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A ditadura brasileira sob o olhar juvenil: uma análise dos filmes Nunca fomos tão felizes e O ano em que meus pais saíram de férias

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Academic year: 2017

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FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS

CENTRO DE PESQUISA E DOCUMENTAÇÃO DE HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA DO BRASIL – CPDOC

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA, POLÍTICA E BENS CULTURAIS

MESTRADO ACADÊMICO EM HISTÓRIA, POLÍTICA E BENS CULTURAIS

A DITADURA BRASILEIRA SOB O OLHAR JUVENIL: UMA ANÁLISE DOS FILMES NUNCA FOMOS TÃO FELIZES E O ANO EM QUE MEUS PAIS SAÍRAM DE

FÉRIAS

APRESENTADA POR ROBERTA LEMOS DE SOUZA

PROFESSOR ORIENTADOR ACADÊMICO MÔNICA KORNIS

(2)

FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS

CENTRO DE PESQUISA E DOCUMENTAÇÃO DE HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA DO BRASIL – CPDOC

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA, POLÍTICA E BENS CULTURAIS

MESTRADO ACADÊMICO EM HISTÓRIA, POLÍTICA E BENS CULTURAIS

PROFESSOR ORIENTADOR ACADÊMICO MÔNICA KORNIS

ROBERTA LEMOS DE SOUZA

A DITADURA BRASILEIRA SOB O OLHAR JUVENIL: UMA ANÁLISE DOS FILMES NUNCA FOMOS TÃO FELIZES E O ANO EM QUE MEUS PAIS SAÍRAM DE

FÉRIAS

Dissertação de Mestrado Acadêmico em História, Política e Bens Culturais apresentada ao Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do

Brasil – CPDOC como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em História

.

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Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Mario Henrique Simonsen/FGV

Souza, Roberta Lemos de

A ditadura brasileira sob o olhar juvenil: uma análise dos filmes Nunca fomos tão felizes e O ano em que meus pais saíram de férias / Roberta Lemos de Souza. – 2016.

126 f.

Dissertação (mestrado) – Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil, Programa de Pós-Graduação em História, Política e Bens Culturais.

Orientadora: Mônica Almeida Kornis. Inclui bibliografia.

1. Ditadura. 2. Filmes históricos. 3. Cinema e história. I. Kornis, Mônica Almeida. II. Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil. Programa de Pós-Graduação em História, Política e Bens Culturais.

III.Título.

(4)
(5)

Agradecimentos

Agradeço, em primeiro lugar, ao Centro de Documentação em História

Contemporânea da Fundação Getúlio Vargas, pela oportunidade de estudar na

instituição e pela bolsa concedida, que muito facilitou meus estudos.

À minha orientadora, Mônica Kornis, que, mais do que ninguém, faz jus à

função de orientar brilhantemente, conduzindo-me ao melhor trabalho que pude

fazer.

Aos professores Tunico Amâncio e Angela Moreira, pelas contribuições

valiosas na qualificação, que me auxiliaram na continuidade da dissertação.

À professora Luciana Heymann, uma das mais geniais docentes com quem

pude conviver durante o período do Mestrado e uma pessoa maravilhosa, sempre

disposta a ajudar.

À Camila De’Carli, amiga e revisora para todas as horas, Lívia Magalhães,

que prometeu ler a dissertação e, embora não tenha lido, auxiliou com dicas

valiosas uma mente “empacada” no final do prazo.

Aos amigos Gisella, Alexandre e Beatriz, que me auxiliaram nos

“bastidores” para que eu pudesse ir às reuniões com minha orientadora.

Ao João Daniel, que leu o incipiente projeto sem saber que era meu, e

contribuiu de maneira importante para a aprovação do mesmo no processo seletivo.

À parceira de compras (de livros!) Joana e às companhias de almoços

agradáveis Ana e Priscila.

Ao meu afilhado David, exemplo de superação de desafios, ainda que tão

pequeno.

Ao meu pai, Roberto, que embora preferisse que eu seguisse o Direito, me

apoiou na decisão acertada – penso eu – pela História.

À minha avó, Rachel, que mesmo sem condições de entender exatamente a

importância dessa conquista, ficará feliz – como sempre - com o meu sorriso.

À minha cunhada, Daniele, pela rápida e eficiente tradução do resumo dessa

(6)

Aos meus sogros, Jailto e Vania, que muito auxiliaram para que eu tivesse

um pouco mais de tempo nessa difícil empreitada de conciliar família, trabalho e

estudos.

Ao meu marido, Daniel, companheiro de casa, trabalho, estudos, interesses,

que sempre acreditou na minha capacidade quando nem eu tinha confiança que

seria possível chegar até aqui.

Por fim, ao meu filhote João Vicente, que ao invés de se tornar um

empecilho, como muitos imaginavam, virou o meu maior incentivo para concluir

(7)

Resumo

O presente trabalho tem como objetivo promover uma análise dos filmes

Nunca fomos tão felizes (Murilo Salles, 1984) e O ano em que meus pais saíram de férias (Cao Hamburguer, 2006), que apresentam um ponto de vista juvenil acerca do contexto da ditadura civil-militar no Brasil (1964-1985). Pretendemos

compreender de que forma os dois filmes constroem suas memórias a respeito do

período ditatorial, levando em consideração o momento em que cada obra foi

realizada e a construção narrativa de ambas.

Palavras-chave: ditadura civil-militar, memória, cinema e história.

(8)

Abstract

The purpose of this study is to analyze two films – We’ve Never Been So

Happy (Murilo Salles, 1984) and The Year My Parents Went on Vacation (Cao

Hamburger, 2006) – that reveal a youthful perspective on the military dictatorship

in Brazil (1964-1985). The major objective of this study is to investigate in which

ways both films help build memories, by analyzing their narratives as well as the

historical context in which they were produced.

(9)

Sumário

Lista de imagens 11

Introdução 12

Capítulo I: Nunca fomos tão felizes: uma relação fragmentada entre pai e filho e a

ditadura em fragmentos 29

1 – Tempos de abertura política durante a ditadura militar 29

2 – A trajetória de Murilo Salles e a narrativa de Nunca fomos tão felizes 32

3 - A ditadura no filme: fragmentos da narrativa como recursos de autenticação do

passado 48

4 - A conturbada relação pai e filho: alienação X militância 55

5 – Um exercício de metalinguagem com Os inconfidentes 58

Capítulo II: O ano em que meus pais saíram de férias: o lugar do futebol e das relações de amizade na construção de uma memória da ditadura 63

1 – A produção cinematográfica brasileira durante os anos 1990 e 2000: contexto

democrático e novos rumos da memória da ditadura 63

2 – Cao Hamburger: uma carreira entre a TV e o cinema 68

3 – A estrutura narrativa de O ano em que meus pais saíram de férias 71

(10)

5 – A representação da comunidade judaica como proteção às inseguranças

da ditadura 90

6 – Uma infância possível nos “anos de chumbo” 95

Capítulo III: Nunca fomos tão felizes e O ano em que meus pais saíram de férias:

a construção de distintas memórias sobre a ditadura civil-militar brasileira 99

1 – Os diretores Murilo Salles e Cao Hamburger 99

2 – Os protagonistas dos filmes 102

3 – Som e figurino 105

4 – A ambientação 107

5 - O isolamento de Gabriel e as amizades de Mauro 112

6 – A repercussão dos filmes na mídia 115

Considerações finais 120

(11)

Lista de imagens

1 – Gabriel e o pai, deixando para trás o carro incendiado.

