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Entre Guimarães Rosa, Manoel de Barros e Bartolomeu Campos Queirós: a criação de uma infância da escrita

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Academic year: 2017

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ENTRE GUIMARÃES ROSA

,

MANOEL DE BARROS E BARTOLOMEU CAMPOS QUEIRÓS

:

A CRIAÇÃO DE UMA INFÂNCIA DA ESCRITA

Universidade Federal de Minas Gerais Faculdade de Letras

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ROSANE DA SILVA GOMES

ENTRE GUIMARÃES ROSA

,

MANOEL DE BARROS E BARTOLOMEU

CAMPOS QUEIRÓS

:

A CRIAÇÃO DE UMA INFÂNCIA DA ESCRITA

TESE apresentada ao Programa de Pós–Graduação da Faculdade de Letras da UFMG como requisito parcial para a obtenção do Título de Doutor em Letras: Literatura Brasileira.

Área de concentração: Literatura Brasileira Linha de Pesquisa: Poéticas da Modernidade

Orientadora: Profª. Drª. Marli de Oliveira Fantini Scarpelli

Universidade Federal de Minas Gerais Faculdade de Letras

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Ficha catalográfica elaborada pelos Bibliotecários da Biblioteca FALE/UFMG

Gomes, Rosane da Silva.

R788J.Yg-e Entre Guimarães Rosa, Manoel de Barros e Bartolomeu Campos Queirós [manuscrito] : a criação de uma infância da escrita / Rosane da Silva Gomes. – 2011.

165 f., enc.

Orientadora : Marli de Oliveira Fantini Scarpelli.

Área de Concentração : Literatura Brasileira

Linha de Pesquisa : Poéticas da Modernidade.

Tes e (doutorado) – U niversidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Letras.

Bibliografia : f.157-165.

1. Rosa, João Guimarães, 1908-1967. – Jardins e riachinhos – Crítica e interpretação – Teses. 2. Barros, Manoel de, 1916- – Crítica e interpretação – Teses. 3. Queirós, Bartolomeu Campos – Crítica e interpretação – Teses. 4. Benjamin, Walter, 1892-1940 – Crítica e interpretação – Teses. 5. Agamben, Giorgio, 1942- – Crítica e interpretação – Teses. 6. Deleuze, Gilles, 1925-1995 – Crítica e interpretação – Teses. 7. Infância – Teses. 8. Memória na literatura – Teses. 9. Tempo na literatura – Teses. 10. Criação literária – Teses. 11. Escrita na literatura – Teses. I. Fantini, Marli. II. Universidade Federal de Minas Gerais. Faculdade de Letras. III. Título.

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AGRADECIMENTOS

Aos meus pais, pela vida.

Aos meus amigos, pelo incentivo e a força constantes, durante todo o percurso de escrita da tese.

À Professora Doutora Marli de Oliveira Fantini Scarpelli, pela orientação da presente tese.

Às Professoras Selma Moura, Claudia Ricci, Dília Maria Andrade Glória e Luciana Silva, responsáveis pela direção do Centro Pedagógico da UFMG nos anos de 2007 e 2008, pelo acolhimento na instituição.

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Desexplicação

Língua de criança é a imagem Da língua primitiva

Nas crianças fala o índio, a árvore, o vento Na criança fala o passarinho

O riacho por cima das pedras soletra os meninos. Na criança os musgos desfalam, desfazem-se. Os nomes são desnomes.

Os sapos andam na rua de chapéu. Os homens se vestem de folhas no mato. A língua das crianças contam a infância Em tatibitati e gestos.

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RESUMO

A proposta desta tese é refletir sobre a infância, tendo em vista a problematização de conceitos paradigmáticos sobre o tema, via de regra, impregnados dos sentidos de falta, carência e incompletude. A abordagem cristalizada da infância como um estado precário, provisório e lacunar é equacionada neste trabalho cujo desafio é lançar outras propostas de leitura para o tema, dentre as quais o tratamento da infância como acontecimento, ligado à esfera do novo e da criação. Para tal discussão, este trabalho ancorou-se especialmente nos textos teóricos de autores como Walter Benjamin, Giorgio Agamben e Gilles Deleuze, com o propósito de pensar sobre as possíveis relações entre a literatura e a infância. Tais relações se pautaram nos contos “Jardins e Riachinhos”, de Guimarães Rosa. Para explorar este modo de ver a infância buscamos convergências de narrativas rosianas aqui exploradas com textos de Manoel de Barros e Bartolomeu Campos Queirós. A partir de imagens literárias desses escritores foi-nos possível identificar uma poética da infância ou infância da escrita. Trata-se de escritas tecidas pelo viés de criação e desvelamento, a partir de um contínuo brincar com as palavras. O infantil na literatura foi explorado não somente como um tema, mas principalmente como uma estrutura, ou seja, uma maneira de se escrever e dar a ver a infância em seu contínuo e criativo devir, subvertendo-se, assim, a ideia de que a infância se reduz a um tempo da carência, lacunaridade e insuficiência.

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ABSTRACT

The purpose of this thesis is to produce a reflexion about childhood through questioning some paradigmatic concepts on the subject that are, as a rule, instilled with the sense of failure, lack and incompleteness. The crystallized approach of childhood as a precarious, provisional and incomplete state is equated on this work, that has the challenge to project others reading proposals for the theme, among which include the treatment of childhood as an event linked to the sphere of “the new” and “the creation”. For this discussion, this work was based especially on the theoretical writings of authors such as Walter Benjamin, Giorgio Agamben and Gilles Deleuze, in order to think about possible relationships between literature and childhood. These relations were based on Guimarães Rosa"s tales "Jardins e Riachinhos". His view of childhood is explored through the convergence of texts about the theme writen by Manoel de Barros and Bartolomeu Campos Queirós. From literature images of these writers was possible to us to identify a poetry of childhood or a childhood writing. that´s all about writing commented with relations of creation and discovery from the playing with the words. The childish on the literature was explored not just as a theme, but mainly like a manner to write and figure out the childhood on it´s on going and creative duty overturning at this way the idea on which the childhood gets decrease to a time of necessity, gaping and scanty.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ... 9

CAPÍTULO I: OS CONCEITOS DA INFÂNCIA NA MODERNIDADE: UMA ANÁLISE SÓCIO-HISTORIOGRÁFICA ... 21

1.1– A contribuição de Philippe Ariès ... 22

1.2 -Visões de pensadores sobre a infância: a contraposição à Ariès ... 25

1.3 - Locke e Rousseau : a necessidade da formação da criança ... 29

1.4 - Henry Jenkins e a construção do conceito de infância: a preservação da inocência ... 33

1.5 – Neil Postman e o desaparecimento da infância ... 35

1.6 – A infância idealizada da Modernidade e os questionamentos deste conceito na contemporaneidade ... 38

1.7- Outras infâncias: a experiência do infantil nos contos de Guimarães Rosa ... 41

1.7.1 - Às margens da vida, nas margens da alegria ... 42

1.7.2 - A absoluta leveza nos Cimos ... 47

CAPÍTULO II – ITINERÁRIOS NA LITERATURA: DAS LINGUAGENS SOBRE UMA INFÂNCIA À INFÂNCIA DA LINGUAGEM 53

2.1 – Visões da infância na literatura: uma breve história ... 54

2.1.1 - A infância na literatura brasileira – o papel da memória na reconstituição da infância ... 58

2.1.2 – O tempo infantil: outras formas de rememoração da infância em Bartolomeu Campos Queirós ... 65

2.2 – A redescoberta da infância pela linguagem: apontamentos de Walter Benjamin e Giorgio Agamben ... 70

