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Escuta clínica e atitude fenomenológica no atendimento à pessoa surda: reflexões sobre um processo psicoterápico

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Academic year: 2017

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA

ESCUTA CLÍNICA E ATITUDE FENOMENOLÓGICA NO ATENDIMENTO À PESSOA SURDA: REFLEXÕES SOBRE UM PROCESSO PSICOTERÁPICO

Délio Henrique Delfino de Oliveira

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DÉLIO HENRIQUE DELFINO DE OLIVEIRA

ESCUTA CLÍNICA E ATITUDE FENOMENOLÓGICA NO ATENDIMENTO À PESSOA SURDA: REFLEXÕES SOBRE UM PROCESSO PSICOTERÁPICO

Dissertação elaborada sob a orientação da Professora Dra. Elza Dutra e apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Psicologia.

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UFRN. Biblioteca Central Zila Mamede. Catalogação da Publicação na Fonte. Oliveira, Délio Henrique Delfino de.

Escuta clínica e atitude fenomenológica no atendimento à pessoa surda: reflexões sobre um processo psicoterápico / Délio Henrique Delfino de Oliveira. – Natal, RN, 2014.

111 f. : il.

Orientadora: Profª. Drª. Elza Dutra.

Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Centro de ciências Humanas, Letras e Artes. Programa de Pós-Graduação em Psicologia.

1. Surdez – Dissertação. 2. Língua brasileira de sinais (Libras) –

Dissertação. 3. Psicoterapia – Dissertação. 4. Escuta clínica – Dissertação. 5. Atitude fenomenológica – Dissertação. I. Dutra, Elza. II. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. III. Título.

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Agradecimentos

À minha família, a todos do meu lar. Em especial, à minha maravilhosa mãe, que sempre me inspirou a seguir enfrentando os desafios da vida. À minha segunda mãe, minha querida tia, Doca, que sempre me apoia e cuida muito bem de mim;

À minha orientadora, professora Drª. Elza Dutra, fonte de inspiração profissional e pessoal que, com sua abertura existencial e compreensão das questões contemporâneas, permitiu-me realizar esse projeto de vida. Muito obrigado por tudo que você me possibilitou;

Aos vários mestres que passaram por minha formação acadêmica/clínica e despertaram o meu interesse para seguir nesse caminho. Aos professores, Dr. Roberto Novaes de Sá e Drª. Symone Melo, que fizeram parte desse estudo, tecendo considerações pertinentes, ajudando-nos em nossas reflexões sobre a clínica fenomenológico-existencial;

Aos meus queridos amigos, ouvintes e surdos, que me dão força e tornam o meu viver bem mais alegre;

Aos colegas da academia e base de pesquisa, pelo apoio e acolhida nesse novo lugar;

Às pessoas que me fazem intensamente ser-com, os meus clientes, que em liberdade questionam o existir, deixando marcas no meu ser-clínico;

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SUMÁRIO

Resumo... vii

Abstract... viii

INTRODUÇÃO... 09

1. SER SURDO E LIBRAS: UMA ESCUTA VISÍVEL... 16

2. O DIÁLOGO DA PSICOLOGIA COM O SER SURDO: POSSIBILIDADES PARA UMA APROXIMAÇÃO FENOMENOLÓGICO-EXISTENCIAL... 34 2.1 A clínica fenomenológico-existencial... 44

3. MÉTODO... 53

3.1 Processos metodológicos... 55

3.2 Colaborador/Participante... 56

3.3 Registro dos dados... 57

3.4 Procedimentos éticos... 57

3.5 Procedimento de interpretação hermenêutica... 58

4. INTERPRETAÇÃO DAS NARRATIVAS... 61

CONSIDERAÇÕES FINAIS... 97

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Resumo

A psicologia faz uso da escuta como um dos recursos do seu trabalho. Em se tratando da psicoterapia, a escuta estabelece a comunicação e facilita o diálogo entre psicólogo-cliente. A presente pesquisa, de caráter qualitativo, tem por objetivo discutir a escuta clínica na atitude fenomenológica na psicoterapia fenomenológico-existencial com pessoas surdas. Essa perspectiva está embasada no pensamento do filósofo alemão Martin Heidegger, que considera o humano um ser-no-mundo-com-os-outros, sempre desvelando sentidos. Com relação às pessoas surdas, atualmente, a Libras é a língua natural das pessoas surdas brasileiras. Nessa nova configuração de língua, a comunicação ocorre na modalidade espaço-visual. Assim, escuta e fala ganham novas dimensões que demandam diferentes formas de compreensão no campo da psicoterapia. Para o desenvolvimento desta pesquisa, apresentamos recortes das narrativas de sessões psicoterapêuticas com um cliente surdo, interpretadas à luz da hermenêutica heideggeriana. Consideramos ser possível para o psicoterapeuta escutar pessoas surdas em atitude fenomenológica, com postura que não naturaliza e não limita o humano, auxiliando para que o cliente se responsabilize por seu existir e que possa dialogar hermeneuticamente em sua língua, cabendo, nesse contexto, ao psicólogo, estar habilitado em Libras para realizar o atendimento. Esperamos que esta pesquisa possa, de alguma forma, preencher a lacuna existente no que se refere à produção científica sobre tal temática, no campo da psicologia, e, principalmente, fomentar a discussão no contexto dos cursos de psicologia acerca da importância e necessidade de capacitar o psicólogo para o exercício da prática clínica com pessoas surdas.

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Abstract

Psychology uses listening as a work resource. When it comes to psychotherapy, listening establishes communication and makes psychologist-client dialogue easier. This qualitative research aims to discuss the clinic listening in phenomenological attitude in existential-phenomenological psychotherapy with deaf people. This perspective is based on the thinking of German philosopher Martin Heidegger, who considers humane a being-with and being-in-the-world, always unveiling meanings. Regarding the deaf people, Libras is currently the natural language of Brazilian deaf people. In this new language configuration, communication occurs in a visual-spatial modality. Thus, listening and speech gain new dimensions, demanding different ways of understanding in the field of psychotherapy. To the development of this research, we present excerpts from therapeutic sessions narratives with a deaf client, interpreted in the light of Heidegger’s hermeneutics. We consider that it is possible for the psychotherapist to

listen to deaf people in phenomenological attitude. Such position, which does not naturalize and limit the humane, helps so that the clients do not feel responsible for their existence and can hermeneutically converse in their language. In this context, the psychologist must be qualified to conduct the treatment in Libras. We hope that this research can, somehow, fill the existing gap of the scientific production about such theme in the field of Psychology and, mainly, instigate discussion in the context of Psychology courses on the importance and need to qualify psychologists for the management of clinical practice with deaf people.

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INTRODUÇÃO

Este estudo começou a ser vislumbrado durante minha graduação em psicologia, quando, na realização do estágio final em psicoterapia, fomos convocados para dar resposta à demanda de um cliente surdo que era fluente em Libras, comunicando-se por sinais e que necessitava de acompanhamento psicológico. Diante dessa solicitação, percebi a necessidade de investir nessa modalidade de atendimento. Esta experiência evidenciou algumas questões acerca da atuação do psicólogo, em especial, no que tange à escuta clínica de pessoas surdas.

Atualmente, diversas discussões sobre a questão da inclusão de pessoas surdas são frequentes em nossa sociedade. Com a oficialização da Língua Brasileira de Sinais – Libras, em 2002, o uso dos sinais ganhou reconhecimento como comunicação e língua, o que faz com que as mais variadas áreas necessitem refletir sobre questões particulares dessa população. Este é o caso da psicologia, profissão que se desenvolve junto a diferentes contextos, tendo no psicólogo clínico um profissional que faz uso da escuta como um dos recursos do seu trabalho. Em se tratando da psicoterapia, uma das modalidades de atendimento do psicólogo clínico, sabemos que a escuta estabelece a comunicação, facilitando o diálogo entre psicólogo-cliente para que esse processo ocorra. Dessa forma, somos convocados a refletir sobre a escuta do silêncio, a escuta dos sinais.

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necessitar de algum tipo de apoio psicológico, levando-se em consideração seu modo particular de comunicação, fazendo uso de sinais em uma língua específica, a Libras, o que nos leva a pensar sobre as implicações dessa atuação na clínica de base fenomenológico-existencial.