2 – Gabriel no apartamento de Copacabana, acompanhado pela guitarra

3 – Gabriel e o pai conversam na varanda do apartamento

4 – O pai de Gabriel adormecido em cima do jornal, ao lado da arma

5 – Capa do filme em DVD

6 – Mauro abraça Shlomo após o vizinho voltar da “conversa” com os policiais

7 – O abraço apertado da mãe em Mauro, no reencontro dos dois

8 – Close no protagonista de Nunca fomos tão felizes, Gabriel

9 – Close no protagonista de O ano em que meus pais saíram de férias, Mauro

10 – Gabriel no cenário bucólico do internato

11 – Gabriel na praia de Copacabana

12 – Mauro olhando a cidade de São Paulo pela janela do carro

13 – Mauro em frente ao prédio do avô

14 – Gabriel e o vendedor de cachorro quente na praia

(12)

Introdução

Desde o surgimento do cinema, em fins do século XIX, a preocupação em

representar personalidades e fatos históricos já se mostrava presente. Apresentados

sobretudo em feiras e eventos populares, os primeiros filmes rapidamente deixaram

de ser apenas registros de natureza documental (operários saindo da fábrica, trens

chegando na estação, desfiles militares, etc.) para se tornarem, a partir da década de

1910, “pequenas ficções, que possuíam uma estrutura narrativa mínima”.1

No Brasil, o cinema voltado para a representação histórica iniciou-se nos

primeiros anos do século XX, ainda no período do cinema silencioso, datando de

1909 a primeira realização nacional conhecida desse gênero, Dona Inês de Castro. Escrita e dirigida por Eduardo Leite, a película baseava-se na obra homônima de

Julio de Castilho, e conta a trágica história de amor de Inês e Pedro, futuro rei de

Portugal no século XIV. Segundo José Inácio de Melo e Souza2, a obra se insere em

um contexto de elitização do cinema no Brasil, a partir do processo de urbanização

e modernização do país – em especial da capital fluminense, local de estreia da

maior parte dos filmes na época – e reflete o projeto segregacionista da burguesia

nacional, que buscava afastar negros e pobres das salas de cinema, bem como dos

centros urbanos.

Apesar das discussões acerca do que pode ser considerado como filme

histórico - gênero em geral caracterizado por ser localizado temporalmente no

passado, buscando reconstituir um episódio ou a biografia de um personagem

histórico real – concordamos com Bernadet e Ramos, segundo os quais:

comumente a expressão ‘filme histórico’ é empregada com o sentido de filme cuja temática volta-se para os fatos históricos consagrados nos manuais escolares. Isto, entretanto, não significa que não possam existir

1 COSTA, Flavia Cesarino. O primeiro cinema. Espetáculo, narração, domesticação. Rio de Janeiro,

Azougue Editorial. 2005. Pg. 31.  

2 SOUZA, J. I. de M. Imagens do Passado. São Paulo e Rio de Janeiro nos Primórdios do Cinema.

(13)

outros filmes históricos. (...) Terra em Transe é histórico porque se coaduna com a noção de História Imediata desenvolvida por Jean Lacouture (L’histoire immédiate).3

A expressão “história imediata” teve origem a partir do artigo homônimo de

Jean Lacouture, publicado em 1978 na coletânea coordenada por Jacques Le Goff,

La Nouvelle Histoire. Seu eixo central é associar a prática do historiador à do jornalista, uma vez que ambos investigariam – cada um a sua maneira e com seus

métodos próprios – um período histórico inacabado, do qual eles mesmos fazem

parte. Isto é, historiadores e jornalistas convergeriam ao trabalhar com o mesmo

objeto. Partindo dessa concepção, os filmes históricos não precisam,

necessariamente, tratar de um passado remoto.

Se a produção cinematográfica baseada em acontecimentos históricos

remonta ao início do cinema, os estudos voltados para análise cinema-história4

tampouco são exatamente “inovadores”. A discussão sobre a presença da história

no cinema já se fazia presente desde os primeiros registros, pois segundo Mônica

Kornis, “estudos sobre a relação entre cinema e história (...) nasceram com o

próprio cinema, no final do século XIX.”5 Por exemplo, ainda em 1898, o câmera

polonês Boleslas Matuszewki mencionava a importância do filme como documento

histórico. Para ele, o filme seria uma mostra fiel da realidade e, por isso,

Matuszewki preocupava-se com a preservação dos registros cinematográficos para

3 BERNARDET, Jean-Claude e RAMOS, Alcides Freire. Cinema e história do Brasil. 3a edição. São

Paulo: Contexto, 1994 – Coleção Repensando a História. Pg. 62.

4 “A cunhagem do binômio cinema-história buscou traduzir a importância que essa relação adquiriu

ao longo do século XX, mas é muito breve para dar conta dos problemas teóricos e epistemológicos que a relação impõe. (...) Nunca nenhum elemento ou agente histórico foi tão importante a ponto de ter a sua designação associada à palavra História.” In: BARROS, José D’Assunção e NÓVOA, Jorge. Cinema e História: teoria e representações sociais no cinema. 2a edição. Rio de Janeiro: Apicuri, 2008.Pg. 24.

5 KORNIS, Mônica Almeida. Cinema, televisão e história. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008. Pg

(14)

o futuro, considerando que seriam uma prova irrefutável e fidedigna do que

aconteceu no passado.

Nos anos 1940, o livro De Caligari a Hitler: uma história psicológica do cinema,6do pesquisador alemão Siegfried Kracauer, é mencionado como um dos primeiros estudos teóricos a pensar o cinema sob uma perspectiva minimamente

histórica, embora, a essa época, ainda fosse predominante a tendência positivista na

historiografia, o que limitava as fontes relevantes, basicamente, aos documentos

escritos. Nessa perspectiva, o cinema é entendido como uma forma de esmiuçar

episódios mais próximos de nossa realidade histórica, como auxílio para a

compreensão do passado.

Durante muito tempo, “o reconhecimento do valor documental do cinema

entre os historiadores se ateve (...) à identificação da imagem por ele produzida com

a verdade obtida pelo registro da câmera”7, entretanto, a partir dos anos 1960 a

chamada Nova História8 deu, não apenas ao cinema, mas a várias outras fontes

consideradas “secundárias”, um papel protagonista no que tange à ideia de

“documento histórico”; estas passavam a ser então “fontes preciosas para a

compreensão dos comportamentos, das visões de mundo, dos valores e das

ideologias de uma sociedade ou de uma dada época.”9

Assim como os fatos históricos não podem ser abordados de maneira

isolada, também no cinema as imagens só se permitem analisar validamente

6

Na obra citada, Kracauer caracteriza o alinhamento ideológico da crescente indústria cinematográfica às orientações internas da política totalitária alemã, o que acabaria levando à produção de filmes da propaganda nazista.

 

7

KORNIS, Mônica Almeida. Op. cit. Pg. 20.  

8 A Nova História, vertente criada em fins dos anos 1960 e início dos anos 1970, na França,

corresponde à terceira geração da Escola dos Annales, marcada pelo trabalho de expoentes como Jacques Le Goff e Pierre Nora, baseado na análise histórica de fenômenos culturais a partir do estudo em conjunto com a Antropologia, as Ciências Sociais, etc.

 

(15)

enquanto resultantes de um processo de criação, inseridas em seu determinado

contexto, e a partir de investigações acerca de seus discursos e construções.