2.2.1- Benjamin e a concepção da infância instaurada pela/na linguagem ... 71

2.2.2 - Agamben e a infância como condição da história ... 75

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CAPÍTULO III - O RIACHINHO SIRIMIM: TRAVESSIAS DA INFÂNCIA

3.1- O conceito de devir-criança de Deleuze e Guattari ... 87

3.2 - Literatura menor e uma escrita da infância ... 95

3.3 - Uma literatura menor: o poder da infância na escrita ... 100

3.4 - Um riachinho, o Sirimim ... 101

3.4.1 – A minoridade em Sirimim ... 103

3.4.2- Travessias de Sirimim ... 106

3.4.3 - O acontecimento e o tempo aiônico em Sirimim ... 107

CAPÍTULO IV - ENTRE BARROS, BARTOLOMEU E ROSA: CAMINHOS DA INFÂNCIA DA ESCRITA 4.1 - A Infância da Palavra em Manoel de Barros ... 114

4.1.1. Memórias inventadas: sendas para os achadouros da infância ... 119

4.1.1.1 - Senda primeira: Comunhão ... 120

4.1.1.2 - Segunda senda: Canto inaugural ... 126

4.1.1.3 - Terceira senda: Brincar de palavras ... 130

4.1.1.4 - Quarta senda: Agramaticalidade das palavras ... 132

4.1.1.5 - Quinta senda: Movimento ... 135

4.2 - Em voo: os sentidos de expansão e da morte na infância da escrita 4.2.1 - Voos de Bartolomeu Campos de Queirós: uma trajetória em direção à infância ... 137

4.2.2 - A morte como ausência criadora ... 141

4.2.3 - As Garças: a morte e a preservação do fluxo da infância na escrita rosiana 146 CONCLUSÃO ... 151

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INTRODUÇÃO

Não obstante, e ao mesmo tempo, a infância é um outro: aquilo que, sempre além de qualquer tentativa de captura, inquieta a segurança de nossos saberes, questiona o poder de nossas práticas e abre um vazio em que se abisma o edifício bem construído de nossas instituições de acolhimento. Pensar da infância como um outro é, justamente, pensar essa inquietação, esse questionamento e esse vazio ...

(LARROSA, 2006, p. 184)

Infância: um termo que pode ter um sentido comum, mas também singular. Como etapa da vida humana, a infância mostra-se banal, presente na constituição do humano, fase diferenciada de outros estágios do desenvolvimento biológico, social e psíquico. As características físicas distinguem os indivíduos, mas também os padronizam em faixas etárias, em classificações tipológicas, e em categorias estigmatizadas. A origem biológica do desenvolvimento humano tem sido determinante na forma como o tema da infância vem sendo há séculos investigado. O entendimento que daí decorre tem sido decisivo e coercitivo no trato com a infância.

Ao pensar sobre a infância, muitas questões podem ser levantadas, aprofundadas e revistas, com o objetivo de se investigar perspectivas diferenciadas do que é o infantil. Por esta razão, me propus neste trabalho a fazer uma reflexão que desloque os sentidos usuais relativos à infância, de modo a encontrar, no texto literário, uma escrita que se revela infantil. A proposta é estabelecer um diálogo a partir dos estudos filosóficos e da literatura, buscando, neste exercício, outras perspectivas, traçando novas linhas de abordagem sobre uma infância no texto literário. Assim sendo, procuro sempre lançar inúmeros fios que se entreteçam no sentido de se lançarem novos olhares sobre a infância.

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Da mesma forma, há um aspecto relacionado à “menoridade” da literatura infantil que me inquieta há muito tempo, uma preocupação que se agudizou durante o meu percurso de 24 anos como professora do ensino fundamental (1º ao 5º anos). Esta noção implica fortemente uma desqualificação da produção literária endereçada às crianças.

Ao ingressar do curso de Pós-Graduação em Estudos Literários da Faculdade de Letras da UFMG, constatei, com um certo espanto, o espaço reduzido que os títulos relacionados à literatura infantil ocupavam na biblioteca dessa faculdade. Fiquei a pensar sobre a quase inexistência dos livros de literatura infantil em uma instituição que empreende pesquisas na área de literatura... Ficariam estes títulos catalogados na Faculdade de Educação? Essas aparentemente simples indagações parecem-nos apontar para uma situação bem incomôda: o papel da literatura identificada com o infantil relacionada diretamente com a função pedagogizante da infância.

O que sempre me aproximou da discussão sobre o infantil e a literatura, desde o mestrado (em que escrevi com o objetivo de enfocar a literatura como caminho para uma educação estética, numa lógica invertida, em que propus uma “literalização da pedagogia”) foi a constatação de uma minoração da literatura infantil. Nesse percurso de leitura e pesquisa sobre o assunto, percebi que tal desvalorização relaciona-se diretamente com a visão construída sobre a infância, assim como a desqualificação do adjetivo “infantil”.

Isto aparece nas falas dos escritores infantis: “às vezes escrever para crianças é considerado uma arte menor, um artesanato. Ou menos do que isto” (VIGIL, 1995. p.46); “há quem diga que fazer literatura é uma coisa e escrever para criança é outra” (ALONSO, 1995. p. 44). Penso, no entanto, que a literatura infantil não pode estar delimitada em um projeto pedagógico, de maneira utilitária. O que ocorre, seguindo a lógica de que é necessário educar a criança para transformá-la rapidamente em um ser adulto, é que não só há descaso com a livre inventividade da infância, como também com a dimensão estética da literatura infantil. Como diz Alonso: “escrever para crianças é duas vezes literatura. Detesto a ‘pseudoliteratura’ que quer transformar a criança em um animal adestrado: ‘Faça isso, não faça aquilo... ’” (1995. p. 44);

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concentro no que eu quero contar e isso já é bastante. Eu escrevo, e pronto. Faço literatura” (NUNES, 1995. p.44). E numa das falas de Bartolomeu Campos Queirós, a respeito de sua produção escrita:

Hoje procuro escrever um texto que permita também a leitura dos mais jovens, mas sem esgotar a infância que também persiste nos adultos. Daí acreditar no poder da metáfora para realizar a minha proposição. Não busco uma literatura só para a infância (QUEIRÓS, s/p).

Estas ideias fizeram com que me aproximasse de algo que ativa o pensamento, instigando-o à reflexão e à criação. O que surgiu nesta formulação de um pensamento novo foi um encontro com a narrativa de João Guimarães Rosa, um autor consagrado e que jamais foi considerado como um escritor de literatura infantil. Rosa, com sua maneira de escrever sempre criativa e criadora, tornou-se um intercessor desta reflexão, como alguém que produz diferença. Tê-lo como intercessor significou falseá-lo, já que “essas potências do falso é que vão produzir o verdadeiro” (DELEUZE, 1992. p. 157). Desta forma, não tenho a intenção de formular uma pretensa verdade em relação à temática proposta, mas sim buscar na escrita de Rosa algumas pistas que me levassem a resolver as questões sobre uma escrita da infância.

Também não se trata de enumerar diferentes questões teóricas para somente aproximar ideias sobre os conceitos de infância, mas de dialogar, interrogar, problematizar essas questões a fim de mostrar como ocorre uma possível formulação da “infância da escrita”. Quando me aproximo de Rosa não diferentemente de quando me debruço nas reflexões de pensadores como Deleuze, Benjamin e Agamben, busco-os no que propõem de inventividade, ludismo e criação, pois, como afirma Schöpke, toda interpretação já é uma criação pessoal, na qual nos misturamos, nos colocamos, tomamos parte. Para a autora, utilizar um teórico, embora com o cuidado de não desfigurá-lo, sempre significa fazê-lo falar mais do que ele próprio disse – não com o intuito “de colocar palavras em sua boca, mas de fazer com que cada palavra se desdobre e diga em que sentido ou sentidos devemos tomá-la” (2004, p.13).

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dos diferentes textos que, em um processo constante, vão produzindo novos discursos sobre a infância.

