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A crônica de Cecília Meireles: uma viagem pela ponte de vidro do arco-íris

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Academic year: 2017

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS

DEPARTAMENTO DE LETRAS CLÁSSICAS E VERNÁCULAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LITERATURA BRASILEIRA

Daniela Utescher Alves

A crônica de Cecília Meireles:

uma viagem pela ponte de vidro do arco-íris

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS

DEPARTAMENTO DE LETRAS CLÁSSICAS E VERNÁCULAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LITERATURA BRASILEIRA

Daniela Utescher Alves

A crônica de Cecília Meireles:

uma viagem pela ponte de vidro do arco-íris

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Literatura Brasileira do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, para obtenção do título de Mestre em Letras.

Orientador: Prof. Murilo Marcondes de Moura

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DEDICATÓRIA

Nas camadas invisíveis desta dissertação estão sedimentadas as palavras e as ações de muitas pessoas. Esta página me possibilita fazer o reconhecimento destes estratos, que são minha referência e nutriente.

Dedico este trabalho à Dora Utescher; cujo coração me educou com sabedoria, cuja casa me recebeu com o silêncio de que precisava e cuja amizade é uma das minhas poucas certezas inquestionáveis.

À Helena Goldammer Lenz; que, sem saber, ajuda-me a preparar este texto desde os meus cinco anos, quando, presenteando-me com as Reinações de Narizinho, deu-me mais que um livro, plantou em mim a paixão pela literatura.

Ao Douglas Utescher; que, quando eu estava perto de desistir, lembrou-me de tudo o que eu pensava a respeito da função social da arte.

Ao Leonardo Stamillo; o único homem com o qual seria possível compartilhar meu destino.

À Teodora; fonte abundante de aprendizado.

Ao Rafael; meu oásis.

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AGRADECIMENTOS

Se, em qualquer circunstância, eu teria de agradecer ao meu orientador, Prof. Murilo Marcondes de Moura, o ânimo com que abraçou meu projeto, asseguro que as circunstâncias especiais em que ele o fez o tornam merecedor de um duplo agradecimento. Testemunha do momento mais turbulento de minha vida, ofereceu-me sua compreensão e paciência sem, contudo, tirar os olhos do objetivo ao qual pretendia me conduzir.

Agradeço ainda os professores Marcos Antonio de Moraes e Augusto Massi, pela leitura miúda que realizaram da primeira versão deste texto e pelos comentários valiosos que fizeram por ocasião do meu exame de qualificação; bem como ao amigo Tomislav Deur, pela prontidão com que sempre atendeu aos meus pedidos de socorro em assuntos acadêmicos.

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RESUMO

Este trabalho objetiva oferecer uma visão de totalidade da crônica produzida por Cecília Meireles e indicar caminhos que permitam compreender as linhas de continuidade traçadas entre os diversos momentos de seu fazer jornalístico, desde o das contribuições – ainda na década de 20 – para o Jornal; passando pelos Comentários escritos para o Diário de Notícias – no início dos anos 30 – e permeando todo o longo percurso desenvolvido pela artista nos vários periódicos com os quais manteve vínculos na década de 40 – durante a qual trabalhou com vigor tanto conteúdos autobiográficos quanto o desconcerto do mundo em guerra – e nas duas décadas seguintes – em que assumiu com progressiva nitidez o papel de cronista de viagem. Ao explorar a arte, a educação e a espiritualidade como os elementos organizadores da integralidade dessa produção, seu escopo inclui ainda a pretensão de demonstrar a unidade do projeto literário da autora, através da aproximação entre o ideário expresso com clareza nos veículos de comunicação de massa e o subjacente à sofisticada elaboração de linguagem na poesia.

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ABSTRACT

The purpose of this work is to offer a vision of the entirety of the chronicle produced by Cecília Meireles and recommend ways to understand the lines of continuity drawn among the various times of her journalistic work, from her contributions – still in the 1920s – to o Jornal, passing through the commentaries written for Diário de Notícias – in the early 30s – and delving into the entire long trajectory developed by the artist in the various periodicals she maintained ties with in the 40s – during which she worked with vigor on autobiographical content as well as the disturbance of a world at war – and in the next two decades – during which she assumed the role of travel columnist with increasing clarity. By exploring art, education and spirituality as the organizing elements of the wholeness of this effort, its scope also includes the intention to show the unity of the author's literary project by bringing together the body of ideas clearly expressed in the mass media and underlying the sophisticated elaboration of language in poetry.

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SUMÁRIO

1. Introdução ... 9

1.1. Muitos papéis ... 9

1.2. O papel da prosa na história ... 11

1.3. O papel deste trabalho ... 14

2. 1901 – 1910: O reino da solidão ... 17

3. 1911 – 1920: A jovem sacerdotisa das musas ... 42

4. 1921 – 1929: Viagem pela ponte de vidro do arco-íris ... 56

5. 1930 – 1939: Um idealismo prático ... 77

6. 1940 – 1953: A felicidade interditada ... 105

6.1.1. A arte não é um luxo ... 119

6.1.2. Retratos poéticos ... 131

6.2. A distância não é nada, para os que sabem sentir ... 138

7. 1953 – 1964: Passeios inatuais ... 160

8. Conclusão ... 177

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“Afinal, vivemos e morremos pelo que foi ou não foi escrito num papel. E não me refiro às receitas dos médicos, mas o que não se adivinhou a tempo, o que não se entendeu direito, o que se interpretou demais – toda a nossa história, toda a nossa memória estão ligadas a muitos papéis, a muitos papéis. E ainda que os destruíssemos depois, somos também uns finos papéis, muito sensíveis, muito resistentes, onde aparecem coisas escritas, e depois intervalos em branco, e de novo mistérios, e ordens, e perguntas, e itinerários... E assim nos vamos desenrolando, tristemente, e vamos sendo outra vez enrolados, para algum dia, para nunca mais, para quem sabe quando...”1

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INTRODUÇÃO

1.1 Muitos papéis

Entrar em contato com Cecília Meireles é perder-se em papéis. Muitos papéis. Cecília Meireles foi, provavelmente, um dos escritores mais laboriosos da história da literatura brasileira. Sua obra compreende algo em torno de 2.000 poemas e um número superior a esse de crônicas, ensaios e outros textos em prosa, muitos inéditos em livro.

Diante de produção de tal modo caudalosa, não é de estranhar que quarenta e oito anos após seu falecimento inúmeros aspectos de sua obra permaneçam inexplorados pela crítica, sendo no entanto uma surpresa que um punhado de outros a tenham ocupado seguidamente. A freqüência com que determinadas abordagens foram revisitadas faz com que seja praticamente possível reunir os estudiosos de sua obra em grupos2.

Roger Bastide, Otto Maria Carpeaux, Ana Cristina César e José Paulo Moreira da Fonseca estão entre os que se ocuparam em discutir, a partir da obra ceciliana - com diferentes graus de rigor e com conclusões diversificadas -, a questão da poesia feminina.

Preocupados em questionar a brasilidade e a modernidade da autora, uns para afirmá-las, rebatendo opositores, outros para modalizá-las ou negá-las, estiveram Nelly Novaes Coelho, o mesmo Otto Maria Carpeaux, Lina Tâmega Del Peloso e Jorge de Sena.

Sobre a influência da mística oriental sobre a poesia de Cecília Meirelles, constatada por muitos, escreveram mais longamente Ruth Vilela Cavalieri, Ana Maria Lisboa de Mello e Dilip Loundo.