É fundamental também percebermos o cinema não apenas como uma fonte

de produção e reprodução de significações históricas, ou tão somente uma “janela

para o passado”, mas ainda como um objeto de interesse em si mesmo, pensado no

âmbito da história social. Ao discutir a materialidade do filme e a arte

cinematográfica enquanto campo social historicamente construído, lidando com

problemáticas políticas e relações de poder, entre outros, essa vertente

historiográfica abre caminho para a difícil tarefa que os historiadores possuem ao

lidar com a dimensão estética do cinema.

Sendo assim, pretendemos abordar a produção cinematográfica como um

importante local de construção da memória, em uma vertente historiográfica

baseada nas ideias de Walter Benjamin, segundo a qual a memória é um

instrumento para o trabalho do historiador. De acordo com Marc Ferro, “a leitura

cinematográfica da História coloca para o historiador o problema de sua própria

leitura do passado.”10

Jacques Le Goff contribui para esses estudos ao questionar criticamente a

noção de documento histórico e, principalmente, ao eleger a necessidade de

desconstrução do documento enquanto monumento como sua prioridade

historiográfica. Dentro desse aspecto, ao nos apropriarmos dos escritos de Le Goff

para nossa pesquisa, percebemos que “é possível pensar numa correspondência

entre a discussão em torno do caráter de verdade contido no documento histórico e

os estudos sobre natureza da imagem.”11

Segundo Le Goff,

(...) mais do que parcial, de alguma forma, todo documento é uma mentira, já que resulta de uma montagem, consciente ou inconsciente, da história, da época, da sociedade que o produziram, mas também das épocas sucessivas durante as quais continuou a viver, talvez esquecido, durante as quais continuou a ser manipulado, ainda que pelo silêncio. O

10

FERRO, Marc. Cinema e história. Rio de Janeiro. Editora Paz e Terra, 1992. Pg. 21.

(16)

documento é uma coisa que fica, que dura, e o testemunho, o ensinamento (para evocar a etimologia) que ele traz devem ser em primeiro lugar analisados desmistificando-lhe o seu significado aparente. O documento é monumento. Resulta do esforço das sociedades históricas para impor ao futuro – voluntária ou involuntariamente – determinada imagem de si próprias. No limite, não existe um documento-verdade. Todo o documento é mentira. Cabe ao historiador não fazer o papel de ingênuo.12

Ainda nesse sentido, Le Goff nos alerta sobre a necessidade de valorizarmos

todo material histórico como documento, independente do registro escrito. Embora

não tenha se referido diretamente ao cinema, podemos pensar na análise fílmica

dentro desse contexto, ou seja, o filme como um documento/monumento, uma vez

que é um discurso sobre um fato, um recorte feito a partir dos interesses de

diretores, autores e produtores.

Nessa chave, Mônica Kornis considera que o cinema constitui um “lugar

especial de memória”, tomando de empréstimo o conceito de Pierre Nora13, por

trazer “movimento ao registro analógico, adensando o parecer ser real”. Kornis

destaca ainda que compreender a “especificidade do registro audiovisual é

fundamental para começarmos a entender a singularidade do trabalho com cinema

(...) e das relações entre esse meio e o conhecimento da história por ele

propiciado”.14

Marc Ferro teve papel fundamental nas análises de cinema e história, ainda

na década de 1960, quando iniciou sua trajetória como secretário de redação da

12

LE GOFF, Jacques. História e Memória. 4.ed. Campinas: Editora da Unicamp, 1996. Pg. 547-548.

13

Conceito desenvolvido pelo historiador francês Pierre Nora, ao trabalhar elementos ligados à relação memória e história, que reifica determinados “lugares” como mantenedores da memória, ao mesmo tempo em que ressalta o dinamismo de tais elementos. Ver: NORA, Pierre. Ente memória e história. A problemática dos lugares. In: Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História do Departamento de História da PUC-SP, 1993.

 

14

(17)

Revista dos Annales e produtor de filmes para a televisão. Ferro defende a tese de que o filme pode ser utilizado como fonte para a história, pois em sua realização

não influenciam apenas as intenções conscientes do diretor, roteirista produtor, etc.,

mas também o que poderia ser denominado como espírito da época na qual o filme

foi realizado.

O historiador, embora não proponha um método de trabalho específico nem

realize uma análise fílmica, demonstra que o filme constitui um documento para a

análise das sociedades, devendo ser visto também como um agente da história e não

apenas um produto. Analisando o filme na investigação histórica, o historiador

poderia buscar o que nele existe de “não visível”, a chamada “contra-história”.15

Ferro afasta-se de uma análise semiológica16, buscando trabalhar a relação do filme

com a sociedade que o produz e consome, articulando todas as variáveis não

cinematográficas à especificidade da expressão cinematográfica.

Embora inovador no que concerne aos campos de análise, objetos e métodos

de fazer história, problematizando a utilização dos filmes pelos historiadores e

incentivando diferentes metodologias para isso, o trabalho de Marc Ferro, ainda que

influenciado pela história das mentalidades, continuava marcado pela visão de um

historiador tradicional. Segundo Eduardo Morettin, “o conjunto de seu trabalho está

delimitado por uma perspectiva de análise muito fechada, no sentido de que essas

diversas metodologias não aparecem em seus textos com tanta fluidez.”17 Ademais,

a subutilização dos filmes como simples comprovação de um saber anterior à

15

Para Ferro, o filme não detém uma verdade histórica absoluta, e sim uma “contra-história”, isto é, uma percepção que transcenderia o que vemos na tela, já que seu conteúdo revela a ideologia de uma sociedade; segundo o autor, o cinema constrói uma história diferente da “história institucionalizada”.

16 Estudo do desenvolvimento e do papel dos signos culturais na vida das sociedades humanas.

 

17 MORETTIN,  Eduardo.  O  cinema  como  fonte  histórica  na  obra  de  Marc  Ferro.    In: 

(18)

análise, fundado nas fontes escritas, também se apresenta como elemento criticável

da concepção de Ferro.

Em outra perspectiva, ao propor uma metodologia específica para se

trabalhar a ligação cinema-história, o também historiador francês Pierre Sorlin

privilegiava a lógica interna dos filmes, pensando-os além da ideia de que

representavam um mero reflexo da sociedade. Sorlin defendia, portanto, que a

produção cinematográfica deveria ser entendida em todos os seus aspectos –

fotografia, trilha sonora, luz, direção, etc. – a fim de que se produzisse uma

interpretação mais ampla do trabalho no campo da história. Essa concepção é

reforçada porque, na visão de Pierre Sorlin, “o filme histórico é, mais que muitos

outros, um filme dependente de um contexto fora do qual ele não fará nenhum

sentido.”18

De acordo com Robert Rosenstone, o cinema é o meio de expressão

contemporâneo capaz de tratar do passado e de atrair as grandes audiências. Ainda

segundo o autor, os filmes podem auxiliar o historiador na compreensão do passado

e servem como ferramentas para o conhecimento histórico, sem contudo, substituir

ou complementar a história escrita, pois “lida com o passado de uma forma distinta

e no interior de seus próprios parâmetros.”19

No caso específico dos filmes que serão objeto de análise desta dissertação

Nunca fomos tão felizes (1984), do diretor Murilo Salles, e O ano em que meus pais saíram de férias (2006), de Cao Hamburger - as memórias de traumas são o destaque, e tornam-se essenciais para a compreensão das sociedade, de acordo com

Andreas Huyssen20. O autor defende que a memória e o esquecimento são

fenômenos complexos, construídos coletivamente e submetidos a transformações,

responsáveis pela construção da memória política de uma nação. Embora trabalhe

18 SORLIN, Pierre. Televisão: outra inteligência do passado. In: NÓVOA, Jorge, FRESSATO,

Soleni Biscouto e FEIGELSON, Kristian (orgs.). Cinematógrafo: um olhar sobre a história. São Paulo: EDUFBA/Editora Unesp, 2009. Pg. 14.

