Gostariadeexplorar,nesteartigo,duasmetáforasartísti-casparaarepresentaçãopolítica.Recorreraimagensdo mundodasartesnãoépropriamenteumaidéiaoriginalna tradiçãodopensamentopolítico,masbuscofazeralgones-sadireçãotendoemcontaumaelaboraçãomaisabstrata, realizadaemoutraocasião,sobremodosdeconceituara autoridadesoberanaeaboaordempolítica:oEstado,da tradiçãocontratualistamoderna,eaConstituiçãoMista ,deri- vadadopensamentorepublicanoclássico,antigoemoder-no(Araujo,2004).Oobjetivoérelacionaressasidealizações comproblemasteóricosepráticosdarepresentação.
Ao empregar tais metáforas, não pretendo exibir nenhumestudorigorosoeabrangentedasrepresentações artísticas.Aidéiadotextoédeixarqueelassimplesmente abramocaminhoparacertasnoçõesintuitivasqueaelabo-raçãoabstratanemsemprepermiteentrever,fazendodelas umaplataformaparadiscutir,sobrepondo-as,concepções
CiceroAraujo
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de soberania e representação. Assim, inicialmente, farei umacaracterizaçãodasoberaniaestatal,inspiradonaforma clássicaintroduzidaporHobbes,elaborandoatravésdela noçõesderepresentaçãoquepensoapropriadasaessetipo desoberania.Voumevaler,nessaelaboração,dametáfora doretrato.Emseguida,examinootipodesoberaniasub- jacenteàConstituiçãoMista,edesdobronoçõesderepre-sentação correspondentes, guiado pela metáfora do dra-ma.Finalmente,comparoasduasidealizaçõeseapontoos modosdiferenciadoscomqueoardilosoproblemadocon-troledarepresentaçãoseapresentaparacadauma.Apesar deestruturadopararevelarcertasvantagensdaConstitui-çãoMista,aintençãoprincipaldoartigoéexporasrazões dadiferençaesuasimplicações.
Asmáscaraseapolítica
Numsentidobemamplo,arepresentaçãoseconfundecom ainvençãodaprópriapolítica.Éverdadequeháumsenti-domaisestritonoqualelaéatributodapolíticamoderna. OsgregoseromanosdaAntigüidade,porexemplo,desco-nheciamasestruturasparlamentaresderepresentação.Mas RobertDahltemrazãoquando,aodiscutiroproblemada escalanachamada“democraciadireta”,afirmaque,mesmo numaassembléiadecidadãoscomoasqueosateniensesrea- lizavam,sendoimpossívelquetodospudessemfalar,osorado-restinhamdeexercersuashabilidadespara“representar”em seusdiscursosopensamentoalheio:“Alargemeeting–say,a thousandormorepeople–isinherentlyakindof‘represen-tative’systembecauseafewspeakershavetorepresentthe voicesofallthosewhocannotspeak”(Dahl,1989:228).
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atividade nasubstituição, como a crítica da representação modernacostumafazer,éprecisochamaratençãoparaa idéiadedeslocamento queelasugere.Aorepresentar,pro-curamosnosdistanciardenósmesmose,talvez,também daquelesquenossãomuitopróximos,para,atravésdeges-tos,discursosetc.abarcarouincorporaroestranho(seus pensamentos?desejos?interesses?).Masessabempodeter sidoaatividadeinauguraldapolítica:estudosdehistoria-dores-antropólogos,comooclássicotrabalhodeFustelde Coulanges,sugeremqueosurgimentodapolis gregapossibi- litouummododesuperarosaspectostribaisoudeclã(fun-dadosnagenosdaeraarcaica)deumaetapaanteriordesua civilização,eassimfundarumaassociaçãomaisinclusiva.
Será coincidência que, mais ou menos nessa mesma época,oteatrogregotenhasidoinventado?Paraumteóri-coqueaparentementedetestavatantoapolíticaantiga,em particularademocraciaateniense,essaconexãonãodeixou deescaparaThomasHobbes.Aofalarda“pessoa”dosobe-ranocomoum“representante”,notãocitadocapítuloXVI doLeviatã,eisassuasobservaçõespreliminares:
“Apalavra‘pessoa’édeorigemlatina.Emlugardelaos gregostinhamprósopon,quesignificarosto,talcomoem latimpersonasignificaodisfarceouaaparênciaexteriordeum homem,imitadanopalco.Eporvezesmaisparticularmente aquelapartequedisfarçaorosto,comomáscaraou
viseira.Edopalcoapalavrafoitransferidaparaqualquer representantedapalavraoudaação,tantonostribunais
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comonosteatros.Demodoqueumapessoaéomesmoque umator,tantonopalcocomonaconversaçãocorrente. Epersonificarérepresentar,sejaasimesmoouaoutro;e daquelequerepresentaoutrodiz-sequeéportadordesua pessoa,ouqueageemseunome[...]Recebedesignações diversas,conformeasocasiões:representante,mandatário,
lugar-tenente,vigário,advogado,deputado,procurador,ator,e outrassemelhantes”(Hobbes,1983,cap.XVI:96).
Daqui a pouco devo enfocar a dimensão plástica da idéiademáscaraqueaparecenessapassagem.Antes,cabe insistirnessevínculoentre“pessoa”e“ator”marcadopor Hobbes,quedizocorrertantono“palco”quantona“con-versação corrente”. De fato, estamos colocados diante deumasituaçãohumanadeinterlocução,naqualsefaz imprescindívelumaatitudedeaberturaintelectualemes- moemocionalentreaspartes,paraqueaprópriainterlo-cuçãopossaocorrer.Aconversa,porexemplo,dificilmente poderiaacontecersedecadapartenãohouvesseadisposi-çãoparatrazerparadentrodesiospensamentosalheios–e também(comoosteóricosmoraissetecentistasda“simpa-tia”vãoinsistir)ossentimentos–paraentãocompreendero queestariaemjogo.AnatolRosenfelddizquefoiexatamente essadescobertaquepossibilitouoteatrogrego,emparticu-lar,ainvençãodoator.Ousodamáscaraporumcoro,por exemplo,jáfeitoemfestivaisdionísicos–emqueseencena-vamosditiramboseosburlescos“autosdesátiros”–edepois aplicadonas(nadaburlescas)tragédias,marcavaclaramente aidéiadeautotransformaçãonecessáriaàatuaçãoteatral:
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cinqüentacoreutas)seapresentavammascaradosdesátiros. Issocorrespondeaousofreqüentedamáscararitual, quetransmiteaosportadoresasforçasequalidadesdos demôniosoudeusesrepresentados;correspondetambémao fatodeDionisotersidoodeusdamáscarae,emextensão, dametamorfose,fenômenoessencialdaartecênica:tanto osatorescomoosespectadoresse‘transformam’nosseres representados,comungando,mercêdaidentificação,com seusdestinos”(Rosenfeld,1993:48).
