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Negros misturados: um estudo de caso sobre identidades negras em Mossoró-RN

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Academic year: 2017

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL MESTRADO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL

“Negros” misturados: um estudo de caso sobre “identidades negras” em

Mossoró-RN

FRANCISCO CARLOS DE LUCENA

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FRANCISCO CARLOS DE LUCENA

“Negros” misturados: um estudo de caso sobre “identidades negras” em

Mossoró-RN

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da UFRN como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Antropologia Social.

Orientador: Prof. Dr. Carlos Guilherme Octaviano do Valle

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FRANCISCO CARLOS DE LUCENA

“Negros” misturados: um estudo de caso sobre “identidades negras” em

Mossoró-RN

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da UFRN como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Antropologia Social.

Aprovada em: ______/______/______

BANCA EXAMINADORA

______________________________________________________________________ Profº. Dr. Carlos Guilherme Octaviano do Valle (Orientador/UFRN)

______________________________________________________________________ Prof. Dr. Luiz Carvalho de Assunção (Examinador Interno/UFRN)

________________________________________________________________________ Profª. Dra. Giralda Seyferth (Examinadora Externa/PPGAS, Museu Nacional - UFRJ)

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AGRADECIMENTOS

O processo de elaboração dessa dissertação representou para mim um grandioso aprendizado. Aprendizado este que não se relaciona apenas às questões teóricas e metodológicas da antropologia. Mas configurou também uma intensa e prazerosa experiência de contatos e relações com os meus entrevistados e amigos. No decorrer de sua realização, fiz novas amizades e contei com a colaboração e a compreensão de várias pessoas. Assim, chega o momento de, sinceramente, agradecê-las.

Primeiramente, agradeço, imensamente, ao meu padim José Nogueira, a minha mãe Lourdes e ao meu pai Manoel de branca. Essas três pessoas representam o que tenho de mais valioso na vida! Sem elas, certamente, essa dissertação não seria elaborada. Registro também sinceros agradecimentos aos meus irmãos Sobrinho e Avelino, amigos com os quais sempre posso contar. Destaco também meu outro irmão Damião, gosto da sua teimosia. Enfim, aos meus seis irmãos. A todos os meus primos e primas. Um agradecimento especial ao primo Elvis pelo tempo que moramos juntos na Residência de pós-graduação da UFRN. Aos meus quatro sobrinhos, Carlos Augusto, Carolina, Gabriela e Luzia. Agradeço a compreensão e inestimável colaboração da minha namorada Isabel. O seu incentivo nas horas difíceis que passei durante a elaboração da dissertação foi fundamental para realização deste trabalho.

Aproveito esta oportunidade para agradecer aos amigos Alcides e Jocken Mass. A minha prima Maria que, bondosamente, me acolheu em sua residência durante toda realização da pesquisa de campo. Agradeço também a UFRN e em especial ao PPGAS/UFRN pelo ambiente proveitoso de reflexão teórica. Destaco meus agradecimentos a Residência de Pós-Graduação, sem ela teria sido bem mais difícil o processo conclusão desta dissertação. Registro também agradecimentos a CAPES por ter me propiciado quatro meses de bolsa de estudo.

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Com igual sinceridade agradeço a todos os meus interlocutores do bairro Santo Antônio. Umagradecimentoespecial para Neto (pai-de-santo) etodoeseuterreirodeUmbanda.

Umagradecimentosinceroaomeu orientador Carlos Guilherme peloseuempenhoe dedicação a todo o processo de elaboração desta dissertação. Sou grato por ter me aceitado como orientando e me propiciado, durante dois anos, um espaço extremamente valioso de reflexãoede conhecimento.

Enfim,abrigadoatodos quediretoou indiretamentesomaramforças comigoemmais uma caminhadadaminhavida!

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RESUMO

Com aproximadamente213 000habilitantes, Mossoró é asegunda cidademais desenvolvida do estado do Rio Grande do Norte. A cidade é proclamada como a terra da liberdade. Para tanto, existem quatro momentos da sua história relacionados com a defesa da liberdade que são apontados como legitimadores de tal proclamação. Tais acontecimentos são o primeiro voto feminino doBrasil, aresistência contrao bandode Lampião, oMotim dasMulherese a libertação dos escravos em 1883, cincos anos antes da sanção da Lei Áurea. Esses acontecimentos são comemorados anualmente no mês de setembro com um grande evento teatral denominado deo Auto da Liberdade. Dentro deste contexto de exaltação à liberdade, existeum movimento negro por nomedeNegro eLindo. Na presentedissertação,discutimos a construçãode“identidades negras”entreosmilitantes negrosdeMossoró eentremoradores do bairro Santo Antônio. Com tal abordagem, pretendemos refletir sobre as possíveis diferençasou semelhanças na forma como osmilitantes eos moradoresdo referido bairrose auto-afirmam como “negros” ou não. Estamos entendendo “identidade negra” como um processo de auto-afirmação elaborado a partir das especificidades do contexto social e das particularidades individuais. Desse modo, a “identidade” torna-se uma realidade dinâmica e contextual, implicando sempre em processos de negociações mediante as interações dos atores sociais. Portanto, buscamos discutir as especificidades que envolvem os processos de construçãode“identidades negras” nacidadedaliberdade.

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ABSTRACT

Withmoreor less213.000habitants, Mossoró isthesecondmoredeveloped city fromtheRio Grande do Norte. The town is proclamated like the land of freedom. To so far, exist four momentsin yourhistory related withthedefenceoffreedomthatis point liketruthful fromso proclamation. Suchlike happenings are the first female vote on Brazil, the resistance against the Lampião’s band, theworman’s mutinyand theslaverelease in 1883, five year beforethe Áurea law sanction. These happenings are commemorate yearly on setember with one big theatrical event called by thefreedom high. Insidethis contextoofexaltation tofreedom,there is one black movement by name black and beautiful. Isthe present dissertation, talked about the buildingof black identities between the blackmilitantsofMossoró andthe dwellers from theSantoAntôniodistrict. Withsuchapproach, weintendtothinkabout possiblesdifferences or likeness, how themilitants anddwellersfrom therefereddistrict self-calleds like “blacks” or not. We are understanding “black identity” like one process to self-affirmation done by specificities of the social context and the individual particularity. This way, the “identity” changeintoonedynamic and contextual reality, gonealways by one business process against the interaction of the social actors. So we search to discuss the specificities that involve the processto buildingof“blackidentities”in the city offreedom.

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LISTA DE FIGURAS

Figura 01: Mapa do estado do Rio Grande do Norte no qual se vê o

municípiodeMossoró... 9 Figura 02: Mapada cidadedeMossoró no qual sevê o bairroSantoAntônio... 16 Figura 03: Ruado bairroSantoAntônio... 17 Figura 04: RuadoBairroSantoAntônio comesgotoa céuaberto... 18 Figura 05: Aestátuada liberdade, localizada na praçadaRedenção... 54 Figura 06: Rua 30deSetembro,datadaaboliçãoemMossoró... 55

Figura 07: OPaláciodaResistência 55

Figura 08: No centro da cidade, um painel em alto relevo expõe os quatro acontecimentos que fundamentam os discursos de cidade da liberdade... 56 Figura 09: IgrejaSãoVicente... 60 Figura 10: Placa como nomedosmossoroenses que participaramdos combates

para expulsar Lampião. Tal placa localiza-se ao lado da Igreja São Vicente... 60 Figura 11: Baobá naUniversidadeFederal Rural doSemi-Árido. É deste baobá

que os militantes colhem flores para distribuí-las durante a

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SUMÁRIO

Introdução... 9 A pesquisa comosmilitantes negros... 12 A pesquisa no bairrodeSantoAntônio... 15 1 “Raça” e Racismo no Brasil... 22

1.1 O“negro” naformaçãoda nação brasileira... 27 1.2 O“negro” noestadodoRioGrandedoNorte... 32 1.3 Oracismo à brasileira... 38 2 Mossoró, a cidadedaliberdade?... 52 2.1 Osmilitantes negroseosdiscursosdecidadedaliberdade... 63 2.2 Osdiscursosdecidadedaliberdade paramoradoresdoSantoAntônio... 74 3 A militância negra de Mossoró... 85 3.1 ORaízeseoNegroeLindo... 88 3.2 Fazer-semilitante negroemMossoró... 96 3.3 Avisãodosmilitantes negrossobreamilitância... 104 3.4 ALouvaçãoàBaobá... 108 3.5 OdesfiledeMariaEspaiaBrasa... 123 4 “Identidade negra”na Cidadeda Liberdade... 133 4.1 A“identidade negra”entreosmilitantes negros... 137

5 “Identidade negra”no bairro de Santo Antônio? ... 162

5.1 A construçãoda“identidade negra” no bairrodoSantoAntônio... 169 5.2 Ser“negro” no bairrodeSantoAntonio:sentidosda coredamistura... 186

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Introdu

çã

o

A cidade de Mossoró localiza-se no semi-árido do Rio Grande do Norte; distando 277 Km de Natal, a capital do estado. No Censo de 2000 do IBGE, a populaçãodeMossoró foiestimadaem213. 841 habitantes. É consideradaatualmentea segunda cidade mais desenvolvida do estado, sendo suas principais atividades econômicas a extração e industrialização de sal, a extração de petróleo realizada pela Petrobrás,aagriculturairrigadaeo comércio logístico.