19 ROSENSTONE, Robert. A história nos filmes, os filmes na história. Rio de Janeiro: Editora Paz

e Terra, 2010. Pg. 17.

(19)

sobretudo com a questão do Holocausto e o trauma advindo desse episódio, seu

pensamento pode ser transportado para outros acontecimentos históricos.

Para Huyssen, especialmente a partir dos anos 1980, surge uma grande

preocupação da mídia em representar fenômenos políticos de um passado recente.

Segundo o autor, isso acontece em função da fragmentação e intensificação da

imagem associada à velocidade de acesso às informações do mundo moderno, e

tem por objetivo não apenas preservar a memória como também pensar de forma

crítica o presente.

Neste sentido, a escolha dos cineastas em tratar o regime militar em seus

enredos pode ser entendida como uma maneira de analisar, de forma indireta, o

próprio momento em que os filmes foram realizados, ou seja, o período da abertura

política (no caso de Nunca fomos tão felizes) e de democracia (no caso de O ano em que meus pais saíram de férias).

Partindo desses pressupostos teóricos, acreditamos que seja relevante traçar

a seguir algumas linhas gerais sobre a ditadura implementada no Brasil entre os

anos de 1964 e 1985, bem como a respeito da produção cinematográfica do

período. Instaurado após um golpe civil-militar que derrubou, em 1o de abril de

1964, o presidente João Goulart, o novo regime modificou de maneira definitiva a

vida política do país. Gestado pelo menos desde meados dos anos 195021, o golpe

levou ao poder imediato o general Castelo Branco (1964-1967) e a ideologia de boa

parte dos militares da época, que pretendia eliminar a “ameça comunista” no Brasil.

A partir da implementação da ditadura, a censura, através de órgãos como a

Divisão de Censura de Diversões Públicas (DCDP), tornou mais difícil a vida não

apenas dos roteiristas e diretores de cinema, mas também de todos aqueles ligados

ao teatro, música e televisão no Brasil. Os censores atuavam impedindo a liberação

de filmes, peças, canções e telenovelas (em parte ou na sua totalidade) quando

acreditavam que estavam, de alguma maneira, criticando o governo ou as

21 A articulação de parte dos militares do Exército para tomarem o poder vem desde 1954, quando o

(20)

instituições militares ou, ainda, caso se mostrassem desrespeitosas “à moral e aos

bons costumes” defendidos pelo regime.

Segundo Carlos Fico:

Não houve uma única censura durante o regime militar, mas duas. A censura moderna de diversões públicas existia no Brasil, de maneira oficial, desde 1946. Integrava, por exemplo, a rotina profissional do pessoal do teatro, nada havendo de novo (após 1964) na presença de um censor durante o ensaio geral, nem nos atritos entre a classe e a censura moral das peças (...); quando a linha dura definitivamente assumiu o poder, com o AI-5, a censura moral também passou a se preocupar, de maneira mais enfática, com a política. 22

Ainda assim, já nos primeiros momentos do regime militar no país,

cineastas brasileiros procuraram tematizar sobre a conjuntura e, em alguns casos,

utilizaram-se de questões políticas e sociais que eram apresentadas como alegoria

ou metáfora para pensar a própria ditadura.

Em 1965, o filme O desafio, de Paulo César Saraceni, retratava as angústias de um jornalista vivenciando o golpe militar. Dois anos depois, em Terra em Transe – um dos clássicos do cinema novo - o diretor Glauber Rocha anunciava uma estética cinematográfica revolucionária e alegórica para pensar o fim da utopia

de esquerda diante da ditadura. Ambos os filmes retratam a decepção e a incerteza

que marcavam toda uma geração de jovens de classe média urbana – como os

diretores dos filmes – a partir da instalação da ditadura civil-militar no país.

Já em 1972, perante um quadro político no qual a censura mostrava-se mais

forte e contundente com a promulgação do AI-5 (1968), o filme Os Inconfidentes, de Joaquim Pedro de Andrade, discutia sobre o regime miltar a partir de uma

analogia com o processo da Conjuração Mineira do século XVIII. De acordo com

22 FICO, Carlos. A pluralidade das censuras e das propagandas da ditadura. In: REIS, Daniel Aarão,

RIDENTI, Marcelo e MOTTA, Rodrigo Patto Sá (orgs.). O golpe e a ditadura militar 40 anos depois (1964-2004). Bauru, SP; Edusc, 2004. p.270.

(21)

Fernão Ramos, as produções do cinema novo neste período possuíam “fortes tons

alegóricos com a preocupação de representar o Brasil e sua história.”23

Com o avanço do processo de abertura política iniciado por Ernesto Geisel

em 1974 e levado a cabo no governo João Figueiredo em meados da década de

1980, o contexto da ditadura civil-militar ganha ainda mais força nas telas de

cinema. Pra Frente Brasil (1982), de Roberto Farias e O bom burguês (1983), de Oswaldo Caldeira, destacam-se por narrar a luta armada, ainda sob a vigência do

regime militar. O longa de Farias, proibido pela censura logo após sua primeira

exibição no Festival de Gramado, narra a trajetória de um cidadão “comum”,

confundido pelos militares com um membro de uma organização de esquerda, preso

e torturado. O segundo é baseado na história real de um gerente do Banco do Brasil

no Leblon que desviava recursos depositados no banco (algo em torno de dois

milhões de dólares) para auxiliar grupos armados contra o governo.

Ademais, o documentário de Silvio Tendler, Os anos JK – uma trajetória política, de 1980, e a retomada de Cabra marcado para morrer (1984), de Eduardo Coutinho, são obras marcantes na conjuntura de transição para a democracia no

país.

A partir daí, Tendler acabou tornando-se um importante documentarista

político, pois além do documentário sobre o ex-presidente Juscelino Kubitschek,

seria responsável por contar a trajetória de João Goulart (Jango, de 1984) e Tancredo Neves (Tancredo – A travessia, de 2010). Já Coutinho finalmente conseguiria filmar sobre a luta dos camponeses no interior de Pernambuco, porém

sob novos contextos e personagens, após a repressão do Exército no local de

filmagem, o engenho da Galileia. Estabelecendo um diálogo entre ficção e

documentário, Cabra marcado para morrer trouxe diversas inovações estéticas, como por exemplo o aparecimento proposital da equipe de filmagem nas imagens

do filme. De acordo com Ismail Xavier:

(...) Cabra marcado para morrer, de Eduardo Coutinho, obra que recapitula todo um processo de debate do cinema brasileiro com a vida

23

(22)

política nacional e o faz com densidade, pois encaminha seu debate com a história e com os anos de ditadura a partir de múltiplas estratégias que recapitulam, por sua vez, a tradição do documentário no Brasil. (...) Já presente no início dos anos 80, o processo de dissolução do moderno se escancara com a Nova República que enterra de vez uma matriz para pensar o cinema e o país.24

Ainda nesse contexto, a transição para a democracia abriu espaço para o

incremento significativo da divulgação de depoimentos de vítimas da ditadura, que

em muitos casos serão utilizados como base para a produção de livros e filmes no

período. Os livros de Fernandro Gabeira – O que é isso companheiro, de 1979 - Alfredo Sirkis – Os carbonários, de 1980 – e Zuenir Ventura – 1968: o ano que não terminou, de 1989 – foram obras aclamadas por público e crítica ao relatarem episódios marcantes e até então pouco conhecidos do cotidiano brasileiro durante

os “anos de chumbo”25.