Otávio Mello Alvarenga, Adolphina Portella Bonapace, Alexei Bueno e Ilka Brunhilde Laurito são representantes de uma crítica que elegeu, entre os vinte e sete livros de poesia da autora, O Romanceiro da Inconfidência como objeto de análise. Vários outros são os que o combinaram ao livro Mensagem, de Fernando Pessoa, com o escopo de estabelecer correspondências entre a obra da poeta brasileira e a do poeta

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Falamos aqui genericamente em “ est udiosos de sua obra” , mas sentimo-nos na obrigação de ressalvar que alguns dos autores citados ocuparam-se de Cecília M eireles apenas ocasionalmente, dedicando a ela um ou out ro artigo ou ensaio. A fortuna crítica da aut ora do Romanceiro da Inconfidência conta com poucos volumes int egralment e dedicados a ela, como ressalt a Ana M aria Domingues de Oliveira em seu

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português. São representantes desse olhar Hiudéa Tempesta Rodrigues Boberg, Francisco Cota Fagundes, Margarida Maia Gouveia, Ana Maria Domingues de Oliveira. De modo mais abrangente ocupados das influências ibéricas ou do lusitanismo na produção poética da autora, estiveram Nádia Batella Gotlib, Sílvia Paraense, Nuno de Sampaio e João Gaspar Simões. A respeito das influências açorianas, supostamente herdadas de sua avó, dona Jacinta Garcia Benevides, debruçaram-se, por exemplo, Rui Galvão de Carvalho e a mesma Maria Margarida de Maia Gouveia.

Entre os livros que, conquanto menos estudados que O Romanceiro da Inconfidência, já mereceram estudos particularizados, estão o pioneiro Espectros, Poemas escritos na Índia e Solombra (todos por Darcy Damasceno, sendo que o último também originou um ensaio de João Adolfo Hansen); o premiado Viagem (por Paola Maria Felipe dos Anjos, José Maria de Souza Dantas e Cassiano Ricardo quando de sua defesa da obra no concurso da Academia Brasileira de Letras); o infantil Ou Isto ou Aquilo (por Luís Camargo, Tânia Cristina Valladão e Eliana Lucia Yunes); Amor em Leonoreta (por Natércia Freire) e Mar Absoluto (por Paulo Rónai, Antonio Rodrigues Belon e Darlene J.Sadlier).

Há, também, um grupo de críticos que procurou uma análise mais panorâmica da obra ceciliana ou que voltou seu olhar para os temas e motivos que perpassam transversalmente sua produção poética. Assim, Walmir Ayala, Maria da Graça Azis Cretton, David Mourão-Ferreira, Miguel Sanches Neto e novamente Darcy Damasceno discorreram sobre a morte, o desejo de transcendência, a natureza, a noite, a viagem, a música, o mar e a linguagem náutica de forma geral, a solidão e, com muito destaque, sobre a configuração do tempo, especialmente no que tange à reflexão que explícita ou implicitamente a autora impõe ao seu leitor a respeito da relação entre eternidade e efemeridade.

Como se pode verificar, desde que mais de uma dezena de livros de poesia ainda não foram singularmente submetidos a análise para que se conheça mais profundamente os procedimentos formais de que se valem e desde que os temas e motivos citados têm sido mais constatados e exemplificados do que postos em perspectiva e estudados em sua evolução temporal, há ainda muito a explorar no vasto território poético de Cecília Meireles.

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até então pois pretendemos, a seguir, historiar preliminar e concisamente as iniciativas realizadas nesse campo.

1.2 O papel da prosa na história

Cecília Meireles escreveu centenas de crônicas, artigos, conferências, ensaios e outros textos cuja classificação de gênero carece ainda de investigação. Parte ínfima desse trabalho foi compilada em livro durante a vida da autora. Quase todo ele teve, até recentemente, apenas a circulação fugaz e a distribuição espacialmente precária das publicações jornalísticas.

Inventariando panoramicamente essa produção, registramos que entre 1929 e 1930, Cecília colaborou para os números de domingo de O Jornal. Entre 1930 e 1933, dirigiu, no Diário de Notícias (RJ), a Página de Educação, para a qual assinou mais de 750 “Comentários”. Em meados da década escreveu para A Nação (RJ) e a Gazeta (SP) em no fim, foi redatora do Observador Econômico e Financeiro.

Na década de 40, contribuiu com A Manhã (RJ) - escrevendo a princípio a coluna “Professores e estudantes” e, depois, assumindo outros espaços - escreveu para a Folha da Manhã (SP); foi responsável pela revista Travel in Brasil, do Departamento de Imprensa e Propaganda, escreveu para o Correio Paulistano, para o qual enviava crônicas semanais; para a Folha Carioca; para a Revista Rio; para o Jornal de Notícias (SP. Crônicas suas apareceram também na Folha do Norte (Belém) e na Folha da Noite (SP).

Na década de 50, voltou a colaborar com o Diário de Notícias (RJ) e passou a escrever regularmente, também, para A Nação (SP), A Cigarra (RJ), O Estado do Paraná e O Estado de São Paulo, além de manter-se no quadro de colaboradores do Correio Paulistano.

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Entre 1963 e 1964, ano de seu falecimento, Cecília escreveu para a Folha de S.Paulo.3

A lista é impressionante e sugere, talvez, uma pista para entender a dimensão aparentemente inusitada da popularidade da escritora em um país que não tem um público leitor de poesia representativo.

Ao longo de 35 anos de exposição na imprensa, é provável que a figura pública de Cecília Meireles tenha se moldado, entre os seus contemporâneos, mais a partir de seu fazer jornalístico – cotidiano, desmitificado, propício à apropriação do leitor médio – do que a partir de seu fazer poético – esporádico, propício à apropriação de um leitor seleto, “iniciado”. Essa perspectiva, aliás, se reforça à medida em que lembramos que parte desse período é anterior ao advento das transmissões televisivas e que o jornal impresso e o rádio (veículo do qual ela também se aproximou) desempenhavam, nessa época, um papel social de maior centralidade do que desempenham hoje. Aliás, a visibilidade e penetração do jornal não escapou à própria Cecília, que no “Comentário” do dia 23 de setembro de 1930 na Página da Educação, ao discorrer sobre a responsabilidade da imprensa, declarou: “O jornal substituiu a biblioteca.”

De toda essa extensíssima produção jornalística, fixaram-se em livro durante a vida da autora algumas poucas crônicas que, pela temática, editorialmente aproximam-se do universo infanto-juvenil (Giroflê giroflá, 1956); e um punhado de outras, escritas para o programa Quadrante e organizadas por Murilo Miranda em dois volumes de autoria coletiva (Quadrante, 1962 e Quadrante 2, 1963). Em 1964, colaborações efetuadas para o mesmo programa renderam a coletânea individual Escolha o seu sonho.

Póstumas foram as coletâneas Inéditos (1967); Ilusões do mundo (1976), este uma reorganização dos Inéditos; O que se diz e o que se entende (1980); e Olhinhos de gato (1980).

Diante da escassez das publicações, do tipo de seleção de textos realizada pelos organizadores das coletâneas póstumas (privilegiando o lirismo e banindo a polêmica) e do tradicional menosprezo da crítica literária brasileira pela crônica, considerado um gênero menor apesar do considerável grau de elaboração estética que vêm apresentando

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no país, não surpreende que a academia tenha, por mais de trinta anos, estudado a poeta Cecília Meireles e não a escritora polivalente que a mesma foi.

Os efeitos dessa opção (ou desse acaso) foram nefastos. Consecutivas gerações de estudantes/leitores foram formados ouvindo seus professores reproduzirem meias conclusões meio fundamentadas sobre Cecília. No movimento de simplificação que a história literária transmitida através da instituição escolar se propõe a realizar, ela passou a ser uma representante da poesia feminina, introspectiva e alienada da realidade social que em um só momento superou essa fragilidade. Esse momento vem a ser o da escrita do Romanceiro da Inconfidência, único livro que, para essa história, parece realmente digno de comentário, único que talvez os educadores tenham lido.