Para o filósofo alemão Martin Heidegger (1927/2012), o humano é um ente que se difere dos demais presentes no mundo por ser o único capaz de compreender o ser dos entes, inclusive do próprio ente que ele é, e por reconhecer os outros que também apresentam essa característica desveladora de sentidos. Trazendo essa reflexão ontológica para o campo da psicoterapia, Feijoo (2000) nos diz ser por intermédio da estrutura escuta-fala que o ser dos entes desvela-se. Mas, qual a importância dessa compreensão dos entes? Segundo a referida autora, a psicoterapia de base fenomenológico-existencial, referencial teórico adotado nesse estudo, tem por finalidade compreender o sentido do ser do ente, que se revela na fala. Sendo assim, a fala apresenta-se como elemento primordial para que ocorra o processo psicoterapêutico, possibilitando que o cliente expresse sua singular compreensão do mundo para um psicólogo que escute este processo de dar sentidos à existência. Tal ideia pressupõe a existência de uma atitude fenomenológica que possa favorecer a escuta dos sentidos que emergem nessa abertura de possibilidades que caracteriza o ser-no-mundo. Assim, entendemos que a escuta, tal como concebida na perspectiva teórica e metodológica adotada neste estudo, parte de uma determinada atitude diante do fenômeno que se desvela no contexto de uma relação psicoterapêutica.

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pessoas, mas podendo ser realizada por outra via de escuta, a escuta dos sentidos do ser, na qual a pessoa pode escutar seus sentidos e se fazer presente no mundo.

Quando falamos em escuta, podemos pensar sobre os diversos significados e sentidos que este termo tem para nossa sociedade e, em especial, para a psicologia. Para tanto, faz-se necessário tematizar o que vem a ser “escuta”, principalmente, apresentando qual a compreensão social que se tem acerca deste termo, assim como refletindo sobre este relevante conceito no contexto da psicologia fenomenológico-existencial. Sendo assim, surgem algumas questões acerca da escuta clínica de pessoas surdas deste modo singular de estar presente no mundo. Como se dá a comunicação entre cliente e psicoterapeuta por meio da língua de sinais, Libras? Quais seriam as limitações e alcances da prática em tais condições? Qual a postura do profissional que se depara com as alteridades existenciais do seu cliente? Essas questões norteadoras nos conduzem para esse questionamento: Como é para o Psicólogo clínico a prática da atitude fenomenológica no atendimento de uma pessoa surda que se comunica por meio de sinais?

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que nos enlaça e dá consistência a nosso ser, nosso fazer, nosso saber” (p. 18). Como também destaca Sá (2010), “Dasein e “mundo” são cooriginários ou coemergentes” (p.

186) não existindo separados e muito menos sendo a mera integração sujeito e objeto; então, falar em Dasein e mundo é falar em ser-no-mundo.

Para desenvolver esta pesquisa, inicialmente, realizamos um levantamento bibliográfico sobre o tema por nós abordado, o que nos deu como resposta poucos materiais que lidam com esta temática, sendo que entre estes predominam os estudos com referencial teórico psicanalítico. Em relação a isso, a perspectiva teórica adotada neste trabalho difere das principais abordagens psicológicas, o que, diante da escassez de produção científica sobre a temática pesquisada, favorece a possibilidade de se ampliar a compreensão da psicoterapia e, em especial, discutir a clínica fenomenológico-existencial nessa área tão pouco estudada.

Levando tal aspecto em consideração, refletimos que, no atual cenário político e social, surge a urgência do desenvolvimento de estudos que discutam o atendimento psicológico de pessoas surdas. Com isso, estaremos respondendo à temática da inclusão de pessoas surdas nos serviços que prestam atendimento psicológico, na tentativa de acompanhar as mudanças e os avanços propostos para a educação, saúde e inclusão de pessoas surdas nos espaços sociais, direitos já regulamentados pelo decreto nacional de nº 5.626 de 22 de dezembro de 2005. Dessa forma, mostra-se uma tentativa de assegurar, como exige o referido documento, o atendimento à pessoa surda nos serviços de saúde pública, sendo realizado por profissional capacitado em Libras, ou, no mínimo, com a presença de um intérprete de Libras.

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promover a universalização do acesso da população às informações, ao conhecimento da ciência psicológica, aos serviços e aos padrões éticos da profissão” (Conselho Federal de Psicologia, 2005, p. 7). Desse modo, acreditamos que nossas discussões divulgarão os conhecimentos e ampliarão os serviços psicológicos, contemplando a população surda e a sociedade em geral, pois, ao mesmo tempo em que produziremos novos conhecimentos em psicologia, também ampliaremos as possibilidades do atendimento psicológico.

Apresentadas essas questões, propomos com esse estudo discutir a atitude fenomenológica e a escuta clínica na psicoterapia fenomenológico-existencial com clientes surdos, refletindo sobre essa atuação e tendo como canal de comunicação a Língua Brasileira de Sinais. Neste intuito, temos como objetivo geral da pesquisa: Discutir a escuta clínica na atitude fenomenológica no atendimento psicoterápico de uma pessoa surda. E como objetivos específicos: Tematizar o processo da escuta clínica no atendimento psicoterápico de pessoas surdas; Investigar possibilidades e limitações do atendimento de pessoas surdas no âmbito da psicoterapia fenomenológico-existencial; Refletir sobre a comunicação em Libras no contexto da psicoterapia; Descrever os procedimentos pertinentes à realização do atendimento psicoterápico de clientes surdos na perspectiva fenomenológico-existencial.

Por atitude fenomenológica, entendemos a postura do psicólogo de assumir uma compreensão antinatural dos fenômenos, como nos diz Feijoo (2010) “toda e qualquer

teoria acerca da existência humana deve ser suspensa, para ser possível se aproximar do fenômeno, no caso, a questão trazida pelo paciente, atendo-se a todo o detalhamento de como se dá o acolhimento em questão” (p. 1θ1). Nesse sentido, com essa

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cliente se encontrar com sua história, escutar-se, meditar sobre os sentidos de sua existência e de todas as implicações relacionadas a ela (Sá, 2008; Sapienza, 2004). É com essa escuta que o psicoterapeuta desenvolve o seu fazer, uma escuta que abre sentidos.

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1. SER SURDO E LIBRAS: UMA ESCUTA VISÍVEL

Este capítulo tem como objetivo tematizar algumas questões referentes à população surda. Inicialmente, para falar sobre o ser surdo, trazemos algumas definições necessárias, esclarecendo alguns pontos para dar continuidade no conhecimento da história dessa população, assim como na apresentação da língua natural de quem é surdo no Brasil, a Língua Brasileira de Sinais – Libras. São essas questões que nos convocam a buscar compreender o ser surdo e as possibilidades existenciais desse singular modo de ser-no-mundo.

Com relação ao ser surdo, Capovilla (2009) nos mostra que o surdo “está privado, no todo ou em sua maior parte, do sentido da audição. Que não ouve”. Assim como também é uma pessoa “que pertence à Comunidade Surda e à Cultura do Sinal” (p. 2070). Ao falar sobre surdez, o mesmo autor a apresenta como um tipo de “perda auditiva profunda.... em que mesmo com o uso de aparelhos auditivos de amplificação, a pessoa não consegue compreender a fala que ocorre no nível usual de conversação”

(p. 2068), podendo essa ser classificada em fatores de desenvolvimento: adquirida ou congênita, e nível de surdez: leve, moderada, profunda ou severa. Em consonância com essas conceituações, percebe-se que ser surdo diz respeito não somente aos fatores biológicos, mas traz a consideração de uma ampla gama de questões sociais, linguísticas e toda uma trama complexa de sentidos que constituem o humano.

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“surdos-mudos”, em períodos nos quais as outras pessoas, reconhecidas como ouvintes, ditavam os principais conceitos relacionados à questão da surdez, ou seja, eram os ouvintes que respondiam pelos surdos.