Os momentos que se seguiram ao retorno do regime democrático, a partir de

1985, foram marcados pela drástica redução na produção cinematográfica

brasileira, associada a fatores econômicos (alta inflação e dívida externa) e marcada

pelo declínio da Embrafilme, que viria a ser fechada em 1990, durante o governo

Collor (1990-1992). Na realidade, essa medida veio acompanhada de outros duros

golpes na cultura nacional: o fechamento do Concine26, também em 1990, e a

extinção do Ministério da Cultura, reduzido à categoria de Secretaria, sem qualquer

tipo de redimensionamento no incentivo à produção artística.

Na presidência de Itamar Franco (1993-1995) a participação do Estado nos

projetos cinematográficos voltava a ocorrer em novas bases, a partir de mecanismos

24

XAVIER, Ismail. O cinema brasileiro moderno. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 2001. Pg. 39.

25

Período que engloba os anos entre 1968 e 1974, durante o qual os atos repressivos da ditadura militar tornaram-se mais contundentes em decorrência do AI-5.

 

26 O Concine foi criado em março de 1976, assinado pelo então presidente Ernesto Geisel, e seu

(23)

de renúncia fiscal. A lei Rouanet, criada em 1991 mas colocada em prática durante

o período Itamar, e a lei do Audiovisual, de 1993 – que basicamente oferecem

desconto no imposto de renda para as empresas que patrocinam a realização de

filmes nacionais- contribuem, portanto, para a chamada “retomada” do cinema

brasileiro.

Nesse contexto, o filme Carlota Joaquina, Princesa do Brasil, lançado por Carla Camurati em 1995, torna-se o símbolo retomada do cinema nacional. A obra

satírica conta a história da vinda da Corte portuguesa para o Brasil, em 1808,

centrada na figura da esposa de D. João VI. Elogiado por boa parte da imprensa, em

especial por ser considerado a “Fênix” do nosso cinema, caiu também no gosto do

público e atingiu a marca de 4,3 milhões de espectadores. Nas palavras da diretora:

Fiz um filme pretendendo atingir todas as plateias, de todas as idades (...). O cinema, há dois anos, acabara no Brasil por má administração dos orçamentos e porque havia pessoas que só se propunham a filmar com orçamentos milionários. Meu objetivo com Carlota Joaquina foi provar que dá para fazer cinema no Brasil. Que tem público sim, e que os filmes se pagam sim.27

O pensamento da diretora não condiz totalmente com a realidade; o cinema

brasileiro não havia acabado – embora as produções tenham sido reduzidas

significativamente entre o final dos anos 1980 e meados de 1990 – e seu declínio

não se deveu, exclusivamente, a projetos milionários. No entanto, percebia-se ser

necessária, de fato, uma reestruturação da cinematografia no país.

Finalmente, em setembro de 2001, durante o mandato de Fernando

Henrique Cardoso, foi criada a Ancine, agência reguladora cujo objetivo é

fomentar, regular e fiscalizar a indústria cinematográfica e videofonográfica

nacional.

Por outro lado, ao término da década de 1990 e início dos anos 2000,

assistimos ao predomínio do patrocínio de empresas públicas à produção de cinema

no país, à criação de produtoras independentes que atuarão no nicho

(24)

cinematográfico e ao surgimento da Globo Filmes, elementos que contribuem para

dar cara nova à produção de filmes no Brasil.

Ainda assim, apesar das novidades trazidas pela retomada, a ditadura

continuava sendo o foco de uma intensa produção memorialística, cujos

documentários Diário de uma busca, lançado em 2010 por Flávia Castro (que conta a história do pai, um militante de esquerda durante o governo militar) e Em busca de Iara, dirigido por Flávio Frederico em 2013 (que narra a vida de Iara Iavellberg, participante da luta armada nos anos 1960), são destaques. No campo da ficção, o

contexto ditatorial permeava desde as produções mais autorais - como as obras

Ação entre amigos, de Beto Brant, lançado em 1998 – até filmes satíricos e voltados para o grande público, como A taça do mundo é nossa (2003), no qual a trupe do programa humorístico da Rede Globo Casseta & Planeta é dirigida por

Lula Buarque de Hollanda.

Essa contextualização justifica-se pelo fato de que o presente trabalho

propõe o exame de dois filmes de cunho histórico ambientados durante a ditadura

civil-militar brasileira (1964-1985), porém produzidos em distintos contextos.

A escolha dos filmes Nunca fomos tão felizes e O ano em que meus pais saíram de férias deve-se ao fato de que ambos retratam o mesmo contexto histórico, a partir de um ponto de vista bastante peculiar, o de um protagonista

jovem. Apesar de não ser usada de maneira recorrente, a perspectiva infanto-juvenil

já se havia feito presente em alguns filmes brasileiros. Nesse sentido, destaca-se Rio 40o graus, primeira obra de Nelson Pereira dos Santos, lançada em 1955.

Influenciado pelo neorrealismo italiano, o filme é considerado um dos

grandes precursores do cinema novo, e acompanha a rotina de cinco vendedores de

amendoim no Morro do Cabuçu que se deslocam por diversos pontos do Rio de

Janeiro. Já nos anos 1980, Pixote – A lei do mais fraco, filme de Hector Babenco lançado em 1981, mostra a realidade de grupos pobres e marginalizados na cidade

de São Paulo, em meio ao crime, violência e prostituição. Mais recentemente, na

década de 2000, assistimos a Cidade de Deus (2002), de Fernando Meirelles, um dos filmes nacionais de maior bilheteria dos últimos tempos contando a história do

(25)

o dia-a-dia de um grupo de jovens que vivem nas ruas de Salvador, e constitui mais

um dos longa metragens que abordam suas narrativas a partir de um ou vários

protagonistas crianças e adolescentes.

No caso dos filmes estudados, a narrativa de Nunca fomos tão felizes

desenvolve-se em torno do relacionamento de um pai – que ao longo do filme

percebemos estar envolvido com a luta contra o regime militar - e seu filho

adolescente – o qual havia sido deixado em um internato após o falecimento da

mãe. Após oito anos de afastamento, o pai decide retirar Gabriel do internato e

levá-lo para viver com ele em um apartamento em Copacabana, embora, na prática,

o garoto passe praticamente o tempo todo sozinho, à espera de um contato paterno.

Já a película O ano em que meus pais saíram de férias, lançado em 2006, tem o futebol como fio condutor da história de Mauro, um menino de doze anos que

foi deixado por seus pais na casa do avô, no bairro do Bom Retiro em São Paulo.

Os pais de Mauro, assim como o pai de Gabriel de Nunca fomos tão felizes, são militantes contrários à ditadura, embora não fique totalmente claro, em nenhum dos

dois casos, de que forma específica se dá essa militância. É possível construir um

diálogo entre ambos os fimes, no que diz respeito à narrativa construída em torno

da ausência gerada pela luta contra o regime ditatorial militar.