Ainda hoje, se abrirmos os livros didáticos de língua e literatura do Ensino Médio das quatro editoras com vendagem mais expressiva (Atual, Moderna, Ática e Scipione) nas páginas ou, em dois dos casos, na única página reservada a Cecília Meireles, leremos afirmações categóricas sobre seu “lirismo delicado”, sobre sua poesia “de profunda sensibilidade feminina”, e, salvo no livro da Atual (Português Linguagens), nenhuma referência ao fato de Cecília ter tido uma produção jornalística e ter assumido lugar de destaque nos debates políticos, culturais e educacionais de sua época.

Somente em 1995 a prosa ceciliana foi retomada. Provavelmente não por acaso a pessoa responsável por isso não veio dos meios acadêmicos literários, mas do jornalismo. Valéria Lamego apresentou a dissertação de mestrado A Farpa na Lira, posteriormente transformada em livro, na Escola de Comunicação Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Para escrevê-la, resgatou e analisou os “Comentários” escritos para a Página da Educação do jornal Diário de Notícias nos primeiros anos da década de 30.

Em 1997, apenas um ano depois da chegada ao mercado editorial de A Farpa na Lira, Tânia Cristina Valladão apresentou tese de doutorado na mesma UFRJ (mas na Faculdade de Letras) analisando a produção literária infantil de Cecília Meireles através de relações entre sua poesia e as posições teóricas sobre educação defendidas em artigos publicados no Diário de Notícias e em A Manhã.

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os Comentários analisados por Lamego e que, sozinhos, recheiam cinco dos volumes citados (denominados de Crônicas de Educação), passaram a haver, desde então, mais 1.234 páginas de material esperando ser iluminado, manipulado, relacionado à vida e à obra de sua criadora para a construção de um seu retrato mais completo (distribuídas em um volume de Crônica em Geral e três de Crônicas de Viagem).

Algumas dessas páginas foram aproveitadas por Leila V. B. Gouvêa em Cecília em Portugal, obra instigante, chegada às livrarias em 2001, na qual a pesquisadora articula pesquisa de campo, cartas, crônicas e poemas para reconstituir as viagens da escritora àquele país. Da mesma autora veio à tona sete anos mais tarde Pensamento e “Lirismo Puro” na Poesia de Cecília Meireles, obra que resultou de sua tese de doutorado defendida em 2003 e que, assim como a anterior, revela o bom trânsito de Gôuvea pela prosa ceciliana, ainda que esta seja acessada apenas na medida em que possibilita à exegeta fundamentar sua análise e interpretação da poesia lírica da autora de Vaga Música.

Marcos Antonio de Moraes, na apresentação e nas notas de Três Marias de Cecília, que publicou em 2006, num resgate pioneiro em solo brasileiro da epistolografia da poeta (especificamente, neste caso, de cartas e postais remetidos às filhas durante os períodos de afastamento ocasionados por suas viagens), mostra-se igualmente um leitor atento das crônicas cecilianas que vão, então, impondo-se como um suporte importante para a construção de conhecimento acerca do pensamento, da obra e da vida da artista.

1.3 O papel deste trabalho

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Recentemente a disciplina e a linha de pesquisa sobre os Cronistas Viajantes do Século XX têm produzido, na Universidade Federal do Paraná, monografias e dissertações especificamente sobre as Crônicas de Viagem de Cecília. Em 2008, Maria Valdência da Silva obteve o título de doutora pela Universidade Federal da Paraíba com a dissertação As crônicas de Cecília Meireles: um projeto estético e pedagógico. Na primeira parte do trabalho, propôs um entrelace entre textos das Crônicas de Educação que destacam a questão da educação estética e textos da coletânea Escolha seu sonho em que o lirismo se constrói em sintonia com a reflexão teórica, evidenciando a coerência de uma autora que se preocupou em igual medida com a literatura e com a formação do leitor. Na segunda, dedicou-se a averiguar a recepção das crônicas – especialmente as da coletânea citada – pelo leitor de hoje, principalmente aquele em idade escolar. Recuando ainda mais no tempo, como já registramos, Valéria Lamego se ocupou das Crônicas de Educação delas extraindo com muito destaque a participação de Cecília Meireles no debate educacional de sua época no que ela teve de mais política. A essas visões parciais, pretendemos acrescentar uma mais abrangente, pois, apesar de cientes de que a pretensão de totalidade tende a comprometer em alguma medida a profundidade que se faz possível alcançar na análise de corpora mais restritos, consideramos que as edificações que se erguem em terrenos não aplainados dificilmente escapam a apresentar problemas de fundação. Uma apresentação da prosa de Cecília que procure resgatar a dinâmica do desdobramento de suas colaborações para a imprensa é, ao nosso ver, a contribuição mais útil que podemos oferecer para futuros trabalhos que se desenvolvam sobre o tema.

Como uma parte consistente da prosa de Cecília apresenta um viés claramente autobiográfico e a parte que se afasta desse viés, enveredando pela reflexão social, política e educacional, expressa ideias que são – como não poderiam deixar de ser – tributárias das experiências e da formação da artista, optamos por organizar nosso estudo a partir de um movimento duplo: de exploração da vida de Cecília através do tangenciamento de sua crônica e de exploração da crônica de Cecília através do tangenciamento de sua vida.

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adolescência (nos capítulos que intitulamos respectivamente 1901- 1910: O reino da solidão e 1911-1920: A jovem sacerdotisa das musas) são as crônicas que alinhavam os dados de vida que julgamos serem de conhecimento importante para a discussão da obra da escritora. Nesses segmentos, damo-nos a liberdade de acessar textos escritos por Cecília em momentos muito distintos, uma vez que o objetivo de tais páginas não é historiar uma produção que ainda não existe e nem escrever biografia no sentido mais estrito do termo, mas descobrir o quê a própria Cecília julgou ser imprescindível sobre seus anos de formação e escolheu compartilhar com seus leitores. Já nos capítulos seguintes, (1921 - 1929: Viagem pela ponte de vidro do arco-íris, 1930 – 1939: Um idealismo prático, 1940 – 1953: A felicidade interditada e 1953 – 1964: Passeios inatuais) quando a vida narrada passa a incluir a prática da prosa jornalística, procuramos sincronizar vida e obra tentando ao máximo recorrer apenas à prosa escrita no próprio período abordado, a fim de delinear características e investigar tanto as novidades quanto as continuidades que apresenta em relação aos demais períodos.

Ao contrário do que acontece na maior parte da fortuna crítica de Cecília Meireles, nas próximas páginas a poesia da escritora é que aparece subsidiariamente, sendo que quando destacamos um ou outro poema não é com a pretensão de exaurir sua leitura ou tentar tocar esse rico e complexo universo lírico com a penetração que alcançaram alguns dos seus exegetas mais fiéis, mas com a intenção de registrar a consistência e organicidade de seu projeto.

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2. 1901 – 1910: O REINO DA SOLIDÃO

“Meu pai talvez tivesse amado a História e os poetas românticos; mas o que para sempre se celebrou de sua curta vida foram os seus conhecimentos acerca do pão-de-ló. Porque o pão-de-ló, com toda aquela simplicidade aparente, possui segredos de estilo: há do seco, há do úmido, há do pegajoso, e não é qualquer que consegue fazê-lo subir com essa branda arquitetura sem arrogância, que no alto adquire morenidão e ternura de rosto humano, não é qualquer que sabe concentrar nessa tranquila face tostada um ponto de mel, como o sorriso das flores.

Falava-se das receitas de meu pai como se fossem versos, novelas, romances para sempre inéditos. E como o pão-de-ló na verdade, era apenas um ponto de partida, cada doce que desabrochava na mesa trazia, segura do oloroso cravo, como borboleta presa em alfinete, uma saudosa inscrição com o nome de meu pai (...)..” 4

Cecília Meireles contava já quarenta e cinco anos quando, em 24 de agosto de 1947, publicou a crônica “Mesa do passado” na sessão Letras e Artes do periódico carioca A Manhã. Era uma escritora madura e prestigiada expondo a seu público, sem amargura, lembranças de um pai que só conheceu através de relatos, já que falecido três meses antes de seu nascimento, ocorrido a 7 de novembro de 1901.