De acordo com Corazza, escolher um percurso significa “uma prática de pesquisa que nos ‘toma’, no sentido de ser para nós significativa” (2002, p. 123). Neste sentido, segui à procura de pontos de partida e trajetórias na tentativa de encontrar sentidos a partir não apenas de conceitos, mas também de experiências vividas. Assim, componho uma narrativa como também alguém que conta sobre suas experiências, numa espécie de pesquisadora/viajante. Para Walter Benjamin (1996), o narrador é aquele que possui experiências a transmitir, seja na figura sedentária do camponês que nasceu e sempre viveu em sua terra e que, como ninguém, conhece as histórias e as tradições de sua cultura, seja no marinheiro comerciante, conhecedor de outras terras. A viagem que empreendi, nesta perspectiva, possibilitou muitas travessias... E atravessamentos. Desta forma, voltando a Benjamin, escrevi atravessada pelo sentido da experiência – Erfahrung.

A experiência é a passagem da existência, a passagem de um ser que não tem essência ou razão ou fundamento, mas que simplesmente “ex-iste” de uma forma sempre singular, finita, imanente, contingente. Em alemão, experiência é Erfahrung, que contém o fahren de viajar (LARROSA, s/p).

O que se intenta neste trabalho investigativo é uma relação entre a infância e aquilo que existe de resistência. Tenta-se romper com os esquemas interpretativos que julgam ter conhecimento pleno sobre a infância e com as maneiras de dominá-la. Por outro lado, são oferecidas outras possibilidades de ler, dizer e escutar a infância, por meio da literatura. Uma infância que se nos apresenta atravessada pela escrita literária.

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por adultos que a organizam e dimensionam. No processo de construção narrativa assim concebido os modos de dizer-se criança ou perceber-se infantil geram campos semânticos muito contraditórios. Daí resulta o interesse em focar a linguagem literária que se ocupa da face criativa da infância e de seu devir. Nossa premissa é a de que se trata de um tipo de linguagem que permite o trânsito de sentidos e da multiplicidade de possibilidades interpretativas da infância para além do âmbito da linearidade histórica e temporal.

Há uma tradição de estudos sobre a história da infância iniciada com Philippe Ariès em sua conhecida obra História Social da Criança e da Família, publicada originalmente em 1960. Referência paradigmática para as investigações de historiadores e analistas culturais, as proposições de Ariès marcam o início do questionamento da infância como fenômeno natural e universal. A infância passa doravante a ser compreendida como realidade social constituída historicamente. Ariès configura seus estudos em duas teses nas quais tenta, primeiro, interpretar as sociedades tradicionais e, depois, mostrar o novo lugar assumido pela criança e pela família nas sociedades industriais.

O lugar marcante dos seus estudos foi reforçado pelas críticas e polêmicas desdobradas em obras posteriores de autores como Pollock (1983), De Mause (1995), Jenkins (1998), Postman (1999), Youf (2002), dentre outros. Entre os estudos de investigadores de língua portuguesa, ressaltam os trabalhos de Jobim & Souza (1994), Kramer (1996, 2000), Del Priore (2000) e Sarmento (2004). Todas essas referências foram apoiadas na pesquisa de Sandra Mara Corazza, nos livros Infância & Educação: Era uma vez... quer que conte outra

vez? (2002) e História da infância sem fim (2004).

Em contraposição a este conceito de infância formulado histórica e socialmente, no presente estudo apresentamos, no segundo capítulo, uma imagem conceitual da infância que permitisse pensá-la para além da cronologia, seguindo a lógica da experiência e do acontecimento, a partir das ideias de Walter Benjamin e Giorgio Agamben; a seguir, buscaram-se imagens literárias da infância que, ao enfocá-la sem as amarras da linearidade temporal, valorizando sua experiência e seu vir-a-ser enquanto acontecimento, viriam a reconhecê-la como força de criação.

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se relacionar com a criança. Para o filósofo, “nada é mais ocioso que a tentativa febril de produzir objetos supostamente apropriados às crianças” (BENJAMIN, 1993, p. 237). Alertava que os pedagogos não percebiam como a terra estava repleta de “substâncias puras e infalsificáveis capazes de despertar a atenção infantil” (idem, p.240). Se observarmos uma criança, notaremos como ela se sente atraída pelos detritos: ao visitarem oficinas de costura, carpintaria, atividades de jardinagem elas não raramente vão vasculhar os restos, as sobras, os trapos... A partir dos detritos que recolhem, não imitam o mundo dos adultos, mas colocam os restos e resíduos em uma relação nova e original. A criança cria suas brincadeiras e seus prazeres a partir do “lixo da história”. Se a nossa modernidade já não nos permite mais compartilhar conselhos e experiências, as crianças, de alguma forma, ainda mantêm laços com a tradição, com o povo, com a história.

Ao aceitar a investigação inspirada em Benjamin sobre a destruição da experiência, Giorgio Agamben nos propõe um instigante estudo sobre a diferença entre língua e fala e um entendimento da infância como experiência de linguagem. Seu estudo fundamenta nossa investigação a respeito da infância como experiência.

Agamben ressalta a relação entre experiência e infância em sua obra intitulada

Infância e História. Nela, ao retomar a ideia da pobreza de experiência do mundo contemporâneo explorada por Walter Benjamim, retrata o acúmulo de situações pelas quais temos passado rápida e superficialmente na cotidianidade de nossas vidas em contraposição ao vazio de experiências, já que em nada nos detemos, nada se transforma em relato, nada passa pela palavra, ou seja, nada nos passa. A própria rotina urbana é coberta de elementos, de signos aos quais não dedicamos nossa atenção, sobre os quais não direcionamos nosso pensar e pelos quais passamos indiferentes.

É como se o homem contemporâneo tivesse sido privado de sua biografia, como se a ele fosse negada a possibilidade de sua própria experiência. O autor acentua ainda o caráter ordinário da destruição da experiência e demonstra não ser preciso mais que um dia de rotina numa grande cidade qualquer para que se perceba o quanto os afazeres comuns são desprovidos dos sentidos da experiência.

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de uma experiência futura” (AGAMBEN, 2005, p. 10). Para tanto ele recorre à herança benjaminiana “da filosofia do devir” e propõe a preparação de um lugar lógico onde esta semente possa alcançar sua maturação.

É, nesse sentido, que a literatura de Guimarães Rosa, sobretudo nos contos finais de

Ave Palavra enfoca a infância enquanto criação, e sua linguagem a despontar-se inventiva,

icônica, primordial.

A partir do terceiro capítulo, traçaremos uma discussão de algumas noções relacionadas ao conceito de infância, pensadas a partir de reflexões do filósofo Gilles Deleuze, sobretudo acerca de “literatura menor” e “devir-criança”. Deleuze, juntamente com Guattari, analisa o conceito de literatura menor não como uma literatura de valor menor, mas como a linguagem literária de uma minoria (colonizados, diaspóricos, a empregar a língua do colonizador ou de uma nova cultura) diante de uma língua, via de regra, hegemônica.

No livro Kafka, por uma literatura menor, Deleuze e Guattari invertem o sentido da palavra menor, demonstrando que, em uma literatura menor, tudo é político e relaciona-se com aqueles que utilizam línguas de um “outro”: trata-se, assim, de tornar-se um estrangeiro em sua própria língua e encontrar nessa restrição um uso criador. Pensar o menor como o proposto significa compreendê-lo como aquele que está abaixo da palavra de ordem e que se localiza de forma excludente e, ao mesmo tempo, dessacralizador em relação às imagens impostas pelo poder hegemônico. Além disto, os fundamentos propostos pelos dois pensadores em questão não se fundamentam, como já vimos, em uma categoria de valor, ou seja, uma distinção entre língua menor em oposição a uma língua maior, pois, na concepção de Deleuze e Guattari, a língua menor se realiza sempre dentro da língua maior, tornando-se um mecanismo que gera tensão e desconstrução na língua da maioria.

Pensar o menor como proposto por Deleuze e Guattari significa, portanto, compreendê-lo como aquele que está fora das imagens determinadas pela maioria e desafiar a formação de uma norma fechada e única, de uma verdade. Trata-se de traçar linhas de fuga para a linguagem e possibilitar a invenção de novas forças.