O trauma da ditadura narrado através da inocência do olhar infantil/juvenil é

o ponto central de ambos os filmes, que concentram suas narrativas nas mudanças

psicológicas dos personagens ao longo do tempo e as tornam, de alguma maneira,

uma metáfora para as próprias transformações sofridas pela sociedade brasileira

como um todo. Podemos discutir também se a relação daqueles pais com seus filhos

retratam, de certa forma, a dicotomia revolucionários de esquerda/povo, a partir do

distanciamento entre ambos em nome de um “bem maior”. Ambos os filmes

retratam a experiência infantil/juvenil da solidão e a vivência adulta da luta armada

e do exílio político. De certa forma Mauro e Gabriel – protagonistas de O ano em que meus pais saíram de férias e Nunca fomos tão felizes, respectivamente – encontram-se também exilados de suas famílias e são obrigados a viver,

repentinamente, em um mundo estranho, no qual a espera pela volta ao lar parece

(26)

Os dois filmes não trazem discursos eloquentes ou panfletários contra a

ditadura militar e até mesmo luta armada de esquerda aparece de maneira sutil. Essa

ausência relaciona-se com a intenção de representar o regime militar e a resistência

a ele através de um olhar pueril, o que faz com que os elementos não sejam

explícitos, pois assim não o são para os protagonistas.

Ademais, buscaremos investigar outro ponto que chama a atenção nos

filmes escolhidos: a ausência literal de termos como ditadura, violência, repressão,

etc., tão comuns em se tratando do momento retratado. Embora o contexto ditatorial

fique colocado para o espectador de forma indireta – através das notícias de jornais

que se mostram, das conversas entre os personagens secundários, da programação

ouvida no rádio e na TV - a escolha por essa construção narrativa cria no público

uma cumplicidade com os protagonistas, que ignoravam, em parte, a conjuntura

política na qual estavam inseridos.

O objetivo geral da dissertação é analisar os filmes Nunca fomos tão felizes

e O ano em que meus pais saíram de férias, que abordam a temática do regime militar, ressignificando tal período histórico e trazendo suas próprias representações

acerca do tema.

Nossa intenção é examinar como os filmes representam o período histórico

em questão, percebendo as temáticas que estão sendo valorizadas ou silenciadas, e

discutindo que tipo de memória se elabora em relação ao regime militar no Brasil, a

partir de suas construções narrativas.

A questão em pauta é a reconstrução da memória e o uso que se faz da

história, pois o cinema de abordagem histórica trata de determinado personagem

e/ou episódio do passado a partir do presente. Daí ser imprescindível, além de levar

em consideração o contexto retratado no filme, analisar o momento em que o

mesmo foi produzido.

Segundo Daniel Aarão Reis Filho,

(27)

no campo de luta, poderão perdê-la na memória da sociedade que imaginavam subjugada.28

Outro aspecto relevante para nossa pesquisa é o fato de que ela nos leva a

trabalhar, concomitantemente, com três temporalidades distintas. A primeira é

aquela na qual as histórias se passam: os anos 1960-1970; a segunda trata dos

momentos nos quais as obras foram produzidas: 1984 e 2006, e a terceira refere-se

ao contexto atual de confecção do presente trabalho, a conjuntura de análise das

obras. A dinâmica resultante dessas temporalidades é fundamental para as análises

que iremos desenvolver ao longo do texto.

De acordo com Lucilia Delgado,

(...) para um melhor entendimento sobre a produção dos conhecimentos histórico e historiográfico há que se considerar ao menos dois tempos específicos: o referente ao desenrolar dos acontecimentos e processos, e o relativo à produção de interpretações e narrativas sobre esses mesmos acontecimentos e processos. 29

Ao abordamos filmes históricos as temporalidades ampliam-se para além

das mencionadas por Delgado, uma vez que eles retratam um contexto anterior ao

de suas produções.

Segundo Maria Lúcia Kern,

(...) o estudioso francês Georges Didi-Huberman defende o anacronismo como meio fecundo de se entender as imagens, quando afirma que o historiador não pode se contentar em fazer a história da arte apenas sob ângulo da euchronie, isto é, o ângulo conveniente do artista e seu tempo (cânone da disciplina). As artes visuais exigem que

28 REIS, Daniel Aarão. Ditadura e sociedade: as reconstruções da memória. In: REIS, Daniel Aarão,

RIDENTI, Marcelo e MOTTA, Rodrigo Patto Sá (Orgs.). O golpe e a ditadura militar 40 anos depois (1964-2004). Bauru, SP; Edusc, 2004. p. 30.

 

29

(28)

se aborde sob ponto de vista de sua memória, das ‘suas manipulações do tempo’ e dos diálogos que os artistas estabelecem com obras de distintos momentos históricos.30

De acordo com tal concepção, compreendemos que as imagens do passado

são reconfiguradas de acordo com a visão contemporânea, uma vez que ela advém

de uma construção de memória. A presença e combinação de diferentes tempos e

memórias nos faz perceber que o tempo não é estático e que, portanto, os filmes

não podem ser analisados somente pelo olhar de seu tempo.

Finalmente, a respeito da estruturação da dissertação, trabalharemos em três

capítulos. No primeiro, contextualizaremos historicamente a década de 1980, em

particular no final da ditadura civil-militar, e analisaremos o filme Nunca fomos tão felizes, exibido em 1984. No segundo capítulo o alvo é a década de 2000, inserida na conjuntura da “retomada” do cinema brasileiro, iniciada nos anos 1990 e que

inclui a realização de O ano em que meus pais saíram de férias, em 2006. O terceiro capítulo pretende realizar uma análise comparativa das duas películas,

baseada em elementos de aproximação e distanciamento presentes em ambos. Em

seguida, apresentaremos as considerações finais a respeito do trabalho.

30 KERN, M.L.B. e KAMINSKI, Rosane. . A imagem no tempo e os tempos da imagem.

(29)

Capítulo I - Nunca fomos tão felizes: uma relação fragmentada entre pai e filho

durante a ditadura

1 – Tempos de abertura política durante a ditadura militar

O decorrer da década de 1970, marcado pela transição entre os governos

Geisel (1974-1979) e Figueiredo (1979-1985), trouxe alguns avanços no que diz

respeito à abertura democrática. O processo “lento, gradual e seguro”, estabelecido

por Ernesto Geisel e continuado por seu sucessor, levou ao fim do AI-5 (1978), ao

retorno do pluripartidarismo (1979), à lei de anistia (1979) e à volta das eleições

diretas para governadores (1982), fatos extremamente significativos no contexto

político e cultural da época. O clima de esperança por transformações também se

fazia sentir nas mobilizações dos trabalhadores em greves na região do ABC

paulista, sobretudo em meados dos anos 1970, e, mais adiante, em passeatas que

reuniram milhões por todo o país, clamando pelo retorno às eleições presidenciais

diretas, em um movimento conhecido como Diretas-Já (1984).31

Passado o período mais repressivo da ditadura, os chamados

“anos de chumbo”, com o arrefecimento da censura - cuja regulamentação do

Conselho Superior de Censura, durante o governo de João Figueiredo (1979-1985),

que tinha como objetivo reduzir a atuação dos censores, é o grande exemplo - e a

continuidade do processo de abertura política, o país assistiu ao lançamento de

dezenas de películas cujos temas voltavam-se para o período da ditadura militar,

tais como O bom burguês (1979), de Oswaldo Caldeira e Pra Frente Brasil (1982), de Roberto Farias, dois dos primeiros filmes a abordarem mais abertamente a

repressão do regime.32 Tais películas são simbólicas no período em questão por

31

O regime militar havia transformado em eleições indiretas aquelas que abrangiam os cargos do Poder Executivo (presidente, governador e prefeito de alguns municípios).

32 Mesmo em um contexto de abertura, o lançamento de Pra frente Brasil levou à demissão do

(30)

levarem a temática da luta armada ao grande público através das telas de cinema,

ainda durante o regime militar.