Carlos Alberto de Carvalho Meirelles não foi a única ausência na infância de Cecília, e nem a única sobre a qual a artista escreveu naquele ano de 1947. Há meses ela vinha enviando para A Manhã crônicas autobiográficas e elaborando, pela via de uma prosa marcadamente poética, episódios e sensações de seus primeiros anos de vida.

Não era a primeira vez que se dedicava a essa tarefa: entre 1939 e 1940 publicara, em capítulos, na revista portuguesa Ocidente, memórias de uma idade pré-escolar. Esses textos, reunidos depois no livro Olhinhos de gato, davam vida às

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personagens fundamentais dos seus anos de formação, valendo-se, contudo, de duas estratégias de distanciamento: o narrador em terceira pessoa e o uso de cognomes para as pessoas mais próximas – como a avó materna Jacinta Garcia Benevides, chamada Boquinha de Doce; a ama negra Pedrina, chamada Dentinho de Arroz; as outras criadas e alguns dos parentes que freqüentavam a casa da avó, como a Maria Maruca, a Có, o padrinho Louzada, chamado Orelhinha Peluda e a própria Cecília, chamada Olhinhos de Gato.

Neste sentido, as crônicas enviadas para A Manhã poucos anos depois não só tornavam o pacto autobiográfico mais explícito, através da narração em primeira pessoa, como também traziam o leitor para uma esfera diferenciada de intimidade à medida que chegaram a atribuir às personagens invocadas seus nomes reais. Exemplo disso é a pungente e delicada “Conversa com as crianças mortas”, de 1º de junho, na qual Cecília descreve os três irmãos que só conheceu através de um álbum de retratos. Nela, desfilam as “sombras delidas” de Carlos (cuja sorte, para a família, era “tão sem sentido [...] como o olhar do seu cavalinho, pintado para não ver nada”), de Vitor (cujos “pés nem chegaram a suportar o peso do [...] corpo” e cujos “dedos de seda ainda eram inumados, como pétalas, como água modelada”) e de Carmen (para quem “de repente já não haveria mais tempo: o relógio grande com todas as suas molas estava triturando o fio delicado dos seus movimentos”).

A crônica revela o quanto foram curtas as vidas dos três filhos que Maria Matilde Benevides Meirelles deu à luz antes de Cecília e insinua o motivo do falecimento de dois dos pequenos, ocorrido em uma época que não dispunha de recursos diagnósticos precisos. Carlos faleceu após uma “febre grande” que lhe pôs “flores de fogo” no rosto e fez sua “carne ardente entre os serenos cortinados”. Vítor, cujo “choro na noite era um choro inconsolável”, morreu de uma “dor inexplicada". Carmen, das três crianças, foi a mais chorada, pois foi a que mais tempo de convivência teve com a família e mesmo assim pouco viveu além da fase em que se aprende a andar: sua “sombra pequenina se apressou pelas salas, menor que qualquer móvel” e “foi solícita e diligente”.

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imagético associado a cada um, especulando o que poderia ter sido o crescimento ao seu lado e consolidando, certamente a partir de relatos alheios, recordações do que não viu.

“(...) podíamos ter sido quatro crianças de mãos dadas brincando sob as laranjeiras. E fui só eu. Podíamos ter sido quatro adolescentes, deslizando, enlaçados, pela franja dos mares. E fui só eu. Podíamos ter sido dois homens e duas mulheres, pensativos, conversando sobre a vida. E fui só eu. Podíamos ser quatro velhinhos, um dia, relembrando-nos um a um. E sou eu que vos recordo.” 5

Esse recordar póstumo a que o parágrafo transcrito alude, o leitor de “Conversa com as crianças mortas” poderia pensar estar condicionado às recordações de Maria Matilde. Seria esperado que uma mãe que vivenciou a perda de três bebês falasse a respeito deles com carinho e saudade durante muitos anos e que, sendo esta mãe uma viúva, na ausência do companheiro para compartilhar as memórias deste destino, dele fizesse participar mais intensamente a filha sobrevivente. No entanto, Olhinhos de gato já expusera ao público de Cecília Meireles a extensão impactante de sua orfandade: nascida sem pai e irmãos, a menina ficou também sem a sua mãe a partir dos três anos de idade. E, apesar da memória incomum, quase prodigiosa, não conseguiu dela fixar com nitidez sequer os traços faciais:

“(...) a lembrança mais remota da sua vida era (...) um quarto de onde saíam e entravam homens (...) levando nos braços os pedaços dos móveis desarmados. Só uma cama ainda restava inteira, e um banquinho baixo, como aqueles em forma de W. O banquinho estava encostado à parede, perto talvez de uma janela. E na cama estava deitada a moça, que de repente se sentou, passando as pernas para o lado de fora. Nesse momento, eram só duas pessoas: ela e a menina. Depois, não havia nada. Que se

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passou? Para onde foram? Como desapareceram as duas figuras? A moça tinha cabelos pretos, e estava toda de branco.

Todas as vezes que ela pedia que lhe explicassem onde era, quem era, Boquinha de Doce ficava impressionada e triste. Mas, um dia, fez um esforço, e declarou, em voz baixa: ‘Tua mãe.’ (...)

Mais tarde, esteve comentando essas lembranças com outras pessoas. ‘Tão pequenina, meu Deus! Tão pequenina! Como é que pode ter guardado aquilo?’ Então, OLHINHOS DE GATO, ali perto, recompunha dentro de si aquela visão. E sofria por não sentir a figura com mais clareza: via o movimento, a cor da roupa, o desenho sumário das pernas e dos braços. O cabelo preto contornava um rosto vago”.6

A Boquinha de Doce a que o texto faz referência, e que já enunciamos ser a avó Jacinta Benevides, foi quem assumiu a guarda de Cecília. Essa avó forte e sofrida que, como outras avós de um tempo duro em que “as crianças caíam do colo das mães”, ia, com os “olhos cinzentos como poças”, palpitando em “regiões de misericórdia”, receber “nas mãos os meninos inteiriçados, já frios, com as recurvas pestanas hirtas nos nacarados olhos de magnólia”, foi, portanto, quem emprestou a Cecília olhos para ver o passado.

Foi dela, por exemplo, o olhar que, talvez muitos anos antes de Cecília tornar-se mãe, ensinou-lhe uma peculiaridade poética do tornar-sentimento materno, que é a contemplação dos filhos e netos nas suas variadas dimensões de beleza, aí incluindo a beleza corporal. Lendo “Conversa com as crianças mortas”, o leitor entende que a cronista está resgatando de seu passado a ladainha possivelmente por muitos anos desfiada por Jacinta quando retrata as avós que “olhavam para os meninos frios como se segurassem um ramo de flores”:

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“E muito depois ainda contavam como eram feitos de leite e coral, tênues como nuvens, tão formosos, tão perfeitos que era uma dor saber como todo aquele trabalho secreto de beleza já se estava arruinando, já era ruína, e que a rosa num jarro seria mais longa que aquele corpo na terra”. 7

Essa nuance da maternidade, que implica em autêntico estado de paixão, e que estamos aqui sugerindo ter sido intuída por Cecília em sua mais tenra infância, enquanto admirava com a avó os “três pedaços de papel amarelado” a que se haviam reduzido os irmãozinhos, o que despontava nela própria o ímpeto de acarinhar-lhes os corpinhos através das fotos8, rendeu-lhe, na maturidade, uma de suas crônicas de maior labor literário, “Cântico dos cânticos”, publicado em A Manhã a 3 de fevereiro de 1943.