Figura 01 - Mapa do estado do Rio Grande do Norte no qual sevê omunicípiodeMossoró.

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portanto, grandes impulsionadores do crescimento urbano de Mossoró nas últimas décadasdoséculoXX.

Mossoró temsido conhecida comoacidadedaliberdade. Paratanto,autoresda historiografia local afirmam quefoi nessa cidade onde primeirose libertouos escravos noBrasil. Tal fatoteria sido concretizadoem 30deSetembrode 1883. Os discursosde cidadedaliberdadesão fortalecidos através das comemoraçõesdodiadaaboliçãoe de vários outros referenciais. Como exemplos de referências à idéia de cidade da liberdade, podem-se destacar os bairros Abolição I, Abolição II, o bairro Liberdade, a Praçada Redenção ea Estátuada Liberdade. Todasestas construçõesforamrealizadas pelo poder público municipal. Então, é dentro desse contexto de ênfase na idéia de liberdade, e, principalmente, na liberdade dos “negros”, que discutiremos sobre “identidade negra” e as especificidades que a envolve. Ademais, refletiremos também acerca da interpretação que as pessoas de Mossoró fazem dos discursos de cidade da liberdade. Esses discursos se apóiam em quatro acontecimentos relacionados com a defesada liberdadedo povo mossoroense, quais sejam,a libertação dosescravos cinco anos antes (1883) da abolição a nível nacional; a resistência à invasão do bando de cangaceirosdeLampião (1927); o primeirovotofemininodahistória (1928) earevolta dasmulheres deMossoró para que seusmaridos não fossem paraaGuerra doParaguai (1875). Esses quatro eventos são tidos como testemunhos históricos da vocação da cidade paradefendera liberdadedoseu povo.

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seu significado de acordo com quem fala, como fala e de onde fala. Isso nos permite refletirsobre o caráterdinâmicodo processo de construçãodas “identidades sociais”e, conseqüentemente,das“identidades negras”.

A militância negra de Mossoró atualmente é composta pelos componentes do CentrodeEstudo, PesquisaeAtividadesCulturais NegroeLindo, quesurgiudepoisda desarticulação do Raízes Movimento Negro de Mossoró. O Raízes surgiu em 1985 e organizava três atividades, que eram o desfile carnavalesco de Maria Espaia Brasa, a Louvaçãoà Baobáe aexposiçãode fotografias de pessoas “negras”. Tal exposiçãoera denominada de Negro e Lindo. Como veremos no terceiro capítulo, o Raízes foi desarticulado em 2005 e parte dos seus militantes formou o Negro e Lindo. Com a desarticulação do Raízes, o Negro e Lindo tornou-se o responsável pela realização do desfile carnavalesco da boneca Maria Espaia Brasa eda Louvação à Baobá no dia da ConsciênciaNegra (20de novembro). ONegroeLindotem quatromilitantes:umaatriz de teatro, duas professoras universitárias e um jornalista. Vale salientar que nesta pesquisa foram realizadas entrevistas com os quatros componentes do Negro e Lindo, com quatro pessoas que eram integrantes do Raízes e com duas pessoas que são consideradas pelos integrantes do Negro e Lindo como militantes negros. Para complementar e comparar a pesquisa dos militantes negros, escolhi o bairro de Santo Antônio para realizarasentrevistas com pessoas não ligadas à militância negra. Issose deu porque é justamente neste bairro queocorreumadasatividadesdoNegroeLindo,o desfile do bloco e boneca Maria Espaia Brasa. A Louvação à Baobá conta também, principalmente, com a participação de moradores deste bairro. Esta pesquisa foi realizadadurante os mesesde maio, junho e parte de julho de 2006. Valeressaltar que no mês de outubro voltei a campo durante uma semana, concentrando-me, sobretudo, emrealizarentrevistas no bairroSantoAntônio.

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bairro Santo Antônio vêem os discursos de cidade da liberdade. No terceiro capítulo, apresentamos como está a militância negra de Mossoró e como os militantes se constituíram comotais. No quarto capítulo, discuto a construção da“identidade negra” pelos militantes negros e, depois, no quinto capítulo discuto se os entrevistados do bairro Santo Antônio se auto-afirmam como “negros” ou não. Veremos que entre os moradores do referido bairro o processo de auto-afirmação se deu, sobretudo, pela lógicado continnum da “cor”. Valedestacar que quandouso as palavras ouexpressões em itálicorefiro-me às categorias nativasusadas pelosentrevistadosem seus contextos deinteração. Poroutro lado,emprego“aspas” nosentidoderelativizar certas categorias como “raça”, por exemplo. Busco, assim, não reificar tais categorias. Elas somente possuemvalidade nomundosocial,sendoassimhistóricase contextuais.

Destaco também que, em todo o trabalho, estou me apoiando teoricamente na literaturaantropológicamaisrecentesobre“raça”eracismo noBrasil. Tanto no capítulo teórico como nos demais capítulos, estou dialogando, sobretudo, com autores como PeterFry, Sansone,Maggie, edemaisoutros quearticulamumareflexãosobre“raça”e racismo de forma mais dinâmica e menos determinista. Portanto, busco fazer uma discussãosobre“identidades negras” em Mossoró ondeamisturae amiscigenação não são abordadas como arquiinimigos da formação de tais identidades, mas sim como aspectos intrínsecos ao processo de elaboração dos significados da terminologia da “cor”e como particularidadesdasrelaçõesraciais brasileiras.

A pesquisa com os militantes negros

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racismo, fez-me elaborar um projeto de mestrado, resultando na pesquisa que estou conduzindo.

Em2006, passei omêsdemaioeaté asegundasemanade julhoem pesquisade campo. Fiquei, então, na casa de uma prima residente no bairro Aeroporto, conhecido popularmente comoMacarrão, distante quaseseis quilômetrosdo bairroSantoAntônio. Nesta casa, os vizinhos perguntavam o que eu estavafazendo, pois não me conheciam no bairro. Respondia que estava fazendo uma pesquisa sobre preconceito racial e racismo, ao ponto deles me questionarem se eu não tinha algo mais interessante para fazer. Ouvimuitosvizinhosdeminha primadizerem que nãosabiam comoeusuportava viver conversando com “negros”. Estes comentários racistas eram, de fato, muito comuns. Quando às vezes demorava a chegar para almoçar ou jantar, minha prima perguntava-mese arazãoda demora teriasido porque os“negros”estavam sesentindo importantes e colocavam queixo para conversar comigo. Vale destacar que estes comentários não eram apenas feitos por minha prima, mas também por suas vizinhas que vinham conversar a noite em sua casa. São em situações como estas que, muitas vezes, nosdeparamos comoracismoe comaintolerânciadas pessoas. Esta convivência duranteos quasetrêsmeses queestiveemMossoró mostrou-me,deforma prática,faces do racismo brasileiro, um racismo silenciado, no entanto presente nas piadas, nos comentários depreciativos sobre “negros” e em outras situações cotidianas que envolvem“brancos”e não-brancos.

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com dois militantes, fiz entrevistas nas suas residências. No decorrer das entrevistas, conversávamos sobre a realidade da militância negra local, sobre os seus processos de auto-afirmação como“negros”,osdiscursosdecidadedaliberdadeedemaisassuntos. A minha convivência com a militância negra de Mossoró foi confortável, algo queeuimaginavaserdiferente. Por nãoser“negro”,achava quea“cor”da pele poderia, em algum momento, se transformar num entrave para a pesquisa. Por mais que eu os conhecesse desde a pesquisa da monografia, sempre pensei que, em alguma situação, minha “cor” pudesse se transformar num obstáculo à pesquisa. Muitosativistas negros não gostam que pessoas “brancas”tenham acesso à realidadeda suamilitância. Com o passar do tempo tive de relativizar totalmente esta idéia e entender que, para os militantes negros de Mossoró, a “cor” da pele não se traduz num entrave para se ter acesso ao movimento e até para participar da sua militância. Para eles, o que mais importa é o compromissodoindivíduo coma luta contraoracismo. É claro queeles não meviam comoummilitante,mas comouma pessoa queestavaestudandoarealidadedo racismo na cidadee comoelesseauto-afirmavam como“negros”. Naquele contexto,eu representava a figura do pesquisador, da pessoa que, por deter um conhecimento especializadosobreoracismo, poderiafazerumaanálisedaaçãoanti-racistadoNegroe Lindo. Lembro-me de uma entrevista que realizei com uma militante na qual ela me disse queeueraa pessoamaisindicada parasaberseelaeraumamilitanteou não, pois estava pesquisandosobreoassunto.