Além dessas produções ficcionais, destaca-se o primeiro documentário do

cineasta Silvio Tendler, Os anos JK – uma trajetória política, de 1980, no qual constrói uma narrativa bastante favorável à figura do ex-presidente – que havia

falecido em um acidente de carro em 1976 – e mostra os percalços enfrentados por

Juscelino, cassado após o golpe de 1964, e sua atuação na Frente Ampla, formada

juntamente com João Goulart e Carlos Lacerda, em oposição à ditadura.

No contexto que antecedeu o retorno da democracia houve também a

retomada de um projeto interrompido pela eclosão do golpe civil-militar, o filme

Cabra marcado para morrer (1984), de Eduardo Coutinho. Tal produção é, até hoje, um marco na história do cinema, ao abordar a trajetória entre duas filmagens –

a que o diretor iniciou em 1963, como uma obra de ficção sobre as Ligas

Camponesas, e a retomada nos anos 1980, na qual Coutinho entrevista camponeses

que trabalharam nas antigas filmagens e a viúva de João Pedro Teixeira (líder do

movimento), perseguida após a entrada dos militares no poder. A partir de uma teia

que envolve diversos personagens, entre eles o próprio diretor/realizador,

constrói-se uma visão sobre o Nordeste rural e a organização dos trabalhadores agrários

através de imagens ficcionais dos anos 1960 e depoimentos reais dos anos 1980.

Para Gervaiseau:

além de sua contribuição à instituição da memória das comunidades concernidas, o filme desempenhou um papel fundamental na irupção, no espaço público da comunicação de massa no Brasil dos anos 1980, de uma memória do sofrimento e da dominação, mas também da resistência à opressão.33

Mil novecentos e oitenta e quatro, aliás, consitui-se em um ano crucial para

examinarmos questões ligadas ao cinema e à política no país, uma vez que, além de

Cabra marcado para morrer, houve o lançamento de Nunca fomos tão felizes, de

33 GERVAISEAU, Henri Arraes. O abrigo do tempo. Abordagens cinematográficas da passagem do

(31)

Murilo Salles, do documentário Jango, de Silvio Tendler, e do longa de ficção

Memórias do cárcere, de Nelson Pereira dos Santos. O documentário de Tendler destaca-se por reconstituir os últimos momentos de João Goulart à frente da

presidência da República, antes do golpe de 1964, e o o filme de Nelson Pereira dos

Santos, diretor do cinema novo, conta a história do escritor Graciliano Ramos,

preso durante a ditadura estadonovista de Vargas (1937-1945).

O primeiro filme de Salles destaca-se, contudo, pelo foco em questões

pouco abordadas até então. Não se trata de uma película de “cunho social”, mas,

sim, centrada na história de um indivíduo que, de alguma maneira, parece

representar “o todo”, a sociedade. Uma metáfora da relação dos grupos de esquerda

com o restante da população durante o regime militar, suas dificuldades de

comunicação, incompreensões e incertezas.

Nas palavras do crítico José Carlos Avellar:

O cinema que fizemos na década de 1980 está mais perto do filho que do pai de Nunca fomos tão felizes. É uma imagem mais perto da vontade de partir, que surgiu por volta de 1980, do que daquela outra mais forte por volta de 1960, a de entrar na discussão do quadro político e social do país como realidade transformável pela ação do homem (através do cinema, entre outras coisas). O cinema que fizemos nos últimos anos tem mesmo muito a ver com o jovem que, levado pelo pai para um apartamento vazio, passa o tempo vendo televisão e dedilhando numa guitarra elétrica um som parecido com um rock. O cinema da década de 1980 parece O estrangeiro cantado por Caetano Veloso no disco feito na metade de 1989: um cego às avessas, que como nos sonhos só vê o que deseja.34

34

(32)

2 – A trajetória de Murilo Salles e a construção narrativa de Nunca fomos tão felizes

Nunca fomos tão felizes35é o primeiro longa metragem dirigido por Murilo Salles, após uma vasta experiência como diretor de fotografia de diversos filmes,

especialmente em parceria com Bruno Barreto, como A estrela sobe (1974), Dona Flor e seus dois maridos (1976) e O beijo no asfalto (1980) – todos dirigidos por Barreto. O filme em questão é uma adaptação – realizada em conjunto com Jorge

Durán e Alcione Araújo - do conto “Alguma coisa urgentemente”, do livro O cego e a dançarina, de João Gilberto Noll.

Além da experiência em cinema adquirida a partir do trabalho em fotografia

de longas metragens, a vivência de Salles em um ambiente político e cultural

bastante efervescente – o Rio de Janeiro dos anos 1960/1970 – teve determinante

influência na futura trajetória cinematográfica do diretor. Como ele próprio

comenta:

Cursei a ECO, Faculdade de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Sou formado em Teoria da Informação. Havia uma cadeira de Semiótica, ministrada pela professora Heloísa Buarque de Holanda, amiga de Joaquim Pedro de Andrade, que abriu nossa cabeça para o Cinema Novo. Assistimos Macunaíma numa pré-estreia privada

35 Ficha técnica: Dir.: Murilo Salles. Rot.: Alcione Araujo; Jorge Durán;\Murilo Salles, baseado no

conto “Alguma coisa urgentemente” de João Gilberto Noll. Prod.: Marisa Leão; Murilo Salles. Mús.: Sergio Saraceni. Som: Roberto Carvalho; Valéria Mauro. Fotog.: José Tadeu Ribeiro. Des.

Prod. e figur.: Carlos Prieto. Mont.: Vera Freire El.: Cláudio Marzo, Roberto Bataglin, Susana

Vieira, Meiry Vieira, Ênio Santos, Antônio Pompeo, Marcus Vinícius, Fábio Junqueira, Angela Rebello. Rio de Janeiro: Cinefilmes; Embrafilme; Imacom Comunicação; LC Barreto Produções Cinematográficas; Morena Filmes; Movi&Art; Salles & Salles, 1984. (91 min.), son., color. O filme foi selecionado para o Festival de Cannes, na Quinzena dos Realizadores (1984) , ganhou o Leopardo de Bronze no Festival de Locarno (1984) e o prêmio de Melhor Filmedos júri oficial e popular do Festival de Brasília (1984).

(33)

no Museu de Arte Moderna, e Deus e o Diabo na Terra do Sol e Terra em Transe pelo menos umas 17 vezes para o curso. 36

As inovações trazidas pelo cinema novo, no qual a política e as questões

sociais eram as peças chaves dos enredos, e a convivência com o movimento

estudantil e com a classe média intelectualizada que frequentava os meios

acadêmicos, as salas de cinema e os bares e restaurantes da antiga capital

fluminense fizeram parte da formação humana e profissional de Murilo Salles,

embora o mesmo não se enquadre em nenhum movimento cinematográfico

específico. O próprio Murilo comenta:

Eu sou muito fruto de um desamparo. No cinema brasileiro, teve aquela turma que fez o Cinema Novo, eu seria uma terceira geração. Eu cheguei a trabalhar com [Arnaldo] Jabor, mas fotografei o filme dos assistentes. O Jabor nunca foi um cinema-novista, mas ele é de uma segunda geração. Fotografei filme do Prates. Eu sou um pouco essa terceira geração, então fiquei um pouco sem ideologia. Eu sou utópico, apesar de achar ruim.37

Embora nessa declaração o diretor pareça minimizar a importância do

cinema novo em sua formação ao se dizer “sem ideologia”, Salles nos apresenta

uma visão bastante profunda do clima político no Brasil dos militares, ao dar vida à

solidão e às angústias de militantes políticos e ativistas de esquerda em Nunca fomos tão felizes. De acordo com ele:

Em geral, os filmes políticos partem do geral. Por exemplo, Eles não Usam Black-Tie. Tem todo um corpo social bem estabelecido, de luta de

classes etc. [Leon Hirszman] parte do geral, de uma situação de fábrica, de greve, para o particular da relação [dos personagens] (...) Eu, [pelo

36 NAGIB, Lucia. O cinema da retomada: depoimentos de 90 cineastas dos anos 90. São Paulo;

Editora 34, 2002. p. 406.

