que seja “um m em bro de sua fam ília” e, nessa qualidade, em toda parte ele estará no m esm o nível, acolhido, respeitado.

Um a vez que a questão de seu destino pessoal tinha se colocado para ele em vista das circunstâncias, Cham isso entrou então para o exército prussiano em 1798, com o alferes no Regim ento de Infantaria de Götze, à época aquartelado em Berlim . Serviu durante oito anos, e foi aí que aprendeu o alem ão. Perto do final de sua vida, num a carta à irm ã — toda sua fam ília tinha voltado para a França em 1801 — ele vai escrever que para ele o alem ão foi sem pre a língua da escrita, enquanto o francês — que ele escrevia m al — continuava sendo a língua em que pensava, cantava e sonhava.

Enquanto estava aquartelado em Berlim , Cham isso com eçou a freqüentar os salões literários dos judeus de Berlim , especialm ente o m ais fam oso de todos, o de Rahel Lew in, futura m ulher de seu am igo August Varnhagen.

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dos guetos, fenôm eno que se produziu pela prim eira vez e da m aneira m ais clara na Prússia. O segundo elem ento é conseqüência disso: trata-se da decisão diante da qual cada judeu se encontrava, e que voltam os a encontrar cem anos depois até no círculo das pessoas que andavam à volta de Freud, a decisão de ou situar a si m esm o em posição de igualdade com os alem ães, correndo o risco de se incorporar num a tradição m ilenar, ou perm anecer fiel à fé de seus pais. Quem im prim ia seu nom e nesse cam inho da em ancipação pessoal dos judeus era, ele próprio, um judeu fiel à fé e versado na tradição rabínica — m as quatro dos seis filhos que teve se converteram . Trata-se do filósofo alem ão Moses Mendelssohn que, o prim eiro dentre os judeus da Alem anha, utilizou o alto alem ão tanto com o língua de uso cotidiano quanto com o língua da cultu-ra. Até então os judeus utilizavam o hebraico para os estudos er uditos tradicio-nais e o iídiche para os assuntos da vida diária. Por seus trabalhos e por seu exem plo, não é exagero dizer que Moses Mendelssohn “ fez daqueles que antes eram judeus na Alem anha, verdadeiros judeus alem ães” ( LAHNSTEIN, 1987, p.46) . Na ocasião de sua m orte, as cortes dos príncipes da Europa prantearam “ a perda ir reparável que Berlim e o m undo inteiro acabavam de sofrer” , con-form e Elise von der Recke, um a aristocrata do Báltico, ao escrever à am iga duquesa de Curlande.

É possível ter um a idéia daquilo que Moses Mendelssohn realizou na cons-ciência dos alem ães cultos, graças ao prólogo em versos que um dram aturgo da época escreveu para a representação do “Mercador de Veneza”, de Shakespeare, em 1788:

“No m om ento, o vivo espírito berlinense com eça a ter estim a

Mais elevada pelos correligionários do sábio Mendelssohn

No m om ento, nesse povo cujos profetas e cujas leis veneram os,

Vem os hom ens versados nas ciências e nas artes.”

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As questões que Rahel Varnhagen tenta responder pela arrenegação de sua judeidade, e Édouard Hitzig — o m elhor am igo de Cham isso e seu prim eiro biógrafo — pela assim ilação “respeitável”( LAHNSTEIN, 1987, p.31) ,1 vão en-contrar em Cham isso um a resposta: o envolvim ento no exército prussiano estra-nham ente posto outra vez em questão pelas circunstâncias históricas. De fato, ser francês no exército prussiano na ocasião das guerras napoleônicas, com eça a ficar cada vez m ais difícil, ainda m ais que em 7 de outubro de 1806 um decreto de Napoleão am eaça com o Conselho de Guerra todos os franceses que estejam servindo no exército da Prússia. Se em 1805 ele ainda escrevia ao seu am igo August Varnhagen, estando em cam panha, na lam a, debaixo de chuva: “Nada de povo nem de pátria, devem os seguir com pletam ente sós” ( idem ) , no ano se-guinte quando a fortaleza de Ham eln — onde ele sofreu o cerco dos franceses — se rende sem com bater — porque a Prússia tinha sido derrotada em Jena e Auerstedt — ele escreve: “Um a nova vergonha se prendeu ao nom e alem ão, e se tornou a ignom ínia: a cidade se rendeu ( ...) Eu, o franco, fiquei paralisado com o tal, e só podia chorar de raiva, chorar com o um a m ulher, porque deveríam os ter presenciado façanhas viris” ( carta de 22 de novem bro de 1806) .

Ele então decide partir para a França, porque escreve a Fouqué: “Tenho o desejo de rever a França, vou m e esconder lá por um m om ento, até que possa reencontrar m eu lugar no m eio de vocês, um a vez que sou alem ão, de coração, m as um alem ão livre, e serei sem pre”. Em dezem bro de 1806, então, ele está em Paris, de onde ainda escreve a Varnhagen: “Odeio a França, e a Alem anha não existe m ais e ainda não existe”. Essa Alem anha que não existe m ais não é apenas a Alem anha política, desm em brada pelos franceses vitoriosos, m as tam bém aquela Alem anha que, des-de Goethe — e até 1870 —, seduziu tantos franceses; essa Alem anha ides-deal, cosm o-polita, desinteressada, terra de todas as virtudes, m ãe de todas as artes e de todas as ciências; essa Alem anha destinada a representar no mundo o papel de um a Hélade m oderna. Ele volta então a Berlim , em busca de Berlim , m as é para constatar que de fato ela não existia m ais. Berlim está então sob ocupação francesa. Todos os seus am igos alem ães se tornaram patriotas, anim ados por um espírito de vingança, o cosm opolitism o era suspeito, em toda parte m ostravam a ele um certo m au-hu-m or crítico, criticavaau-hu-m -no por sua índole grosseira e taciturna, criticavaau-hu-m seus cachim bos e seus apetrechos de fum ante. Os anos de 1808-1809 são difíceis para Cham isso. Em outubro de 1808, ele escreve a Fouqué:

“Minha vida, que deveria ter-se estabelecido e tom ado form a, ao contrário, se

extra-viou na areia estéril. Boa parte daquilo que eu possuía se perdeu, foi destruído ou

1 Este autor cita um a carta de Lea Salom on a seu noivo Abraham Mendelssohn, filho do filósofo

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desapareceu, e por esse preço bem elevado adquiri m uito pouco — um a boa m edida

de idade e um a pitada de extrato am argo de experiência. No final das contas o m

un-do se fechou para m im por toun-dos os laun-dos com tábuas pregadas, e não sei de onde

partir nem para onde ir.”

Refugia-se em casa do am igo Édouard Hitzig, onde passa dois anos na ocio-sidade e na angústia. Ele diz de si m esm o que é “o anim al m ais passivo do m undo”.