Emsuaanalogiaentreoatoreo“soberanorepresen- tante”,Hobbespropõeafigurado“autor”,queobviamen-tecomplementaadoator.Emambosospólosdaanalogia, porém,oautoréumafiguraquenãodeveapareceremcena: eleacria,possibilitaintelectualmente,porémnãoseapre- sentanela,permanececomoqueoculto.Naanalogiahobbe- siana,oautoréo“serrepresentado”,masquesemetamorfo-seiainteiramenteno“serrepresentante”,queentãopassaa fazertudono“lugarde”ou“emnomede”outro.Écurioso queHobbesnãofalenada,naquelapassagemcitada,sobre aspersonagensqueoautorteatralcria,afimderepresentar nacenaoutrascoisas–outraspessoas,humanasoudivinas, emesmoobjetos–enãoasimesmo,comoautor.Aanalogia pareceperdersuaforçanesseponto.Háquenotar,porém,a intençãohobbesianadeapresentarseumododeveradialé-ticadopúblicoedoprivado,quetambémcorrespondenão sóaumasubstituição–veremososmotivosdestamaisabaixo –masaumdistanciamento:entreaquiloquedeveservisí-velaosolhosdetodos(o“público”encarnadonapessoado soberano),eaquiloquedevepermanecerinvisível(o“priva-do”,istoé,seussúditos).
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filosófica,paralelaadoautor/ator:adaaparênciaedaessên-cia.Éestranhofalarassimsobreumfilósofoquequasetodos osestudiososconsideram,emtermosontológicos,um“nomi-nalista”enãoum“essencialista”.Contudo,aessenominalista nãoseriaestranhopensarqueorepresentante(a“aparên-cia”)podeedevesubstituircompletamenteorepresentado (a“essência”),eque,naverdade,esseúltimonadapodeser semoprimeiro.Sequiséssemosradicalizaraidéia–demodo algumforadoespíritodateoriapolíticahobbesiana–,pode-ríamosdizermesmoque,nessestermos,oator-representante, emsuametamorfose,“recria”oautor-representado,inverten- doospólosdoprocessocriativo:afontedaautoridadepolí-tica,decriador,setornacriaturadesuacriatura.Precisamos agorarecorreraoretratoparaelaborarmelhoresseponto.
Arepresentaçãocomoretrato
Pensemosoretratonãocomoumareproduçãofieldetodas asparticularidadesdoretratado,nãocomoummeroespe-lhodele,mascomoumtrabalhodeconstruçãodoartista apartirdomaterialbrutoquetemdiantedesi.Supomos, assim,queoartistanãoquercapturaroretratadoemqual-quersituação,masnumaperspectivaespecial–digamos, numasituaçãosolenequeentãoécongeladanoretrato.Essa situação poderia ser aquela em que o próprio retratado desejasseservistopelaposteridade,seotrabalhoartístico lograsseidentificarouressaltaralgumaspectoessencialdasua personalidade,ouentãoidealizar,naperspectivaretratada, umtemaparasuapersonalidade.
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“Amaioriadaspinturasdoreiseenquadranogêneroa queoshistoriadoresdaartechamamde‘retratosolene’, construídassegundoa‘retóricadaimagem’desenvolvida duranteoRenascimentoparaapinturadepessoas
importantes.Nessesretratossolenes,apessoaégeralmente apresentadaemtamanhonaturalouatémaior,depéou sentadanumtrono.Osolhosdoretratadoestãoacimados olhosdoespectador,parasublinharsuaposiçãosuperior.O decoronãopermitequeelesejamostradousandoasroupas dodia-a-dia.Usaarmadura,comosímbolodecoragem,ou roupasricas,comosinaldeposiçãosocialelevada,eestá cercadoporobjetosassociadosaopodereàmagnificência –colunasclássicas,cortinasdeveludoetc.Aposturaea expressãotransmitemdignidade”(Burke,1994:31).
OautordessapassagemlembraqueLuísXIVnãoera representadoapenasnoretrato,masemvariadasmanifesta-çõesartísticas,inclusiveliterárias(poesia)eteatrais.Maso aspectoimportantequequeroressaltaraquiémenosotipo demanifestaçãoartísticadoqueaidéiaabstratade“retra- to”quetodasessasrepresentaçõesdoreiindicam.Empin- tura,escultura,literaturaouteatro,édaexposiçãodocará-terelevado,especial,dapersonalidadedosoberanoquese trata.Issoéoretrato.Sequisermos,éumacertainclinação aogênerolírico,maisdoqueaosgênerosépicooudramá-tico,queoretratoexpressa3.Éclaroquesemprepodemos encontraralgodelíricoouépiconumapeçadramática,e
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vice-versa,assimcomoelementosdessestrêsgênerosclássi- cosemtodasasformasdeexpressão,plásticasounão.Esta- mosfalandoaquiapenasde“formaspuras”,enãodasmis- turascomplexasqueencontramosnasobrasconcretasehis-tóricasemcadaumadasgrandesartes.Ostermos“retrato” e“plástico”,nestetexto,traduzemapenasessepropósito.