Com o passar do tempo e diante das modificações nas questões da surdez, novas compreensões foram conquistadas pela comunidade surda na construção dos temas e conceitos que tocam a sua história. Mesmo assim, atualmente, não é difícil encontrar pessoas com dúvidas em relação às pessoas surdas, questionamentos se elas são pessoas “mudas” ainda perduram, estigmas que aos poucos vão se desfazendo a partir das

contínuas discussões fomentadas pela comunidade surda. Como nos mostra Gesser (2009), as pessoas surdas não apresentam comprometimentos orgânicos nos aparelhos fonadores, o que desqualifica a classificação desses enquanto mudos. Essa questão nos revela outras implicações, outras questões normativas, as quais utilizam como referência um padrão de normalidade e funcionamento orgânico que faz comparações entre as pessoas surdas e as pessoas ouvintes, essas últimas consideradas como normais (Bisol, Simioni & Sperb 2008).

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mostrassem o seu valor e caminhassem para uma estrutura mais elaborada, permitindo com isso que os sinais fossem se estruturando enquanto uma língua, não mais somente como comunicação, mas respondendo às exigências linguísticas e ganhando maior visibilidade.

Mesmo reconhecendo que pessoas surdas estão presentes ao longo de nossa história, assim como a utilização dos sinais, durante alguns períodos surgiram questionamentos com relação ao ser surdo e a utilização de sinais. Sobre essas questões, Bisol (2008) e Skliar (2010) mostram que, desde o século XVIII, ocorreram mudanças na educação das pessoas surdas. Nesse percurso, um dos momentos mais polêmicos e influentes na educação das pessoas surdas foi o Congresso de Milão realizado em 1880, evento no qual ficou decidido que a oralização seria o método adotado para educar as pessoas surdas. Este momento corresponde ao período de valorização do modelo científico moderno como construtor de um saber verdadeiro, sobre o humano, com princípios e normas particulares que regiam a produção desse conhecimento, adotando modelos de normalidade que foram alcançados com as pesquisas científicas da época. Ressaltamos que foi nesse período que a psicologia se estruturou enquanto ciência, inicialmente, na Alemanha, com a criação dos laboratórios e estudos sistemáticos embasados no modelo cientificista, separando-se assim de sua origem mais filosófica. Sendo assim, com a valorização da ciência moderna nesse período, temos a legitimação e difusão dos valores cientificistas regendo o pensamento sobre o humano nos principais âmbitos sociais.

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ser ouvinte. Tomando por referência essa decisão, as línguas de sinais tornaram-se proibidas no processo educativo em todo o mundo e a pessoa surda não podia ser educada ou realizar a comunicação em sinais, para não atrapalhar o método científico oralista. Temos, com isso, os desdobramentos no modo como a comunicação com as pessoas surdas se desenvolveu nos espaços sociais – escolar, familiar, educacional, entre outros, nos quais estas pessoas estavam inseridas e precisavam alcançar esse tipo de normalidade.

Posteriormente, à determinação do Congresso de Milão foi somente no século XX, mais especificamente na década de 60, que começaram a ocorrer várias reivindicações de profissionais e pessoas envolvidas com a comunidade surda. A comunidade surda, insatisfeita com a proibição do uso dos sinais e constatando o fracasso do método oral na educação das pessoas surdas, lutou e conquistou a aprovação do uso das línguas de sinais na educação de surdos. Foi nesse período que as línguas de sinais começam a retomar seu valor tanto na educação quanto no convívio social.

Nesse contexto de legitimação da comunicação em sinais como uma língua, surgiram campos divergentes no estudo da surdez e nos modos de promover o desenvolvimento das pessoas surdas. Essas questões despertaram o interesse de alguns campos de pesquisa, sendo que, atualmente, ainda temos duas vertentes que predominam com suas atuações nos campos de atendimento e pesquisa. Uma dessas vertentes trabalha com o enfoque clínico-terapêutico, adotando o oralismo, nas palavras de Capovilla (2009), como “uma filosofia educacional para as pessoas surdas, que...., propõe o ensino somente de técnicas oralistas, como leitura labial, vocalização e aproveitamento dos resíduos auditivos, visando ao desenvolvimento da linguagem oral”

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Entendemos que esse enfoque, o da oralização, traz alguns benefícios, visto que grande parte da população é considerada ouvinte - “que ou quem é capaz de ouvir por oposição à pessoa com surdez” (Capovilla, 2009, p. 1θ4θ), fazendo uso dos canais

orais-auditivos. Essa perspectiva até pode facilitar a comunicação com grande parte da população, mas, visto por outro prisma, esse modelo termina por colocar o surdo em um lugar desigual, pois ele tem que sair de sua língua de origem, a Libras, que foi legitimada como sendo a língua natural das pessoas surdas, para submeter-se à língua que é adotada por outra população majoritariamente ouvinte. Seguindo nessa compreensão, a respeito da oralização, Bisol, Simioni e Sperb (2008), desenvolvem críticas ao afirmar que as ações dessa perspectiva voltam-se para a normalização das pessoas surdas, seguindo os critérios de convivência das pessoas ouvintes e na busca de uma adaptação à sociedade que usa os canais orais-auditivos para se comunicar. Esse modelo passa a ser tomado como norma, o ser normal, e, como elas apontam, “a diferença é geralmente percebida como negativa e caracterizada como desvio” (p. 393).

Diante do que esses autores expõem torna-se pertinente apresentar também o outro modelo de atenção, o socioantropológico, que em sua estrutura compreende a surdez como uma diferença cultural e linguística, não mais como deficiência. Conforme Capovilla (2009), esta perspectiva adota o bilinguismo, que é uma “filosofia

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Com relação à constituição da língua de sinais no Brasil, somente no ano de 2002 é que a língua brasileira de sinais passa a ser oficializada com a Lei Nº 10.436, de 24 de Abril, tornando-se a língua natural das pessoas surdas. Por língua natural Skliar (2010) vem esclarecer que “deve ser entendida como uma língua que foi criada e é

utilizada por uma comunidade específica de usuários, que se transmite de geração em geração, e que muda tanto estrutural como funcionalmente com o passar do tempo” (p.

27). Por ser uma língua, a Libras apresenta em sua estrutura os requisitos necessários para a sua validação normativa. Ela traz aspectos linguísticos próprios, entre esses, temos os parâmetros gramaticais: Configuração de mão – CM; Movimento – M; Locação – L, Orientação da mão – Or e Expressões-não-manuais – ENM, que apresentaremos para possibilitar compreender a importância desses parâmetros na estruturação da língua de sinais brasileira (Quadros, 2004).

Com relação a esses parâmetros, temos que a configuração da mão representa “a

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Figura 01. “As 4θ CMs da Libras” (Ferreira-Brito & Langevin, 1995).

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variados tipos de movimentos como o retilíneo, helicoidal, circular, semicircular, sinuoso e o angular (Strobel & Fernandes, 1998). Cada sinal tem em sua formação a característica de necessitar de um movimento, com direcionalidade e tipo específico ou ser um sinal sem movimento. Na configuração de mão e nos outros três parâmetros deve-se fazer uma execução precisa do que é esperado, assim como nos demais, não fugindo às regras já estabelecidas para essa língua.

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esse aspecto, podemos descrever uma situação de comunicação na qual o comunicador, disposto de frente para o receptor do sinal, realiza a sinalização com suas mãos posicionadas nas costas. Desse modo, o receptor fica impossibilitado de visualizar a mensagem e, por não ver o ponto de locação, não compreenderá a comunicação. Na figura a seguir, trazemos exemplos corretos de sinais que utilizam uma mesma configuração de mão, mas que, contextualmente ao enunciado, fazem uso de espaços diferenciados e com isso adquirem outros significados linguísticos.

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figuras abaixo alguns exemplos de orientação da palma da mão no momento da comunicação da palavra.

Figura 04. Orientação da mão (Felipe, 2007, p. 71). O parâmetro da Expressão Não-Manual ou Expressões Faciais é uma característica peculiar diferenciadora dos sinais, como nos mostra Gesser (2009) “as mãos não são o único veículo usado nas línguas de sinais para produzir informações linguísticas” (p. 1ι), também fazem parte da língua de sinais as expressões faciais,

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são significativos no que concerne a demonstração da intensidade do que é comunicado em sinais, mesmo quando se utiliza a mesma palavra.

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comunicação em sinais é simples e não muito elaborada, na crença de que os sinais não podem apresentar conceitos mais sofisticados e complexos, facilitando a aquisição da linguagem para que a pessoa surda possa aprender mais fácil e se comunicar com outros surdos, não importando em qual lugar esteja. Essa noção não condiz com a complexidade e riqueza presente em cada língua de sinais, já que essas são específicas para cada país e região, assim como são as línguas orais.