No decorrer da pesquisa, entrevistei dez militantes negros. Quatro deles pertenciam ao Negro e Lindo e outros quatro eram ex-integrantes do Raízes. Duas pessoas consideravam-se militantes mas não eram integrantes do movimento negro local. Essas duas pessoas se consideravam militantes, principalmente, por colaborarem na organização dos eventos do Negro e Lindo. As entrevistas tiveram uma duração média de quarentaminutos. Algumasdelas se estenderam mais. Como já destaquei, as entrevistas foram feitas quase todas nos ambientes do trabalho dos militantes, mas sempre de forma a estar somenteeu eo militante presentes nasua realização. Isso nos deixavamais à vontade para conversar. Para colherasinformações, utilizeiaparelhode gravadore um cadernodeanotações. Quandofaziauma pergunta queestava gravando, tambémficavafazendoanotações que julgavaimportantes.

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os outros cinco já possuíam graduação. Todos eram empregados. Cinco deles eram professores, sendo que dois eram professores do ensino superior; dois trabalhavam no meio jornalístico; uma mulher trabalhava como atriz de teatro e dois trabalhavam na Petrobrás. Todoselessedefiniram como“negros”.

Além das entrevistas com os militantes, também fiz observação participante do desfile de Maria Espaia Brasa no carnaval de 2006 e 2007. Também na Louvação à Baobá, estive presente na sua realização em 2006. Nestes eventos, tirei fotos, anotei detalhes que julgava etnograficamente valiosos e realizei também entrevistas. Pode-se ver quealémdasentrevistas, participeide certaformadasatividadesdoNegroeLindo. É importantesublinhar queestamosentendoobservação participante como:

Um processo pelo qual mantém-se a presença do observador numa situação social com a finalidade de realizar uma investigação científica. O observador está em relação face-a-face com os observados e,ao participar davidadeles noseu cenário natural, colhe informações. Assim, o observador é parte do contexto sob observação, ao mesmo tempo modificando e sendo modificado por

este contexto (CICOUREL, 1980, p. 89).

É relevante esclarecer que esta pesquisa se baseia muito mais nas entrevistas e relatosdo que nousodométododaobservação participante. Issosedeve, sobretudo, ao fatodesetratar deuma pesquisasobre“identidade negra”erelaçõesraciais brasileiras. Devido àssutilezasdoracismo brasileiro,seria complicadofazerumaetnografia na qual contasse com a descrição freqüente de situações de racismo. Sabe-se que o racismo brasileiro é de forma mais sutil. Sua descrição exigiria um controle maior de tempo e uma permanênciainloco quemeseriaimpossível, considerandoos limitestemporaisdo curso de mestrado. Então, a reflexão sobre “identidade negra” e racismo, nesta dissertação,advém principalmentedasinformações colhidasementrevistas.

A pesquisa no bairro de Santo Antônio

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cheios. Percebi que seus freqüentadores eram pessoas jovens, geralmente homens de “cores” variadas. O Santo Antônio tem um grande fluxo de pessoas nas ruas, nos supermercados, nas pequenas lojasde roupase demais pontos de aglomeração. Fiz tais visitas praticamente pela partedodia.

De acordo com pesquisa feita por Castro (2000), o bairro Santo Antônio foi reconhecido oficialmente pelo município de Mossoró em 1980 pela lei municipal número 44/80. O mesmo abriga, segundo dados do IBGE, uma população de 16.055 habitantes. Ele é umdos maiores bairros deMossoró esempre foio berçodos grandes carnavalescos do carnaval de rua da cidade. Entre eles, pode-se destacar Masquinha e Duite. Comrelaçãoao nível socioeconômicodosmoradoresdoSantoAntônio,agrande maioriadeles possuium baixo nível derenda1.

Figura02 – MapadeMossoró no qual sevê oSantoAntônio.

No início da pesquisa, comecei a andar pelas ruas do Santo Antônio, tentando me familiarizar com seu espaço e com a dinâmica cotidiana das pessoas. O Santo Antônio é um bairro onde se percebe visivelmente muitos sinais de pobreza. Tem grande quantidadedesuasruas constituídas por casassimplesdealvenaria. Mas comoo Santo Antônio é um dos maiores bairros de Mossoró, uma parte dele é habitada por pessoas que ascenderam socioeconomicamente. Esta parcela de pessoas habita a parte que ficamais próximado centroda cidade. No bairro, predominam, porém,moradores

1 D

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de baixa renda. Por causa disso, é estigmatizado como um bairro violento, onde acontecem muitos assaltos e assassinatos. Lembro-me de meus amigos perguntarem ondeeuestavafazendoa pesquisaeeurespondia que partedelaseriarealizada noSanto Antônio. Prontamenteelesmealertavam paratomarsempre cuidado comaviolênciado lugar. Pormais queeutentassedecodificaraquele discurso comosendoum processode estigmatização do bairro, confesso que não consegui na primeira semana afastar um certoreceiode caminharemsuasruas.

Figura03 -Ruado bairroSantoAntônio.

Nasegundasemana, comeceiadesnaturalizaraquele conceitode bairro perigoso e a tomar aquela realidade como algo normal. Com o passar dos dias, eu já não tinha tanto receio em andar por suas ruas. Por algumas vezes, fui abordado por jovens à procura de dinheiro. Nessas situações, geralmente dava moedas a tais jovens. Na verdade, não percebi nemobservei nada que comprovasse odiscurso taxativo de meus amigossobreos perigoseaviolênciado bairro.

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pessoas da Santo Antônio apresentam podem ser interpretados como elementos construtoresdaimagemestigmatizada, queas pessoastêmdo bairro2.

Figura04-RuadoSantoAntônio comesgotoa céuaberto.

Como eu estava residindo no bairro Macarrão, todos os diasme deslocava para lá em moto táxi. O contato com os meus entrevistados se desencadeou por duas vias. Desde 2005 tenho amizade com um pai de santo, cujo terreiro de Umbanda fica no bairro Santo Antônio. Ele foi o meu primeiro contato no lugar. Foi na Louvação à Baobá que o conheci e, daí em diante, mantivemos contato. Praticamente, todo mês ligava paraele. Em nossas conversas, faleida pesquisa queiarealizar noSantoAntônio e precisava da sua colaboração. Ele prontamente se dispôs a ajudar-me. Em 2006, quando se aproximou o mês de abril falei com ele e disse que estava bem próximo de começar a pesquisa. Então, viajei para Mossoró e logo que cheguei fui à sua casa para avisá-lo que estava iniciando a pesquisa. Ele me apoioumuito edisse que iafalar com as pessoas do seu terreiro para conversarem comigo. Na realidade, ainda entrevistei algunsumbandistas.

Quando eu ia à sua casa conversávamos sobre a Umbanda, o racismo em Mossoró e o Negro e Lindo. Ele me falou que as pessoas discriminavam muito a

2 B

icos são atividades como lavar carros, vender picolé, ou ficar à espera que alguém o mande

fazer algum tipo de atividade e com isso a pessoa pode ganhar uma certa quantiade dinheiro, geralmente

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Umbanda, mas elesentia orgulhoda suareligião. Demodo queincentivava atodos do seu terreiroa se afirmarem,em qualquer lugar, comoumbandistas. Dizia que Mossoró era uma cidade racista e o Negro e Lindo era muito importante para fazer os mossoroenses perceberem que naquela cidade existem “negros”. Ele falava bem do movimento negro local pelo fato das pessoas do seu terreiro se apresentarem na Louvação à Baobá. Isso seria importante para a visibilidade da Umbanda perante a sociedade mossoroense. Este pai-de-santo intercedeu junto de aproximadamente sete pessoas do seu terreiro para conversar comigo. Foi, portanto, uma das principais vias que encontrei para iniciar minha pesquisa no bairro. Sempre disposto a colaborar, ele ofereceu sua casa para eu fazer as entrevistas e me convidava constantemente para assistir aos cultos de Umbanda. Dentre as pessoas contactadas, havia uma senhora de 85 anos e o restante compunha-se de pessoas de 25 a 50 anos. Nas entrevistas, conversávamossobreracismo, identidade negra,eaidéiadeMossoró comoacidadeda liberdade. A duração das entrevistas foi de aproximadamente 40 minutos. Quando terminávamos, ficávamos conversando mais informalmente, às vezes sobre o racismo ousobreo cotidianodeMossoró. Nasentrevistasgeralmenteusavaogravador. Quando oentrevistado não concordava queasuafalafossegravada,usavao cadernode campoe anotavaa nossa conversa.