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A literatura que tem a força e a criação da infância da escrita torna-se, do mesmo modo, um exercício de alteridade, uma literatura que faz a língua vibrar, preservando o novo e renovando formas de viver e pensar o mundo.

Além do conceito de “literatura menor” ainda enfocaremos neste capítulo o conceito de “devir-criança”, ambos em Deleuze. Ao se pensar a infância como devir, há uma força semântica no termo que intensifica as formas do fluxo, do tornar-se, do ‘vir a ser’, ou seja, do modo processual de alteração de um estado.

Em linhas gerais, Deleuze e Guattari explicitam o conceito de devir como um processo, mas sem chegar a um estado predefinido, a uma terminalidade fechada:

(...) um devir não é uma correspondência de relações. Tampouco ele é uma semelhança, uma imitação, em última instância, uma identificação. (...) Devir não é progredir nem regredir segundo uma série (...) Devir não é certamente imitar, nem identificar-se; nem regredir-progredir; nem corresponder, instaurar relações correspondentes; nem produzir, produzir uma filiação, produzir por filiação. Devir é um verbo tendo toda sua consistência; ele não se reduz, ele não nos conduz a "parecer", nem "ser", nem "equivaler", nem "produzir" (...) Devir é, a partir das formas que se tem, do sujeito que se é, dos órgãos que se possui ou das funções que se preenche, extrair partículas, entre as quais instauramos relações de movimento e repouso, de velocidade e lentidão, as mais próximas daquilo que estamos em vias de nos tornarmos, e através das quais nos tornamos (DELEUZE, GUATTARI, 2007, p.18-19 e 64).

Discutiremos ainda, no presente capítulo, uma outra temporalidade, que não se relaciona com a do tempo contínuo e sucessivo. Neste sentido, o conceito de “devir-criança” se coloca na possibilidade de criação de outros espaços e tempos, em que a infância possa ser vista como uma força de recriação. Uma literatura que versa sobre a infância é, considerado esse sentido, uma literatura que aguarda sempre pela novidade, recriando formas de viver e pensar o mundo. Trata-se, enfim, de um “devir-criança” que busque resistir às formatações que conduzem os modos de se pensar o infantil.

Em segundo lugar, a partir dos dois conceitos deleuzianos supracitados, enfocaremos neste capítulo os contos finais de Ave Palavra, refletindo sobre o processo de criação da escrita rosiana, buscando identificá-la não somente como uma narrativa sobre infâncias, mas também ressaltando-se a possibilidade de Guimarães Rosa ter inaugurado uma infância da

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Por fim, no último capítulo, estabeleceremos um diálogo entre as abordagens dos capítulos 2 e 3, para reconhecer a possibilidade de se pensar uma infância da escrita nas narrativas que abordam a infância do ponto de vista temático e/ou estrutural. Para tanto, traçaremos um paralelo entre os pressupostos analisados no decorrer da tese e algumas obras literárias que, tendo a infância como tema, também são narrativas que revelam uma infância da escrita.

Dentre outros autores, destacaremos Manoel de Barros e Bartolomeu Campos de Queirós que demonstram, em sua maneira de escrever uma infância numa outra temporalidade que não a cronológica ou que privilegia o tempo como uma cadeia progressiva e sucessiva de fatos. Em nosso entendimento, e é o que pretendemos demonstrar, eles vão ao encontro de outras formas de menoridade, com uma potência diferenciadora. Pela memória da infância que pode ser inventada e recriada, Barros e Queirós abrem, a exemplo de Rosa, um espaço de transformação, em que o passado e o presente não se isolam, mostrando-se associados por fluxos de experiências que se intercambiam e, portanto, se correspondem.

Em muitos de seus poemas que tematizam a infância, Manoel de Barros representa poeticamente a forma como a criança descobre o mundo sem bloqueios. Trata-se de uma gramática da escrita ancorada na liberdade investigatória e formal, que se ressalta na estrofe/poema abaixo.

O menino caiu dentro do rio, tibum,

Ficou todo molhado de peixe...

A água dava rasinha de meu pé.

(...)

Você viu um passarinho abrido naquela casa

que ele veio comer na minha mão?

Minha boca estava seca igual do que

uma pedra em cima do rio (BARROS, 2000, s/p).

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do tempo que passou, tensionado com o presente, contextualizando, dessa forma, os objetos da natureza e fazendo que deles se irradiem novos significados.

Nos textos de Bartolomeu Campos Queirós encontramos uma escrita sempre repleta de suspeitas e não certezas, uma composição que se inspira por cuidados. As indagações e os suspenses são, da mesma forma, modos de construção dessas narrativas. Sendo histórias tecidas pela poesia, estas portam lacunas, estabelecem vias de diálogo com o leitor, que é afetado pelo lirismo das palavras dispostas com desvelo. Tais sentidos lacunares propiciam um olhar mais detido, aguçado, só possível em um tempo mais demorado de se deixar levar. Não é um tempo utilitário, tão característico da lógica adulta que se pauta pela máxima Tempo

é dinheiro. É uma reinvenção do tempo, que se desvencilha do ordenamento do cronos para

experimentar outras formas de se viver o momento.

Neste sentido, o conhecimento é visto como criação, não como acumulação de informações. O conhecer que não é norteado pela conservação e acúmulo, sendo, antes, marcado pela perda. Esquece-se, no tempo certo, o que é para se esquecer, mas num outro momento, retoma-se e recorda-se o que é preciso, ou seja, o caminho por-fazer.

O grande segredo é não ter a infância como lugar já perdido. É preciso saber reencontrá-la, reinventá-la. Mesmo sabendo que jamais poderei estar novamente na infância posso revivê-la pela força da fantasia. Depois, não basta tentar se infantilizar para conversar com as crianças. É preciso continuar reinventando, e sempre, o cotidiano (QUEIRÓS, s/p).

Instaura-se uma outra concepção de tempo, neste caminho do conhecimento atravessado pela experiência. Não é o tempo marcado pela aceleração de compromissos, valorizado pela quantidade de tarefas que se colocam para serem cumpridas. É um tempo de saber como inventividade e sabor, experimentado com curiosidade, numa atitude própria da experimentação infantil.

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Desta forma, optar por um conhecimento que alie a infância à literatura é estabelecer o diálogo entre o imaginário e o sensível, a realidade e sua tradução poética. As artes, entre elas a arte literária, são, neste sentido, a melhor expressão de um pensar poético. Um modo de pensar capaz de conciliar cognição e sensibilidade. Um meio de se dar sentido à existência em bases intelectivas, estéticas e emotivas.

Autores como Guimarães Rosa provocam esta forma de pensar, que interpela os sentidos, propicia maiores e mais intensas experiências de aprendizagem do humano. Não necessariamente querem transmitir conhecimentos, embora provoquem aprendizados. É que, ao criar, eles nos impelem a fazer o mesmo. Portanto, assim como escritores como os que sabem da arte de escrever, podemos assumir a perspectiva infantil sem necessariamente retornarmos à infância. Ou seja, podemos nos ancorar no fluxo do devir-infância da escrita como os que se deixam guiar pela inventividade das palavras literárias.

Não pretendemos negar as reflexões já produzidas a respeito da infância, mas manejar o foco de sorte a podermos apreciá-la em sua dimensão poética. Nosso objetivo, nesse sentido, é perceber a infância na singularidade das experiências apresentadas por Guimarães Rosa, Manoel de Barros e Bartolomeu Campos de Queirós em seus escritos literários. Desta forma, partimos em busca de novas concepções de infância cuja força expressiva estaria ancorada em textos literários como os que balizaram este trabalho.