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Com base nessas questões, que mostram as particularidades das pessoas surdas e de sua língua, discutiremos a escuta partindo da cotidianidade, no como ela é percebida e difundida nas produções informativas da língua brasileira, assim como ela é compreendida no campo da psicologia. Para isso, considerando o âmbito da cotidianidade, lugar em que as palavras portuguesas ganham significado e servem como norma e explicação da vida, trazemos o dicionário como recurso facilitador da compreensão e comunicação dos signos e significados de cada população. Nele, temos como base a lexicologia, o estudo dos sentidos etimológicos e das possibilidades de acepções das palavras. Esta arte, que dá suporte à elaboração dos dicionários, traz a sistematização dos vocábulos de uma determinada língua, catalogando-os em uma obra de referência (Ferreira, 2000). Por ter um valor fundamental na estruturação das palavras, recorremos a este tipo de livro para discutirmos alguns temas necessários ao nosso trabalho.

Para pensar a escuta e seus sentidos, trazemos a explicação existente no dicionário Aurélio (Ferreira, 2000) o qual nos mostra o vocábulo “escutar” como

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como no momento anterior, passamos à palavra “ouvir” que se encontra como “perceber

e discriminar pelo sentido da audição” (p. 1θ4θ).

Recorremos a esses dicionários no intuito de mostrar como os sentidos da escuta se constroem na cotidianidade, tornam-se familiares e fazem parte do discurso sobre o que vem a ser este processo. Dessa forma, não é de se estranhar ter como resposta que escutar é fazer uso da audição, para poder ouvir o que é falado pelos órgãos fonadores. Mas será que todas as pessoas escutam assim? Quando nos deparamos com pessoas que não falam pela voz e não escutam por meio dos canais auditivos, pessoas que escutam e falam com o olhar e com as mãos, este modo de pensar a escuta não ficaria comprometido?

Se retomarmos o termo “escuta” e buscarmos explicá-lo, como mostrado anteriormente, entre as diferentes possibilidades que podem surgir, teremos a de que o seu significado está em fazer uso dos órgãos auditivos, tendo somente o campo oral-auditivo como propiciador desse fenômeno. Mas, ao realizarmos uma compreensão fenomenológica da escuta buscamos ampliar o seu sentido e, para isso, precisamos colocar entre parêntese o seu significado social, ampliando-o para poder tecer apontamentos para além do que os agentes normativos compreendem ser o escutar.

Aprofundando a discussão de tais questões, recorremos à outra obra para apresentarmos com mais propriedade outras possibilidades de compreensão. Para isso, elegemos um livro que é específico ao nosso campo de atuação, sendo este também um dicionário, só que elaborado pela Associação Americana de Psicologia – APA. Neste, o vocábulo listening –“escuta” –surge com a seguinte definição “uma atividade essencial na terapia e aconselhamento que envolve estar atento às palavras e ações do cliente, bem como às intenções presentes nas palavras” (VandenBos, 200ι, p. 539). Como no

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hearing, tal como apresentada pela APA, que nos diz ser “a capacidade de um organismo detectar um som, processar e interpretar essas sensações, adquirindo informações sobre sua origem e natureza. Nos seres humanos, refere-se à percepção do som, também chamada de audição” (VandenBos, 200ι, p. 432). A escuta é

compreendida de outro modo como escuta das palavras, dos sentidos, do que é expresso também pelo silêncio, na expressão facial, nos movimentos corporais e, sendo assim, não se restringindo somente à escuta da fala dos sons. Nesta obra, fica clara a distinção que a psicologia faz entre escutar e ouvir, reflexão que não se encontra presente nos outros dicionários estudados. Sendo assim, entendemos que a psicologia e suas práticas têm na base do seu fazer clínico o processo da escuta (Amatuzzi, 1989; Bucher, 1989; Feijoo, 2000; Lima, Yehia & Morato, 2009; Pereira & Caldas, 2009). Nesse campo do saber, com suas diversas perspectivas teóricas e áreas de atuação, a escuta é realizada de diferentes modos, sempre em consonância com o referencial teórico adotado e com o contexto no qual ela ocorre.

Pensando nos processos de comunicação no contexto da surdez, Strobel (2008) vem nos mostrar alguns aspectos da Libras que se diferenciam dos modos ouvintistas de comunicação. Entre estes, temos que essa língua “é expressa através da modalidade

espacial-visual” (p. 4θ), ou seja, a comunicação ocorre fazendo uso da visão e do espaço de referência que o sujeito adota para apresentar os sinais. Sendo assim, a comunicação não mais deve ser somente compreendida como realizada pelos canais orais-auditivos, fazendo uso dos sons acústicos, mas, diferentemente, pela modalidade viso-espacial, como advoga Skliar (2010) “a surdez é uma experiência visual” (p. 28). Escuta e fala

ganham novas dimensões que precisam de diferentes formas de compreensão.

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clínica e da escuta psicológica. Para isso, recorremos à Dutra (2004) ao dizer que o diferencial da escuta clínica é a capacidade de estar aberto à alteridade e aos novos modos de compreensão do humano, sempre acolhendo a pessoa diante de sua realidade social e demanda singular. O psicólogo encontra-se incumbido dessa tarefa, de compreender o humano em todas as suas dimensões e com isso passa a exercer o seu posicionamento ético e político. Nesse sentido, podemos pensar a psicoterapia como um processo inclusivo, avançando no campo da inclusão e aproximando mais ainda a psicologia da comunidade surda.

Ao falarmos nesse modo particular de compreensão e de ser psicoterapeuta, agora como profissional pertencente ao processo inclusivo, adotamos como conceito de inclusão o que Sassaki (1997) propõe como sendo práticas e condutas que visam a reconhecer e respeitar as diferenças existentes entre as pessoas e, dessa forma, busca-se aproximá-las de seus diversos modos de ser. Ele nos mostra que estando com o outro, disponível, potencializa-se a inclusão que “contribui para a construção de um novo tipo de sociedade através de transformações, pequenas e grandes, nos ambientes físicos.... e na mentalidade de todas as pessoas, portanto, do próprio portador de necessidades especiais” (p.42).

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344.206; com grande dificuldade: 1.798.967 e com alguma dificuldade: 7.574.145 habitantes brasileiros. No estado do RN temos 191.862 brasileiros que se consideram com algum tipo de deficiência auditiva, dentre esses, 4.879 não conseguem ouvir de modo algum; 36.929 com grande dificuldade e 150.054 habitantes com alguma dificuldade. Essas informações não são específicas e não esclarecem bem a questão da surdez, mas já mostram o elevado índice populacional que não escuta auditivamente e que pode apresentar a comunicação em sinais. O Censo de 2000 apresentava uma população surda de 5.750.805 habitantes, informação resgatada com a Federação Nacional de Educação e Integração dos Surdos - Feneis. No tocante a atuação clínica com pessoas surdas, podemos pensar sobre quantas dentre essas pessoas podem vir a necessitar de acompanhamento psicológico, uma questão que aponta a urgência da reformulação das práticas clínicas atuais.

É diante deste panorama que trazemos a temática da “sociedade inclusiva”,

refletindo inclusão e sociedade, como propôs Machado (2008). Segundo este autor, a sociedade deve se constituir considerando as diferenças apresentadas pelas diversas pessoas que compõem o social. Acerca dessas diferenças, de contextos e pessoas, ele propõe para elas “formas de trabalho diferenciadas” que, no caso da psicoterapia,

podemos pensar em como realizada por meio da Libras, respondendo às necessidades de pessoas surdas que sofrem e não são escutadas.

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2. O DIÁLOGO DA PSICOLOGIA COM O SER SURDO: POSSIBILIDADES PARA UMA APROXIMAÇÃO FENOMENOLÓGICO-EXISTENCIAL

As pesquisas brasileiras desenvolvidas sobre as pessoas surdas ainda são incipientes se considerarmos a relevância de tal temática. O desenvolvimento de novos estudos corresponde aos principais acontecimentos sociais, que deram maior visibilidade as questões das pessoas surdas brasileiras, como a luta dessa população por mais qualidade de vida e as recentes leis desenvolvidas em nosso país voltadas à população surda. Com relação à psicologia e sua aproximação com essa temática, os estudos realizados acerca da atuação do Psicólogo junto às pessoas surdas, em sua maioria, abordam a questão da inclusão escolar. Esta é uma questão que também se sobressai em pesquisas realizadas por outras áreas do conhecimento. Na tentativa de nos aproximarmos mais do campo da psicologia, na sua prática psicoterápica, deparamo-nos com a escassez de publicações que abordam o atendimento da pessoa surda, uma situação que necessita ser repensada pela psicologia.