Apropriando-se do título do poema bíblico em que tão entranhadamente se mesclam os sentimentos mais físicos aos mais espirituais, a ponto de não ser possível determinar qual prevalece sobre o outro, a escritora lança aos olhos estupefatos do leitor a surpresa de um texto que traz não a história de um amor entre um homem e uma mulher - como é a do poema atribuído a Salomão - mas entre uma mãe e seu filho. Este filho, um certo Antônio, a quem os vizinhos chamavam “o aleijado”, bem pode ter sido baseado em personagem real da infância da narradora9. Hemiparético (“Esquecido o braço, esquecida a perna.”), para as crianças ele “era estranho e assustador. Sua cara vermelha parecia toda inchada. Seu nariz era um amontoado de caroços, lustrosos e arroxeados.” Só “a velhinha mãe de Antônio” era capaz de enxergar nele o que para todos os outros estava oculto, assim como no Cântico dos Cânticos só os rabinos e iniciados são capazes de enxergar, por trás das angústias e doçuras de uma paixão, a relação de amor entre Deus e o Povo Escolhido. Mas dessa sua capacidade ninguém tomou conhecimento durante a vida do filho.

7

M EIRELES, Cecília. Crônicas em Geral. “ Conversa com as crianças mortas” . Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1998, p.208-210.

8

Idem. “ (...) Vítor, olhávamos para os teus pezinhos encolhidos como os passarinhos fart os que os chineses pint am. E cada dedo da t ua mão era t ão lindo que até no papel eu os af agava, encant ada. E queria tocar o babado do teu largo vestido, e apalpar a estofada poltrona que t e aconchegava.”

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Quando o homem faleceu, depois de ter pousado durante muitos anos sobre a bengala sua “grande mão roxa, grossa, de pêlos amarelos e veias roliças como canos de chumbo”, foi que a velha desabafou com as vizinhas e as crianças puderam ouvir:

“ ‘O corpo dele – Jesus de minhalma! – o corpo dele, o que aquilo era, de branco! De branco, de azul e de cor-de-rosa! Era um leite, era este mármore, era de flor de laranjeiras, de espuma e de sal! E o que aquilo era de azul – Jesus de minhalma! – era um anil, era uma turquesa, era este céu, era o meio do mar! E tinham umas cores – Jesus da minhalma! – que nem rosa encarnada, que nem cravo, que nem a carne da melancia, e o bago da romã! E o que aquilo era de fino: que nem cera, que nem marfim, que nem seda, que nem aljôfar! Jesus de minhalma! E os seus peitos eram como duas flores abertas! E o seu umbigo era um botão de jasmim! Como é que hei de dizer o que ele era, Jesus da minhalma! Jesus da minhalma! Seu corpo era o de uma Virgem, era o de um São Sebastião, sem defeito e sem mancha! Um pêlo que houvesse era um fio de ouro – nem isso – era uma claridade, era assim como o sol! Jesus de minhalma! Eram como o luar, os pés que Deus lhe deu! Tão bem feito, tão bonito, como a obra de um ourives! Jesus da minhalma, aonde irei atrás dele? Sua boca está falando no meu peito, e seus olhos são duas estrelas diante de mim!...”

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Nele, a escritora retrata uma Cecília criança (uma Cecília do “tempo encantado em que [a] chamavam ‘Coisinha’”10) que, percorrendo o “álbum de retratos em cuja pesada capa de couro voam anjinhos de bronze com asas de borboleta” - certamente o mesmo em que se encontram as fotos de Carlos, Vítor e Carmen aludidas em “Conversa com as crianças mortas” - depara-se, página após página, com fotos de parentes já mortos. E eis que, entre “a moça de caracóis e broche redondo”, “o jovem de plastrom e roupa debruada de seda”, “senhores de casaca”, “moças de topete”, “meninas de roupas esquisitas”, “casais pensativos”, “meninos magros, de botinhas e meias compridas”, “gordas senhoras com camafeus e corais” e “velhos magros, de pincenê”, chega às “criancinhas sentadas em poltronas de veludo”, entre as quais lhe informam haver um retrato seu. A revelação tem sobre ela um impacto poderoso e conduz seus pensamentos por uma via que dificilmente seria acessada por uma criança de histórico familiar e de perdas distinto do seu; uma via que carece ser percorrida em companhia das palavras da narradora, com o perdão do leitor para a citação extensa:

“Era ela! – e não se lembrava. Ainda não tinha cachos. A bem dizer, não tinha mesmo cabelo. E, em toda a coleção de retratos, - dos senhores de casaca e das senhoras de vestido de cauda – aos meninos de bengalinha, e às meninas de laçarote, era a única a aparecer assim despida, com um trapinho branco que nem lhe tapava o umbigo.

Não virava depressa essa página. Ficava pensando muito tempo sobre muitas coisas, e comparando-se aos retratos dos irmãozinhos, deixados para trás e tão bem sentados com suas amplas camisolas, entre esplêndidas almofadas. E, como quanto mais se olhava mais se encontrava perdida, esquecida, diferente, - não podia quase acreditar que se encontrasse diante de si mesma. ‘Eras assim. Não te lembras?’ Não. Não se lembrava. Então, talvez também tivesse morrido em parte. Talvez fosse uma criança já

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morta, como as outras... E continuava a olhar com certa aflição para essa que tinha sido – procurando sentir onde estavam agora seus pés encolhidos, sua boquinha tão mole, seu corpo que ainda nem se podia sentar.

E, como a do retrato estava morta, e no entanto sobrevivia, - quem sabe andaria, por algum lugar, alguma coisa de todos os outros mortos, que, por isso, continuavam ali, tão tranqüilos, naquelas antigas posições?”11

Além de momentos epifânicos em relação aos aspectos emocionais, religiosos ou filosóficos da morte, como é o caso do episódio narrado nessa crônica, podemos com alguma segurança supor que o ter sido criada em um lar marcado por lutos tão consecutivos – uma casa que “não deixa entrar dentro de si um raio de sol, um sopro de ar”12 – contribuiu para forjar uma sensibilidade propensa à introspecção e, o que é menos óbvio, um olhar para as coisas diminutas. Como essas características se entrelaçam, condicionando-se mutuamente, tentaremos observá-las em simultâneo, tomando como ponto de partida a revelação feita na já citada crônica “Página da infância” de que quando as crianças da vizinhança chamavam “Coisinha” para brincar, não a deixavam ir: “Não a deixam ir, porque há sarampos, coqueluches, perebas... ‘É a morte certa! – diz a criada – esticas a canela que nem se tem tempo de chamar o doutor de mula russa!’”. Ora, os compreensíveis temores da família pela saúde da pequena Cecília, cuja vida a avó se via na obrigação de preservar através de cuidados eventualmente extremados, tiveram como efeito colateral o encapsulamento da menina em um universo adulto e caseiro, no qual a solidão foi sua companhia mais certa: “Solidão, solidão... Acumulam os dias de solidão” é o que escreve a cronista.

A potência da frase se eleva à medida que lembramos que ela, como aliás todo o texto de “Página da infância”, não era inédita quando de sua publicação por A Manhã, em 45, ou seja, a escritora escolheu expor reiteradamente ao público a origem remota da solidão que mais tarde viria a reconhecer como um valor e uma condição para o trabalho artístico. De fato, com pouquíssima alteração, a crônica havia sido literalmente

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M EIRELES, Cecília. Crônicas em Geral. “ Página da infância” . Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1998, p.169-172.