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preferiam não comentar muito sobre o assunto. No que diz respeito às suas autodefinições, percebi que tentavam sempre relativizar a questão da “cor” através de outros fatores como a moral da pessoa, por exemplo. Apesar de não verem o conflito racial como algo positivo, sempre deixavam claro que ele existia na sociedade brasileira. O racismo foi visto pelos entrevistados como presente no país e, consequentemente, na cidade de Mossoró. Em termos numéricos, fiz vinte cinco entrevistasaotodo. Quandoas pessoas permitiam,faziauso dogravador. Outrasvezes, como não permitiam o seu uso, manuscrevia o que elas me falavam. Além de fazer entrevistas, ficava andando pelo bairro, fato que as pessoas não percebiam como estranhodevidoagrandemovimentaçãode pessoas nasruas.

Quando chegava à residênciadealguém quemeidentificava comoumestudante que estava pesquisando sobre racismo e “identidade negra”, as pessoas geralmente me recebiam bem. Por mais que não me conhecessem, quando eu falava que estudava na universidade, elas mandavam entrar em suas residências. Em seguida, eu falava mais detalhadamente sobre o que queria conversar e perguntava se alguém podia me conceder uma entrevista daquela natureza. Na realidade, foram poucas as vezes que alguém se recusou a conversar comigo. Certamente, o fato de apresentar-me como ligado à universidade era significativo para aceitação das conversas. Às vezes, as entrevistas eram feitas no interior das residências e outras vezes eram realizadas nas calçadas. As ruas do bairro que pesquisei foram basicamente por onde o desfile de Maria Espaia Brasa passa no carnaval. Tais ruasforam: Melo Franco, Trokchd deSá, DelfimMoreira, RioBrancoePrudentedeMorais. Alémdasentrevistas, tireifotosdas ruasaondeandei.

Com relação à auto-afirmação dos entrevistados, configurou-se o quadro seguinte:

sexo

Categorias de auto-afirmação

“branco” “negro” “preto” “moreno” “pardo” “mestiço”

“igual a todos”

Homem 1 1 0 6 2 1 5

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O nível educacional dos entrevistadosestá colocado no quadroabaixo. Comose pode ver, as pessoas entrevistadas no bairro compreendem o nível educacional da alfabetizaçãoaté nomáximoosegundograu completo.

Sexo

Nível educacional

Analfabeto Alfabetizado

Ensino Fundamental Incompleto

Ensino Fundamental

Completo

Ensino Médio Incompleto

Ensino Médio completo

Homem 2 1 5 1 5 2

Mulher 2 0 3 0 0 4

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Ca

tu

l

o 1 – “Ra

ç

a” e Ra

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ismo no Brasi

l

“Raça” eracismoforam conceitos pordemaisdiscutidos no decorrer doséculoXX pelas ciênciashumanas. Desdeasegundametadedoreferidoséculo queaAntropologia e demais ciências sociais vêm tratando “raça” e racismo como realidades pertencentes aomundosócio-cultural,tentandodeslegitimaro caráter biologizante quetais categorias assumiram no século XIX. Para o discurso cientifico contemporâneo, as “raças” humanas são construções culturais sem nenhuma ligação com a biologia humana. Mas, a existência de “raças” na sociedade humana não foi sempre pensada como uma construção cultural. No século XIX, a noção de “raça” era fortemente correlacionada com a interpretação evolucionista do desenvolvimento histórico dos povos europeus. Assim, a proximidade da “raça” branca com a idéia de civilização e a de “raça” negra com a de selvageria estava implícita no pensamento desta época. De acordo com Seyferth (1996), para o darwinismo social, principal doutrina racista operante no final do século XIX, o processo de seleção natural determinaria com o passar do tempo à extinçãodas“raças”inferiores. Devidoatal processodeseleção natural,o progressoda humanidade não seria prejudicado pelos fatores degenerativos das “raças” inferiores. Ficaevidente nodarwinismosocial aaplicaçãoenfáticado conceito biológicode“raça” aomundosocial. Respaldado pelodiscurso científico doséculoXIX, a noção biológica de “raça” tomou legitimidade perante o discurso dominante da época para justificar muitos processosdeexpansão colonial sobreoutros povos.

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humanidade com base emuma escala evolutivadostipos humanos. O mundo foiassim racializado com base num padrãoeuropeude“raça” branca3.

Elaboradas no contexto do imperialismo europeu do final do século XIX, as doutrinas raciais européias foram responsáveis por legitimar uma imagem do europeu como sendo o tipo humanomais evoluído e mais adaptado para o desenvolvimento da civilizaçãomoderna. Conseqüentemente, as“raças”tidas comoinferiores (porexemplo, “negros”, “índios”, etc) eram vistas como propensas a desaparecer em virtude de suas características negativaseinadequadasao padrãodevidamodernoe civilizado.

No decorrer da primeira metade do século XX, o conceito de “raça” atrelado a parâmetros biológicos continuavaaserusada nosestudosdasociedadehumana. Mesmo com os estudos de antropólogos como Franz Boas, que criticavam a idéia de estabilidade e fixidez das características raciais, o conceito de “raça” era ainda empregado (SANTOS, 1996). Como enfatiza Fry (2005), somente a partirdos anos de 1950 com a publicação dos estudos da UNESCO é que “raça” passou a ser encarada pelodiscurso científico comoummitosocial. Apesardodescrédito científico à idéiade “raça” como princípio classificador da humanidade, ela continua operando no mundo social como uma forma de classificação. Como uma elaboração cultural, “raça” ainda orienta muitas condutas e práticas no mundo contemporâneo. Nesse sentido, ela serve para delimitar espaços de poder nas relações sociais entre indivíduos e grupos em sociedades queforamhistoricamentedivididas porhierarquiasraciais. Portanto,mesmo sem validade científicaenquantorealidade biológica, a“raça” continuaafazer parte de um campo retórico específico no qual se constroem representações racializadas de indivíduosousociedades (MAGGIE,2001).

Para Maggie (ibid), o campo retórico da “raça” é singular para cada contexto social considerado. Ele depende da forma como historicamente se desdobraram às representações sobre“raça” e racismo naquele contexto. A categoria “raça” como uma formade classificaçãosocial temsentidosituacional. Isso nãoimplicaem dizer queela nãotenhaafunçãode construirereproduzirrelaçõesdesiguaisde poder. Defato,o que Maggie (ibid) destaca é a natureza cultural da categoria “raça”, que estrutura diferenciaçõessociaisentreindivíduose culturas,sendoresponsável pelareproduçãode relações desiguais de poder. Assim, a “raça” continua atuante no campo da cultura

3 Segun

do as interpretações do século XIX, a natureza distintados tipos raciais explicariaa

(26)

através das representações que os “brancos” e os “negros” possuem de si mesmos. Nesse caso, se as representações sobre superioridade racial são reproduzidas nas práticas e discursos cotidianos por “brancos” e “negros”, elas obviamente possuem significados sociais, dando fundamento à condução de desigualdades de poder. Isso implica afirmar que as representações sobre “raça”, enquanto sistema de classificação social, fazem parte de um complexo jogo de relações de poder que se apresenta nas atitudes de preconceito racial dirigidos à determinados indivíduos ou grupos sociais tidos comoracialmenteinferiores.

Com relação à categoria racismo, Banton (1977, p. 174) destaca que ela foi introduzida no final da década de 1930 “para identificar um tipo de doutrina que, em essência, afirma que a raça determinava a cultura”. Como ideologia, o racismo foi introduzido no mundo ocidental para afirmar a superioridade da “raça” branca nos contextos de interação do europeu com outros povos (BANTON, 1977). Ressaltamos que por mais que a ciência do século XX tenha destruído qualquer legitimidade científica das doutrinas raciais, as crenças na superioridade civilizatória da “raça” branca ainda são muito presentes no pensamento e nas práticas das sociedades ocidentais. Isso implica, assim, na re-elaboração do racismo nas sociedades modernas como um mecanismo de produção de desigualdades sociais, baseado numa pretensa superioridaderacial.

Assim comoas “raças”,o racismotambém nãodeve serinterpretadoatravés de um prisma homogeneizador. O racismo é uma forma socialmente construída para legitimar uma pretensa superioridade ou inferioridade racial de um grupo social em relação a outro ou a uma sociedade. O mais importante desta tentativa de definir racismo é destacar queo modo como sedesenrolam as relaçõesraciaissão particulares para cada contexto social considerado. São os particularismos culturais que podem explicarmelhorasdiferenciaçõesdas práticasraciais bem comoomododosindivíduos perceberem e praticarem o racismo. Portanto, o racismo constitui um fenômeno elaborado pela cultura, utilizando diferentes regras na construção das estruturas de hierarquizaçãoracial.