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indicamqueseuproblemafundamentalnãoéoconteúdo bruto,queédado,massuasíntesenumaformaadequada.
AteoriadosoberanodeHobbespretendeentãoresol- verdoisproblemasqueotrabalhodoretratotambémpre-cisaresolver:a)comorecolheromúltiplonumaunidade;e b)como,fazendoessasíntese,transcenderameraaparên-ciadacoisaapartirdaqualaobrasefaz.Aidéiadamáscara sugereadistinçãoentreoselfespontâneo,queéa“pessoa natural”dosoberano,eoself queafiguradosoberanoper-sonificaoficialmente,comorepresentantedossúditos.O queelepersonificaoficialmente,porém?Notrechocitado acima,Rosenfeldfaladoatortrágicopersonificandofor-çasouseresdivinos.EBurkelembraqueLuísXIV,bemna linhadochamado“direitodivinodosreis”,sefazpassarpor representantedeDeusnaTerra:“Luístomavatambémo lugardeDeus,comofoiassinaladopelopregadordacor-teJacques-BénigneBossueteoutrosteóricospolíticos.Os soberanoseram‘imagensvivas’[imagesvivantes]deDeus, ‘osrepresentantesdamajestadedivina’[lesreprésentantsdela majestédivine]”(Burke,1994:21).
Estado,personificadonosoberano.Issoimplica,pararesga-238
taroestudodeQuentinSkinnersobreosignificadomoder-nodestetermo,queoEstado soberanovirtualmentesubsti-tuiacomunidade–coloca-senolugardela,oumelhor,age efalaemseunome.
Assim,oselfqueasoberaniahobbesianapersonifica nãoéseupróprioEu,masoNós ,aidentidadedacomu-nidadepolítica,que,porsuavez,nãotemumaexistência naturalindependente,maséconstruídaatravésdaobrado soberano.Essainterpretação,creio,casa-serazoavelmente bemcomametafísicanominalistadoautor.Issosignifica queosoberanonãoéumsimplesreflexodeumserdado, mastambémnãoéaocupação,porumsujeitoconcreto qualquerecomtodososseuscaprichos,deumlugarvazio, comoseaquelelugarnãoimplicassecertasobrigaçõeseres-ponsabilidadessubstantivas,inescapáveisaumaautoridade política.Naidealizaçãohobbesiana,temdehaverummeio-termo entre uma noção excessivamente substantivista da soberania(algocomoum“populismo”)eseuopostoexces-sivamenteformalistaepersonalista.
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emseuleitodemorte:‘Voupartir,masoEstadopermane-cerádepoisdemim’[Jem’envais,maisl’Étatdemeureraaprès moi]”(Burke,1994:21)
Oque,portanto,afiguradoSoberanocaptura,etem decapturar,éessapermanência,quetraduzoaquinaidéia doretrato:osoberano-representanteàHobbesé,nofundo, amarcadeumselfessencial–oNósdacomunidadepolítica –comoalgodistintodoselfempírico,quepodeperfeita-mentevariaraolongodotempo,semqueooutrosofraa mesmavariação.EstaéafiguradoEstadosoberano.
Aimagemhobbesianada“máscara”poderiaentãoser exploradanessesentidoplásticoqueindiqueiacima.Amás-caranãotomaorepresentadoemseumovimentoouemsuas flutuações,masocongela .Congela-o,porém,nãoemqual-quermomento,masnumasituaçãoouperspectivaespecial –aquelaquesupostamentelhecapturaaidentidade.Como umretrato,amáscaradeixadeladoasqualidadessecundá-riasdeseurosto,pararessaltaroudestacarsuasqualidades essenciais.Amáscaraéarepresentaçãodeumcaráter,um aspectofixodapersonalidade.Aconstruçãodasoberania políticasupõeessetrabalhosutildepinturadoretrato,cujo pintoré,natradiçãodopensamentopolítico,idealizadonum “legislador”.
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échamadonãosóumcorpoespecializadodeintérpretes (digamos,ocorpodejuízesdeum“SupremoTribunal”), maseventualmente–sequisermosdarumviésdemocrático àprópriavisãodeHobbes,oquecertamentenãoerasua intenção–ocorpodetodososcidadãosdacomunidade política,semqueissodeixedesignificarumasubordinação destaaoEstado,vistoagoracomorepresentaçãodaquela ordemjurídicabásica.
Neste ponto, podemos compreender o quanto essa doutrinadarepresentaçãosedistanciadeumainterpreta-çãoexcessivamentepersonalistadosoberano.Seéverdade queademocracianãoestáemseuhorizonte,apostulação deumaordemjurídicacomoelementocrucialdeumateo-rianormativadoEstadosoberanoémuitoclaranavisão hobbesiana4.Nela,asleissupremasdoEstadosãoexpostas deummodobemgeneralizado,naformadas“leisdenatu-reza”(Hobbes,1983,ParteI,caps.XIVeXV).Éverdade queoautornuncadeixadelembrarocarátervoluntarista dasleiscivis,decretadaspeloSoberano,dadoqueasleis denaturezasãosubjetivamenteinterpretadasporsuapes- soa.MasHobbesfazquestãodedizerqueasleisdenatu-rezanãosãoidênticasaumavontadehumanacaprichosa evolúvel–sejaelaadeumhomemou“umaassembléia dehomens”–massão“certasconclusões,outeoremas”da razãoe,portanto,são“eternaseimutáveis”(Hobbes,1983, ParteI,cap.XV)5.
Mas o conhecimento dessas leis não é o produto de umarevelaçãomilagrosa.Trata-se,comoelediznoDecive
4.Seiquefalardeuma“teorianormativadoEstado”emHobbesécontroverso, masnãoestranhoaosestudiososdoautor.VerotrabalhodeE.Curley(1989-1990: 187ess.),paraumbalançodaquestão.