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desenvolvidas para criar algum tipo de comunicação, nas quais utilizam colagens, desenhos e outros recursos, mas que, segundo essas autoras, não se mostram suficientes para dar conta do estabelecimento efetivo de um vínculo, no qual a compreensão das vivências do cliente é fundamental para iniciar o processo psicoterápico.

As questões que surgem diante da solicitação de atender uma pessoa surda, em compreender o seu sofrimento sinalizado, podem acarretar falhas na comunicação entre psicólogo e cliente surdo, quando alguns aspectos não são considerados. Geovanini (1999) discute a questão da falha na comunicação, mostrando-nos que, na própria família, a pessoa surda pode não ser compreendida, não ser escutada. Ela relata um caso no qual a família demonstra ter dificuldade em aceitar a surdez de um membro, em acolher esta singularidade. Traz a queixa de uma mãe, falando que seu filho apresenta comportamentos não condizentes com sua idade, comportamentos “imaturos”, ao mesmo tempo em que essa mãe relata antecipar a resolução de questões cotidianas antes que seu filho as resolva, por julgá-lo despreparado para estar no mundo. Se fizermos uma leitura heideggeriana desse modo de cuidado podemos pensá-lo como sendo uma preocupação substitutiva, em “retirar o “cuidado” do outro e tomar-lhe o lugar nas ocupações” (Heidegger, 192ι/2012, p. 1ι8), assumindo o seu lugar no exercício de

viver, impossibilitando esse filho de começar a assumir sua vida.

Sobre esse ponto, trazemos à reflexão o modo heideggeriano de conceber o “cuidado” (Sorge), mas para falar em cuidado é preciso antes falar no modo de existir

do humano tal como pensado por este filósofo. Heidegger (1927/2012) desvela o ser como um ser-com-os-outros e esses outros não podem existir em separado de quem se é, ou seja, “não significa todo o resto dos demais além de mim, do qual o eu se isolaria. Os

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cooriginário de ser que o cuidado emerge como condição do existente, condição de ser-com. Para Heidegger, existem outras condições existenciais do ser, entre essas temos que o existente é também ser-no-mundo, como aponta Casanova (2009):

O ser-aí é um ente jogado em um mundo fático que constrói a sua dinâmica existencial a partir de uma familiaridade com esse mundo. Ele é um ser-no-mundo não porque se encontra dentro de um espaço dado específico chamado mundo e porque precisa necessariamente se adequar a esse espaço circundante. Ao contrário, ele é essencialmente um ser-no-mundo, porque encontra no mundo a sua própria morada. (p.101)

Como ser-no-mundo, o ser é “cuidado” (Sorge) e, sendo assim cuida de sua existência e do que vem ao seu encontro nos modos da “ocupação” (Besorgen) ou “preocupação” (Fürsorge), que são modos diferentes de estar e de ser-no-mundo. A

respeito dessa condição, Sá (2010) vem nos mostrar que o cuidado é uma característica ontológica do ser, é seu modo originário de estar no mundo, no ser-com os demais entes, inclusive com os entes que também possuem essa condição de considerar o outro por constituir-se também como um ser. Coadunando com este pensamento, Critelli (1996) aponta que a existência humana ocorre no cuidar de si e do mundo e que o ser escolhe o como vai cuidar e do que vai cuidar, assim como cuidará do seu modo de cuidar. Diante dessas questões, como se configuram esses modos do cuidado e quais são suas particularidades?

No cuidado enquanto “ocupação” o ser faz uso dos outros entes em sua

manualidade, os explora, nesta condição que só ocorre entre um ente que possui o modo de ser e estar-no-mundo ocupando os entes dados, não dotados da mesma condição de ser daquele que ocupa. Já na preocupação, “constituição de ser da presença que,

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mundo da ocupação quanto com o ser para consigo mesmo” (Heidegger, 1927/2012, p. 179), esse é o único modo de ser-com os outros entes dotados dessa condição de ser. Existem variações nesse modo de cuidar, sendo o modo não deficitário, o da preocupação antepositiva libertadora, o cuidado que permite que o outro seja responsável por si e livre no estar lançado em possibilidades. O oposto a este modo é o cuidado como preocupação substitutiva, que ocorre quando o ser “pode ocultar o sentido próprio do outro, substituindo-o na sua liberdade e responsabilidade ao impor-lhe um sentido impessoal, ainda que de modo dissimulado e parecendo fazer justamente o contrário” (Sá, 2010, pp. 194-195). Como desdobramento dessa condição de cuidar, Heidegger (192ι/2012) nos adverte que “o outro pode tornar-se dependente e dominado mesmo que esse domínio seja silencioso e permaneça encoberto para o dominado” (p. 178).

Relacionando esses modos de cuidado e como se dá o olhar que o psicólogo lança à pessoa surda, trazemos as considerações de Mrech (2001), ao enfatizar que, quando se aborda somente a surdez – o não ouvir, isso se torna um complicador, pois faltará uma maior compreensão dessa pessoa. E, ao se ter uma compreensão mais ampla, a particularidade da surdez passa a ser vista como sendo mais um modo de ser constituinte da pessoa surda, não o único ou o principal. Na perspectiva fenomenológica, podemos compreender a surdez como um dos aspectos do humano, dentre as diversas possibilidades dos modos de ser.

Nesse sentido, o profissional deve ofertar a escuta e a partir dela realizar seu trabalho, escutar a palavra, não somente a voz, pois é na palavra – linguagem, que a pessoa se comunica. Mas, quando não se conhece a Libras “a escuta vai se dando diante

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mas que possuem diferentes estruturas gramaticais e aspectos linguísticos próprios. Podemos pensar que a pessoa surda busca falar sobre sua vivência ao seu modo e para algumas abordagens psicoterápicas isso pode ser uma questão conflituosa, principalmente para quem não está capacitado para se comunicar em Libras. Com isso, a referida autora aponta para a necessidade de o profissional buscar se capacitar em Libras, para melhor se comunicar e estabelecer um diálogo compreensivo entre ambos, cliente e psicólogo, possibilitando o desenvolvimento do vínculo terapêutico.

Diante dessas questões, buscamos ampliar a compreensão da pessoa surda e sua particular condição de existente refletindo a partir do referencial teórico fenomenológico-existencial heideggeriano. Em sua obra Ser e Tempo, Heidegger (1927/2012) diz que o Dasein, ou pre-sença, por ser-no-mundo, encontra-se sempre em abertura de sentidos1, tendo no existencial disposição um modo de ser, um humor, que dá uma tonalidade afetiva particular ao existente. É por meio dessa disposição que o Dasein compreende e comunica seus sentidos – mundo, ressaltando que em seu processo de estar-no-mundo “a pre-sença já se colocou sempre diante de si mesma e já sempre se encontrou, não como percepção, mas como um dispor-se numa afinação de humor.” (p. 194).

Para este filósofo, o Dasein é constituído por vários existenciais fundamentais, entre os quais: disposição, compreensão e linguagem. Sobre o existencial disposição (Befindlichkeit), ele nos diz: “o que indicamos ontologicamente com o termo disposição é, onticamente, o mais conhecido e o mais cotidiano, a saber, o humor, o estar afinado num humor” (192ι/2012, p. 193). Ele defende que o ser se encontra sempre em disposição e compreensão (Verstehen), já que “toda disposição sempre possui a sua

1 Heidegger (1927/2012) nomeia sentido como “aquilo que pode articular-se na abertura

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compreensão, mesmo quando a reprime. O compreender está sempre afinado pelo humor” (p. 202). Esse modo de conhecimento possibilita que o mundo seja interpretado

e aquilo que foi compreendido passa a ter um sentido, mas, segundo Heidegger, não basta simplesmente ter acesso ao que se compreendeu, mas sim “elaborar as

possibilidades projetadas no compreender” (p. 209), apropriando-se do conhecido, permitindo-se afetar pelas vivências e compor sua interpretação.