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desentranhada de “Olhinhos de gato”, que nos dá, adicionalmente, a oportunidade de entender como a vida organizada pelos limites da casa e de seu quintal e uma certa monotonia determinada pela ausência de irmãos – em uma época em que as famílias tendiam a ser numerosas – desviaram a menina Cecília das brincadeiras, das pequenas disputas, das furtivas e inocentes aventuras – enfim, da atmosfera um pouco eufórica que habitualmente marca a primeira infância – e a predispuseram à observação demorada das coisas ao seu entorno:

“O assoalho, que os outros pisam indiferentes, tem, no entanto, suas paisagens secretas. É porque ninguém contempla muito as linhas e cores da madeira. (...) A princípio parecem apenas riscos, sem nenhuma significação. Mas pouco a pouco se observa que há ondulações de águas, praias, montanhas, um estremecimento de pássaros, florestas densas, que escurecem (...). Há um outro mundo, no assoalho que se pisa indiferente. (...) Há outros mundos, também, noutras coisas esquecidas; nas cores do tapete, que ora se escondem ora reaparecem, caminhando por direções secretas. As pessoas de pé, olhando de longe e de cima, pensam que tudo são flores, grinaldas de flores... flores... Mas OLHINHOS DE GATO bem sabe que ali há noites, dias, portas, jardins, colinas, plantas e gente encantada, indo e vindo, virando o rosto para lhe responder, quando ela chama...

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são feitas: recortes, parafusos, encaixes, pedaços de cola... (...)

O avesso dos panos é uma revelação: que estranhos caminhos tem de seguir cada fio para, em sentido contrário, formar os desenhos que todos admiram!

(...) E a Terra, que ninguém observa muito, é igualmente um espantoso mundo repleto de maravilhas aparentes e ocultas. Ninguém dá conta dos filamentos de erva que uma só gota de orvalho, às vezes, prostra. Ninguém se lembra da solitária cintilação de um grão de areia. Ninguém vê que o úmido caracol e a ruiva formiga cumprem seu inexplicável destino expostos miseramente ao risco dos imensos pés distraídos que passam...”13

É interessante observar quantas imagens importantes para a Cecília Meireles adulta esse trecho de prosa memorialística condensa. As peculiaridades dos pisos e dos tapetes, o avesso dos panos, os minerais, vegetais e diminutos animais de um jardim são coisas e seres em que muitas crianças reparam com curiosidade, encantamento e acréscimos de imaginação enquanto alternam o engatinhar e o andar - naquela rotina própria dos dois a quatro anos de idade, em que o sentar-se no chão é uma freqüente -, mas raras os carregam como interesses depois que o crescimento muda a altura e direção de seu olhar.

Cecília, talvez por ter vivido esses estímulos por mais tempo e com maior profundidade, em razão da solidão e da limitação de deslocamentos, tornou-se moça e mulher aprendendo a levar seus olhos para adiante e para o alto sem perder de vista a possibilidade de contemplar o mundo complexo que aprendera estar sob seus pés. Chegou mesmo a louvá-lo como contraponto à realidade circundante em um momento em que o que estava à altura do olhar era repulsivo e sugeria a conveniência de um retorno a um estado de quietude e ingenuidade perdidas. Nessa direção, lembramos a crônica “Jardins de vista e de cheiro”, publicada em A Manhã a 21 de setembro do ano

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de 1947, quando a comunidade internacional ainda estava convulsa diante dos saldos do conflito mundial há pouco terminado:

“Feliz aquele que pode ficar longamente sentado à beira de um desses tapetes onde o mundo se reduziu a jardim e o jardim a um sábio jogo de cores, certo e imortal! Viaja-se por esViaja-ses tapetes como através de uma paisagem viva: macias solidões se alongam para os nossos olhos, num espreguiçamento: alamedas de aurora, ermos de luar, brilhantes recantos de nácar, baralhando o arco-íris de pelúcia de pétalas.

(...) Jardim desenrolado em silêncio – o pequeno paraíso no meio deste mundo de guerras, o tapete é um convite à meditação. Por ele se pode ir sempre mais longe, a lugares cada vez mais belos; talvez porque o fantasma sombrio do homem não atravessa o esplendor desse divino isolamento. Às vezes, num deserto mais amplo de ouro ou de esmeralda, estremece uma simples flor, ou parece que se encontra uma nuvem. Mas criaturas, não. Nem mesmo os animais cuja presença é, às vezes, como a de anjos emparedados: nem a gazela tão meiga, nem os pombos, tão tímidos, aparecem por esses parques de imóveis flores. Poder-se-ia reclinar a cabeça, e até suspirar: ‘Oh, ausentes, quando sereis tão perfeitos que se possa copiar vosso perfil num tapete, sem perturbar a beleza e a eternidade desses harmoniosos jardins?’”14

Curiosamente, dois anos antes, em 1945 portanto, Cecília publicara em Mar Absoluto e Outros Poemas um poema intitulado simplesmente “Tapete”15, no qual

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M EIRELES, Cecília. Crônicas em Geral. “ Jardins de vista e de cheiro” . Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1998, p.169-172.

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tratava de uma peça de tapeçaria que despertava reflexões exatamente por conter, em seu desenho, figuras humanas:

No tapete chinês há dois homens sorridentes que dia e noite dão de comer uma eterna comida

a duas aves gorduchas que comem sem pausa e sem movimento

Todos vão e vêm por cima deste tapete redondo com uma ponte longínqua sobre um céu amarelo.

Todos pisam estes dois homens, as suas aves, a sua comida.

E os homens estão sorrindo, e este alimento não se acaba, e as aves, de cabeça baixa,

continuam para sempre comendo...

O texto se insere entre os “outros poemas”, especificamente os reunidos sob o título “Os dias felizes”, e tem como companheiros no volume poemas de temática predominantemente vinculada às memórias de infância. Assim, apesar da data de publicação, é lícito lê-lo partindo do pressuposto de que, ao contrário da crônica e ao contrário mesmo de muitos dos Poemas do conjunto nomeado Mar Absoluto, não tem a questão bélica como pano de fundo. Nesse contexto, torna-se ainda mais interessante observar a ótica através da qual o tapete entrou e permaneceu no rol de objetos/imagens importantes para Cecília. Isso porque o poema, escrito em plena maturidade, resgata a indignação que a Cecília criança já sentia em relação ao fato de as coisas do chão se encontrarem expostas à indiferença dos passantes, conforme ela registrou em Olhinhos de gato.

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inversão de expectativas muito sagaz. Em vez de os seres humanos que cohabitam o espaço do tapete o explicarem, ele é que os explica.

Assim como o tapete de “Jardins de vista e de cheiro” colocou um holofote sobre a condição de indignidade dos homens promotores de um “mundo de guerras”, este tapete lança luzes sobre a pressa, a indiferença e o descaso – este podendo ser entendido tanto no âmbito artístico quanto no social – afinal, a terceira estrofe, composta por um único verso, isolado (“Todos pisam estes dois homens, as suas aves, a sua comida.”), cintila polissemias. Os que pisam com displicência uma peça artesanal (sim, porque Cecília nunca se refere a tapetes produzidos em série), sem pudor de ignorar a imaginação criadora e o demorado trabalho manual que se embutem ali, não seriam também os que pisam povos e culturas, considerando que a utilidade de cada coisa ou ser se sobrepõe ao seu valor? Visto assim, como catalizador de sentidos, “o tapete é um resumo da vida”16, da mesma forma que o jardim.

Quando bem pequena, Cecília presenciou o “milagre” do renascimento de um jardim, precisamente o da casa de sua avó, onde morava. Dizia-se que ele já havia sido fértil e vistoso, mas isso fora no tempo em que o avô era vivo.

“Os pés do Avô tinham pisado longamente aquela terra. E atrás dele, o grande cão, silencioso, parava ou seguia, continuando o seu dono.

Um dia, o corpo inteiro do Avô deixou-se cair para ali, debaixo do imenso cajueiro, de onde o vento desprendia doces frutos, cheirosos e moles, e onde as cigarras afiavam seu canto nas cordas de ouro da resina.

Já não existia mais o cão, seu companheiro, que o tocasse, que o sentisse, que anunciasse para longe o súbito acabamento do seu dono.