(27)

no interior de uma ideologia racial determinada no tempo e no espaço. Então, as categorias raciaisusadas pelos indivíduos em determinadas situaçõesdas suas relações sociais possuem um significado e um valor social específico, que dependem da conjunturahistórica na qual foramsedelineando4.

O racismo consiste numa forma de discurso ou ideologia que se efetiva em práticas discriminatórias, baseada na idéia de que existem “raças” humanas. A forma como se articulam as estruturas de poder e a subordinação de grupos sociais, baseada em critérios raciais, é particular para cada contexto social. Como sugere Gilroy (apud HANCHARD, 2001, p. 34): “Em vez de falar de racismo no singular, os analistas deveriam, portanto, falar de racismos no plural. Estes não apenas diferem ao longo do tempohistórico, comotambém podem variardentrodeumamesma formaçãosocial ou conjunturahistórica”5.

É importante destacar ofato das relaçõesraciaisse configurarem comorelações de poder. Issoimplica queas categoriasraciais deauto-identificação sãoacionadas em conjunturas específicas para demarcar espaços sociais. Dessa forma, os processos de afirmaçãoou de negação de tais categorias apontamaspectosda luta das classificações entreindivíduosousociedades. Hanchard (ibid) traz umaimportante colaboração paraa reflexãoassociando“raça”eracismoao campodasrelaçõesde poder. Oreferidoautor destaca:

Os significados e as categorias raciais são construídos em termos sociais, e não biológicos. Esses símbolos, significados e práticas materiais distinguem sujeitos dominantes e subordinados, de acordo

com suas categorizações raciais. A raça sobre este aspecto, é não apenas ummarcador de diferençasfenotípicas,mastambémdostatus, da classe e do poder político. Nesse sentido, as relações raciais são também relaçõesde poder (HANCHARD,2001,P. 30).

Se as classificações raciais estruturam relações assimétricas entre indivíduos, como destaca Hanchard no texto acima, elas podem ser manipuladas de formas estratégicas, dependendo da situação na qual ocorra o contato entre indivíduos racialmente diferenciados. Disso decorre, portanto, que os termos “negro” e “branco”

4 Por r

acialização estamos entendendo o processo no qual os indivíduos são classificados como

superiores ou inferiores, baseado na noção de “raça”. 5 Gr

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demarcam espaços sociais, perfazendo assim um campo de negociações engendrado pelosindivíduosdeacordo comasregrasda cultura.

Vale destacar ofato doracismo ser, muitasvezes, pensado como umarealidade estritamente polar, onde ficam de um lado os “brancos” e de outro lado os “negros”. Essa ótica de entender as relações raciais não permite refletir os diferentes níveis de interaçãoefetivamenteexistentesentre“brancos”e“negros”. Max Gluckman (1987),ao analisarasrelaçõesraciais da Zululândia na ÁfricadoSul, chamaaatenção parao fato de considerarmos que nem sempre os grupos opositores estão em relações de conflito. O referido autorreitera que, emvários níveisdasrelações sociais, os grupos, podem se comportar comoaliados em prol deuma causasignificativamentemais importante para eles, enquanto em outros momentos seriam rivais, Portanto, Gluckman destaca que o conflito entre sociedades ou grupos sociais precisa ser entendido como uma realidade situacional.

Nesta concepçãode conflitosocial articulada porGluckman,fatores comoavida familiar, as relações de amizade, as negociações na esfera do poder são levados em consideração. Devemos considerar os múltiplos desdobramentos do conflito. Como destaca Sansone (apud BACELAR, 2004), ninguém é apenas “negro” ou “branco” na vida social. Temos uma multiplicidadedeidentificações. Assim,em cada setorda vida social somos percebidos e percebemos os outros de forma diferente. O conflito racial não é umarealidadeestanque na qual osindivíduosagem comomarionetes,massimum espaçode disputa no qual existemvárias possibilidades deestratégia social que podem ser usadas por eles. As relaçõesraciais são influenciadas por outras dimensõesda vida social. As pessoas manipulam estrategicamente as categorias raciais de acordo com a situação na qual estão envolvidas. Nesse caso, as categorias raciais usadas num momento específico podem ser evitadas em outro. Portanto, as pessoas não aceitam pacificamente um sistema de representação racial, mas o que de fato existe é um processode negociaçãoentreelasetal sistema.

(29)

realidades dinâmicas que se correlacionam com as transformações políticas e sociais. Portanto,estãosempresujeitasare-elaboraçõesdevidoamudançassociaisvividas pela sociedade.

1.1 O “negro” na formação da nação brasileira

Nadiscussãosobreasrelações raciais brasileiras é primordial quereflitamosum poucosobreo processode construçãoda nacionalidade brasileira. Aelaboraçãodeuma identidade nacional para uma população fortemente heterogênea em termos culturais apresentava-se para aelite brasileira dofinal do séculoXIX como umgrande desafioe como uma preocupação política. Com a consolidação do processo de independência coloca-se como urgente a realização de um projeto de construção de uma identidade nacional. No processo de elaboração da identidade nacional brasileira, a intensa mestiçagem da população do Brasil se apresentava como um paradoxo e ao mesmo tempo como uma possível resposta à construção de uma nação moderna. Uma das alternativas encontradas pela elite política da época foi a busca de mesclar a “raça” branca com as “raças” inferiores para gradativamente ir se elaborando uma “raça” brasileira com predominânciadas características biológicasdohomemeuropeu.

Para Seyferth (1995), a elite brasileira entendia que a possibilidade de fazer desaparecer da nação as “raças” inferiores seria consolidada com uma política de branqueamentoda populaçãoa partirdamiscigenaçãoedaimigraçãodeeuropeus. Fica bemevidenteavisãoracista queseatrelavaaodiscursoreferente à construçãoda nação no final doséculo XIX. Autores comoNina Rodrigues viamo “negro”e amestiçagem descontrolada como fatores que condenariam o Brasil a permanecer sempre no estado de barbárie social (SEYFERTH, ibid). Para o discurso da elite brasileira e da intelectualidade, as duas “raças” inferiores – os “índios” e os “negros” – deveriam ser assimilados gradativamente através do contato controlado com a “raça” branca. Para a elite brasileira dasegundametadedo séculoXIX, o contato controladodas três“raças” produziria uma “raça” branca superior redentora das características relevantes dos “negros”edos“índios”.

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da identidade nacional brasileira. Isso porque, com a independência, oBrasil precisava de uma identidade própria e o advento da abolição colocava o “negro” livre como um cidadão brasileiro, representando o perigode posteriores conflitos raciais. Para tanto,a elite intelectual brasileira foi buscar apoioteórico entre os europeus para elaborar uma identidade nacional para o Brasil. No final do século XIX, o pensamento social brasileiro era fortemente influenciado pelas teorias deterministas européias. Segundo o referido autor, três linhas de pensamento norteavam a produção teórica da época: o Positivismo de Comte, o Darwinismo social e o Evolucionismo de Spencer. Estas três correntesde pensamentose baseavamemum únicoaspecto,odaevoluçãohistóricados povos. Para tais correntes de pensamento existia uma hierarquização dos povos e culturas na qual o europeu estava no topo do desenvolvimento intelectual e social. A idéia de que as sociedades denominadas de simples (os povos primitivos) deveriam evoluir naturalmente para o estágio de povos civilizados (a sociedade ocidental) era central paraestas correntesde pensamento. Influenciada pelo contexto intelectual europeu, a intelectualidade brasileira do final do século XIX encontrou na noção de meio geográfico e na noção de “raça” os argumentos para elaboração da identidade nacional (ORTIZ, 1985). Para Silvio Romero (ORTIZ, ibid), o meio geográfico e a “raça” seriam fatores internos que definiriam a realidade brasileira, uma nação construída nostrópicos, num climadiferentedo climaeuropeu. Eramestasas premissas que a intelectualidade brasileira se baseou para elaborar uma identidade nacional, na qual a noção de superioridade da “raça” branca nunca foi descartada. Mesmo sempre presentes no pensamentosocial brasileiro,“negros”e“índios” nuncaforamvistos como em pé de igualdade com os “brancos”, mas sim representando elementos a serem incorporadosouassimilados pelo progressosocial e cultural da“raça” branca.

(31)

em cena a problemáticada mestiçagem. Torna-se,então, correntea afirmaçãode que o Brasil se constituía pelafusãodetrês“raças”:a“branca”,a“negra”ea“indígena”.