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CAPÍTULO 1: OS CONCEITOS DA INFÂNCIA NA MODERNIDADE: UMA

ANÁLISE SÓCIO-HISTORIOGRÁFICA

A concepção atual de infância precisa necessariamente ser pensada numa perspectiva histórica e sociológica, tendo como marco inicial o próprio significado da palavra infância. Etimologicamente, o infante é aquele que não tem voz, nele se mostram faltas no pensamento e na ação. O que Ariès chama de Enfant significa o não falante, ou seja, o que não pode falar pela falta dos dentes e, por isso, é constantemente repudiado quando tenta se expressar (2006, p.36).

Entendida nesse sentido, como a idade permeada por uma falta, a infância foi alvo de uma concepção estereotipada, marcada por crenças e mitos que fizeram com que as crianças e adolescentes ocupassem um patamar jurídico e político inferior ao dos adultos. Em decorrência desse entendimento, criou-se um estigma de constante falta à condição infante, e ao adulto ficaria destinada a função de corrigir e preencher falhas ou carências.

Das raízes etimológicas da palavra infância, um longo processo ocorreu para que se consolidasse o conceito moderno do que é o infantil. A definição da infância ou a necessidade de explicar o que é tipicamente infantil, atribuindo-se às crianças certas características, como sujeitos de interesses e tendências naturais que se manifestam dadas as condições propícias ao seu aparecimento, é um dos inventos da modernidade, consolidando-se, dessa forma, a moderna pedagogia (o que será reforçado posteriormente pelo saber psicológico ou o cognicista).

Também a produção de uma racionalidade moderna e natural foi um objetivo central do Iluminismo. Ao conceber assim a criança, a semente da Humanidade – não uma dádiva de Deus, mas um resultado do processo evolutivo – se estava fazendo frente a um processo de distanciamento das explicações religiosas ou míticas da realidade. A religião é substituída pela ciência, vista como instrumento de libertação. As forças do progresso estão, neste caso, ao lado da ciência e da “natureza”. A criança, dessa maneira, poderia ser encarada também como um agente de progresso, e a fase em que vive seria propícia ao desenvolvimento, natural ao processo de evolução das espécies.

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1.1 – A contribuição de Philippe Ariès

Autores ligados à historiografia procuram identificar, desde seus primórdios, as várias concepções de infância na história ocidental, para melhor compreender os conceitos sobre esse campo, tais quais chegaram à atualidade. O objetivo desses autores em retomar os estudos históricos sobre a infância é estimular a discussão em torno das conveniências da desconsideração e/ou negligência para com a infância e adolescência, cristalizadas no tempo.

Um dos primeiros autores a fazer uma investigação mais detida sobre a infância em bases teóricas foi Philippe Ariès. Sua tese pontuou pela primeira vez a temática da infância como um conceito criado na modernidade. O tema da infância, levantado por ele, centra-se na necessidade de ressignificar o sentimento de infância surgido em determinada época, atribuir-lhe a importância devida e questionar se este sentimento sempre existiu ou se, por circunstâncias culturais e sociais, deixou de ser desconsiderado.

Em sua obra História Social da Criança e da Família, publicada em 1960, o pesquisador francês, aponta que o conceito ou a ideia que se tem da infância foi historicamente construído e que a criança, por muito tempo, não foi vista como um ser em desenvolvimento, com características e necessidades próprias, e sim como um adulto em miniatura. Nesse sentido, a história da infância desencadeou muitas reflexões sobre a forma como a infância vem sendo entendida e que ideias foram cristalizadas a respeito da criança.

A discussão sobre o tema da infância, sua importância e a forma como ela é abordada em pesquisas no campo da História, Sociologia, Filosofia, Psicologia, Biologia, Antropologia, Arqueologia, entre outras, torna possível o entrelaçamento de diferentes olhares e autores nesse amplo campo. Justifica-se, portanto, considerá-la como essencial para o entendimento da Modernidade e das instituições de regulação criadas a partir de uma outra configuração da família na sociedade burguesa.

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(...) é sempre, quer ou não, uma história comparativa e regressiva. Partimos necessariamente do que sabemos sobre o comportamento do homem de hoje, como de um modelo ao qual comparamos os dados do passado, com a condição de, a seguir, considerar o modelo novo, construído com o auxílio dos dados do passado, como uma segunda origem, e descer novamente até o presente, modificando a imagem ingênua que tínhamos no início.

Do século XII ao XVII, período eleito por Ariès para focar suas pesquisas, ocorreram grandes transformações históricas, dentre as quais as que decorrerão de uma nova mirada sobre a infância que irá assumir diferentes conotações dentro do imaginário de então, seja nos aspectos sociais, culturais, políticos ou até nos econômicos, conforme cada período histórico. A criança era um ser de valor substituível, alguém que tinha uma função utilitária para a sociedade, pois a partir dos sete anos de idade era inserida na vida adulta e sua utilidade era medida quando realizava tarefas, imitando seus pais e suas mães, acompanhado-os em seus ofícios, cumprindo um papel perante a coletividade.

Com relação às etapas da vida humana, a pesquisa de Ariès mostra que a forma de representar sua cronologia passou por várias mudanças. Estas representações eram construídas principalmente a partir das observações dos elementos da natureza, do estudo dos astros, dos aspectos das crenças populares, fenômenos naturais e sobrenaturais, os quais faziam parte de um contexto governado pelas leis da teologia, enfatizado por uma visão mística. Assim, as representações da idade humana eram calcadas em argumentos desprovidos de uma maior objetividade. Além disso, a morte prematura das crianças era bastante comum e elas não chegavam a percorrer todos os ciclos da vida. A partir de relatos e textos dos século XII ao XVIII, o autor demonstra como as pessoas definiam a infância:

a primeira idade é a infância que planta os dentes, e essa idade começa quando nasce e dura até os sete anos, e nessa idade aquilo que nasce é chamado de

enfant (criança), que quer dizer não falante, pois nessa idade a pessoa não

pode falar bem nem formar perfeitamente suas palavras (ARIÈS, 2006, p. 36).

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ser superada: ”a passagem da criança pela família e pela sociedade era muito breve e muito insignificante para que tivesse tempo ou razão de forçar a memória e tocar a sensibilidade” (ARIÈS, 2006, p. 10).

A infância nesse contexto seria comparada à velhice, pois se, de um lado, temos a infância constituída pela falta de razão, por outro, teríamos a velhice marcada pela senilidade, já que “as pessoas velhas já não têm os sentidos tão bons como já tiveram, e caducam em sua velhice (...) o velho está sempre tossindo, escarrando e sujando” (ARIÈS, 2006, p. 37). As demais idades, no caso, a juventude e a vida adulta, caracterizar-se-iam pela sua força, vitalidade e principalmente pelas funções produtivas dentro da vida social e coletiva. Considerando essa questão, percebe-se que, na sociedade atual, tal situação é recorrente, à medida que há uma ênfase na valorização do indivíduo produtivo, excluindo-se crianças e idosos de diversos setores e espaços sociais.

Assim, a história da infância pesquisada por Ariès ressalta que as crianças foram tratadas como adultos em miniatura, na sua maneira de vestir-se, na participação ativa em reuniões, festas e danças. Os adultos se relacionavam com as crianças sem um cuidado maior, pois falavam vulgaridades, realizavam brincadeiras grosseiras e todos os tipos de assuntos eram discutidos na frente delas, inclusive a participação em jogos sexuais. Isto ocorria porque não acreditavam na possibilidade da existência de uma inocência pueril, ou na diferença de características entre adultos e crianças: “no mundo das fórmulas românticas, e até o fim do século XIII, não existem crianças caracterizadas por uma expressão particular, e sim homens de tamanho reduzido” (ARIÈS, 2006, p. 51).