Em 1810, está de novo na França, em Paris, que na ocasião era a capital da Europa. A França se estende dos Pirineus a Lübeck e de Nápoles a Varsóvia. Num a carta a sua irm ã Rosa-Maria, ele escreve: “Vive-se m uito bem à m aneira alem ã aqui em Paris”. De fato, ele freqüenta a colônia alem ã de Paris “porque em parte algum a fui m ais pesadam ente alem ão” do que na França, diz ao am igo Fouqué. Aí ele encontra Alexander von Hum boldt que o fascina com a descoberta da “fisionom ia estrangeira da criação que nos é desconhecida”, tem um rom ance com Helm ina von Chezy — a Minna de Peter Schlemihl — “nascida von Klenke, outrora von Taster”, que “tem dois filhos e outros tantos m aridos”. É um período de grande liberdade sexual: os rom ânticos m ilitavam pelo am or livre e pela em an-cipação das m ulheres, e m esm o não sendo um adepto fervoroso dessa em ancipa-ção, Cham isso soube tirar partido dela na ocasião.

É nesse m om ento tam bém que ele encontra Madam e de Staël, a m esm a que Napoleão, após tê-la exilado um a prim eira vez, autorizou-a a instalar-se no cas-telo de Chaum ont, onde Cham isso passa um longo período antes de segui-la na Suíça. Ali, após a publicação de seu livro De l’Allemagne, ela se vê outra vez proibida de residir na França. Em Chaum ont, Cham isso está em boa com panhia: há Wilhelm Schlegel, Juliette Récam ier, Mathieu de Montm orency, há artistas escandinavos, pintores italianos, hom ens de letras de todas as línguas. Para divertir as noitadas, Madam e de Staël im aginara um a brincadeira que se cham ava “o pequeno cor-reio”: todos se sentavam à volta de um a m esa, e aqueles que estavam defronte um do outro trocavam m ensagens em tiras de papel dobradas, que podiam tratar de am or, de política, filosofia, literatura. Cham isso conservou a vida inteira, no m eio de seus papéis, essas m ensagens, dentre as quais um a conversa que teve com Madam e de Staël sobre a pátria. Eis o que Cham isso escreveu:

“Minha pátria. Sou francês na Alem anha e alem ão na França, católico entre os

protes-tantes, protestante entre os católicos, filósofo entre os religiosos e carola entre as

pessoas sem preconceitos; hom em do m undo entre os sábios, e pedante no m undo,

jacobino entre os aristocratas, e entre os dem ocratas um nobre, um hom em do

Anti-go Regim e, etc. Em parte algum a sou apresentável, em toda parte sou estrangeiro —

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lu gar ain da n ão foi tom ado, perm ita qu e eu vá m e atirar de cabeça n o rio...”

( CHAMISSO, 1814, p.53)

Após um a rápida perm anência em Vendée, na casa do prefeito Barande, Cham isso reencontra Madam e de Staël, exilada na Suíça por ordem do Im pera-dor. Aí, ele com eça, por ocasião de grandes passeios a pé, a se interessar pela flora suíça — ele se lem bra da célebre frase de Albrecht von Haller, naturalista originá-rio de Berna: “A Suíça é o jardim botânico da Europa”. Assim , com põe um herbáoriginá-rio com m ais de m il espécies e escreve ao seu am igo Hitzig: “Atualm ente, sou m eu próprio m estre, sem levar ninguém em consideração” ( carta de 24 de m aio de 1812) . Entretanto, ele ainda não pode deixar Madam e de Staël, por quem tem sentim entos com plexos — os quais exprim e em um dos raros poem as que escre-veu em francês “À Corinne”, que se inicia assim : “Conheci a Grécia, e volto à terra dos Citas”.

Seu desejo de partir, de voltar para a Alem anha é sem pre grande, m as, com o escreve a Hitzig: “Cada vez que pareço ter a intenção de calçar as botas de sete léguas, a feiticeira m e retém por m eio de artim anhas e pela natureza, e faço sua vontade, um a vez que ela tem o poder” ( idem ) . Entretanto, sua decisão am adu-rece, suas hesitações desaparecem : “Sou o olhar direto de m eus olhos — eis aí a m inha ética, a m inha teosofia, a m inha filosofia de hoje em diante”. Era assim que ele cam inhava:

“Um a velha kurtka polonesa, m anchada e puída [ ...] , um a grande caixa verde presa a um a correia de couro, um cachim bo curto na boca [ ...] m altratado, além disso, pelo

suor e pela poeira, m uitas vezes trazendo na m ão um lenço abarrotado de ervas, ao

en con tro dos elegan tes passeadores dom in icais.” [ testem u n h o de Dietrich von

Schlechtendal]

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“a riqueza da natureza ultrapassava tudo aquilo que a im aginação hum ana era capaz

de conceber, que as explicações com que até então as pessoas tinham se contentado

não valiam m ais, e que era preciso procurar novas explicações, a m enos que se

qui-sesse ficar restrito à sim ples constatação dos fatos”. ( JANKELEVITCH, 1945, p.15)

A ciência m oderna e a psicanálise são herdeiras desse m ovim ento de observa-ção dos fenôm enos, e da busca de novas teorizações capazes de dar conta deles. “A estranha história de Peter Schlem ihl” foi escrita nessa ocasião, no verão de 1813, e publicada no ano seguinte. No prefácio da edição francesa de 1838, Cham isso conta com o teria conhecido Schlem ihl, e com o este teria lhe posto nas m ãos seu m anuscrito:

“Conheci Peter Schlem ihl em Berlim em 1804, era um rapaz grandalhão e sem graça,

sem ser desajeitado, inerte sem ser preguiçoso, m ais freqüentem ente fechado em si

m esm o sem parecer inquietar-se com aquilo que se passava à sua volta, inofensivo

m as sem consideração pelas conveniências, e sem pre vestido com um a velha kurtka

preta puída, que fizera com que dissessem dele que deveria se sentir feliz se sua alm a

com partilhasse a m etade da im ortalidade de seu casaco. Habitualm ente ele era alvo

dos sarcasm os dos nossos am igos; eu, entretanto, m e afeiçoei a ele; diversos traços de

sem elhança estabeleceram um a ligação m útua entre nós. Em 1813 eu estava vivendo

no cam po, perto de Berlim ( ...) quando certa m anhã nevoenta de outono, tendo ido

dorm ir tarde, ao acordar fiquei sabendo que um hom em de barbas com pridas,

ves-tindo um a velha kurtka preta puída e com pantufas por cim a das botas, tinha pergun-tado por m im e deixado um em brulho dirigido a m im . Esse em brulho continha o

m anuscrito autógrafo da história m aravilhosa de Peter Schlem ihl.” ( Prefácio à edição

francesa de 1838, Schrag, Paris)

É isso tam bém o que ele escreve aos seus am igos Hitzig e Fouqué, ao enviar-lhes o m anuscrito. Aliás, Fouqué respondeu cham ando Cham isso de “Meu caro Schlem ihl” . Contudo, ao m esm o tem po que é desm entida, a ficção de um Schlem ihl real é m antida para divertir: eles têm o m esm o cachorrinho que se cham a Fígaro, o m esm o em pregado que se cham a Bendel, am am as m esm as m ulheres: Fanny ( Hertz) e Minna ( Helm ina von Chezy) , etc. E — algo que o próprio autor não podia prever por com pleto — têm o m esm o destino.

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parte em um a viagem em volta do m undo com o naturalista, ele aceita sem hesi-tar. Trata-se de um a expedição russa que tinha por objetivo encontrar um a passa-gem pelo Mar do Norte até o Pacífico. Cham isso tinha 35 anos de idade e partiu para explorar o m undo com o geógrafo, geólogo, m eteorologista, botânico, zoó-logo, etnógrafo e lingüista. É nesses dom ínios que ele vai dar o m elhor de si m esm o durante essa viagem que durou três anos, e que vai publicar e ficar fam o-so na volta. No Mar de Behring existe até hoje um a Ilha Cham iso-so.