Mesmo pensando“negros”e“índios” como populações propensasadesaparecer através do processo do branqueamento, o Estado-Nacional brasileiro articulou uma forma particular de pensar a mistura racial e cultural. Esta forma foi expressa no que DaMatta (1990) denominou de “fábula das três raças”. As três “raças” são igualmente indicadas comofundadorasda nação. Noentanto,a“raça” brancaeravista, obviamente, comoasuperior. É salutardestacar queo“branco” brasileiro,resultantedoencontrodas três “raças”, não seria meramente composto pelas características superiores da “raça” branca. Ele seriao resultado do encontro das características superiores das três “raças” fundadoras da nação brasileira. Apesar de ter sido inspirada nos vários determinismos raciais europeus, a moldagem da idéia de “raça” no Brasil se configura como um fenômeno peculiar (SEYFERTH, 1995). Ela não foi elaborada a partir da noção de exclusivismo racial, tal como era corrente no pensamento racial europeu, mas foi se arquitetandoatravésdaidéiado contatoentreastrês“raças”formadorasda nação. Com relação à “fábuladastrêsraças”,DaMatta (ibid) enfatizaoseguinte:

[...] Afábuladastrês raçasse constitui namais poderosaforça cultural do Brasil, permitindo pensar o país,integrar idealmente suasociedade

e individualizar sua cultura. [...] Tal fábula possibilitavisualizar nossa sociedade como algo singular – especificidade que nos é presenteada

pelo encontro harmonioso das três “raças”. Se no plano social e

político o Brasil é rasgado por hierarquizações e motivações

conflituosas, o mito das três “raças” une a sociedade num plano “biológico” e “natural”, domínio unitário, prolongado nos ritos de umbanda, na cordialidade, no carnaval, na comida, na beleza da mulher e damulata, namúsica (DAMATTA, 1990,P. 69-70; grifosdo

pesquisador).

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cortam toda a extensão do seu tecido social e cultural. Os brasileiros não se pensam como exclusivamente “brancos” e nem como exclusivamente “negros”. O que é mais representativo da imaginação nacional brasileira é a ênfase na mistura racial e cultural como o fundamento mais profundo do seu sentido (FRY, 2005; SANSONE, 2003). Contudo, isso não implica na ausência de tensões relativas à questão racial. Obviamente, existem situações em que o conflito racial aparece. No entanto,o que as pesquisasantropológicastêmenfatizado é uma linguagem que priorizaamisturaracial e que busca minimizar as tensões raciais através da valorização de aspectos como o caráterdas pessoas, porexemplo,tal qual veremos nessa pesquisa.

Vários estudos antropológicos contemporâneas destacam a ênfase dada pelos brasileiros à importância do Brasil ser um país racialmente misturado (FRY, 2005; MAGGIE,2001). Parataisautores,a primaziadamisturaracial e cultural nãosetraduz apenas numa estratégia da elite dominante, mas é algo também compartilhado por grande parte dos brasileiros. Então, a discussão sobre a mistura racial toma uma dimensão mais complexa do que entendê-la apenas com umaparelho dedominação da população“negra”arquitetado pelaelite“branca”.

É importante frisar que a mistura na sociedade brasileira não deve ser interpretada apenas como uma forma de anulação das “identidades negras”. Ela se articulade forma dinâmica comas representações sobre“raça”e“identidade negra” no Brasil. De modo que os significados de “raça” e de “identidade negra” não são elaboradosmedianteuma lógicade polarização, masse relacionam,sobremaneira, com as idéias de mistura e miscigenação. É complicado falar em polarização ou “pureza racial” numa sociedade que busca se representar através da mistura de “raças” e de sangue. Sansone (2003) argumenta que a mestiçagem e a mistura devem ser consideradas aspectosmuitoimportantes da construção de “identidades negras” ou das etnicidades no país. Valedestacarasuaargumentaçãorelativaatal discussão.

A “mistura”, quando não colocada sob um prisma antinegro, como meiode embranquecer a populaçãode cor,também pode ter um efeito

positivo,ouaté umafunçãosubversiva, no que concerne à dominação

racial. Especialmente entre os pobres, ela tem sido um modo de

enfatizar o compartilhar de uma condição social comum e de

neutralizar o racismo poisafirma-se que,afinal,todosos brasileiros têm alguma mistura e que, na América Latina, “todos podem ser

candidatos à mistura”. A mistura também pode afastar as afirmações

(33)

oficiais de classificação racial e étnica. Emoutras palavras,invocar a mestiçagem tanto pode ter conotações racistas quanto anti-racistas. Com efeito, sustento que a mestiçagem deve ser considerada um componente extremamente importante da etnicidade brasileira

(SANSONE,2003,P. 272).

É importantetambém enfatizar queautores como Guimarães (1999) e Munanga (2004) não vêem com bons olhoso discursoda mestiçageme damistura cultural. Para Munanga (ibid), a ênfase dada pela elite intelectual brasileira na mistura cultural e na mestiçagem biológica como pontos basilaresdaidentidade nacional faz partedo projeto de dominação e de subordinação da população “negra” e indígena. Com relação a tal problemática,diz ele:

A elite pensante do paístinha clara consciênciade que o processode miscigenação, ao anular a superioridade numérica do negro e ao alienar seus descendentes mestiços graças à ideologia do

branqueamento,ia evitar os prováveis conflitos raciais conhecidos em outros países, de um lado, e, por outro lado, garantir o comando do

paísaosegmento branco [...] (MUNANGA,2004,P. 87).

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Os ideais demisturae de não-racialismo, propagadostanto pelo discurso oficial como pelos diversos segmentos da sociedade brasileira, não devem ser entendidos apenas como uma visão falsa do que significa as relações raciais no país. Tais ideais revelam,sobretudo, aquilo que é socialmente pensadoeacreditado porgrande partedos brasileiros, que não vêm o Brasil comouma nação racialmente dividida. Compreender esses ideais como ideológicos e, por isso, falseadores da realidade é naturalizar o conceito de ideologia. Como enfatizam autores como Geertz (1978) e Dumont (1977, apud DUARTE, 1986), as ideologias representam aquilo que é efetivamente pensado pelasociedadeeassim constituem-se comomapasdeumarealidadesocial. Elas nãosão meramente impostas de cima para baixo, mas, ao invés disso, são empregadas socialmente, sendo, certamente, historicamente modificadas pelos atores sociais. Nesta dissertação, entendemosos ideaisde misturaracial ede não-racialismo na perspectivas destes autores, buscando assim dar dinamismo às visões que as pessoas possuem da realidade social em queestão inseridas. Nessesentido, odestaque queos entrevistados deram à questão damisturaracial é visto como o que efetivamente significa, paraeles, “raça”eracismo noBrasil,ou,deforma particular,emMossoró.

1.2 O “negro” no estado do Rio Grande do Norte

Para um estudo mais substantivo da questão racial brasileira, torna-se indispensável considerarmosasespecificidadesregionaisdo país. Isso porque, pormais quea população“negra” tenhahistoricamentese difundidoemtoda extensãoterritorial do país, existemas especificidades culturais locaiseas particularidades na forma como foi entendida e representada a presença do “negro” nos contextos regionais do Brasil. Claro que não é objetivo nosso abordar, nesta seção do capítulo, as especificidadesdo racismo brasileiro em cada região do país. Mas, como nossa pesquisa foi realizada na cidade de Mossoró no estado do Rio Grandedo Norte vamos discutir em linhas gerais comoo“negro”foirepresentado no campointelectual norteriograndense.

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“índio” ea boavidado escravo “negro”. Câmara Cascudoafirma queas condições de vida do“negro” nos engenhoseram muitomais penosas do quea vida queeles tinham nas fazendas criatórias do sertão (CASCUDO, 1955). Portanto, para tais autores, o sertão, pela simplicidade dasuavida social, ofereceu ao “negro”escravo um ambiente ondeeletinha bemmais liberdadedo que nosengenhosde cana-de-açúcar. Alémdisso, Cascudo (ibid) afirma que nosertãodoRioGrandedoNorte,devidoao predomíniodas fazendas criatórias de gado, a presença mais forte era a do vaqueiro. O referido autor destaca que a vida nas fazendas, onde o trabalho escravo era considerado como secundário, afastava a fiscalização rígida e a utilização de castigos contra eles. Realçando ainda mais a idéia de uma convivência pacífica entre escravos e homens livres noRioGrandedoNorte,enfatizaCascudo (ibid):

A vida do vaqueiro pré-dispunha a democratização. Ignorava-se no sertãoo escravofaminto,surrado, cobertode cicatrizes, ébriode fúria

e incapaz de dedicação aos amos ferozes. Via-se o escravo com a véstia de couro, montado em um cavalo, campeando livremente e prestando conta com o filho do senhor. Centenas ficavam como feitores nasfazendas,semfiscais,tendodireitode alta e baixa justiça,

como respeitoao que dissessem. [...] O ciclodogado, coma paixão

pelo cavalo, armas individuais, sentimento pessoal de defesa e desafronta, criou o negro solto pelo lado de dentro, violeiro, sambador, ganhando dinheiro, alforriando-se com a viola, obtendo terras para criar juntoaoamo, seu futuro compadre,vínculo sagrado de auxíliomútuo (CASCUDO, 1955,P. 45; grifosdo pesquisador).