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(On the Citizen, na tradução inglesa), de um trabalho da razão,cujafaculdadeéverobemfuturo,enãoapenasdos sentidosexternos,quesóvêemobempresente(Hobbes, 1998,ParteI,cap.III:55).OSoberanoéguiado,assim,por princípiosquetranscendemdesejoseinteressespassageiros deseussúditos,edeseuspróprios,levandoemcontaacima detudoobempermanentedeles.Porisso,oSoberanonão temnenhumaobrigaçãodeatenderàquiloqueseussúditos reclamam,individualoucoletivamente,nesseounaquele momento,masapenasaoquesuapessoapúblicaconsiderar condizentecomaquelebem.
É esse enfoque que vai permitir Skinner aproximar a visãohobbesianadadeoutrosteóricosdasoberaniaabsoluta doséculoXVII,etratá-locomooautorquemaisconsistente-menteprocurouresolverosproblemasconceituaisqueesse tipodeteoriatrazàtona.“Ogovernocivil”,dizSkinner,“não podeservisto[noenfoquehobbesiano]comoigualaospode-resdoscidadãossobumaoutraroupagem.Eledeveservisto comoumaformadistintadepoder,porrazõesqueHobbes anunciacomcompletasegurançanoDecive[...]:‘Embora umgoverno’,eledeclara,‘sejaconstituídopeloscontratos dehomensparticularescomparticulares,odireito[desse governo]nãodependedaquelaobrigaçãoapenas’.Aocons-tituirtalgoverno,‘aqueledireitoquecadahomempossuía antesdeusarsuasfaculdadesparasuasprópriasvantagensé agoratotalmentetraduzidoemumcertohomemoucon-selhodehomensparaobenefíciocomum’.Segue-seque todopoderinstaladocomautoridadedeveserreconhe-cido‘comotendoseusprópriosdireitosepropriedades, detalmodoquenenhumcidadão,outodoselesjuntos’ podemagoraserconsideradosseuequivalente”(Skinner, 1989:118).
umaidéiaderepresentaçãocomo“autorização”,mastam-242
bémporqueosoberano-representantenãodeveserreduzi- donemàs“pessoasnaturais”dosocupantesdecargospúbli-cos(inclusiveadosupremomagistrado),nemaoconjunto deseuscidadãos.
Arepresentaçãocomodrama
Passemosagoraàmetáforadramática.Gostariadepensaro dramacomoarepresentaçãodeumasituaçãocrítica :ocon-flitosocial.Aocontráriodaperspectivadoretrato,nestao self dacomunidadepolíticadeveaparecercomoproblemá-tico.Istoé,nãosetratadeconstruirumsoberanonoqual oself “essencial”sedestaquedesuamanifestação“empíri-ca”,porqueessadistinçãojáimplicaodesatardasituação crítica.Trata-seantesdepensarapersonalidadepúblicada comunidadecomorepartidaemdoisoumaisselves ,coloca- dosnumapolarizaçãonãoresolvida.Essaformaderepre-sentaçãoéoqueodramapermiteexpressar.
Fritz(caps.IVeVIII),provavelmenteoestudomaiscomple-243
todotemaemPolíbio,aConstituiçãoMistaéumaespécie rudimentar,avantlalettre,dateoriadoschecksandbalancese, aomesmotempo,umateoriadoequilíbrioconstitucional entregruposouforçassociaisemcompetição.Voumeres-tringir,nestaseção,aesseúltimoaspecto,paradesenvolver umateoriadarepresentaçãoimplícitanele.
Noestudoaquemereferinoiníciodesteartigo(Arau-jo,2004),partodanoção,predominantenopensamento antigo,dequeosgrupossociaiscompetidoressão“ordens” ou“estamentos”(nosentidoweberiano):nobreseplebeus, aristocraciaepovoetc.Contudo,porconsiderarqueateo-riapoderiaterrelevânciaparaacompreensãodapolítica moderna,amplioanoçãodemodoaabarcarclassessocioe- conomicamentedefinidas:ricosepobres,grandesepeque- nosproprietários,proprietáriosenãoproprietáriosetc.Ten-doemcontaessapossibilidademaisampla,diferenciouma versão“aristocrática”eumaversão“plebéia”daConstitui- çãoMista.NatradiçãodaAntigüidadeclássica,praticamen-tenãoencontramosumadefesadaúltima,dadaarecepção positivadaidéiadeumahierarquiafixadestatusentreas ordenssociais,presenteemquasetodososautoresclássicos quechegaramaténós.Maspensoqueopensamentoclássi-comoderno,quandoglosouateoriadaConstituiçãoMista tradicional,abriu-seàidéiadeumaversãoplebéia,especial- menteapartirdeMaquiavel,queadesenvolveunaperspec-tivadadesejabilidadedoconflitosocialabertonointeriorda comunidadepolítica6.
Pensoqueaversãoaristocrática,emborapossaserapre-sentada na forma do drama, é menos “dramática” que a outra,desdequecolocaemcenadiferentesgrupossociais— ouseja,osdiferentesselves
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tica–naquelahierarquiafixadestatus.Naversãoplebéia, porém,adistinçãodestatusérejeitadaemproldeumideal deigualdadepolíticaque,aomesmotempo,écompatível comumcertotipodeestratificaçãosocial.(Aplicooutra vezomoteweberiano:igualdadepolíticacomoeliminação dadiferença“estamental”,masnãonecessariamenteade “classes”.)Issosugereasituaçãocrítica,maisconflitivaque aaristocrática,queodramaprecisarepresentar/expressar.
AConstituiçãoMistaplebéiaéumscript,umroteiroda representaçãoemsuaformamaisconflitiva,aserencenada naarenapública.Nessaarenadevemingressaratoresrivais, queencarnamdiferentespapéis.AprópriaConstituição, portanto,prevêoconflitoouasituaçãocrítica,eprescreve aosatoresrivaismaneirasdelidarcomela.Note-se,porém, para mergulharmos um pouco mais na metáfora, que o roteironãodeveserconfundidocomoprópriodrama,tra- tando-seantesdeumaindicaçãoparaacena,quenessesen-tidovalorizaodesempenhodosatores:
“Oteatro,mesmoquandorecorreàliteraturadramática comoseusubstratofundamental,nãopodeserreduzidoà literatura,vistoserumaartedeexpressãopeculiar[...]o espetáculo,comoobraespecífica,pormaisqueseressalte aimportânciadaliteraturanoteatroliterário,passaater valorcênico-estéticosomentequandoapalavrafuncionano espaço,visualmente,atravésdojogodosatores[...]Oator, portanto,nãoégarçom.Participadopreparodoprato.A melhorprovadissoéofatodequequatrograndesatores, mesmointerpretandolealmenteotexto,criamquatro personagensprofundamentediversasaorepresentaremo mesmoHamletliterário”(Rosenfeld,1993:27-28e33).