Quanto m ais se afasta, m ais fica claro para ele seu apego à Alem anha. Em 1816 escreve do Chile ao am igo Hitzig, em 25 de fevereiro: “Graças a ti Berlim tornou-se para m im a terra dos m eus pais e o um bigo do m eu universo, de onde parti para executar o m eu périplo, para voltar e aí estender m eus ossos cansados para um a rápida refeição, quando chegar a hora, se Deus quiser.” E voltando ao solo alem ão, em 17 de outubro de 1818, eis o que ele escreve:

“Profundam ente em ocionado em sua alm a, o viajante

Chega em casa, vindo de terras estrangeiras,

Apóia seu bastão, cai de joelhos

E m olha teu regaço com lágrim as silenciosas,

Ó pátria alem ã! — Por tanto am or,

Não lhe recuses este pedido:

Quando seus olhos cansados se fecharem ,

Perm ite que ele encontre aí a pedra

Debaixo da qual esconderá sua cabeça para dorm ir.”

Na volta, Cham isso publica um artigo sobre a reprodução de um a espécie de pequenos m oluscos m arinhos, o que lhe vale o título de Doutor Honorário da Faculdade de Berlim . É nom eado Conservador do Herbário Real de Berlim , e em seguida Diretor do Jardim Botânico.

Torna-se célebre com o navegador, naturalista e poeta. Em 1978, o Dictionary of Scientific Biography ( Nova York, 1978) com parava seus trabalhos aos de Darw in,

pela im portância que lhe atribui a propósito da exploração — a prim eira — das costas do Pacífico, e por sua hipótese da colonização das ilhas pelos vegetais, graças às sem entes e aos frutos levados pelas correntes de superfície. Ele escreve a Louis de La Foye: “Aquilo que desejam os na juventude, tem os em plenitude na m aturidade, creio que sou um poeta da Alem anha” ( m aio de 1827) . E quatro anos depois:

“O povo canta as m inhas canções, estas são cantadas nos salões, os com positores

ficam loucos por elas, os jovens as declam am nas escolas, m eu retrato é colocado

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contem porâneos, e as lindas m ocinhas apertam a m inha m ão fervorosam ente!... Quem

haveria de im aginar tudo isso no nosso tem po de m eninos!”

Em 1819, casa-se com um a jovem de 17 anos ( ele tem 37) , Antonie Piaste, da qual diz que parecer-se “ao m esm o tem po com a Virgem e com o Menino”. Eles irão ter sete filhos. Quando nasce o prim eiro, Ernst Ludw ig Deodatus, ele escreve a La Foye: “De acordo com o costum e do país, eu o fiz batizar na religião protes-tante.” E num a carta em versos dirigida a Fouqué, escreve:

“... Sim , am igo! Schlem ihl

Não está m ais privado de sua som bra, ele a tem ao triplo.

Prim eiro a som bra de nossa águia prussiana

Que estende suas asas sobre ele, a fim de

Que ele encontre no presente o repouso e a paz

Na casa e no lar que o Rei

Outorgou-lhe com um a boa pensão.

Em segundo lugar,

A som bra dessas árvores velhas e nobres

Que enfeitam o jardim cham ado Botânico

Aqui, e não sim plesm ente ‘pequeno Éden’,

Do qual ele foi eleito guardião, príncipe das flores.

A terceira som bra, enfim , e a m ais bonita

Votada a ele para nunca m ais o deixar,

Seu anjo no presente, com o há

Sem pre um anjo perto de nós

Antonie — isso te diz o suficiente.”

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Wilhelm Hertz conseguisse salvar sua vida provando que seu ancestral era filho de Cham isso. Mas as coisas não transcorrem de igual m odo na fam ília de Cham isso: dez dias após o nascim ento de Wilhelm , a casa de Cham isso pega fogo. Ele escre-ve esta estranha frase ao am igo De La Foye: “Inflam ar-se é um prazer, m as ser incendiada é a coisa m ais aborrecida do m undo.” Durante cinco anos ele não terá filho com sua m ulher, m as, em seguida, têm os outros cinco. Durante este perí-odo ele, o viajante infatigável, não viaja m ais. Conta-se tam bém que por ocasião de um a noitada literária em seu salão, quando um am igo poeta lia um poem a de am or, Antonie von Cham isso teria se levantado e saído da sala exclam ando: “Não com preendo que se possa atribuir tanta im portância ao am or!” Por fim , em 1826, ele está de novo na França, para recuperar a im portância que lhe cabia por direito na reparação concedida à sua fam ília pelos prejuízos sofridos durante a Revolu-ção. Ele escreve a Antonie, m as o tom das cartas m udou: não há m ais a “m inha estrela da m anhã”, o “m eu doce anjo”. É:

“Não te esqueças das rosas. Não te esqueças do alfabeto ( isto é, de ensinar o alfabeto

às crianças) , não te esqueças de pôr na m inha janela a com ida dos passarinhos, não te

esqueças de cuidar das flores que plantei. Vou voltar para ti do m esm o m odo com o

estava quando te deixei; trata de fazer com que eu tam bém encontre tudo aí com o

estava quando parti.”

O segundo elem ento são os poem as: alguns são sim ples, cheios de alegria e de sentim ento, com o “Frauenliebe und Leben”, m usicados por Robert Schum ann. Mas em m uitos outros acontecem coisas horríveis, há um a busca daquilo que é anorm al, um gosto pelo que é m acabro, que fez Thom as Mann dizer que em Cham isso havia “um a oposição grosseira e quase patológica entre a ternura de um silfo e um a verdadeira necessidade de objetos fortes e m esm o horrendos”. Assim , o poem a “Sala y Góm ez”, um dos m ais fam osos, escrito 13 anos após o regresso de sua viagem em volta do m undo, durante a qual ele vislum brou de longe o recife de Sala y Góm ez, perdido entre céu e m ar, habitado por aves m arinhas, e do qual ele dizia em Remarques et idées:

“Há quem garanta que encontrou perto de Sala y Góm ez os vestígios de um barco

naufragado; nós o procuram os em vão. A gente estrem ece im aginando a

possibilida-de possibilida-de que um ser hum ano tenha sido abandonado aí; porque os ovos das aves m

ari-nhas apenas teriam sido suficientes para prolongar sua m iserável vida perdida ( ...)

em cim a desse rochedo nu, queim ado pelo sol.

(14)

“...elevam à nossa volta sua vigilância assustadora

E pronunciam palavras que provocam a loucura

Para trás! Para trás! Quem vos deu tam anho poder?

Por que agitas tuas m adeixas ao vento?

Eu te conheço, m enino im petuoso, selvagem ,

Eu te olho e m eu coração pára de bater.

Tu és aquele que eu fui quando m e atirei na vida,

Im pelido por esperanças doidas, há tanto tem po,

E eu sou tu, a im agem erigida sobre tua sepultura.

Que é que ainda falas de beleza, de bondade, de verdade,

De am or e de ódio? Insensato!

Olha! Eu sou aquele que teus sonhos foram .

E queres conduzir tam bém a ela à lem brança?