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Outra atitude muito comum da época era entregar a criança para que outra família a educasse. O retorno para casa se dava aos sete anos, se aquela continuasse viva. Considera-se que, nesta idade, a criança estaria apta para ser inserida na vida da família e no trabalho. Nesse contexto, as mudanças com relação ao cuidado com a criança só vêm ocorrer mais tarde, no século XVII, com a interferência dos poderes públicos e com a preocupação da Igreja em não aceitar passivamente o infanticídio, antes tacitamente tolerado. Preservar e cuidar das crianças seria um trabalho realizado exclusivamente pelas mulheres, no caso, as amas e parteiras, que agiriam como protetoras dos bebês, criando uma nova concepção sobre a manutenção da vida infantil, “como se a consciência comum só então descobrisse que a alma da criança também era imortal. É certo que essa importância dada à personalidade da criança se ligava a uma cristianização mais profunda dos costumes” (ARIÈS, 2006, p. 61).

Dessa forma, surgiram medidas para salvar as crianças. Para tanto, as condições de higiene foram melhoradas e a preocupação com a saúde das crianças fez com que os pais não aceitassem perdê-las com naturalidade. No século XIV, devido ao grande movimento da religiosidade cristã, surge a criança mística ou criança angelical. A representação da criança mística, aos poucos, vai se transformando, assim como as relações familiares. A mudança cultural, influenciada por todas as transformações sociais, políticas e econômicas que a sociedade vem sofrendo, aponta para mudanças no interior da família e das relações estabelecidas entre pais e filhos. A criança passa a ser educada pela própria família, o que fez com que se despertasse um novo sentimento por ela. Ariès caracteriza esse momento como o surgimento do “sentimento de infância”, que será constituído por dois momentos, um deles chamado de paparicação.

A paparicação seria uma nova forma de cuidar decorrente do sentimento familiar despertado pela beleza, ingenuidade e graciosidade da criança. Esta foi uma mudança que propiciou uma aproximação cada vez maior dos pais com os filhos. Assim, os gracejos das crianças eram mostrados a outros adultos, fazendo da criança uma espécie de distração,

bichinhos de estimação, como o sugere Ariès (2006, p. 68):

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Por uma nova necessidade de manter viva a criança, surgem medidas para garantir sua sobrevivência. As condições de higiene melhoraram, e a preocupação com a saúde das crianças fez com os pais não aceitassem perder seus filhos com naturalidade e os que perdiam aceitavam como sendo a vontade de Deus, segundo a orientação religiosa da época.

Este sentimento, despertado primeiramente nas mulheres, não era compartilhado por todas as pessoas; algumas ficavam irritadas com a nova forma de se tratar as crianças. Ariès cita, em suas referências, a hostilidade de Montaigne com o novo comportamento adotado:

(...) não posso conceber essa paixão que faz com as pessoas beijem as crianças recém-nascidas, que não têm ainda movimento na alma, nem forma reconhecível no corpo pela qual se possam tornar amáveis, e nunca permiti de boa vontade que elas fossem alimentadas na minha frente (MONTAIGNE, apud ARIÈS, 2006, p. 159).

O sentimento de apego surge a partir do século XVII, como uma manifestação da sociedade contra a paparicação da criança, e propõe separá-la do adulto para educá-la nos costumes e na disciplina, dentro de uma visão mais racional. Assim, foi dentro desse contexto moral que a educação das crianças se inspirou, através do posicionamento de moralistas e educadores e, principalmente, com o surgimento da família nuclear gerada dentro dos padrões da cúria: o modelo de família conservadora, símbolo da continuidade parental e patriarcal que marca a relação pai, mãe e criança. A preocupação da família com a educação da criança desencadeou mudanças que levam os pais a cuidar com maior zelo de seus filhos.

Consequentemente, houve a necessidade de impor regras e normas na nova educação, do que decorrem formações visando à doutrinação da criança, o que atende aos anseios da sociedade que então emergia. Essa nova concepção de sociedade faz com que a criança seja alvo do controle familiar ou do grupo social em que ela está inserida.

Com o surgimento de um novo homem, aparecem também as primeiras instituições educacionais, das quais emerge a concepção de que os adultos “compreenderam a particularidade da infância e a importância tanto moral como social e metódica das crianças em instituições especiais, adaptadas a essas finalidades” (ARIÈS, 2006, p. 193).

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filhos fossem fortalecidos. A partir deste momento, a criança começa a ser vista como indivíduo social, dentro da coletividade, e a família tem grande preocupação com sua saúde e sua educação.

Ariès observa que não existia então o conceito de infância antes do século XVII, período em que havia um evidente descaso com relação à fase inicial da vida, pois não se dispensava um tratamento diferenciado às crianças. Somente a partir do século XVIII, surgem os dois sentimentos de infância apontados pelo autor: o de paparicação e o de controle moral, que irão constituir a base para o conceito moderno da infância. Para Ariès, quando a criança é colocada num patamar de significância, surge também a necessidade de controlá-la e educá-la mais formalmente.

É dessa maneira que no século XVII tem início a produção de literatura moral e pedagógica direcionada para a infância, deixando claro desta forma o surgimento do conceito de inocência infantil. O sentimento de um estado particular da vida humana começa a se moldar a partir do surgimento da escola.

A criança passa, a partir de então, a ser objeto de atenção da família, merecedora dos cuidados daqueles que deveriam ser os responsáveis não só por colocá-los no mundo, mas também enviá-los à escola. Essa atitude resultou na aproximação das pessoas em torno de um núcleo familiar com a consequente retração da sociabilidade.

Assim, a infância, como ideia recorrente até a contemporaneidade, é fruto das mudanças sociais operadas no limiar da Idade Moderna, a partir não apenas da reestruturação das relações familiares, mas também da importância que a escola passou a assumir na educação dos meninos e meninas. A estabilização dessa postura, por volta do século XVII , é influenciada pelos seguintes fatores: 1) emergência de um sistema de educação; 2) mudanças na estrutura familiar; 3) desenvolvimento do capitalismo; 4) surgimento de um espírito de benevolência; 4) aumento da maturidade emocional dos pais.

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1.2 – Visões de pensadores sobre a infância: a contraposição à Ariès

Os estudos de Ariès sobre a formação do conceito de infância foram resultado de uma pesquisa documental e iconográfica, cujo objetivo era mostrar que a sociedade ocidental passa a ser “uma sociedade que se fecha em núcleos familiares, e que privatiza a infância e a segrega, através de vários sistemas educativos, implicando-a em regimes autoritários e em restrições disciplinares” (CORAZZA, 2004, p.86).

Autores que discordam de Ariès desenvolvem seus pressupostos principalmente a partir de três constatações a respeito do método utilizado por ele para comprovar sua tese. Primeiramente, os mecanismos teórico-metodológicos usados pelo autor, que se baseou principalmente nos documentos iconográficos da época. Em segundo lugar, o estudo da criança, realizado de maneira isolada e voltado para as classes mais abastadas. Por último, uma certa indiferença quanto às particularidades de cada país, já que Ariès ignorou as especificidades das práticas relativas à infância tais quais esta se consolidou em diversas sociedades europeias.

DeMause vai opor-se à tese de que não havia um conceito ou uma consciência da natureza particular de infância antes do século XVII. Este crítico afirma que as sociedades do passado reconheciam a infância como um estado distinto da fase adulta, ou seja, um estado com particularidades específicas. No seu livro História da Infância, DeMause se opõe ao pensamento de Ariès de que a infância pré-moderna era mais feliz, pois gozava de uma liberdade maior que se perdeu com o advento da modernidade, a partir do surgimento de mecanismos que, ao diferenciar o infantil do adulto, procuravam adestrá-la para que pudesse atingir à maioridade de maneira apropriada (CORAZZA, 2004, p.96).

DeMause cria, com o auxílio de dez outros historiadores, a “teoria psicogenética da história”. Para ele, a mudança histórica não ocorre pela economia ou pela tecnologia, mas “pelas mudanças psicogenéticas da personalidade, resultantes das interações entre pais e filhos em gerações sucessivas” (DEMAUSE Apud CORAZZA, 2004, p.97).