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violência,masdadissoluçãodacomunidadepolítica.Note-sequeateatralizaçãopolíticaoperacomumfimdistinto, porexemplo,doteatrotrágico,cujodesfechotradicionalé oderramamentodesangue,formaestéticaderesoluçãoda hybris ,o“excesso”.Naarenapolítica,aocontrário,encena- seamoderação,porquecomelasepretendesuperar,“subli-mando”,aquiloqueameaçariaacomunidadetodavezque nãohouvesseaencenaçãopública(epolítica)doconflito: o“derramamentodesangue”.
Podemosanalisaradiferençaentreasversõesaristocrá- ticaeplebéiadeConstituiçãoMistapelosdiferentesdesfe-chosquesugeremparaseus“roteiros”.Noprimeirocaso, idealiza-seaharmoniaentreosgruposdestatusatravésde umdesfechocompletoouperfeitododrama:umdesfecho “catártico”,emquetodaaviolênciapotencialéabsorvida nos limites da encenação realizada na arena pública. A cenadoscidadãosrivaisdeumamesma comunidadepolí-tica–chamemo-ladecenacivil–sebasta,eissoporque,ao fimeaocabo,cadaatorsabeexatamenteasuaposição,seu status.Oconflitosurgeapenasquandoumououtrotenta ultrapassaresselimite,quenoroteiroaparececomoavir-tualidadedeumdesequilíbrio,oqualsópodeserresolvido seoequilíbrioforrestabelecido;como?namedidaemque cadaatorreencontresuaposição“natural”nahierarquia dosgrupossociais.
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agudo.Nãoporacaso,autoresqueconsideropioneirosna elaboraçãodateoriadaConstituiçãoMistaplebéia,como Maquiavel,foramlevadosapensaracenacivil ,quenaCons-tituiçãoaristocráticasebasta,comonãosuficienteparatal absorção,exatamenteporqueosgrupossociaisemconflito nãoseconformariamcomasituaçãoatual emqueseencon-trassem.Emoutraspalavras:asituaçãocrítica,oconflito,é geradoporesseinconformismo,eacenacivilsóemparte oresolveria.Daíapossibilidadedeumaoutracenaquea suplementasse,canalizandoaquiloquepermanecesseem excessonaprimeira:acenamilitar,o“teatrodeguerra”.
Evidentemente,paraqueoroteirocomoumtodo“fun- cionasse”,seriaprecisoqueacenacivileacenamilitaresti- vessemperfeitamenteseparadas,detalmodoquenãopudes-semseapresentarnelasosmesmosatores.Nacenacivil,são grupossociaisque,dointeriordacomunidadepolítica,se deixamrepresentarporatoresdesarmados,osquaisbuscam deliberadamentesoluçõespacíficasparasuasdiferenças.Já na cena militar não são grupos sociais, mas comunidades políticasinteirasquesedeixamrepresentaremsuarivalidade irredutível.Éaquiqueaprópriaviolênciaéencenada.Nãose trata,porém,dequalquerviolência,masde violênciaorganiza-da.Sefalodeguerracomoum“teatro”,éporquenatradição dopensamentopolíticoaguerracaracterizaumasituação crítica,conflitiva,entrecomunidadespolíticas,aqualtambém admiteumroteiro.Sóque,nessecaso,oobjetivodoroteiro militaréasupremacia(ou“vitória”)deumdoscontendores, enquantoodoroteirociviléoconvíviodoscontendores.
seusrespectivospapéisconstitucionais.Umapartefunda-247
mentaldoroteiroésimplesmenteignorada,semqueaspar- tesconflitantesreconheçamumasàsoutrascomodiferen-tescomunidadespolíticas.Esemessereconhecimentonão épossívelsequerqueacenamilitarsejaencenada.(Estou sugerindo,portanto,quearepresentaçãodacenamilitar depende do sucesso da encenação do “roteiro civil”.) A guerracivilnãopodeserumaexpressãodasituaçãocríti-caidealizadapelaConstituiçãoMistaplebéia;trata-semais propriamentedeumasituaçãodelimbopolítico,naquala capacidademesmaderepresentarésuspensa7.
Deixoparaumaoutraocasiãoadiscussãodosproble- masrelacionadosàcenamilitareàfacepropriamenteinter- nacionaldaConstituiçãoMistaplebéia,emespecialasobje- çõesnormativasquepoderíamosfazeràsoluçãomaquia-velianadetorná-laumaválvuladeescapeparaoexcedente deviolênciadoméstico.Voumeconcentraraquiapenasno ambienteinterno,civil,eesmiuçarumpoucomaisoque implicariaacapacidadederepresentarnumaConstituição Mistaplebéia.Queroressaltarosseguintesaspectos.Jáfoi indicadoqueorepresentanteésempreparteenãotodo.A síntesecomunitáriaéumaquestãoemaberto,queoscript constitucionalnãopodedeterminar.Nãocabeestabelecer nemquesedescubraumNós dacomunidadepolítica,dispo-nível,aindaqueemgerme,aumaapropriaçãopelaatividade representativa,nemqueseoconstruaatravésdessamesma atividade—comoéocasonafiguradosoberano-represen- tante.Nemessencialismo,nemnominalismo,portanto.Solu-çõesprovisóriassãodeixadasaodesempenhodosatores.O
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importanteéqueanenhumatorestáprevistaacapacidadede consumarasíntese.Osatoresnãocompetemoulutamentre siporcontadesseobjetivo.Elesofazemporqueexpressam pólosdistintos,geralmenteantagônicos,doespaçosocial,e esforçam-seporelaborá-losnaarenapública.