Deixa-m e, m ulher, já renunciei há m uito tem po [ ...] .

Não dirijas para m im esses olhares doces!

A luz de teus olhos e o som da tua voz

A m orte já os anulou.

Teu crânio vazio e putrefato não tem m ais olhares

Prom etendo tais felicidades divinas;

Não existe m ais o m undo em que investi m inha fé.

O tem po onipotente, eu sou o único

Que o tem , em cim a deste rochedo deserto,

Na m inha pavorosa solidão.”

E eis a sua oração, quando ele vê chegar o socorro:

“Não perm itais, Senhor, graças a quem eu consegui m e dom inar,

Não perm itais que um barco e hom ens alcancem este rochedo

Enquanto não se extinguir o derradeiro eco do m eu lam ento!

Deixai que eu m orra aqui no silêncio e na Paz!

Para que m e serviria nesta hora tardia

Passar, cadáver entre os cadáveres?

Eles todos dorm em no frio do túm ulo,

Aqueles que saudaram m inha vinda a esta terra

E há m uito tem po já se apagaram todos os vestígios de m im

Sofri, Senhor, e fiz penitência

Quanto a reaparecer com o estrangeiro no país natal,

(15)

Ele m orreu em 1838, provavelm ente de câncer de pulm ão, 15 m eses após sua m ulher, que m orreu de tuberculose. Deixaram sete filhos, entre 16 e 3 anos de idade. Antes de m orrer, Adalbert redigiu um testam ento no qual escreveu:

“Eu não decido nada a propósito do futuro de m eus filhos. O mundo em que vivi não

é aquele para o qual fui educado, e para eles vai ser a m esm a coisa. Meus filhos devem

tornar-se capazes de só contarem consigo m esm os, em diferentes países e em diversas

carreiras. A paixão pelo trabalho é o bem m ais seguro, e eles devem adquiri-la.”

O testam ento está assinado em francês: Louis Charles Adélaïde de Cham issot de Boncourt, e em alem ão: Adelbert von Cham isso. Poderíam os dizer, com outro poeta de língua alem ã, m as que escreveu tam bém em francês — trata-se de Rilke, em Le livre de la pauvreté et de la mort — que ele teve

“... sua própria m orte

A m orte resultante dessa vida em que encontrou

O am or, um sentido e o desam paro”.

A propósito da história de Peter Schlemihl, em 1814 ele tinha escrito a seu irm ão um a carta para explicar-lhe a significação do nom e.

“É um nom e hebraico que significa m ais ou m enos Gottlieb, Théophile ou ‘am ado de Deus’. Na linguagem com um dos judeus é assim que se designa aquele que é

desajei-tado, azarado, aquele para quem nada dá certo no m undo. Um Schlemihl quebra o dedo no bolso de seu paletó, cai de costas e fratura o nariz, e é sem pre inoportuno”.

Mais adiante, no prefácio da prim eira edição francesa de 1821, ele apresenta as coisas de m aneira diferente, invertendo a ordem dos fatores: “enfim , o nom e Schlemihl passou para nós com o um provérbio, para os judeus não é assim , eles

não fizeram desse nom e um term o irônico”.

(16)

curto instante que tive a felicidade de passar perto do senhor — perm ita-m e dizer-lhe, senhor — diversas vezes contem plei realm ente com indizível adm ira-ção a som bra tão linda, tão linda, que o senhor projeta quando está ao sol, com um a espécie de nobre desdém , sem prestar atenção a isso — sim , essa som bra m aravilhosa que está aí aos seus pés. Perdoe-m e fazer-lhe um a proposta que sem dúvida é audaciosa. Será que lhe causaria repulsa ceder a m im essa som bra?” ( CHAMISSO, p.43) .

Poderíam os dizer, com Freud, que essa dem anda “apresenta a superestim ação sexual chocante que tem sua origem no narcisism o originário da criança” ( FREUD, 1914/ 1969, p.94) . Enfim , qualquer que seja o estigm a narcísico dessa interven-ção, Peter Schlem ihl não escuta nada disso, e quando o hom em de cinzento m enciona a bolsa inesgotável, dentre as oito m aravilhas que lhe propõe em troca, Peter aceita, porque “isso bastara para que ele conseguisse se apossar de [ seu] espírito”. É nos olhos dos outros que ele vai perceber m uito rapidam ente aquilo que perdeu. E nessa noite, ao adorm ecer em cim a do ouro tirado de sua bolsa, ele tem um sonho:

“Lá eu te vi num sonho [ ele se dirige a Cham isso] ; parecia que eu estava atrás da

porta de vidro do teu gabinete, e que de lá eu te via sentado à m esa de trabalho, entre

um esqueleto e um punhado de plantas secas; diante de ti estavam abertos o Haller, o

Hum boldt, e o Lineu, em cim a do teu sofá havia um volum e de Goethe e ‘O anel

m ágico’; m eus olhos ficaram m uito tem po fixos em cim a de ti, em cim a de cada

objeto que havia no quarto, depois novam ente em cim a de ti, m as tu não te m exias,

não respiravas, estavas m orto.” ( CHAMISSO, p.53)

Em A interpretação dos sonhos Freud diz que

“os sonhos sobre os m ortos am ados propõem problem as difíceis à interpretação, e

nem sem pre chegam os a resolvê-los de m aneira satisfatória. Podem os procurar a

razão disso na am bivalência afetiva em relação ao m orto. É habitual que nesses

so-nhos o m orto a princípio seja tratado com o estando vivo, e que depois de repente se

considere que está m orto e que, na seqüência, ele continue vivo. Cheguei à conclusão

de que essas alternâncias de vida e de m orte representam a indiferença do sonhador

( ‘para m im tanto faz que esteja vivo ou m orto’) . Bem entendido, essa indiferença

não é real, é desejada; destina-se a disfarçar as atitudes afetivas do sonhador que com

freqüência são contraditórias; dessa m aneira ela é a figuração em sonho, de sua am

-bivalência.” ( FREUD, 1900/ 1980, p.367)

(17)

que Schlem ihl é o próprio rei, viajando disfarçado. “Fiquei envaidecido, m esm o nessas condições, de ter sido tom ado pelo soberano reverenciado.” Freud diz que há, diante da criança,

“ um a tendência a suspender todas as aquisições culturais cujo reconhecim ento

astuciosam ente se conseguiu arrancar de seu próprio narcisism o, e a renovar em

nom e dela a reivindicação de privilégios abandonados há m uito tem po. Doença,

m orte, renúncia à fr uição, restrições à sua própria vontade, não vão valer para a

criança, e as leis da natureza e as da sociedade vão parar diante dela, que realm ente

será m ais um a vez o centro e a essência da criação. His Majesty the Baby, com o outrora nos im aginávam os ser.” ( FREUD, 1914/ 1969, p.96)

Em com panhia de seus dois duplos, o bom e o m au, Schlem ihl vai tentar organizar sua nova vida. Após ter deixado um a m ulher ( Fanny) em cujos olhos lera o horror ante a ausência da som bra, ele tenta casar-se com outra ( Minna) sem chegar a isso. Minna representa inteiram ente um ideal sexual: no m eio de um coro de m oças de rara beleza, ela “eclipsava as outras com o o sol eclipsa os astros da noite”, e graças a ela “a m ajestade, a inocência e a graça, unidas à beleza”, reinam .