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Ariès vai negá-la quanto a sua existência na sociedade medieval, mas vai reafirmá-la como uma realidade na sociedade moderna, descrevendo esse tipo de tratamento como muito mais frequente nas escolas do que nas famílias, embora ocorressem nas escolas com o consentimento das famílias, ou mesmo a pedido destas.

Por essa negação do tratamento cruel no período medieval, Ariès vai ser criticado por DeMause. Para ele, na idade medieval as crianças viviam uma situação de “grave abandono afetivo” e, com a chegada da idade moderna, houve um movimento de sua aceitação social, desenvolvendo-se para elas um tratamento mais humanizado (CORAZZA, 2004, p.100).

Utilizando-se, em suas pesquisas, da perspectiva psicogenética e progressiva da formação do conceito de infância, DeMause, no intuito de se contrapor às pesquisas de Áries, lança mão de abordagens historiográficas para tentar comprovar seu pressuposto segundo o qual a criança e a infância devem ser concebidas enquanto “entidades históricas” (Apud CORAZZA, 2004, p.103). Contudo, ao defender a evolução do conceito da infância aliado a uma melhoria do tratamento destinado à criança, DeMause não consegue se desvencilhar da explicação histórica de uma genealogia do infantil.

Pollock opõe-se também à tese de Ariès, criticando a generalização feita por este a partir de um estudo não representativo de uma única experiência, com foco na classe alta, pertencente à elite francesa. Nesse sentido, Ariès teria ignorado por completo as distinções sociais e culturais existentes entre a criança estudada e a verdadeira representação da infância, que naturalmente não pertencia à realeza, nem à classe alta francesa.

A historiadora elabora uma teoria sociobiológica para observar os cuidados entre pais e filhos, utilizando-se de autobiografias e escritos dos séculos anteriores à Modernidade para comprovar que havia um sentimento de infância anterior ao século XVI e que “as práticas de afeto e solicitude nas relações pais/filhos são invariantes que atravessam a cultura humana” (CORAZZA, 2004, p.110). Desta maneira, quaisquer que fossem as distinções com relação ao trato com as crianças, elas poderiam ser interpretadas por Ariès como ausência do sentimento moderno de infância, o que significa olhar para o passado e querer ajuizá-lo a partir dos valores socioculturais da modernidade.

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conceito aliando-o ao advento da educação moderna, e, por este motivo, Ariès preferiu supor que as crianças pequenas simplesmente não eram levadas em conta, ou seja, eram olhadas com total indiferença, deixando-se de lado a busca por informações que trouxessem evidências substanciais de como as crianças pertencentes a esta faixa etária eram tratadas pela sociedade. A autora admite que a partir do século XVI houve pequenas mudanças no tratamento destinado às crianças, referente a uma nova “natureza de infância” (p. 111).

Havia já uma preocupação em educar corretamente os filhos, com métodos de disciplina nem sempre ligados às punições físicas. Mesmo admitindo que existiam muitas variáveis no tratamento destinado às crianças, a tese de Pollock era de que o sentimento de infância já ocorria antes da Modernidade porque se sabia que a criança era um ser dependente dos adultos, e os pais eram responsáveis por sua proteção e socialização (Idem).

1.3- Locke e Rousseau : a necessidade da formação da criança

John Locke (1632-1704) e Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) muito influenciaram a construção da concepção ocidental sobre a infância enquanto estágio distinto da idade adulta. Os dois são autores respectivamente de Some Thoughts Concerning Education (1693) e Emile (1762), os primeiros manifestos sobre a educação centrada na criança.

No século XVIII, o clima intelectual desencadeado pelo Iluminismo permitiu uma disseminação da concepção de infância. O Iluminismo proporcionou uma transposição de fronteiras, alcançando, através de seus precursores, diferentes paradigmas. Pode-se que afirmar que as contribuições de Locke e Rousseau, produzidas nessa época, difundiram-se e reafirmaram-se nos dois séculos seguintes.

Considerado um dos mais importantes filósofos do empirismo inglês, Locke percebia as crianças como recipientes de uma educação ideal, como folhas brancas a serem preenchidas pela experiência tutelada pelos adultos. A partir da sua teoria da tabula rasa, (GHIGGI, OLIVEIRA, 1995, p.41) afirma que a formação dos pequenos deve torná-los cidadãos virtuosos capazes de um autocontrole racional. Locke vê as crianças como imperfeitas, versões incompletas dos adultos. Os pais devem ter poder sobre os seus filhos pequenos, já que estes não possuem razão e por isso não podem ter os direitos de cidadãos adultos.

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em que a folha em branco da criança é preenchida quando se encaminha à maturidade. Nessa concepção, não há nada biológico; tudo se constitui num processo de desenvolvimento permeado pela sequencia, segmentação e linguagem.

A visão de Locke sobre as crianças pode ser conceituada como utilitarista, resumida na ideia muito determinante da filosofia do protestantismo, da importância da proteção e formação dos menores, para que se tornem cidadãos produtivos e civilizados, alfabetizados e racionais. Locke é um porta-voz da burguesia, classe emergente na Inglaterra, que, para ganhar espaço nas disputas econômicas, precisa basear seus ideais em uma visão mais pragmática do mundo e da sociedade da época (Idem, p.47).

Youf (2002) afirma que a concepção de Locke formou-se sobre uma ideia negativa da infância. Para o autor, esta visão influenciou fortemente a concepção moderna de menoridade. Desprovidas de razão, as crianças são vistas como próximas aos animais, por isso a necessidade de que os pais lhes imponham uma disciplina rígida. “A liberdade e a complacência não podem ser boas para as crianças. Como elas não possuem discernimento, precisam de direção e disciplina. As crianças com pouca idade devem ter seus pais como seus senhores, como seus mestres absolutos e que nesta qualidade sejam temidos e por outro lado, em uma idade mais avançada, tenham neles os seus melhores amigos” (LOCKE Apud YOUF, 2002 p.19).

Por outro lado, a imposição da disciplina parece ter uma vertente mais abrandada em Locke. O filósofo inglês afirma que as crianças possuem necessidades e interesses próprios e que devem ser chamadas à razão e não simplesmente coagidas ou castigadas. Neste sentido, o modelo de educação proposto pelo autor valoriza a capacidade de apreensão de informação e a sensibilidade da criança. A partir de um processo educativo organizado de forma científica, controlada e racional, a criança seria treinada para se libertar dos seus modos infantis. O modelo teria influenciado o papel do professor como a voz suprema na sala de aula, e os alunos como repetidores de respostas em coro e padronizadas.

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período extremamente positivo. A criança é considerada por Rousseau não idêntica, mas semelhante ao adulto. Suas maneiras próprias de ver, de pensar e de sentir a diferenciam. O filósofo defende que as crianças têm capacidade de raciocínio sobre as coisas que conhecem e que se referem a seus interesses.

Para ele, faz-se necessário pensar seriamente no significado da infância que começa com o nascimento da criança que, por sua vez, deve ser também educada a partir daí. Ou seja: a educação deverá começar a partir do momento em que a criança vem ao mundo. Assim deve acontecer por se tratar da necessidade de formamos o homem, antes que este possa se inserir na sociedade como cidadão.

A necessidade da formação da criança fica evidente no Emílio, quando diz o autor que "tudo é certo em saindo das mãos do Autor das coisas, tudo degenera nas mãos do homem" (ROUSSEAU, 2004, p.9). Considerando esta degeneração do homem, que acontece na sociedade, é que se pode pensar no desenvolvimento humano que se deve dar a partir do nascimento do homem. Assim, a infância passa a ser considerada por Rousseau o lugar, ou momento do desenvolvimento humano, em que se pode identificar o ser humano no seu modo de ser mais natural. Pensar, então, a infância deste ser é, na verdade, pensar no momento em que ele pode se formar enquanto homem natural. É este homem natural, identificado na infância, que se estende dos primeiros momentos da vida até os quinze anos, quando se inicia a adolescência, que antecede o cidadão. Este somente poderá ser identificado no homem, quando ele atinge a sua fase adulta.