Naverdade,háumaduplaaberturaaqueodesempe- nhodosatorestemdeestardisponível.Porumlado,écla- ro,aaberturaparaorepresentado,oimpulsionadordaati-vidaderepresentativa.Poroutro,enãomenosimportante, aaberturaparaoatoradversário.Dealgumaforma,essas duastêmdesecombinarouseajustarmutuamentepara queodesempenhosejabemsucedido.Oenfrentamento dessedesafio,porém,parecemaisplausívelsedeixarmosde ladoaidéiadequeorepresentantesimplesmentesubstitui orepresentadonaarenapública,oucoloca-seemseulugar ouageemseunome.Melhorseriapensá-locomoaexpressão deumpólosocialquepretenderepresentar.Usootermo expressãopararesgatarjustamenteametáforaartística,eque étãobemcompreendidoporCharlesTayloremseuestudo sobreaconcepçãodelinguagemdeHerder:
“Sealínguaserveparaexprimirumnovotipode
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Assim, transportando a elaboração acima para nos-soassunto,podemosdizerqueorepresentantecompletao representado,emvezdemeramentesubstituí-lo.Afigura dorepresentanteéresultadodeumacarênciapolíticado representado,dequeoprimeiroprocuradarconta.Dire-mos,então,paravoltaraoproblemadarepresentaçãona ConstituiçãoMista,assim:orepresentadoéafacesocialdo institutodarepresentação,enquantoorepresentante/atoré suafacepolítica,suaexpressãoatravésdeumaformaque buscatransformarapercepçãosocialdoconflito.Umanãoé nemdeveseroespelhodaoutra,esimsuasfacescomplemen-tares,aomesmotempoemcomunicaçãoetensãorecíprocas. Quehajacomunicaçãoéevidente.Masdeondeatensão? Eladerivadofatodequeoator/representanteemcenaestará empermanenteinterlocuçãocomosdemaisatores/represen-tantes.Sustentando,cadaqualaseumodo,oconflitosocial, elesterãodefazerdaengenhosidadedeseudesempenhoum fatorcrucialparamanteraqueleconflitoemseunívelcivil. Pode-sedizer,apropósito,queavirtude“soberana”dodesem-penhonaarenapúblicaédefatoacivilidade.8Hádeverespara comorepresentado,mastambémparacomosdemaisatores, eambosnemsempresãocoincidentes.Daíatensão9.
8.“Theidealofcitizenshipimposesamoral,notalegal,duty–thedutyofcivility –tobeabletoexplaintooneanother[...]howtheprinciplesandpoliciesthey advocateandvoteforcanbesupportedbythepoliticalvaluesofpublicreason. Thisdutyalsoinvolvesawillingnesstolistentoothersandafairmindednessin decidingwhenaccomodationstotheirviewsshouldreasonablybemade”(Rawls, 1996:217).
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Duassoberaniaseacríticadarepresentação
Comoindicadonoiníciodesteartigo,asmetáforasdoretra-toedodramaremetemaduasmaneirasdistintasdepensar asoberania.
Nametáforadoretrato,osoberano-representanteéuma construçãoqueresultadeumaatividadedeintrospecçãoe síntese:apinturadoretratoéumasondagem,umaativida-dedediscernimentonadireçãodoselfdorepresentado,que oretratobuscacongelaresintetizarnumaforma.OEstado soberanoésuamanifestaçãopolítica.Porisso,gostariade chamaressetipodesoberaniadeintrínseca.Naperspectivado soberano-representantehobbesiano,acomunidadepolítica temdesedeixarabsorvercompletamentepeloEstadopara queestepossa,reapresentando-a,transcenderqualquercisão internapelahipóstasedeumacomunidadepolíticahomoge-neizada,o“Povo”–porissomesmocompostaporindivíduos, enãogrupossociais,“estamentos”,“classes”ouoquefor.
Na metáfora do drama, contudo, coloca-se a rejeição mesmadoidealdesíntesequeoretratopropõe.Temosnela aexpressãodeummovimentoperpétuoqueimpossibilitaa identificaçãoeocongelamentodeumselfdacomunidade política.Aconstituiçãomistaplebéiaéumaordemnaqual duasoumais“semicomunidades”,naverdadegrupossociais emdisputa,buscamsustentarumamesmacomunidadepolí-tica–comunidadesocialmente cindida,portanto,semcondi-çõesdecriarparasiumúnicoeinequívocolocusdecisório.
Issoquerdizerqueaconstituiçãomistaplebéiarenuncia aqualquernoçãodesoberania?Demodoalgum.Ocorreque anoçãosóemergequandomergulhamosessaordempolítica noambienteda“sociedadedasnações”.Asoberaniapermane-ce,portanto,conceitualmente dependentedessecontextoexter-no,emquesesupõequehajaentreascomunidadespolíticas10
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umarivalidadeque,nolimite,sejaresolvidano“teatrodeguer-ra”.Asoberania,nessesentido,éextrínseca.Semahipóstase deumentehomogeneizado,o“Povo”,deondeextrairum idealdebemcomum,aconstituiçãomistaplebéiaapresen-taseuselementosinternosnãosócomoantagônicos,mas empédeigualdade.Parafinsdedecisãocomum,seusinte-ressesesuaspretensõespolítico-moraisapresentam-secom pesoigual,emborarivais.Eissoinviabilizatambémachan-cedeextrairsuaidentidadedeumanoçãodebemcomum baseada na preferência aristocrática: se o ordenamento constitucionalnãopossuiumvértice,igualmentenãodis-põedeuma“escala”deexcelênciaqueoleveapriorizarum conjuntodevaloresemdetrimentodeoutros.Deumsiste- madecorposquegiramemtornounsdosoutros,atraindo- se,mastambémrepelindo-se,omáximoquesepodeespe-raremseuambienteinternoéqueapolíticacivilfaçasurgir uma“clareira”comumentreosgruposantagônicos–uma cenapúblicanaqualpossamintermitentementerepactuaros termosduradourosdesuaconvivênciasocialepolítica.Mas essaclareiranãoaparecedonada,esópodeemergirda suposiçãodeumambienteexternoque,comparativamente, esmaecearivalidadeinternaelheprojeta,apartirdefora, suaidentidade.