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referido autor, tais pesquisadores reproduzem argumentos que atestam a irrelevante presençado“negro”eda“cultura negra” noestado6.

Em consonância com os argumentos de Cascudo, Medeiros (1973) destaca tambéma restrita presençado“negro” nosertão norteriograndense bem como as boas condições de vida que tinham, quando comparadas com a vida dos escravos nos engenhos do litoral. Para esse autor, o sertão se apresenta como um mundo social no qual avida singela permiterelaçõesmaisigualitáriasentre osescravoseseussenhores. O sertão é descrito como um lugar de vida simples, quase como se fosse um espaço sócio-cultural sem contato com o mundo civilizado. Vejamos como Tarcísio Medeiros (1973) nosfalasobreadicotomiaentresertãoe litoral:

No sertão, a vida das “fazendas” e das cidades do interior eram simples,afadigosas, bastandoa produção do campo, quando chovia, e

a criação, porém, marcada pela austeridade dos costumes familiares, comvestimentas e alimentação características. Avida nos“engenhos” foi faustosa e de uma abundância sem preocupações, formadora de uma classe rural perdulária, arrogante, requintada no uso do vestir e do comer, genitora de uma elite intelectual dominante na política

regional (MEDEIROS, 1973,P. 69).

Nesse trecho, retirado do livro Aspectos Geopolíticos e Antropológicos da HistóriadoRioGrandedoNorte,ficaevidenteaseparaçãosocial e cultural queoautor faz entresertãoe litoral. Deacordo com asuainterpretação,osertãoeo litoral sãodois mundos distintos e separados. O sertão representando a tradição, o atraso e o litoral representando omoderno eo progresso. Tal dicotomiaestanque foidesconstruída num consistente trabalho antropológico feito por Marcos Lanna tanto na Zona da Mata pernambucana como nomunicípio deSão Bentodo Norte noestado doRio Grandedo Norte. Lanna (1995) argumenta que ao invés de pensarmos o sertão e o litoral como realidades dicotômicas, devemos encará-las como espaços culturais onde existe uma intensareciprocidade nasrelaçõessociaisede poder.

Devido às particularidades da formação do sertão do Rio Grande do Norte, Medeiros (1973) afirma que os “negros” encontraram melhores condições de vida. Desse modo, o autor estabelece também uma dicotomia na qual destaca a pouca presença do “negro” no sertão, onde as condições detrato e convívio seriam melhores

6

Não só o “negro” foiinvisibilizado pela historiografiado Rio Grande do Norte como também

(37)

que as condições da escravidão no litoral. A respeito de tal realidade diz o autor supracitado:

Quando os negros chegaram nesses 88 anos do século para a

comunidade norte-rio-grandense, mandados para o sertão, transformaram-se emvaqueiros, cantadores aclamados, compadres de ioiôs,irmãos e protetores do “senhor moço”, vaquejadores de touros nas corridasfestiva, posseirosde sesmarias,meeirosdas produçõesda fazendae das“apartações”dogado, libertando-se pelo trabalhoantes da lei (MEDEIROS, 1973, p. 69; grifosdo pesquisador).

Umfator que nos chamaaatenção naargumentação citadaacima é a ênfase que oautorfaz da condiçãode liberdade queteriasupostamenteo“negro”dosertão. Emseu pontodevista,asrelaçõesentreos“negros”escravoseosdonosdasfazendas criatórias eram pacíficas. O sertão apresenta-se como uma região onde os escravos, apesar de serem poucos, gozavam de maior liberdade. Em contraste com a realidade do escravo no sertão, Medeiros (ibid) afirma que no litoral as condições de vida do “negro” eram bemmaisadversas.

Nos engenhos,avidado negrofoidiversadasfazendas. Os negros no “eito”do canavial,mudandoas rocas, enterrados nomassapê,sofriam de sol asol, nãofugindo à regrageral dotratamento recebido noutras

partesdo Brasil (MEDEIROS, 1973,P. 71).

Além destes estudiosos apontarem melhores condições de vida para o “negro” escravo, os seus estudos afirmam também que a presença do “negro” no sertão foi incipiente. Paratanto,eram correlacionadosdiversosfatoresda atividade econômicada região quedispensamotrabalhoescravoemsuaexecução. Assim, parataisestudiososa própria estrutura econômica dosertão implicava em relaçõesde trabalho nas quais não havia necessidade de grande quantidade de escravos, como se via na produção açucareira do litoral. Há também entre estes estudiosos o entendimento de que, no sertão, nãoexistiu quilomboseainfluênciado“negro” na populaçãosertanejateriasido muito poucosentida.

Como nãotivemos aindústriaaçucareira e asatividadesse resumiam

(38)

negro não teve a honra de pesar na coloração de maneira sensível (CASCUDO, 1955,P. 44).

Takeya (1985) tratandosobrea culturadoalgodão, quesetornouo produtomais importantedaeconomia doestado,sobretudo no iníciodoséculoXX, tambémreificaa idéiada pouca presençado“negro” nosertãodoRioGrandedoNorte.

O algodão é cultura típica do sertão, onde não havia tradição de trabalho escravo [...] O algodão se configura como uma cultura trabalhada fundamentalmente pela mão-de-obra livre (TAKEYA, 1985,P. 68; grifosdo pesquisador).

Devido a esta visão extremamente estática da presença do “negro” nas populaçõessertanejasdoestadodoRioGrandedoNorte, produziu-serepresentações no estadototalmenteinfluenciadas pelodiscursodoembranquecimento. A“raça” negra no estado foi vista como a que menos preponderou na formação do povo norte rio grandense. Medeiros (1975) afirma que o “negro” só minimamente influenciou na formaçãodas populaçõessertanejasdoreferidoestado.

Ao encerra-se oséculoXIX, decisivo paraformaçãosocial, política e

econômica do Rio Grande do Norte, os elementos geradores de sua

etnia estavam delineados no espaço antropológico de sua população,

para a qual o negro concorreu com o mínimo do seu sangue. Com a abolição da escravatura, a falta de gente substancialmente preta, e também, de imigrantes brancos possibilitou a miscigenação dos “stocks” existentes para formar “pardos”, com tendência cada vez maior de diminuição de “negros” no estado, como será visto no decorrer do século XX (MEDEIROS, 1975, P. 123; grifos do

pesquisador).

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restrita de “negros” e por relações bastante democráticas entre os escravos e os donos das fazendas criatórias, deixandoimplícito que no sertão existia pouca violência contra os “negros” queo habitava. Certamente, as relaçõesentre ossenhores eos escravos no sertão possuíam particularidades devido à própria natureza da atividade criatória. No entanto, isso não implica na ausência de conflitos entre “negros” e “brancos”. Os “negros” no sertão não eram pacíficos aos mandos dos seus senhores. Conflitos e violência foram constantes na escravidão de modo geral no Brasil. Negar isso é não priorizar a ação dos “negros” para sua libertação do regime escravocrata. É no sentido de minimizar a presença do “negro” e de apresentar as relações entre escravos e senhores nosertão comoextramenteharmoniosas, queachamos problemáticaavisãode autores comoCâmaraCascudoeTarcísioMedeiros.

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anulação das “culturas negras”, mas sim um processo a partir do qual tais culturas se reelaboram. Reelaboraçãoessa que nãoobedece à umaimposiçãodos“brancos”,masse desenvolve mediante as particularidades dos contextos de interações. Diante disso, torna-seinstigantedestacara invisibilidadedahistóriada população negra naformação dasociedade norte rio grandense comoum ponto quemerece estudosmais consistentes emenos naturalizantes.

1.3 O racismo àbrasileira

Com a abolição, estabeleceu-se a igualdade perante a lei entre “brancos” e “negros”. Teoricamente, o“negro” passavaaameaçaro lugardo“branco” nasociedade de classes que estavase formando nas primeiras décadas doséculo XX. No entanto, o processoabolicionista, comotodasasdemaisreformas políticasdasociedade brasileira, foirealizado pelaelitee evidentemente nãodeuaoex-escravoas condiçõessociais para que ele pudesse adaptar-seaos moldes do trabalho livre. Segundo Florestan Fernandes (1965), a sociedade brasileira deixou o “negro” seguir seu próprio destino, colocando sobre seus ombros a responsabilidade de reeducar-se e de transformar-se para sua inserção naemergentesociedadede classes.

Para os ex-escravos, a condição de homem livre que passaram a ter depois da aboliçãosignificava,antesdetudo, umgrande paradoxo. Isso porque, porum lado,eles estavam libertos oficialmente. Mas, por outro lado, esta liberdade não lhes garantia condições mínimas de convívio e equilíbrio dentro da sociedade de classes. O que de fato ocorreu com os ex-escravos foi sua exclusão do processo de ascensão social da sociedade brasileira das primeiras décadas do século XX (FERNANDES, 1965). Ao participarem do mundo dos “brancos”, o “negro” e o “mulato” se viram forçados a se identificar com o embranquecimento psico-social e moral. Para Fernandes (1966), os “negros” tiveram de sair da sua pele, simulando a condição padrão do “mundo dos brancos”. O embranquecimento social passou a ser uma das saídas que a população negra encontrou para conseguir alguma ascensão social e econômica (FERNANDES, ibid).