Esta interpretação, quando elaborada, passa a ser comunicada, sendo por intermédio da linguagem que o Dasein torna-se presente no mundo. Com relação ao terceiro existencial, a linguagem (Sprache), considera-se que também faz parte do processo de existir do Dasein, ela necessita dos outros dois existenciais, assim como é necessária a eles para possibilitar ao ser atribuir sentidos a si e ao mundo. Quando pensamos na linguagem, em seu sentido ontológico, remetemo-nos aos aspectos ônticos como: palavra, discurso, fala, comunicação, entre outros modos de tematizar a linguagem. Esses termos dizem muito sobre o ser, ao mesmo tempo em que ameaçam aprisionar a linguagem em um conceito cotidiano, apenas gramatical, o que limitaria esse existencial, mas é oportuno considerar que a sua compreensão ultrapassa as possíveis definições ônticas que pode ter. A linguagem apresenta mundo traz a fala, que é a “articulação “significativa” da compreensibilidade do ser-no-mundo, a que pertence o ser-com e que já sempre se mantém num determinado modo de convivência ocupacional” (Heidegger, 192ι/2012, p. 224).

Pensar o fenômeno da fala, inserida na compreensão ontológica do existencial linguagem, nos remete a sua complexidade e ao jogo de sentidos do qual ela faz parte. Sobre essa possibilidade do ser, Heidegger (1959/2011a) ressalta:

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ouvimos e lemos. Falamos igualmente quando não ouvimos e não lemos e, ao invés, realizamos um trabalho ou ficamos à toa. Falamos sempre de um jeito ou de outro. Falamos porque falar nos é natural. (p. 7)

Para esse pensador, a fala faz parte da existência, ela sempre nos diz sobre algo, aponta para algo do que se fala. Sendo assim, ela é um processo de comunicação que se desenvolve no ser-com. Como bem mostra Heidegger (1927/2012), a comunicação da fala traz em sua constituição, o seu referencial, o tematizado em fala, a comunicação e o que é apresentado. Podemos compreender que essa fala da linguagem não tem relação com o fenômeno auditivo, mas sim diz respeito ao campo existencial, independente de como se fala, oralizando, escrevendo, por intermédio de sinais, com o corpo ou até mesmo nos momentos de silêncio. Existimos na fala.

Outro aspecto pertencente à fala é o processo de escuta. Para Heidegger “a

escuta é constitutiva da fala. E, assim como a articulação verbal está fundada na fala, assim também a percepção acústica funda-se na escuta. Escutar é o estar aberto existencial da presença enquanto ser-com os outros” (192ι/2012, p. 22θ). Assim, como a escuta, o ouvir faz parte da linguagem e da fala da linguagem. De acordo com esse filósofo, o ouvir é mais originário que a escuta, ele é uma escuta compreensiva, um aprofundamento na escuta verbal, é ouvir o sentido do ser, estar sensível às sutilezas do que é proferido na fala. Nas palavras de Heidegger (1927/2012), “somente onde se dá a possibilidade existencial de fala e escuta é que se pode ouvir. Quem “não pode escutar” e “deve sentir” talvez possa muito bem e, justamente por isso, ouvir” (p. 22ι).

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compreensibilidade do ser-no-mundo, trabalhada por uma disposição, se pronuncia como discurso” (p. 219). Mas, em relação à estrutura fundamental linguagem, esta não

deve ser apenas compreendida como a comunicação de algo racional, ela vai além da transmissão de informações. Em seu sentido ontológico, linguagem é “o modo no qual se manifesta o próprio existir humano” (Duarte, 2005, p. 2) já que é o homem que

pertence à linguagem e não o contrário.

Esse processo permite ao ser se encontrar em seu discurso, meditar sobre sua vida e ter a possibilidade de se deparar com suas questões existenciais e movimentar-se para outras possibilidades de ser. É a abertura para o seu ser mais próprio, retirando o Dasein do aspecto impessoal de sua cotidianidade. Como nos diz Heidegger (1959/2011a):

Se devemos buscar a fala da linguagem no que se diz, faríamos bem em encontrar um dito que se diz genuinamente e não um dito qualquer, escolhido de qualquer modo. Dizer genuinamente é dizer de tal maneira que a plenitude do dizer, próprio ao dito, é por sua vez inaugural. (p. 12)

Dessa forma, a linguagem nos mostra o complexo processo que é o ouvir, que muito se aproxima do realizado pelo fazer clínico do psicoterapeuta fenomenológico-existencial, pois é no ser-com que pode ocorrer o compreender e o ouvir os sentidos, não somente o ouvir dos ruídos e emissões sonoras dotadas de conceitualidade, mas caminhar no desvelar da linguagem do poder ser.

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liberdade e, com isso, realizar escolhas, levando-se em consideração que ele não poderá concretizar todas as possibilidades que se apresentam para o seu existir, segundo Sá (2010) “O que o Dasein está sendo nunca é sua totalidade, mas a realização de certas possibilidades sempre em jogo, em sua temporalização existencial finita” (p. 185).

Nesse sentido, estar em liberdade é estar lançado em um mundo que exige a tomada de decisões, indo além da simples ação de escolher alguma coisa para sua vida, pois é preciso que o Dasein se comprometa com o que escolhe. Compromisso de se responsabilizar em assumir sua existência, levando adiante suas decisões e respondendo as implicações advindas do existir em liberdade. É um processo de tomar para si algo que vai lhe acompanhar em seu ser-no-mundo, com aspectos positivos e negativos, sendo que o Dasein nunca poderá se fechar em apenas um único modo de ser, já que sua essência é a sua indeterminação enquanto existente. Mesmo após se apropriar de alguma escolha, ele também é convocado, em alguns momentos, pelo clamor das outras possibilidades que foram deixadas de lado e que lhe deixam em débito existencial. Como nos diz Pompeia e Sapienza (2011) “sua abertura diz respeito ao que ainda não é

mas pode ser, ao que já foi e não é mais e ao que seria possível apenas virtualmente (p. 24)”.

Pensar no ser em liberdade, que se lança no existir, nos remete aos clamores mundanos e a escuta das verdades desse ser, compreendidos como condição fundamental para a realização de sua existência. Heidegger (1927/2012) afirma que “enquanto constituída pela abertura, a presença é e está essencialmente na verdade” (p.

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do aprisionamento cotidiano, no que já é familiar ao campo da psicologia. Esse é um constructo complexo e que, pensado filosoficamente, nos mostra novos sentidos para o atendimento clínico e para a compreensão do humano nesse jogo de ser livre e responsável por sua liberdade.

Como ser-aí, o humano está em decadência, ou seja, vive na impessoalidade, junto aos outros entes imersos na cotidianidade na condição de ser-com, indo de encontro aos entes que apresentam sentidos e verdades cristalizados pelo saber metafísico ocidental. Segundo Heidegger (2012) “numa primeira aproximação e na maior parte das vezes, a presença se perdeu em seu “mundo”.... Empenhar-se no impessoal significa o predomínio da interpretação pública. O que se descobre e se abre instala-se nos modos de distorção e fechamento (292)”. Nesse sentido, ao pensar o conceito de verdade enquanto um conhecimento dado, produto de um saber naturalizado e estabelecido socialmente, tem-se a busca da congruência entre o que existe objetivamente e a representação que o humano faz desse ente, mas não é esse o caminho feito por Heidegger em sua analítica existencial. Ao desenvolver uma leitura compreensiva, na discussão ontologicamente da noção de verdade para o Dasein, esse conceito carece de um novo sentido, ou seja, pensar a verdade em seu aspecto mais ontológico, enquanto desvelamento dos sentidos do ser (Sá, 2009).

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igualmente à facticidade da existência” (p. θι). Aquele que desvela sentidos, o ser

desvelador, busca verdade por ser um ser de abertura e que exerce seu ser-no-mundo em disposição, compreensão e linguagem. Nas palavras de Heidegger (192ι/2012) “a

“definição” de verdade como descoberta e ser-descobridor tampouco é mera explicação de palavras. Ela nasce da análise das atitudes da presença, que costumamos chamar de “verdadeiras”” (p. 291). O Dasein, para chegar a sua verdade, deparasse com os apelos

de si, do mundo e dos outros. Em meio a essa trama de convocações, que podem ofuscar ou iluminar o ser, é preciso que ele corresponda a esses chamados e siga com sua decisão, pois somente ele poderá cuidar de seu modo de ser (Pompeia & Sapienza, 2011).