instânciadecisória,contraaqualnãohárecursonemcon-252
trole.Masaidéiadeumsoberanonormativamentelimitado oucontrarrestadoporoutrospoderes,comobemsublinha Hobbes(1983,cap.XXIX:194-195),écontraditóriacom esseconceito.Assim,sobosauspíciosdasoberaniaintrínse- ca,adoutrinadadivisãodospoderesacabatendodeapon-tarainstânciadeúltimorecursoquecumpraopapeldo soberano,casoospoderesnãoconvirjamparaummesmo ponto.Porém,oespíritodaseparaçãodospoderesépreci-samentedeixaressaquestãoemaberto.
Dessaperspectiva,oproblemado controledarepresenta-ção esbarraemdificuldadestalvezaindamaiores.Deixan-dodeladooimpassedaregressãoinfinitaqueaidéiada relaçãocontrolador/controladonoscoloca(quemcontrola ocontrolador?),vamosassumirumavariantedemocrático-representativadasoberaniaestatal.Nessa,eleitores-cidadãos (evidentemente,teriadeserumavastamaioriadapopula-çãoadultadeumacomunidade)escolhemrepresentantes paraumParlamento.Pelaóticadeumateoriahobbesiana “democratizada”,afunçãodaeleiçãoseriaautorizarocor-polegislativoaagirefalaremnomedoscidadãosqueo elegerem.Comoaautorizaçãoéfeitaaosrepresentantesdo Parlamento,sededoPoderLegislativo,estedeveassumiro papeldeSoberano.Arigor,adaptarumateoriadademo-craciarepresentativaàconcepçãooriginaldeHobbesda soberanianãoéumatarefafácil11.Comoaidéiadecumeé fundamentalnavisãohobbesiana,pareceque,numademo-craciarepresentativa,osoberanooscilaentreocorpodos eleitores(nosbrevesmomentosdaseleiçõesperiódicas)e ocorpolegislativo.Emparte,leioaconhecidacríticade Rousseauàrepresentaçãoparlamentarnessachave.
Rousseauécríticodarepresentaçãoparlamentarpor-quevênelaumausurpaçãodasoberaniadoPovo.Defato,
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seocorpodecidadãostemsuaprópriaidentidadeesabeo quequer,comoeporquehaveriadetransferiressequerer? Emprimeirolugar,seosoberanosedefineporumavonta-de,essanãopodeseralienadasemaomesmotempoperder suaintegridade,desdequeavontadenãoédissociáveldo sujeitoqueatem:“Opoderpodetransmitir-se;não,porém, avontade”(Rousseau,1978,LivroII,cap.1:44).Nessepon- to,acríticadeRousseauéumaimplicaçãopossíveldaspró- priasnoçõesdevontadeecumepresentesnoconceitohob-besianodesoberania.Porém,esseéoaspectopuramente analítico ou lógico de sua objeção ao Parlamento como corposoberano,istoé,comoPoderLegislativo.Mashátam-bém,emsegundolugar,acríticadecarátermaissubstantivo ehistórico,complementoindispensáveldaoutra.
Rousseauvênarepresentaçãoparlamentarumaespe- cializaçãoinaceitávelnointeriordacidadania.Essaespecia-lizaçãoéoresultadodeumaevoluçãomodernacujaorigem éogovernofeudal,inventordainstituiçãodoParlamento, aoqualsãocontrastadasas“antigasrepúblicas”,quenãoa conheciam.Aevoluçãomodernaadvémdocrescentepapel dodinheiroparaviabilizaressaestruturaderepresentação, viaimpostos.Osdeputadossãoentãovistoscomo“repre-sentantes”numsentidonegativo,porseespecializaremem tomardecisõescruciais(legislativasinclusive)emlugardos cidadãos-eleitoresque,afimdesedesvincilharemdeseus deveresmaiorescomocidadãos,pagamparaqueoutrosos cumpramemseunome:
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depagarparaseisentaremdeseusdeveres,pagarãopara cumpri-losporsimesmos”(Rousseau,1978,LivroIII,cap. XV:106-107)
Exatamenteporqueaintromissãododinheirocorrom-peadisposiçãodocidadãoparaserviracomunidade,algo análogoauma“corvéia”seriaamelhorfórmulaparaoexer-cíciodosdeverescívicos:“Distancio-mebastantedasidéias comuns,poisconsideroascorvéiasmenoscontráriasàliber-dadedoqueosimpostos”(id.ibid.).Curiosamente,porém,a passagemacimatambémregistraumalinhadecontinuidade entreo“governofeudal”,denunciadoporimporasubservi-ênciaàsrelaçõesentregovernantesegovernadosatravésda vassalagem,eoquepoderíamoschamarde“ordemburgue-sa”,denunciadaporsutilmenteinduzirasubserviênciapela mediaçãoimprópriadodinheironoserviçopúblico.
obscurasprisões;osatoresnãoprecisavamfazerosespecta-255
dorespagarem,nemcontarcomorabodoolhoaspessoas queviampassarpelaporta,parateremcertezadojantar” (Rousseau,1993:91).