Ao considerar a necessidade de se pensar na formação deste homem natural, que é próprio da infância, Rousseau passa a se perguntar pelo que seria do homem se não lhe fosse dada uma educação conforme a natureza. Ora, tal educação deixa de existir quando o homem passa a se formar de acordo com as determinações do meio social em que está inserido. Todavia, se por acaso para o homem fosse destinada uma formação natural, desvinculada das imposições sociais, ele ficaria desconfigurado. Tal afirmativa é comprovada por Rousseau, quando ele chama a atenção para o seguinte:

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todos os lados e dobrando-o em todos os sentidos (Idem, p.9).

A teoria de Rousseau parte do respeito à infância para defender uma educação de acordo com a dinâmica própria de cada idade, que não imponha as respostas corretas, mas que auxilie as crianças a resolverem os seus próprios problemas. Para Rousseau, as crianças são inocentes e puras e a educação deveria ter a função de preservar ao máximo estas características. Era uma oposição à sociedade industrializada que surgia na Modernidade, a criança representava a proximidade com a natureza em seu estado mais puro e distante da civilização.

Esta visão romântica concebia a criança como importante em si mesma, creditando-a como um cidadão em potencial. Sua natureza sincera, curiosa e espontânea não deveria ser castrada pela educação calcada no autocontrole e vergonha. Os românticos baseavam-se numa ideia do homem próximo ao "estado de natureza", havendo um desprezo total pelos "valores civilizados".

A contribuição ideológica de Rousseau foi marcante para a concepção da criança inocente que perdura até hoje. O filósofo discorre em sua obra sobre as fases etárias da infância e sobre o que seria apropriado para cada uma. É possível afirmar que este é o primeiro ensaio surgido em direção à elaboração dos estágios de desenvolvimento progressivo para a idade adulta, que, por sua vez, influenciou a Psicologia nos séculos seguintes, principalmente as teorias cognitivistas de Piaget.

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1.4 – Henry Jenkins e a construção do conceito de infância: a preservação da inocência

Os Estudos Culturais, especialmente em sua vertente voltada para as análises textuais, propiciam a compreensão do caráter inerentemente precário dos significados, da absoluta falta de correspondência entre palavras e coisas e das lutas de poder pelo controle destes mesmos significados. Esta visão preocupa-se com os significados que estão sendo constantemente negociados e que estão conectados a políticas de verdade em ação na sociedade. O desenvolvimento dos Estudos Culturais está ligado ao desenvolvimento curricular e institucional das instituições acadêmicas porque se lhes tornou necessário estabelecer uma relação de interdisciplinaridade mais do que institucional com as ciências sociais e com as “humanidades”.

Autores desse campo metodológico também têm-se dedicado à temática da infância, enfatizando a pouca atenção destinada aos sujeitos infantis analisados pelo viés sociológico. Henry Jenkins, em seu livro The children’s culture reader aponta para uma delimitação da infância na pesquisa acadêmica, sugerindo que, enquanto as culturas juvenis têm sido objeto de pesquisa sociológica, a infância tem sido considerada objeto adequado apenas para a Psicologia do Desenvolvimento.

O autor afirma que historiadores e, em geral, todos os que pensam historicamente, constroem suas histórias no presente, de acordo com suas teorias ideológicas e seus interesses. O passado ‘histórico’ construído não está relacionado com o passado ‘real’, mas é um passado reformulado em historiografia, como uma construção do presente, como uma referência textual não sobre o quê, mas sobre o que é.

A criança é vista numa perspectiva que a diferencia do adulto — um ser em falta, imaturo, que depende das decisões alheias — alguém que precisa adquirir o conhecimento que foi legitimado por outros mais velhos e experientes, por pessoas cujas atitudes podem ser afirmadas através de racionalizações. As crianças passam a ser uma preocupação social: objetos de interesse e temais principais de discursos. São construtos históricos produzidos por condições sociais concretas.

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A ênfase na infância como um fato biológico — uma preocupação marcadamente pós-darwiniana — baseada na ideia de evolução e de progresso, teve influência sobre todas as explicações a respeito desta fase da vida: da sexualidade à progressão ou desenvolvimento cognitivo, marcando profundamente a compreensão da infância e dos fenômenos a ela associados e, por consequência, na constituição das identidades infantis.

Henry Jenkins enfatiza que a concepção moderna de 'criança inocente' é comumente entendida como universal, ou seja, natural à criança, independente do momento histórico e da cultura a que ela pertença. Entendendo a criança como destituída de desejo sexual, desconsideram-se as outras diferenciações, além das de gênero, como as étnicas ou de classe entre as múltiplas crianças no mundo. É como se a noção do infantil existisse apartada do contexto, exercendo, entretanto, um papel importante na regulação de hierarquias culturais, ao separar, por exemplo, a influência negativa da cultura popular sobre as crianças do poder educativo conferido à chamada alta cultura. O autor enfatiza que a concepção moderna de 'criança inocente' se alicerça em uma história, por sua vez elaborada por ideias de diferentes contextos históricos. E, assim sendo, acaba por resultar em sentidos contraditórios (JENKINS, 1998, p.15).

Jenkins ainda ressalta que, embora nem todas as afirmações de Ariès estejam corretas, a sua principal contribuição foi ter fundado as bases para o estudo da construção social da noção de infância e, particularmente, das ideias de inocência e pureza comumente associadas a ela. Segundo Ariès, essa concepção moderna resultou em dois tipos principais de comportamento em relação à criança: em primeiro lugar, justificou a atitude de proteção contra as mazelas do mundo adulto e, em especial, contra a sexualidade; e, em segundo lugar, estimulou a ideia de educar a criança, desenvolvendo-lhe o caráter e a razão (ARIÈS, 2006, p.56). Essas duas atitudes anunciam uma concepção já descrita anteriormente em relação à infância: ao mesmo tempo em que se quer proteger as crianças do mundo adulto, procura-se prepará-las para assumi-lo, através da educação.

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segundo está associado à ideia de infância ameaçada, sempre a ponto de desaparecer e que, nesse sentido, precisa ser defendida das dificuldades do mundo adulto.

Segundo Ariès (2006), o pressuposto da inocência infantil leva a dois tipos de atitude e comportamento em relação à criança: protegê-la dos problemas e da sexualidade do mundo adulto e fortalecer o seu caráter pelo uso da razão, numa ação que parece ser contraditória: para preservá-la é preciso ao mesmo tempo fazê-la amadurecer (JENKINS, 1998). Na perspectiva apresentada por Ariès estão fortemente imbricadas as duas condições: a da inocência e a da cognição. As crianças, portanto, são vistas como criaturas inocentes que necessitam ser guiadas pelos adultos. Assim, torna-se responsabilidade destes tanto definir os valores morais para os mais jovens quanto impor a eles os limites do que pode ser conhecido.

Embora esta ideia de proteção à infância apareça naturalmente, o modo como isso acontece depende de condições materiais particulares, de preocupações ideológicas e de lutas por poder social e político. A infância historicamente tem-se revelado como uma categoria instável, que tem que ser controlada e disciplinada, portanto, seus significados e imagens só podem existir pela ação de um poder que opera para regular o conhecimento.

Assim sendo, ver a criança como natural, pura, inocente, curiosa, “descobridora”, não corresponde senão a “mitos” que criamos a respeito delas. “A criança inocente nada quer, nada deseja, nada exige exceto, talvez, sua própria inocência” (JENKINS, 1998, p.1).

Tais ideias modernas, ao serem tomadas como universais e descontextualizadas historicamente, encobrem diferenças entre os vários modos de ser do infantil e servem não só para justificar uma maneira de se aplicar coercitivamente o conhecimento à criança, como acabam por legitimar “a ampliação do papel social da classe educada para policiar a cultura dos mais jovens” (JENKINS, 1998, p.15).

1.5 – Neil Postman e o desaparecimento da infância

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