Freud diz que

“Aquele que possui a qualidade em inente que falta ao Eu para atingir o ideal, é

am ado. Um expediente assim tem im portância particular para o neurótico que, em

função de seus investim entos objetais excessivos, fica em pobrecido em seu Eu ( ...) .

Após ter desperdiçado sua libido sobre os objetos, ele busca então um cam inho de

volta ao narcisism o, escolhendo para si m esm o, segundo o tipo narcísico, um ideal

sexual que possua as perfeições que lhe parecem inatingíveis. De fato, ele não pode

acreditar em outro m ecanism o de cura, e traz à m aior parte do tem po para o

trata-m ento sua expectativa relativa a esse trata-m ecanistrata-m o, e dirige essa expectativa à pessoa do

m édico que cuida dele. Esse plano de cura esbarra naturalm ente na incapacidade de

am ar do doente, conseqüência de seus extensos recalcam entos.” ( idem , p.105)

(18)

Ao despertar, segue-se um episódio dissociativo durante o qual as diferentes partes da personalidade agem de m aneiras autônom as, contraditórias, indepen-dentem ente um as das outras: Rascal casa-se com Minna; Bendel, dom inado pelo desejo de vingar seu patrão, acaba por seguir o hom em de cinzento; este aparece sob form as diversas, sem nunca ser reconhecido de im ediato por Schlem ihl que persegue um a som bra sem dono pelo m atagal. Isso term ina com um a corrida louca através de bosques e planícies. “Um suor de angústia escorria de m inha testa, m eu peito era rasgado por gem idos fundos, a dem ência rosnava dentro de m im ” — diz Schlem ihl, e Cham isso escreve.

Em seu estudo sobre o “Duplo” publicado em 1914, e que Freud apreciou — fez um a resenha de quase um a página em “O estranho” — Otto Rank fala dessa passagem dizendo: “Essas analogias dem onstram que a som bra e a im agem re-presentam aqui um Eu que se torna independente”. Mas não foi nessas conside-rações psiquiátricas banais que pensei a esse propósito, m as sim em Lacan, di-zendo que “é nas rupturas depressivas dos revezes vividos da inferioridade” que o Eu engendra

“as negações m ortais que o paralisam em seu form alism o. ‘Eu não sou nada disso que

m e acontece. Tu não és nada disso que tem valor’. Assim tam bém se confundem os

dois m om entos, um em que o próprio sujeito se nega e um em que culpa o outro, e

descobrim os aí essa estrutura paranóica do Eu ( ...) . É o próprio delírio da bela alm a

m isantrópica, lançando sobre o m undo a desordem que com põe seu ser.” ( LACAN,

1966, p.114)

Essa fuga desvairada inaugura um período de vida errante em com panhia do hom em de cinzento que se m ostra de um a com placência extraordinária, de um a habilidade e um a destreza infinitas, “o verdadeiro m odelo do criado de quarto para um hom em rico”, porém — condensação dos dois duplos precedentes — ele não esgota argum entos e com entários, convencido de que Schlem ihl acabaria por assinar. Essa situação conflituosa dura até o m om ento em que, não podendo m ais persistir nesse estado de guerra contra si m esm o, Schlem ihl, tom ado de horror, term ina por atirar a bolsa no abism o junto ao qual eles estavam sentados. O ho-m eho-m de cinzento desaparece, Schleho-m ihl se vê sozinho, aliviado, adorho-m ece e sonha.

“Num sonho delicioso, vi um a dança alegre entrelaçar im agens graciosas. Minna

passava, m uito leve, diante de m im , com um a coroa de flores nos cabelos, e eu lhe

dirigia um sorriso am ável. O virtuoso Bendel tam bém estava coroado de flores e,

passando, m e fazia um a saudação de am izade. Ainda m uitas outras pessoas m e

apare-ceram , inclusive tu, Cham isso, creio eu, longe, na m ultidão; um a luz viva brilhava —

(19)

espanto. Havia flores e cantos, am or e alegria debaixo dos bosques de palm eiras. Eu

não podia parar nem explicar para m im m esm o essas figuras m óveis e graciosas que

um sopro bastaria para apagar, m as sei que esse sonho m e encantava e eu tem ia

acordar; de fato, eu já estava acordado e ainda m antinha os olhos fechados para

con-servar presentes na m inha alm a por m ais tem po essas visões fugidias.”

Freud diz que

“é possível com preender que os objetos preferidos dos hom ens, seus ideais,

decor-ram das m esm as percepções e experiências que os objetos dos quais eles têm m ais

horror; na origem eles só se distinguem uns dos outros por m odificações ínfim as.

Pode m esm o ocorrer ( ...) que o representante pulsional original tenha sido dividido

em duas partes, um a das quais sofreu o recalcam ento, enquanto a restante,

precisa-m ente por causa dessa íntiprecisa-m a conexão, conheceu a idealização.” ( FREUD, 1915a/

1968, p.52)

A relação entre recalcam ento e form ação de ideal era apresentada em “Sobre o narcisism o: um a introdução”, da m aneira seguinte:

“As m esm as im pressões, experiências, im pulsos, m oções de desejo a que este

ho-m eho-m dá livre curso nele, ou que pelo ho-m enos elabora conscienteho-m ente, são repelidas

por aquele outro com a m áxim a indignação ( ...) . Podem os dizer que um estabeleceu

em si um ideal pelo qual m ede seu Eu atual, enquanto no outro tal form ação ideal

está ausente”.

E conclui: “Aquilo que ele projeta diante de si com o seu ideal é o substituto do narcisism o perdido de sua infância; naquela época ele era seu próprio ideal” ( FREUD, 1914/ 1969, p.98) .

(20)

Ele tem então um m om ento de insight:

“Caí de joelhos, num recolhim ento sem palavras, e derram ei lágrim as de gratidão,

porque de repente m eu futuro se levantava claram ente diante de m im . Excluído da

sociedade dos hom ens por m eu erro prim ordial, com o reparação eu estava sendo

conduzido em direção à natureza, que sem pre am ara; a terra m e era dada por m edida

com o um rico jardim , o estudo para ser m eu guia e m inha força, a ciência para

constituir o objetivo da m inha vida. Não era um a resolução que eu tom asse. Eu desde

então só fiz procurar realizar fielm ente, com um a aplicação tranqüila, inflexível,

con-tínua, o ideal que se apresentou então claro e com pleto à m inha consciência, e m inha

satisfação interior sem pre dependeu do acordo entre a realidade e esse ideal.”

“O desenvolvim ento do Eu”, diz Freud, “consiste no afastam ento do narcisis-m o prinarcisis-m ário, e engendra unarcisis-m a aspiração intensa a recuperar esse narcisisnarcisis-m o. Esse afastam ento se produz pelo recurso do deslocam ento da libido em direção a um ideal do Eu im posto a partir do exterior, e a satisfação é alcançada pela realização desse ideal” ( idem , p.104) . E Lacan fala da “função pacificadora do ideal do Eu, a conexão de sua norm atividade libidinal com a norm atividade cultural, ligada desde a m argem da história à im ago do pai” ( LACAN, 1948/ 1966, p.117) .