(41)

se auto-afirmasse como cidadão precisava negar a sua própria origem racial. Para o autor, no plano cultural uma das conseqüências do embranquecimento foi a percepção, por parte dos “negros”, da sua cultura como um elemento negativo. Hasenbalg (1979) entende também que uma das conseqüências do ideal do branqueamento é justamente provocar nos “negros” e “mulatos” que conseguiam ascender um sentimento de desvalorizaçãodassuasorigens“negras”.

[...] aadoção pelos não-brancossocialmente ascendente das normas e valoresdo estrato brancodentrodo qual aaceitaçãosocial é procurada implica a transformação do grupo negro de origem em um grupo de

referência negativa. O branqueamento encontra-se na base das manifestações de preconceito de mulatos ascendentes contra o negro (HASENBALG, 1979,P. 240; grifosdo pesquisador).

Ainterpretaçãofeita porHasenbalg (ibid) do processo deembranquecimentoda população negra brasileira é semelhante à de Florestan Fernandes. Para osdois autores supracitados, arealidade queo“negro”encontrou, depoisdaescravidão, foiummundo social ditado pelas normas e valores dos “brancos”. Segundos estes autores, o embranquecimento social aparecia, para o “negro”, como uma saída quando na realidade não passava de mais uma estratégia para contrabalançar qualquer possibilidadede conflito.

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conseguiram ascensão social que na década de 1930 fundaram a primeira organização política contraoracismo noBrasil,aFrenteNegraBrasileira. Ainserçãode“negros” na sociedade de classes configurou uma dimensão estratégica e necessária no sentido de buscar reverter o estigma racial. Como se sabe, entre os estereótipos associados aos “negros” depois da abolição estava, justamente, a imagem deles como vagabundos e inadequados para o trabalho moderno (CARDOSO, 1977). Então, se a inserção do “negro” na sociedade de classes exigia o seu branqueamento racial e cultural, tal processo de branqueamento sempre foi negociado. De modo que se torna complicado pensar o ideal de embranquecimento como uma imposição da elite diante da qual os “negros”simplesmenteaderiram. Semdúvida, oideal deembranquecimento con figura-se como uma ideologia articulada pela elite brasileira, mas tal ideologia não foi meramenteassimilada pelos“negros”. Ela foimodificadae negociada nos contextosde interação. Isso porque os “negros” nunca foram pacíficos diante das determinações sociaisadvindas daelite, implicando queo embranquecimento não se configurou como umanuladordas“identidades negras” no país.

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mistura das “raças”, valores esses que são articulados dinamicamente nas representaçõessobre“raça” e“identidade negra” nasociedade brasileira. Comefeito,o que se torna recorrente nesses discursos ideológicos são justamente as suas relações com a mistura racial e cultural da nação. Nesse sentido, tais discursos podem revelar pistasdeumasociedade que nãose pensa comoracialmente“pura”.

Parece-nos faltar nas interpretações de Florestan Fernandes e Carlos Hasenbalg uma compreensão mais dinâmica do “negro”. Para tais autores, o “negro” não é visto como um sujeito capaz de interagir com as demandas políticas e ideológicas dos “brancos”. Interação esta que implicaria num processo de re-elaboração de sua “identidade negra”, mesmo que ele estivesse convivendo com o discurso do embranquecimento. Para eles, o embranquecimento implicava apenas na autonegação do “negro” e a completa assimilação dos valores da cultura “branca”. Esta perspectiva traz limitaçõesemdois pontos. O primeirodeles, serefereaapresentaro“negro” como ummeroreceptordosvalorese normassociaisdaelite“branca”, nãosendovistoassim comoum agentetransformadordetaisvalores e normas. O segundo ponto,diz respeito ao fato de se colocar tais valores e normas sociais como produto exclusivo dos “brancos”, ao invés de abordá-los como constructo social elaborado através das interações entre os “brancos” e os “negros”. No Brasil, é problemático falar num “mundo dos brancos”, como dizia Florestan (1966), em oposição a um “mundo dos negros”. A lógica cultural dasociedade brasileiraencaminha-se nosentidoda conversão dos valores culturais, resultando assim numa cultura criada a partir das interações e negociaçõesentre“brancos”,“índios”e“negros” (FRY,2005).

Valedestacar queainterpretaçãodadaao processodeembranquecimento como sendo um dos principais engodos, para a construção de uma “identidade negra”, no Brasil, não ficou restrita aos estudos de Florestan e Hasenbalg, mas ainda é enfatizada por estudiosos contemporâneos da questão racial brasileira. O antropólogo Kabengele Munanga,escrevendoem2004, tambéminterpretao processodeembranquecimentodo ”negro” brasileiro comoumfator negativo naformaçãodasua“identidade negra”.

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formar organizações de protestos como nos Estados Unidos (MUNANGA,2004,P. 93; Grifosdo pesquisador).

Pode-sever que paraMunanga (ibid) o processodeembranquecimentofunciona como um enfraquecedor da construção de uma “identidade negra” no Brasil. Munanga também concorda com a visão de Carl Degler (1976) segundo a qual a presença do “mulato”suavizaa linha racial entre“brancos”e“negros”, nãofavorecendoassimuma polarização em termos de identidade racial tal como ocorre nos Estados Unidos. Portanto, podemos ver que, mesmo escrevendo em épocas diferentes, estes autores possuemumainterpretaçãosemelhantedo processodeembranquecimento noBrasil, no sentido de colocar o “negro” como um receptor inativo dos valores sociais da elite “banca”.

Agora, não se pode negar que osdiscursosdo embranquecimentoda população “negra” brasileira estão intimamente relacionados às aspirações da elite e foram explicitados no apoiodado pelo Brasil paraa política de imigração européia no século XIX e durante as primeiras décadas do século XX. Ao propor que os “negros” prefirissem casamentos com “brancos”, o discurso do branqueamento apresenta-se, certamente, como mecanismo ideológico elaborado pela elite brasileira com o objetivo de provocar a diluição racial. Este aspecto do branqueamento não pode ser negado de forma nenhuma. Agora, por outro lado, consideramos problemático quando sefala que o ideal do embranquecimento desfavorece a elaboração de uma polarização identitária entre “brancos” e “negros” no Brasil (MUNANGA, 2004). Consideramos esta afirmação problemática porque, como afirmam diversos antropólogos, a sociedade brasileira não deve ser pensada como sendo um sistema polarizado em nenhuma das suas dimensões sociais (DAMATTA, 1990; FRY, 2005; SANSONE, 2003; MAGGIE, 2001).

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a mera reflexão sobre o aspecto biológico de diluição dos caracteres fenotípicos da população negra brasileira. Desse modo, parece que as dificuldades em se formar no Brasil uma polarização racial não está no ideal do branqueamento, mas relaciona-se, sobretudo, com as representações sobre a mistura racial. Na sociedade brasileira, a ênfase namisturaracial é bemmaisdestacadado queaimportânciaemse construiruma naçãoracialmentedividida (FRY,2005).

Outro aspecto do racismo brasileiro que expressa discordâncias, quanto ao seu significado, é aemblemáticademocraciaracial. Para umagrandegamadeestudiosose para o Movimento Negro Brasileiro, a discussão sobre a democracia racial se pautou apenas em entendê-la como um mito responsável pelo mascaramento da verdadeira realidade do racismo brasileiro. Esta linha de interpretação da democracia racial teve seuinício com o projetodaUNESCO nadécada de 1950eseestendeuaté aatualidade (FRY,2005). Na contemporaneidadesurgiramargumentações que contestamomodode se pensar a democracia racial como sendo simplesmente um viés político-ideológico que esconde o racismo brasileiro. São argumentos vindos, principalmente, de estudos antropológicos sobre as formas como a população brasileira se percebe em termos raciais e como ela entendeo racismo no Brasil. Tais análisesapontam que asociedade brasileira prima mais pelas representações e valores da mistura ao invés de oposições binárias. Issofaz com queomito dademocraciaracial seja encarado também comoum código cultural queexpressao queexistedesingular noracismo brasileiro.

Imagem

Figura  01  -  Mapa  do  estado  do  Rio  Grande  do  Norte no qual       se vê o município de Mossoró
Figura 03 - Rua do bairro Santo Antônio.
Figura 04 - Rua do Santo Antônio com esgoto a céu aberto.
Figura 08 - No centro da cidade, um painel em alto relevo  expõe  os  quatro  acontecimentos  que  fundamentam  os  discursos de cidade da liberdade
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