Era um homem sozinho, entre as árvores. E ali ficou. Sozinhos, seus olhos se fecharam rente às pedras. Suas mãos esfriaram, sem ninguém, no

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barro, sobre as folhas secas, perto dos caroços de fruta, das conchas quebradas, das formigas andarilhas que, apenas, talvez, mudaram um pouco o itinerário.”17

Cecília não conhecera o jardim com o aspecto que tivera antes do falecimento do avô, sendo sua recordação mais remota desse espaço a de uma “devastação”, onde “só os espinhos prosperavam”. No entanto, chegou o tempo em que a avó resolveu devolver a vida ao lugar e galhos foram serrados, troncos pintados, o chão cavado e a terra revolvida. Um “homem risonho, de olhos cor de folha e mãos grossas de tijolo, chegou sobraçando plantas novas”, e foi com graça que a menina o viu “manejar o seu canivete, prender galhos postiços nas árvores”. “Naquela quadra de fervor agrícola”, também a pequena Cecília resolveu semear feijão e milho, que desenterrava todos os dias, com pressa de verificar se estavam brotando. Quando seguiu os conselhos dos adultos para deixar as sementes em seu lugar, presenciou o renascimento do jardim e estendeu o alcance desse “milagre” para os limites de suas necessidades psicológicas e espirituais do momento, em um processo curativo que sua prosa narra com graça e singeleza:

“E os dias passaram. E os caroços enterrados pela menina tomaram estranhas formas debaixo do chão. (...) Ficou muito tempo de joelhos, mirando pensativa as folhas - tão leves que até a sua respiração as abanava... (...)

Com uma grande atividade, subiam e desciam as formigas pelos muros; e as abelhas rondavam, procurando, perguntando, chamando pelas flores. (...)

Então, a menina sentia brisa e sol por dentro de si. Saltava pelas pedras, abraçava-se às árvores. Tudo renascera! Tudo renascia! Boquinha de Doce, de mãos postas, parava no alto da sacada, olhando. A menina

considerava-a de longe, com pensamentos

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indeterminados, mas que exprimiam esta emoção: ‘Ela é imortal!’”18

É interessante notar que este trecho combina duas das notas fundamentais da primeira infância de Cecília que já citamos: a recorrência de epifanias ligadas à morte e o aprendizado de observação das coisas miúdas, com destaque para a percepção do peso das pequenas folhas e do trajeto das formigas. Ambas ocorrências que já havíamos referido; ambas ocorrências que foram retomadas em sua poesia, também no grupo dos poemas de “Os dias felizes”. A transcrição é oportuna:

As formigas

Em redor do leão de pedra, as beldroegas armam lacinhos vermelhos, roxos e verdes. No meio da areia,

um trevo solitário

pesa a prata do orvalho recebido. As areias finas são de ouro, e as grossas, como grãos de sal. Cintila uma lasca de mica, junto ao cadáver de um cigarro que a umidade desenrolou.

E o cone torcido de um caramujo pequenino pousa entre as coisas da terra

o vestígio e o prestígio do mar, que elas não viram.

Nessa paisagem tranqüila, umas formigas pretas, de pernas altas,

atravessam num tonto ziguezague as areias grossas e finas,

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e vêm pesquisar por todos os lados cada folha de beldroega,

roxa, vermelha e verde.19

A leitura do poema instiga a refletir sobre o quanto a prosa da artista ilumina sua poesia e o quanto é iluminada por ela. A quantidade expressiva de recursos técnicos incorporados ao texto – desde a extensão dos versos, que se alongam e encurtam ciclicamente promovendo uma leitura de ritmo encantatório como o de ondas, que trazem para o próprio poema um outro “vestígio do mar” além da imagem do caramujo; até a recuperação nos versos finais das folhas de beldroega que haviam comparecido aos versos iniciais e que patrocinam também uma visualidade cíclica; passando pelo uso tão homeopático e justificado das aliterações (vermelhos/verdes, pesa/prata, grossas/grãos, vestígio/prestígio) e pelos contrastes que afetam sinestesicamente o leitor, mobilizando-o para simultaneamente sentir mobilizando-o pesmobilizando-o dmobilizando-os leões e mobilizando-o dmobilizando-o mobilizando-orvalhmobilizando-o, mobilizando-o bem-estar assmobilizando-ociadmobilizando-o aos vegetais e minerais do jardim e o mal-estar associado ao “cadáver de um cigarro” molhado (elemento de cultura que invade o espaço da natureza), a quietude do espaço e a atividade das formigas – poderiam fazer supor uma peça cerebral, arquitetada para o exercício de preceitos estéticos mais que para a transmissão de conteúdos humanos.

No entanto, a prosa de Cecília nos ajuda a entender que estamos diante de uma peça inusitadamente íntima e obliquamente prosaica; estamos diante – e sabemos que a ideia causa bastante estranhamento - do compartilhamento de uma experiência de infância tão autêntica quanto a que encontramos, por exemplo, no Manuel Bandeira de “Porquinho da Índia” ou “Evocação do Recife”. Cada elemento de “Formigas” é firmemente ancorado na experiência da autora, apenas o texto ceciliano é polido até o desaparecimento quase completo dos dêiticos.

O “leão de pedra” a que refere o primeiro verso, por exemplo, foi inspiração reiterada para jogos de imaginação infantis e mais de um texto em prosa retoma essa referência. Em Olhinhos de gato Cecília Meireles relembrou os “leões enormes” que a ama Pedrina lhe mostrava no alto dos portões e revelou como os via em seus pensamentos, “rugindo com aquelas vozes muito grossas, vozes de oco de pedra, que se ouvem só de noite, ao adormecer, à hora em que os leões descem das pilastras, se

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desencantam, viram animais vivos...”. Na crônica “Reino da Solidão”, publicada em 27 de julho de 1947 no jornal A Manhã e incorporada em 1956 à coletânea Giroflê, Giroflá, contando as sensações de uma menina – ela própria? – no silêncio “de muitas camadas sobrepostas” do jardim de uma casa vazia, Cecília destacou também os felinos:

“Quando olha para os leões, os grandes leões luzentes, e pára, um pouco assustada, é que eles lhe estão falando, por dentro de suas onduladas jubas. Talvez os leões estejam rindo de a ouvirem murmurar apenas: ‘Bicho”, - porque eles têm os seus fastos secretos, e, anteriores a Hércules, depois de atravessarem o Zodíaco e de guardarem tantas portas da antiguidade, se imobilizam agora entre os arbustos do jardim. Bem que ela sente essa palpitação de nobreza no tórax azul do leão que avista: mas, que fazer, para ouvir suas enredadas histórias altivas?”20

Os versos seguintes inserem, no jardim guardado pelo leão, outros elementos aos quais já nos familiarizamos: a fascinação de Cecília pelas gotas de orvalho, pela cintilação dos grãos de areia e pelas formigas já foi comentada. As formigas, aliás, aparecem na prosa ceciliana tanto vinculadas à vida quanto à morte. Elas estão presentes na vibração do jardim que renasce, mas também estão próximas ao corpo morto do avô e ao “jazigo dos ossos”.21 Além das flores, das abelhas, do musgo, da lagarta, das lagartixas22, das borboletas e dos pássaros rememorados em “Reino da Solidão”, pode-se acrescentar que também a formigas fizeram parte para a Cecília criança deste reino “onde tudo está separado, cumprindo seu destino, com ordens secretas de caminhar ou

20 MEIRELES, Cecília. Crônicas em Geral. “ Reino da Solidão” . Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1998,

p.215-218.

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M EIRELES, Cecília. Crônicas em Geral. “ Conversa com as crianças mortas” . Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1998, p.208-210.

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parar, de viver ou morrer” e que lhe ensinou “uma docilidade profunda diante dessa intimação”.