Se nada sabem os sobre o pai de Schlem ihl, se quase nada sabem os sobre o pai de Cham isso — só sabem os que ele pertencia a um outro m undo que não era aquele no qual seu filho viveu, um m undo perdido para este — sabem os que a Cham isso foi preciso encontrar pais espirituais para si m esm o — Haller, Hum boldt e Lineu, para voltar ao prim eiro sonho de Schlem ihl — para poder encontrar o cam inho que lhe perm itiu tornar-se pai por sua vez, e sem elhante a eles.2 “Meu pai estava sem pre ausente”, dizia um analisando, “eu não tive referências” — nenhum “pai feliz”.3 E um outro, o quinto de seis filhos, forçado a cuidar de si m esm o após o bacharelado, um a vez que seu pai não tinha a possibilidade de ajudá-lo: “Tive a im pressão de ter nascido num orfanato.” Pais ausentes, distan-tes, idealizados ou enfraquecidos, o pai, dizia Lacan em “O m ito individual do neurótico”:

“...o pai é sem pre um pai carente, um pai hum ilhado por algum lado ( ...) . Há sem pre

um desacordo extrem am ente nítido entre aquilo que é percebido pelo sujeito no

plano do real, e sua função sim bólica. É nesse afastam ento que está aquilo que faz

com que o com plexo de Édipo tenha valor ( ...) patogênico.” ( LACAN, 1980, p.75)

2 Há no original um jogo de palavras por hom ofonia: “...devenir père à son tour, et leur paire”. ( N. da T.)

(21)

E, no entanto, algum a coisa teve que ser “incorporada” da presença ou da palavra dele, algum a coisa teve que ser transm itida para im pelir “o sujeito a form ar o ideal do Eu ( ...) , foi justam ente a influência crítica dos pais conform e é transm itida pela voz deles; ao longo do tem po vêm juntar-se aí os educadores, os professores e a tropa inum erável e indefinida de todas as outras pessoas do am bi-ente ( os outros, a opinião pública) ” ( FREUD, 1914/ 1980, p.100) . As palavras e os olhares dos outros é que im pedem Schlem ihl de usufruir tranqüilam ente seu estado.

Falando das estruturas de desconhecim ento e de objetivação sistem ática que caracterizam a form ação do Eu, Lacan cita Heráclito a propósito da libido narcí-sica negativa “que está ligada à integração de um a desordem orgânica original, deiscência vital constitutiva do hom em que faz brilhar novam ente a noção heraclitiana da Discórdia, tida pelo efésio com o anterior à Harm onia” ( LACAN, 1948/ 1966, p.116) .

Dois fragm entos de Heráclito chegaram até nós a propósito dessa questão da discórdia, um deles por interm édio de Diogene Laërce, o outro por Orígenes. Eis aqui os fragm entos:

“...tudo se faz por oposição dos contrários e tudo corre com o um rio. ( ...) Entre

contrários há um a luta que resulta na Criação; é aquilo a que cham am os de guerra e

discórdia; a outra, que resulta na exaltação das paixões, cham a-se concórdia e paz.”

( LAERCE, 1965, p.165-166)

E Orígenes, “Contre Celse”, VI, 42: “É preciso saber que o conflito é com um ou universal, que a discórdia é o direito, e que todas as coisas nascem e m orrem conform e a discórdia e a necessidade” ( LES PRÉSOCRATIQUES, p.164) .

Poderíam os dizer, com Freud, que as três polaridades que governam a vida psíquica se prendem de m aneira significativa de m odo que o que é estrangeiro, o que é exterior, o objeto, o odiado, sejam idênticos no início, um a vez que “com a entrada do objeto no estádio do narcisism o prim ário, chegam os tam bém ao aparecim ento do ódio”. É isso que perturba o estado narcísico originário e prepara a progressão, para retom ar um a pequena nota de “Os instintos e suas vicissitudes”. Esse ódio que gera o desenvolvim ento, rejeitado com indignação ou sufocado antes de ter podido tornar-se consciente, pode retornar sob deter-m inadas fordeter-m as, udeter-m a das quais é o duplo perseguidor. Retorno estranhadeter-m ente inquietante.

Freud cita Cham isso quatro vezes — em “O estranho”, justam ente.

“O caráter de estranheza inquietante só pode realm ente vir a partir do fato de que o

(22)

psí-quica, que todavia tinha então um sentido m ais am ável. O duplo tornou-se um a

im agem de espanto da m esm a m aneira que os deuses se tornam dem ônios após o

desm oronam ento de sua religião.” ( FREUD, 1919/ 1985, p.238-139)

O espanto, a repulsa de Schlem ihl em relação ao hom em de cinzento, seu ódio, sua angústia, adquirem sentido se, no lugar do hom em de cinzento, colo-carm os o pai tem ido do qual se espera a castração. A im ago do pai, aqui, aliás com o no “Hom em de areia”, estaria cindida pela am bivalência em duas séries: a série dos pais bons ( Cham isso, Bendel, Haller, Hum boldt, Fouqué) , e a série dos m aus ( Rascal, o hom em de cinzento, Monsieur John) . O desejo de m orte a pro-pósito do pai bom estaria assim representado pelo sonho em que Cham isso apa-rece m orto, e pela m orte do pai de Minna. O que tam bém m ostra que Schlem ihl e Minna são um só — a Minna que leva a passividade ante o pai ao ponto de lhe responder “Que se faça de m im aquilo que m eu pai quiser”, poderia dessa m a-neira sim bolizar a atitude fem inina de Schlem ihl em relação ao pai na sua infân-cia iniinfân-cial — e, portanto, a paixão repentina que ele experieninfân-cia em relação a ela é narcísica, e só pode torná-lo estrangeiro ao objeto de am or real. Schlem ihl não pode salvar Minna do casam ento com Rascal, com o tam bém não pode se dar a conhecer a ela quando a encontra em seguida, um a vez que “o rapaz fixado a seu pai pelo com plexo de castração é incapaz de am ar um a m ulher” ( idem , p.233) . Se o final da história é m ais feliz do que para Nathanael e para Hoffm ann, se isso term ina em trabalho científico e em criação literária para Schlem ihl e para Cham isso, e num a vida de bom pai de fam ília para este últim o — será que poderem os ver aí tam bém um a “espécie de aceitação intelectual do recalcado”, com parável àquela que se produz no tratam ento? ( FREUD, 1925/ 1985, p.136) . Ou estará aí um a m aneira de disfarçar a origem suspeita da obra e do pensam en-to? Os poem as m acabros de Cham isso, esse resultado da sublim ação no qual o sublim e oscila no horror, a paternidade reconhecida/ não reconhecida a propósi-to de Wilhelm Hertz representam falhas dessa aceitação, ou será a própria aceita-ção dessa “solidão de m orte, dessa intim idade polar” — para retom ar um outro poeta ( DICKINSON, 1989, p.49) — “de um a alm a que é adm itida a si m esm a”? Será que o jogo com os nom es ADELaïde DE Cham issot/ ADELbert VON Cham isso representa um a m aneira de m atar o pai, de instaurar a si m esm o com o origem — Adelbert, no alem ão arcaico quer dizer etim ologicam ente Adel = nobre e bert = célebre, renom ado — ou então de se inscrever na linhagem de seus pais, adap-tando-se à época e ao país?