Quantoàrepresentaçãopolítica,éverdadequeopen-samentodeRousseausemostrabemmaisflexíveldiante desituaçõesconcretas,comopercebemosemsuas Consi-deraçõessobreogovernodaPolôniaesuareformaprojetada.Lá, comolembramoscomentadores,nãosemumacertaper-plexidade,Rousseauadmitea“deputação”,queconsidera inconveniente,masinevitávelemgrandesEstados.Dessa vez,contudo,ainconveniênciaaqueoautorquerseater nãoédeordemteórica–porexemplo,oargumentoda (im)possibilidadedarepresentaçãodavontadegeral–mas deordemprática:“OLegisladoremcorpo[oconjuntodos cidadãosreunidos]éimpossíveldecorromper,masfácilde enganar.SeusRepresentantessãodificilmenteenganados, masfacilmentecorrompidoseocorreraramentequenão osejam.TendessobosolhosoexemplodoParlamentoda Inglaterra[...]”(Rousseau,1982:48).Comosevê,oautor nuncaperdedevistaessemodelohistóricodarepresenta-çãoparlamentar,aInglaterra.Assim,quandoadmiteuma câmaradedeputados,ofazalertandoparaosperigosde suaanglicização–emparticular,atransformaçãodosrepre-sentantesempolíticosprofissionais.Eisporquerecomenda severamenteaseusamigospoloneses,aoreformaraDieta (o“parlamento”polonês),quetratemdemudar“freqüen-tementeosrepresentantes”,paratornar“suaseduçãomais custosaemaisdifícil”;quefaçamosrepresentantes“segui- remexatamentesuasinstruçõeseprestaremcontasrigo-rosamenteaseusconstituintesdesuacondutanaDieta”e assimpordiante.
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daquelaemqueaLeireinarásobreoscoraçõesdoscida-dãos.Enquantoaforçalegislativanãoforatélá,asleisserão sempreeludidas.Mascomochegaraoscorações?”(Rous-seau, 1982: 25). Ao se perguntar sobre meios, Rousseau lembra,então,comonacartaaD’Alembert,daimportân-ciadosespetáculoscívicos,fundamentaispara“comoveros coraçõesefazeramaraspátriaseasleis”:“Ousariaeudizê-lo?Pormeiodejogosdecrianças;pormeiodeinstituições ociosasaosolhosdoshomenssuperficiais,masqueformam hábitosqueridoseafeiçõesinvencíveis”.Outravez,oexem-ploquetememvistasãoosespetáculosdosantigos,que imediatamentecomparaaoteatromoderno:“Sãoaspoesias deHomerorecitadasaosgregossolenementereunidos,não emcofres,sobrepranchasdopalcoecomodinheirona mão,masaoarlivreeemcorpodenação,sãoastragédias deÉsquilo,deSófoclesedeEurípides,representadasfre-qüentementediantedeles[...]”.
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vida política e sua conseqüente opacidade dêem o tom. Essaé,penso,umacríticaquedeveriacalarmuitomaisfun-do,considerando-seaspráticascontemporâneas,doquea objeção puramente teórica à democracia representativa. Maseladeveriaatingirtambémomodoalternativocom queprojeteiaboaordempolítica,istoé,aConstituição Mistaplebéia?
Cabeobservar,departida,quenessaalternativaopro-blemadolocusdecisório,quedesorientaaperspectivada soberaniaintrínsecaemvistadadualidadecorpodecida- dãos(eleitores)/corpoderepresentantes,nãoseapresen-tanumateoriadarepresentaçãosustentadanasoberania extrínseca.AConstituiçãoMistanãotemnadaaobjetar,ao contrário,sóaestimularquehajadiferentescentrosdeci-sórios,cadaqualpodendoreivindicardivergentementea representaçãodoPovo,desdequeestenãosejapensado comoumentehomogêneoaptoaprovidenciarumself ine-quívocoàrepresentação.Alémdisso,desdequenãoépapel nemdeverdaestruturaderepresentantesmimetizaroself dacomunidade,adualidadeentreoscidadãos-eleitorese seusrepresentantes,mesmoatensãonesserelacionamento, comojáassinalado,nãodeveaparecercomoumobstáculo àboaordempolítica.
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dramatizaroatritosocial.Nojulgamentododesempenho dosrepresentantes,éclaroquesedeveconsideraracapa-cidadedelesdelevaràcenapúblicaasqueixassociaisdos diferentesestratos/grupos/classesdacomunidadeeentão tensionarasinstituiçõespolíticaseseusprocessosdecisó-rios.Porém,ojulgamentotemdeatentarigualmentepara a capacidade da representação de reelaborar as queixas, torná-lasmaisreflexivas,dando-lhesaformaadequadapara obterumarecepçãopositivanacenapública.Aavaliaçãoa serfeitanessepontoémuitocomplexa,porqueosatores políticossempredeverãoprocurarumdelicadoequilíbrio entreapreservaçãodesuainterfacesocialeamanutenção dacenapúblicanaqualencontramseusadversáriospolíti- cos.Osrepresentantesbuscam,assim,umaduplacumpli-cidade:comseusrepresentados,semdúvida,mastambém comseusprópriosadversáriosnacenapública.Controlar arepresentação,portanto,implicafazerobalançodetoda essatrama.
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dequeacenapúblicasefecheemsimesma,transforman-do-senumaespéciede“cofre”ou“prisão”,impermeávelao conjuntodosespectadoreseseusconflitossociais;ou,pior ainda,permeávelapenasaosespectadoresdispostosapagar opreçoasercobradonaentrada.Porcerto,esseéumdos maioresdesafioscolocadosàrepresentaçãopolítica,agora enofuturo.
CiceroAraujo
éprofessordoDepartamentodeCiênciaPolíticadaUSP, editordeLuaNovaepesquisadordoCNPq.
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REPRESENTAÇÃO,RETRATOEDRAMA CICEROARAUJO
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própriosimpactosarespeitodoqueesperardaspráticasde representaçãodasautoridadespolíticas.
Palavras-chave: Retratoedrama;Representação;Estadosobe-rano;ConstituiçãoMista.
REPRESENTATION,PORTRAITANDDRAMA
The article elaborates on two artistic metaphors to search for contrasting modes of thinking on political representation. The metaphorssuggesttwoverydistinctiveidealsofthegoodpolitical order–despiteacertaintrendofthetraditionalpoliticallexiconto mixthemup–andmaketheirownimpactsonwhattoexpectfrom theauthorities’practicesofrepresentation.