Percebe-se que essas reflexões, levantadas pelo pensamento filosófico de Heidegger, em muito contribuem para pensar o fazer clínico do psicólogo, assim como de outros profissionais que lidam com o humano e seu sofrimento. Discutir o Dasein, sua constituição e seus modos de ser, inicialmente, despertou o interesse de profissionais da medicina, inquietos com as práticas clínicas que aprisionavam o homem em determinismo e diagnósticos, o que permitiu o surgimento de uma nova atuação clínica, que trouxe para o campo da medicina o pensamento heideggeriano e, posteriormente, levantou novas possibilidades para o atendimento clínico em psicologia. É sobre a Daseinsanálise e a psicoterapia fenomenológico-existencial que seguiremos tematizando nesse estudo, pensando em sua atuação junto à pessoa surda.

2.1 A clínica fenomenológico-existencial

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Martin Heidegger. Discutiremos seu surgimento, momento no qual se desenvolveu a Daseinsanálise, e quais as principais noções que hoje fazem parte do fazer clínico do psicoterapeuta fenomenológico-existencial. Nossa discussão será voltada à clínica de base heideggeriana, sendo assim, não faz parte do nosso estudo discutir o surgimento da clínica, esse importante tema, mas que já foi bastante abordado em outros estudos da psicologia.

A Daseinsanálise, enquanto clínica, teve seu início com Ludwig Binswanger, médico suíço que, em seu percurso profissional, manteve contato com os filósofos Husserl e Heidegger. Inspirado nas discussões formuladas por Martin Heidegger em sua obra Ser e Tempo, Binswanger partiu das noções existenciais de projeto e cuidado e com isso buscou levar para o campo do atendimento psiquiátrico a fenomenologia existencial heideggeriana. Nesse intento também considerou alguns aspectos da fenomenologia de Husserl, com quem teve contato anteriormente (Feijoo, 2011).

Insatisfeito com o modelo de ciência que predominava em sua época, bem como com os desdobramentos desse modelo naturalista no campo da psiquiatria, Binswanger buscou modificar o atendimento psiquiátrico, levando o pensamento heideggeriano para sua atuação clínica (Boss & Condrau, 1997). Seu trabalho foi uma tentativa de levar a ontologia filosófica para o campo ôntico. Essa foi uma difícil e ousada tarefa, já que o pensamento heideggeriano e a analítica do Dasein foram pensados principalmente no campo ontológico. Essa aproximação acabou repercutindo na incompreensão do conceito de “Cuidado”, tornando-se diferente do formulado por Heidegger, que o apresentava no campo ontológico como um modo de ser-no-mundo do Dasein. A noção de cuidado, como apresentada em Ser e Tempo, traz que:

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com os entes intramundanos (Bersorgen) e o desentranhamento de um contexto relacional.... Ser-aí é um ente sempre referido a outro ente, seja sob o modo da ocupação, seja sob o modo da preocupação. (Feijoo, 2011, p. 38)

Buscando entender o seu atendimento psiquiátrico à luz da filosofia heideggeriana, Binswanger acrescentou ao conceito de “cuidado” a noção de “amor”,

considerando esta como necessária ao Dasein para poder exercer o ser-com. Ele introduziu o afeto ôntico “amor e passou a compreender o cuidado como também uma condição ôntica. Essa questão fez com que Heidegger se posicionasse contra essa nova compreensão que, segundo ele, foi errônea, do existencial cuidado. Para Heidegger, o cuidado inclui também a noção de amor, como nos mostra Boss e Condrau (2007) “Heidegger não somente não exclui as diversas formas de relações afetivas, como as

inclui de imediato” (p. 25), o que faz com que não determine apenas uma como devendo

ser a base fundante do existencial cuidado, mas sim como uma das diversas possibilidades de ser enquanto cuidado. Em sua obra Seminários de Zollikon, Heidegger (1987/2001) reforça sua posição em relação à Binswanger e argumenta que:

o mal entendido de Binswanger não consiste tanto em que ele quer complementar o “cuidado” pelo amor, mas sim, no fato de que ele não vê que o

cuidado tem um sentido existencial, isto é, ontológico, que a analítica do dasein pergunta pela sua constituição fundamental ontológica (existencial) e não quer simplesmente descrever fenômenos ônticos do Dasein. (p. 142)

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daseinsanálise, tendo por base o pensamento heideggeriano, passou a ser discutida por outro psiquiatra que melhor trabalhou o que Binswanger havia começado e abandonado (Feijoo, 2011).

No contexto dessa modificação da clínica de inspiração heideggeriana, outro profissional da medicina foi quem continuou a desenvolver o projeto da daseinsanálise. Medard Boss, médico psiquiatra, trabalhou inicialmente como psicanalista e teve a oportunidade de ter contato com Freud e Jung, para, posteriormente, ser tomado pelo pensamento do filósofo alemão. Assim como Binswanger, incomodado com o fazer psiquiátrico de seu tempo, passou a questionar as bases teóricas e científicas da psiquiatria, não vendo mais sentido no modo como se realizava o fazer clínico psiquiátrico daquela época. Os pacientes e sua experiência apontavam para a necessidade de aprimorar o seu trabalho, de avançar para uma nova compreensão do humano, da existência enquanto sofrimento e possibilidades. Suas inquietações o levaram ao encontro com a obra Ser e Tempo de Heidegger, a qual, inicialmente, mostrou-se incompreensível, levando-se em consideração os seus anteriores referenciais de homem e mundo. A nova postura proposta nessa obra e o novo olhar para os fenômenos, por mais que de difícil entendimento, já despertavam Boss para as questões do pensamento heideggeriano que ele sentia trazer “algo inaudito, novo e muito profundo” (Boss, 199ι, p. ι). O contato com o novo pensamento, através das leituras da obra, fez com que ele se aproximasse do pensador, suscitando o interesse em conhecer pessoalmente Heidegger e, posteriormente, já no primeiro encontro, estabeleceram um bom vínculo afetivo (Boss, 1997).

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consolidação da daseinsanálise enquanto clínica, Boss destacou alguns principais pontos que considerou pertinentes para pensar a atuação profissional: “a inseparabilidade do orgânico e do psíquico, a angústia e a culpa como tonalidades afetivas de suma importância no âmbito dos psiquicamente doentes e, por fim, o caminho para a libertação” (Feijoo, 2011, p.ι2). Também realizou interpretações dos sonhos feitas pelo paciente e leituras psicossomáticas que partem de outra compreensão das vivências. Essas questões, que se constituíram enquanto abordagem clínica, surgiram a partir das reflexões existentes nos pressupostos heideggerianos sobre o Dasein.

Com o passar do tempo, a daseinsanálise ganhou mais espaço e se consolidou enquanto prática clínica. O processo de institucionalização da daseinsanálise ocorreu inicialmente na Suíça, no ano de 1971, quando do surgimento da Sociedade Suíça de Daseinsanalyse, e, posteriormente, em 1973, com a Associação Internacional de Daseinsanalyse, momentos que possibilitaram abertura para que outras unidades da associação fossem criadas em outros países, inclusive no Brasil, na cidade de São Paulo. Esses espaços surgiram para formar novos profissionais - psicólogos e médicos - nessa perspectiva e, também, para possibilitar que discussões em relação a essa nova abordagem, enquanto atuação no espaço da clínica, ganhassem maior visibilidade (Boss & Condrau, 1997). Sobre os caminhos atuais da daseinsanálise, Feijoo (2011) destaca que, atualmente, essa perspectiva não está presente nas formações em psicologia e prossegue argumentando que é uma formação ainda muito restrita, o que torna relevante o reconhecimento da necessidade de realizar maior divulgação, ganhar mais visibilidade acadêmica e mostrar o seu fazer, apresentando claramente o que vem a ser a daseinsanálise.