(23)

cunhar suas m oedas, para sete m ilhões de thalers — o rei precisava de dinheiro depois da Guerra dos Sete Anos — preço pesado dem ais para eles se com pensa-rem com as m oedas desvalorizadas, sobre as quais o Estado ainda ganhava di-nheiro. Se na Prússia — e na Áustria tam bém , com o podem os ver em Freud — “Itzig” é o personagem de m uitas histórias de judeus em que é ridicularizado, é por causa desse negócio, pelo qual o rei era m ais responsável do que o banquei-ro. Edouard se converteu m uito cedo e juntou um “H” ao seu nom e, tão injuri-ado pela tradição popular. Mas há outras razões que explicariam sua presença na série dos pais para Cham isso. Foi em casa de Hitzig que ele sem pre encontrou refúgio nos m om entos de crise; em todas as circunstâncias Hitzig concedeu-lhe o apoio m oral, m aterial ou m undano — o apoio necessário para ser nom eado naturalista da expedição em volta do m undo — e foi seu prim eiro biógrafo, aquele a quem Cham isso escrevia em 1811: “Há um parentesco entre nós, tu és superior a m im , tens um coração para m e am ar e um a cabeça para pensar por nós dois. Sab es q u al é o m eu m ais caro d esejo p ara o s m eu s d ias d e velh ice? É apoiar m inha cabana na tua casa.” E de fato foi isso que aconteceu.

(24)

do Pai, sua “ som bra” , perm ite fundar um lar e encontrar por fim o Heim at, seu país natal.

Para dar prosseguim ento aos jogos literários, os jogos com as letras e os no-m es, as iniciais dos dois prenono-m es do prino-m ogênito de Chano-m isso, Ernst Ludwig, retom am as iniciais de Hitzig ( Edouard) e de Cham isso ( Louis) . Quanto aos outros filhos — afora MAx, o filho nascido na m esm a ocasião em que nasceu o filho de MArianne — suas iniciais retom am ora um a inicial de Cham isso ( o A) , ora um a de Hitzig ( o H ou o J) : Adelaïde, Johanna, Adolph, Herm ann e Adelbert. O fato de Max ter as iniciais do nom e da am ante de seu pai representa um a confissão, um m odo de assinar seu “ crim e” , ou ainda um a traição m uito m ais profunda diante de Antonie, m ais profunda do que ela pudesse im aginar: a dificuldade de escolher entre diversas m ães o quanto a prim eira tam bém tinha sido falha.

Um paciente de origem chinesa, bem integrado, sentindo-se m uito estran-geiro ante seu pai que não fala francês, sentindo-se m arcadam ente europeu entre os asiáticos, e sofrendo por ser rem etido à sua origem chinesa pelos europeus, contou que os prenom es chineses se com põem de duas partes: um a que é um significante escolhido pelos pais para todas as crianças da m esm a fam ília ( “Joli” [ bonito] , por exem plo) e a outra que é individual para cada criança, e que lhe é atribuída em função das circunstâncias que envolveram seu nascim ento: predi-ções, sonhos, ano do nascim ento, circunstâncias históricas ( “Pedra”, “Rio”, “Nu-vem ”, etc.) . O que em chinês pode resultar em Chou En- laî, En- yuan, En- hua. Mas ele, é claro, renunciou a tudo isso, casou-se com um a francesa, fala francês em casa, e deu a seus filhos prenom es franceses. Ele os cham ou de Daniel, Dam ian e David.

A questão do pai m e leva à questão da m orte, porque quando o pai se divide em duas partes no real, diz Lacan,

“o quarto elem ento é a m orte. É, de fato, da m orte im aginada, im aginária, que se

trata na relação narcísica. É tam bém a m orte im aginária e im aginada que se introduz

na dialética do dram a edipiano, e é dela que se trata na form ação do neurótico — e

talvez, até certo ponto, em algo que ultrapassa m uito a form ação do neurótico, a

saber, a atitude existencial do hom em m oderno.” ( LACAN, 1980, p.77-78)

Cham isso dizia de si m esm o que era um “hom em do futuro”. Talvez isso explique o sucesso de Peter Schlemihl.

(25)

“Tu és o único filho dele

Herdeiro do nom e que ele adquiriu para si mesmo

Deves um dia pretender à m esm a nobreza.” (grifo nosso)

A proxim idade da m orte, presente em toda a obra de Cham isso, nos poem as “cor-de-rosa” tanto quanto nos poem as “negros”, representa o abandono narcí-sico voluntário daquele que se encontra ante o vazio desse vínculo a si m esm o que se enrola sobre ele próprio, daquele que gostaria de “abarcar tudo”, e que vê tudo lhe escapar, ou será que isso é o que se poderia cham ar de um horizonte próxim o ao da análise, dessa planície de m ortos, onde os conflitos se aprofundam e se ordenam , e onde a vida é aceita sem ilusões? E o fato de que todas essas questões possam ser propostas é próprio da sobredeterm inação psíquica, desse em aranhado de interações com plexas dem ais para que possam ser separadas com facilidade, ou será essa a m arca particular da estrutura narcísica?

“O sujeito dessa m aneira tem sem pre um a relação antecipada a sua própria

realiza-ção, que o rejeita no plano de um a profunda insuficiência, e dá provas de que existe

nele um a fenda, um rasgo original, um abandono voluntário ( ...) . É nisso que em

todas as relações im aginárias, o que se m anifesta é um a experiência da m orte.”

( DICKINSON, 1989, p.49)

Enquanto isso, poderíam os dizer com Freud que

“a pesquisa psicanalítica nos perm ite seguir em outros casos os destinos das pulsões

libidinais, um a vez que estas, isoladas das pulsões do Eu, se encontram em oposição

a elas; porém , no dom ínio do com plexo de castração, perm ite-nos, pelo raciocínio,

subir de volta a um a época e a um a situação psíquica em que os dois tipos de pulsões

ainda agiam em uníssono, e se apresentavam com o interesses narcísicos num a m

istu-ra indissociável.” ( FREUD, 1914/ 1969, p.97)

Ou então, com Lacan, poderíam os enfatizar o caráter irredutível da estrutura narcísica:

“é em todas as fases do indivíduo, em todos os graus de realização hum ana na

pes-soa, que encontram os novam ente esse m om ento narcísico no sujeito, num antes em

que ele deve assum ir um a frustração libidinal, e um depois onde ele transcende a si

m esm o num a sublim ação norm ativa”. ( LACAN, 1966, p.119)

(26)

teve efeitos com paráveis aos de um térm ino de tratam ento: dar de novo a possi-bilidade de trabalhar e usufruir a vida ( idem ) .

“Vem os”, diz Freud em “O inconsciente”, “que aquilo que é rejeitado do Ics se torna consciente com o form ações substitutas ou sintom as; de m aneira geral, isso ocorre depois que o inconsciente sofreu deform ações consideráveis”. E ele aproxim a essa situação da do tratam ento: “Nós im pom os ao paciente que form e um a quantidade de rejeitos do Ics e, para fazê-lo, nós o obrigam os a superar as objeções que a censura opõe ao tornar conscientes essas form ações pré-consci-entes, e a vitória sobre essa censura abre para nós o cam inho para a abolição do recalcam ento” ( FREUD, 1913/ 1953, p.103) .