Além dos pequenos bichos de jardim, outros animais presentes na infância de Cecília Meireles constituíram fonte importante de aprendizado, sobretudo fonte de autoconhecimento, uma vez que a postura que diferentes seres humanos assumem diante de animais revela muito sobre sua personalidade e formação. Olhinhos de gato narra alguns dos momentos em que o contato com animais desencadeou na menina Cecília sentimentos que em adulta ela iria elaborar também pela via da razão e transformar em uma das bandeiras de sua multifacetada atuação pública, através das muitas crônicas que viria a escrever em defesa desses nossos “companheiros, irmãos e amigos”, a partir do entendimento de que a proteção dos animais é uma “forma de educação necessária a todos”.23

Os exemplos dessas memórias são muitos. Há a viagem de bonde, feita talvez por volta dos quatro anos de idade, que marcou a criança Cecília com a sensação de residir no homem uma certa crueldade gratuita e imotivada – pois que “os burrinhos do bonde” eram chicoteados inobstante seu andar “tão direitinho” - e dotou a pessoa Cecília de uma expansão de amor por todas as criaturas à qual se associa uma disposição permanente para “colocar-se no lugar de”, sentindo como se fosse em si mesma o estalar do chicote no lombo alheio: “Que dor!”.

Há também o “resgate” do cachorrinho preto, feito com tanta emoção que não poderia ser contado com palavras diferentes das que a própria autora escolheu:

“Ela andava entre as folhas secas, e as pedras, e as raízes das plantas, sozinha, falando sozinha (...).

Então seu ouvido percebeu como um gemido baixinho. Parou entre as árvores, para descobri-lo. (...)

E o gemido continuava.

Correu para a moita dos ‘brincos de rainha’, afastou os galhos, debruçou-se para dentro, sustida numa folha com os pés a fugirem do barranco – e na sombra dois olhinhos mal abertos se levantaram para os seus, com o tênue

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gemido, numa expressão tão compreensível de medo e queixa como se ali estivesse uma outra criança igual a ela; e sofresse. (...)

E com uma alça de barbante, sozinha, a trouxe do fundo da sombra, e a levou pelo quintal acima, pela escada acima, com as pernas já moles do esforço e da emoção (...)”.24

Relacionada a essa dilatação de afeto, a essa compaixão que lhe despertavam os animais, há ainda a lembrança de Cecília de ter recebido na casa da avó a visita de uma tia com o “priminho” e de não ter querido vê-lo, deixando D.Jacinta e as criadas constrangidas, por um motivo que só em sua cabeça era nítido naquele momento. De acordo com o que a menina supunha, “os meninos, caçadores de borboletas e passarinhos, amarradores de caudas de libélula e rabos de gato, quebradores de vidraça e apedrejadores de frutas”, eram aqueles que, “depois de crescidos, se transformavam em ladrões” e constituíam, portanto, “uma casta de sua profunda antipatia”. Nesse fragmento estão as sementes de duas ideias que Cecília Meireles viria a desdobrar posteriormente, sendo a primeira a de que a forma como as pessoas tratam os animais é reveladora do seu caráter – expressa, entre outras, na crônica “Eles e nós”, já citada - e a segunda a de que precisava ser encurtada a distância interposta por décadas ou séculos através da educação de meninos e meninas, uma distância que os fazia habitantes de mundos inconciliáveis. Uma representante dos textos que propõem essa abordagem é a crônica “Histórias de educação”, publicada em 19 de novembro de 1941, no jornal A Manhã.25, da qual extraímos algumas palavras:

“Na verdade, à força de se ter imposto o conceito de que uma menina é um anjo, uma santa, uma flor, uma estrela, fez-se por muito tempo, e ainda se faz, em muitos casos, um mundo especial para ela – um mundo imaginário, de belezas irreais, e de purezas absolutamente raras e incertas.

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MEIRELES, Cecília. Olhinhos de gato. São Paulo, M oderna, 2003, 3ª ed., p. 97-98.

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Os meninos, ao contrário, desde pequeninos são tratados como ‘homens’ – assim dizem os que os cercam. Infelizmente, a noção de ‘homem’ anda tão reduzida que é como se dissessem, mais ou menos, ‘bichos’.

O ânimo belicoso que se incute nos meninos foi um assunto muitas vezes retomado por Cecília e teremos oportunidade de revisitá-lo adiante; por enquanto, continuando a seguir as pegadas deixadas por animais nas trilhas de sua infância, vemos que há, de muito significativa, ainda, a rememoração da galinha comprada viva por ocasião de uma comemoração de Páscoa e da agonia pelo seu destino na panela. Essa galinha pôs a pequena em silêncio e pensando “no Santo”, em se ele saberia que a ave era “tão bonita, tão redonda” e “que se deita de lado com tanta graça e estende as asas para o sol tão mansamente”. Faz parte dessa lembrança um momento de recolhimento e contrição, em que a menina, talvez mais motivada à oração pela atmosfera da época, “pede ao Santo que não aconteça mal nenhum [ao animal]”, para depois esperar que sossegue o tumulto do galinheiro “embaixo de uma árvore, com o rosto escondido nos joelhos”.26

Essa não é a única “história de galinha” da meninice de Cecília na qual comparece um elemento religioso. De acordo mais uma vez com os episódios narrados em Olhinhos de gato, havia manhãs em que apareciam na rua onde a criança morava com sua avó “estranhas coisas: farofas, velas espetadas de alfinetes, embrulhos grandes de jornal, panelas de barro com vinténs, pedaços de fita, frangos mortos ou vivos...”, uma variedade de elementos ligados à macumba. E aconteceu de, certo dia, aparecer uma galinha viva, “amarrada por uma pena ao caco de panela, e debatendo-se ali horas, seguidas, sem milho, sem água, em pleno sol”. D. Jacinta não pôde lidar com aquela cena e mandou uma das criadas buscar o animal maltratado e trazê-lo para o seu quintal. Essa memória é especialmente preciosa, pois confere a oportunidade de observarmos dois aspectos da formação de Cecília que se projetaram sobre sua juventude e maturidade definindo interesses relevantes. Um deles é a orientação religiosa que Cecília recebeu em casa. A fé fazia parte da vida de D. Jacinta: ela se

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definia como católica, acendia velas, possuía imagens de santos, orava... Principalmente pela neta. Quando recebiam visitas e se faziam os costumeiros comentários sobre como a criança vinha crescendo, desabafava:

“’Muito trabalho me tem dado! Sempre pensando no que lhe hei de dar de comer, sempre cuidando de a agasalhar...’ parava um pouco. E mais baixo: ‘Sempre rezando por ela..’”.27

Entretanto, não era uma católica perseguidora de protocolos. Além de não constarem da autobiografia de infância de Cecília menções sobre obrigação de freqüência à igreja e à missa, sobram menções ao comedimento de D. Jacinta em matéria religiosa. A fala mais extensa que Cecília Meireles atribui à sua avó em Olhinhos de gato versa criticamente sobre os aspectos institucionais do catolicismo. Como não é factível imaginar que uma criança tenha memorizado todo este discurso, entende-se que a escritora condensou aí aquilo que os anos a possibilitaram filtrar como sendo a essência do ensinamento que recebeu em casa sobre as questões transcendentais:

“’Que importa, a Deus, ter mais ou menos uma igreja? O lugar de Deus é no coração das criaturas. Mas não se deve ir contra a fé de ninguém. Apenas, sem um coração limpo, não adianta tanta reza e tanto altar...’ (...) ‘Há pessoas que pensam muito na salvação, e fazem tudo para a conseguirem, menos o essencial. O essencial é o amor. Não há nada para pedir senão andar pelo caminho de Deus. Cada um terá o que merecer. E o que não tiver, aceitará com paciência a sua sorte. Ninguém sabe o que está para acontecer a cada hora. Por que desesperar-se hoje, se amanhã talvez tudo mude? E por que alegrar-se também tanto agora, se daqui a pouco se pode estar

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Referências

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