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mundo, ela estando à frente dos saberes psiquiátricos e psicanalíticos, dos modelos que pensavam o homem enquanto um sujeito detentor de um subjetivismo que o separava dos objetivismos do mundo. Sobre essas perspectivas mais cientificistas, a daseinsanálise se posicionou contrariamente, lançando um renovador e revelador olhar fenomenológico enquanto abertura de novos modos de ser (Boss, 1997; Boss & Condrau, 1997). Inicialmente pensada para o campo da psiquiatria, a daseinsanálise ampliou o seu campo de atuação chegando ao atendimento psicoterápico das diversas demandas existenciais, não somente aquelas relacionadas ao âmbito do que ainda hoje chamamos de saúde mental, mas acolhendo os diversos modos de sofrimento humano.

Com relação à atual prática clínica, de inspiração fenomenológico-existencial, torna-se oportuno discutir alguns aspectos que configuram essa atuação. Nesse sentido, para discutir sobre as partes que constituem esse fazer, precisamos refletir sobre as questões que são desveladas junto à noção de Dasein e que, nessa abordagem, redefinem a prática clínica psicológica. Uma nova compreensão, de homem e mundo, exige novos modos de ser-com no campo da psicoterapia.

Dutra (2013); Feijoo (2010, 2011); Prado e Caldas (2013) e Sá (2002b, 2010) nos falam sobre a atitude fenomenológica presente na atuação clínica do psicoterapeuta fenomenológico-existencial. Com essa postura, o psicólogo não deve se limitar a compreender os fenômenos como simplesmente dados a priori. Deve ter abertura para acolher o outro como novidade, em sua singularidade, reconhecendo que existem discursos elaborados e que buscam explicar o humano, mas que também é preciso suspender o que já se sabe para deixar que o novo se desvele, conhecendo assim os sentidos que emergem no espaço clínico. Para isso, o Psicólogo precisa desenvolver uma atitude antinatural, como mostra Feijoo (2011) buscando “suspender qualquer

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assim acompanhar o fenômeno no seu modo de revelar-se” (p. 8θ). Uma atitude contrária a essa seria a atitude natural, que diagnostica, aprisiona e pode obscurecer a condição de poder ser do Dasein.

O Dasein é um ente que tem como condição existencial ser indeterminado, ele está em liberdade para exercer seu ato de existir, sendo assim, é um ser de possibilidades que se encontra lançado no mundo, na maior parte do tempo, imerso no modo de ser impessoal “que encobre e distorce o desvelamento das possibilidades de

sentido de si mesmo, tomando-se por um ente cujo modo de ser já está previamente dado” (Sá, 2009, 65-66). É esse ser que chega aos serviços de psicologia, mas cabe ao psicoterapeuta fenomenológico-existencial insistir em um movimento contrário às solicitações e apelos da existência no modo de ser impessoal, devendo favorecer o despertar, em alguns momentos, dos sentidos do ser.

Entre os modos de cuidado, condição existencial do Dasein, cabe ao psicoterapeuta ser-com na condição cuidadora da “preocupação antepositiva libertadora”, “modo do “ser-com” em que o terapeuta deixa-se apropriar enquanto abertura dialogante para a manifestação das possibilidades próprias do outro” (Sá, 2002, p. 7). O profissional recua para que o cliente assuma o seu lugar de cuidador de si, a se perceber em sua responsabilidade de existir, no seu desvelar de outras possibilidades de ser, assim como na escolha de quais projetos traçar e quais abandonar, referentes às decisões que precisa tomar e refletir sobre o débito que pode acompanhá-lo diante de algumas escolhas anteriormente já realizadas (Feijoo, 2000, 2011; Pompeia & Sapienza 2011; Sá, 2002b; Sá & Rodrigues, 2008; Sapienza 2004).

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olhar, que ultrapassa a esfera do atendimento clínico e se integra ao nosso modo de ser-com. Refletindo sobre esse fazer, trazemos as considerações de Sapienza (2004):

Esse trabalho é de pensamento, faz essencialmente uso da linguagem, mas bem poderia ser chamado de artesanal. Nesse contexto, artesanal indica a diferença do “industrializado”, do padronizado, do que se torna generalizado – como as teorias são generalizações –, feito para alguém que não sabemos quem será. Nosso trabalho é destinado a cada um. E não é aquele artesanal que poderia já estar na vitrine à espera de quem o levasse: ele só vai ser realizado no momento em que o destinatário estiver presente. E mais: só será feito com ele. Terapeuta e paciente pensam e sentem juntos. (pp. 19-20)

Esse é um fazer que não está aprisionado a técnicas psicológicas, não podendo ser transposto, de um cliente para outro, de modo universal e padronizando. É uma obra de arte, única, que necessita ser contextualizada junto à indeterminação do ser. Com isso, podemos pensar que, mesmo que o cliente se queixe de uma depressão, ou de outra condição existencial classificada e coisificada em verdades psicológicas, essa vivência é hermeneuticamente cuidada pelo psicoterapeuta fenomenológico-existencial (Sá,1998), para ser compreendida como se dá essa depressão na existência desse Dasein e diante do arte-fato que emerge, esse saber/fazer não será reproduzido para outros clientes, mas pode até servir de inspiração para outras obras.

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daquele em seu encontro com esse outro ente. O que existe é a possibilidade de ampliação da liberdade existencial, desenvolvida hermeneuticamente. Como afirma Morato (2013):

Como ser-com, o ser-aí é para si mesmo e para outros, circulando o mundo da alteridade com o qual se implica e refere na teia de significatividade.... compreendendo o outro, o eu sabe de si mesmo através do outro em seu mundo. (pp. 52-53)

Essa condição nos permite pensar a clínica enquanto um trabalho cartográfico, que a cada encontro reformula o território existencial e viabiliza a reflexão contínua dessa práxis (Morato, 2009). Recria-se constantemente, por também ser clareira que vislumbra novas possibilidades e aponta para novos horizontes, com a atuação do psicólogo clínico fenomenológico-existencial que adota os fundamentos do filosofar heideggeriano, iluminando o Dasein em seu ser livre para poder ser, inclusive no que concerne ao metamorfosear o existir clínico a cada momento.

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3. MÉTODO

Esta pesquisa é caracterizada como de cunho qualitativo, na qual buscamos fomentar a discussão do atendimento psicoterápico de pessoas surdas. Nesse sentido, adotamos o referencial teórico/metodológico fenomenológico-existencial, refletindo a analítica existencial heideggeriana no contexto da clínica stricto sensu, no caso a psicoterapia, buscando refletir sobre a escuta clínica na atitude fenomenológica presente no atendimento de pessoas surdas.

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de construir ciência, condizentes com as propostas dessa pesquisa, Dutra (2002) nos mostra a relevância de realizar uma pesquisa com base fenomenológica:

A escolha de um método de inspiração fenomenológica parece o mais adequado quando se pretende investigar e conhecer a experiência do outro, uma vez que o ato do sujeito de contar a sua experiência não se restringe somente a dar a conhecer os fatos e acontecimentos da sua vida. Mas significa, além de tudo, uma forma de existir com-o-outro; significa com-partilhar o seu ser-com-o-outro. (377)

Considerando estas questões como suporte do nosso trabalho, passamos a pensar no estudo tal como ele ocorre na perspectiva fenomenológico-existencial. Nesse sentido, por constituir uma pesquisa no campo da clínica, traz em seu bojo algumas particularidades inerentes a esse modo peculiar de pesquisar. Avellar (2009) reconhece que o âmbito clínico é um espaço profícuo e disponível para a realização de pesquisas, ela nos mostra que “trata-se de tomar a prática como problema de pesquisa, com o intuito de melhorá-la em função de seus próprios resultados. A situação clínica possui uma dupla fundamentação, a de construção do conhecimento e a do campo da prática”

Imagem

Figura 0 1. “As 4θ CMs da Libras” (Ferreira-Brito & Langevin, 1995).
Figura 02. Movimento (Felipe, 2007, p. 146).  Já o parâmetro Locação ou lócus do movimento do sinal corresponde ao lugar no  espaço no qual o sinal é executado
Figura 03. Locação ou lócus do movimento (Felipe, 2007, p. 171).  Com relação ao parâmetro da Orientação da mão, exprime a marcação de como  a mão vai estar posicionada
Figura 04. Orientação da mão (Felipe, 2007, p. 71).  O  parâmetro  da  Expressão  Não-Manual  ou  Expressões  Faciais  é  uma  característica  peculiar  diferenciadora  dos  sinais,  como  nos  mostra  Gesser  (2009)  “as  mãos  não  são  o  único  veículo
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