No ano seguinte, na Conferência XXIII, ele faz um paralelo entre o tornar conscientes as form ações fantasísticas, “graus prelim inares da form ação do so-nho e do sintom a”, e o tornar conscientes form ações fantasísticas na atividade sublim atória:

“... os profanos só retiram um prazer lim itado das fontes da fantasia. O caráter im

pla-cável de seus recalcam entos os obriga a contentar-se com raros devaneios que ainda

é preciso que se tornem conscientes. Mas o verdadeiro artista pode m ais do que isso.

De saída, ele sabe dar a seus devaneios um a form a tal que estes perdem qualquer

caráter pessoal suscetível de desagradar os estranhos, e se tornam fonte de prazer para

os outros. Ele sabe tam bém enfeitá-los de m aneira a dissim ular inteiram ente sua

origem suspeita. Possui, além disso, o poder m isterioso de m oldar m ateriais dados

até fazer deles a im agem fiel da representação existente em sua fantasia, e ligar a essa

representação de sua fantasia inconsciente um a quantidade de prazer suficiente para

m ascarar ou suprim ir — aufgehoben — pelo m enos provisoriam ente, os recalcam entos. Quando consegue realizar tudo isso, ele proporciona aos outros o m eio de novam

en-te oben-ter alívio e consolo nas fonen-tes da fruição, que se tornaram inacessíveis, de seu

próprio inconsciente; o artista atrai para si o reconhecim ento e a adm iração dos

outros e finalm ente conquistou, por m eio de sua fantasia, aquilo que anteriorm ente

só existia em sua fantasia: honras, poder, e o am or das m ulheres.” ( FREUD, 1916-17/

1969, p.354-355)

Adquiriu para si mesmo um nom e.

Freud sem pre esteve fascinado pelo conhecim ento que os escritores e os po-etas tinham do inconsciente, e procurou na literatura a confirm ação de suas próprias descobertas. Em 1922, ele escreveu a Schnitzler, com quem m anteve correspondência desde 1906:

“Um a questão m e atorm enta: por que em verdade, durante todos esses anos eu

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fre-qüentava seu irm ão m édico] . A resposta a essa questão im plica um a confissão que m e

parece íntim a dem ais. Penso que evitei o senhor por um a espécie de tem or de

encon-trar o m eu duplo. Não que eu tenha facilm ente a tendência a m e identificar com um

outro, ou que tenha querido negligenciar a diferença que nos separa, m as ao m

ergu-lhar em suas esplêndidas criações eu sem pre acreditei que encontraria aí, por trás da

aparência poética, as hipóteses, os interesses e os resultados que sabia que eram os

m eus. O seu determ inism o tanto quanto o seu ceticism o ( ...) , a sua sensibilidade às

verdades do inconsciente, à natureza pulsional do hom em , a dissecção que o senhor

fazia de nossas certezas culturais convencionais, a parada de seus pensam entos em

cim a da polaridade do am or e da m orte, tudo isso despertava em m im um estranho

sentim ento de fam iliaridade... Assim , tive a im pressão de que o senhor intuitivam

en-te sabia — ou anen-tes, sabia em seguida a um a sutil auto-observação — tudo aquilo

que descobri com o auxílio de laborioso trabalho prático com outras pessoas. Sim ,

creio que no fundo de si m esm o o senhor é um investigador das profundezas

psico-lógicas, tão honestam ente im parcial e intrépido com o ninguém nunca foi, e se o

senhor não fosse assim , as suas capacidades artísticas, a sua arte da linguagem e seu

poder criador teriam dado a si m esm os livre curso e teriam feito do senhor um

escritor m uito m ais ao gosto da m assa. Quanto a m im , prefiro o investigador. Mas

perdoe-m e se torno a cair na psicanálise, m as não sei fazer outra coisa. Só sei que a

psicanálise não é um m eio de se fazer am ar.” ( JONES, 1969, p.500-501)

Basta pensarm os no ódio que colhem os da parte de determ inados pais, quan-do um a criança em tratam ento com eça a m elhorar.

A sutil auto-observação do escritor, com o a auto-análise de Freud, com o o tratam ento, perm item , portanto, a aproxim ação à verdade do inconsciente, m es-m o que “o noes-m e ‘psicanálise’ só se aplique aos procedies-m entos ees-m que a intensida-de da transferência é utilizada contra as resistências” ( FREUD, 1913/ 1953, p.103) .

Com o é que eles chegam a isso?

“Um a cooperação entre um a m oção pré-consciente e um a m oção inconsciente, m

es-m o que esta esteja intensaes-m ente recalcada, pode se produzir, se a situação for tal que

a m oção inconsciente possa agir no m esm o sentido que um a das tendências dom

i-nantes. Dessa vez o recalcam ento é abolido, a atividade recalcada é adm itida à m edida

que reforça aquela a que o Eu se propõe. O inconsciente fica de acordo com o Eu por

essa única constelação, sem que por outro lado coisa algum a seja m odificada em seu

recalcam ento. Não se pode desconhecer o sucesso do Ics nessa cooperação; as

ten-dências reforçadas se com portam de m aneira bem diferente das tenten-dências norm ais,

tornam possível um a ação particularm ente perfeita e m ostram , a propósito das

con-tradições, um a resistência sem elhante à dos sintom as obsessivos, por exem plo.”

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Esta situação, que se encontra na criação literária, pode ser encontrada tam -bém no tratam ento, em que o que é visado é exatam ente aquilo que foi sepulta-do e se tornou inacessível pelo recalcam ento. E “é um a sim ples questão de técni-ca analítitécni-ca determ inar se vam os ter sucesso quanto a fazer aparecer com pleta-m ente aquilo que foi ocultado” ( FREUD, 1937, p.273) . A transferência sobre o analista e sobre os ideais analíticos, com o a concentração de libido sobre os objetos im aginários no artista, torna possível o reinvestim ento desse “território interm ediário da fantasia” que “goza do favor geral da hum anidade” e “onde todos aqueles que são privados de algum a coisa vêm buscar com pensação e con-solo” ( FREUD, 1916-17, p.354) . Esse reinvestim ento perm ite ao analisando re-encontrar a lem brança escondida, m as nem sem pre: “com m uita freqüência não se tem sucesso quanto àquilo que o paciente se lem bra do recalcado. Em troca, um a análise corretam ente conduzida o convence firm em ente da verdade da construção, o que, do ponto de vista terapêutico, tem o m esm o efeito de um a lem -brança reencontrada” ( idem , p.278) . Reescreve-se a história. O “em puxo” do recalcado “para cim a”, portanto, é ativado pela construção analítica ou literária e, graças à transferência ou à fraqueza constitutiva que im pede os recalcam entos extensos, perm ite preencher as lacunas da m em ória, vencer as resistências do recalcam ento, reconstruir sua história, recuperar um a continuidade de ser.

O analista, com o o escritor, leva em conta as leis que regem a vida do incons-ciente. Entretanto, ao contrário do analista, o escritor não precisa exprim i-las nem percebê-las de m odo claro “graças à tolerância de sua inteligência, elas são incorporadas a suas criações” ( FREUD, 1907, p.242) .

O analista, com o o escritor, constrói sua “obra” com a m esm a m assa, o fundo das im pressões e das recordações esquecidas, sejam elas “pessoais ou pertençam ao paciente, ao reescrever sua história”. Por que vias, por que processos esse fundo se introduz na “obra”, esta é um a sim ples questão de técnica literária ou analítica.

(29)

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Sabine Parmentier

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