37

(34)

contrário], prefiro muito mais ver o particular (...). Não tenho a pretensão de entender o todo. 38

A passagem de Salles por Moçambique, ainda nos anos 1970, – onde

inicialmente filmaria um documentário durante o III Congresso da Frelimo, que

acabou não se realizando, mas o levou a lecionar no Instituto de Cinema por um

ano – foi, no entanto, decisiva para o desenrolar de sua carreira como diretor:

Fui para a moviola e fiz um filme de montagem, Essas são as armas (1978), cuja proposta era materializar imagisticamente o conceito de imperialismo para o simples camponês moçambicano. (...) foi o recorde histórico de bilheteria de Moçambique. O filme ainda ganhou a Pomba de Prata no Festival de Leipzig, em 1978, até então o melhor festival de filmes documentários que existia. Esse foi o trabalho que me devolveu à condição de diretor. Fotografar, por incrível que pareça, nunca foi minha escolha, sempre quis dirigir filmes, mas esse desvio, provocado pela minha amizade com o Bruno [Barreto], foi fundamental na minha formação, pois acabou por me dar muita intimidade com a câmera.39

Anos depois, já de volta ao Brasil e decidido a seguir como diretor, entra em

contato com o livro de Noll e decide transformá-lo em roteiro cinematográfico.

Nasce assim Nunca fomos tão felizes, que conta a história da relação conturbada entre pai – militante da luta armada contra a ditadura - e filho, órfão de mãe e

interno há oito anos em um colégio de padres. Repentinamente, o pai reaparece

após anos sem contato para buscar o filho e irem morar juntos em um apartamento

em Copacabana. No entanto, além das dificuldades oriundas do desconhecimento

mútuo, o pai não não passa muito tempo ao lado do filho por conta da militância,

que mantém em segredo.

38 http://enciclopedia.itaucultural.org.br/obracinema126/nunca-fomos-tao-felizes-1984, acesso em

24/11/2015.  

39

(35)

Segundo o sítio de Murilo Salles na internet,

(...) A situação exposta é uma síntese ao nível da relação pai/filho, do que aconteceu no Brasil no período de 1969 a 1974, quando parte da esquerda radicalizou o processo político, deflagrando a luta armada contra a ditadura, se outorgando o direito de agir e falar em nome de um desejo revolucionário latente no povo, sem saber se esse desejo era real. Perplexidade perante a impotência da situação paradoxal: ambos personagens se desejam, mas o amor é impossível. Impossível pela distância, pelo tempo que os separou, impossível também pelos impedimentos inerentes à própria opção de luta escolhida pelo pai, pois esta opção o distancia do objeto amado (filho/povo). A tensão vivida permanentemente na relação dos dois resgata todo o clima da época narrada no filme, sentimento vivido por todos nós pais/filhos deste período tresloucado de nossa história recente. 40

Tal reflexão nos leva a entender o filme como uma representação da

situação política vivida pelo país nos anos 1960/1970: a relação estabelecida (ou

que se tenta estabelecer) entre pai e filho seria uma metáfora para pensarmos a luta

armada contra o regime militar e sua ligação (ou a falta dela) com o povo. A

distância entre os dois, fruto, principalmente, das atividades clandestinas do pai,

simboliza também o afastamento entre os movimentos de esquerda e a sociedade,

que não se sente representada por eles. De maneira geral podemos argumentar que

ambos, filho e povo, são tratados como “ingênuos”, um pouco “incapazes”, seres

que devem ser protegidos. Ademais, em outro viés interpretativo, podemos pensar

em parte da sociedade, perdida após o golpe civil-militar de 1964, sem ter noção do

que estava por vir, buscando um guia, um “pai” que esclarecesse os fatos, que os

tirasse de uma situação de desconhecimento, de vigilância.

Ainda segundo Salles, o filme põe em voga os sentimentos vividos pela

população daquele período: de um lado, militantes de esquerda, engajados em

mudar o país, e, de outro, parte da população, alienada, preocupada apenas em

usufruir das parcas benesses trazidas por um regime ditatorial. Os símbolos dessa

(36)

“alienação” serão investigados mais adiante, por conta de sua ligação com uma

cultura mais americanizada que invadia o Brasil havia décadas. Neste sentido:

(...) O que resta ao filho, perplexo e impotente, senão se relacionar com a televisão, com a guitarra, adquiridos ironicamente com o dinheiro deixado pelo pai/revolução? E foram exatamente estes os fatos e o paradoxo, enquanto a esquerda revolucionária se exterminava numa guerra contra a ditadura, a nação brasileira, por quem se lutava, se prostrava diante da televisão, se encantando com as delícias multivisuais do ‘milagre brasileiro’, com as lacrimejantes novelas na televisão e, nos intervalos comerciais, com os produtos plastificados do milagre.41

Vejamos agora como o filme se estrutura, do ponto de vista de sua narrativa.

A película inicia-se com um plano aberto sobre uma paisagem bucólica, em meio à

natureza, ao som do canto de passarinhos, uma grande casa ao fundo, e a data –

sexta-feira, 20 de novembro - sem especificação do ano. No desenrolar da história

as datas voltam a aparecer – sempre em uma legenda centralizada na parte de baixo

da tela, em letras brancas –, nos sinalizando a passagem dos dias, mas nunca com o

ano sendo revelado. Esta questão nos chama atenção e será desenvolvida no item

subsequente.

Ainda nos momentos iniciais, no corte de uma das cenas em que um homem

tira leite de uma vaca para outra em que o protagonista aparece bebendo leite em

um copo, percebemos uma das características recorrentes do filme: a utilização de

raccords, que asseguram a continuidade da narrativa na passagem de um plano para outro.

A sequência é finalizada ambientando o espectador no internato e

“apresentando-o” ao protagonista Gabriel (Roberto Bataglin) - nome que só

saberemos quase no final do filme -, que aparece tomando café da manhã e rezando

o pai-nosso em meio aos outros meninos do colégio.

Tais momentos introdutórios da película, que mostram um pouco da vida de

Gabriel antes do reencontro com o pai, nos levam a entender que o rapaz vivia

bastante isolado e à parte do que acontecia a sua volta, no país e no mundo.

Ainda no ambiente do colégio interno de Gabriel, há uma elipse de tempo

41

(37)

que nos leva ao dia seguinte - sábado, 21 de novembro – quando o jovem aparece

jogando bola sozinho, brincando com as galinhas (o que novamente reforça o

bucolismo do local) e disputando um jogo de baralho com um dos padres da

instituição. Neste momento ele explica que não gosta de passar o fim de semana na

casa de um amigo do colégio, mesmo recebendo convite para tal, e que prefere ficar

por ali mesmo. Torna-se perceptível, portanto, que Gabriel não possui contato com

a família.

Nova passagem de tempo – domingo, 22 de novembro –, o protagonista

aparece de joelhos, rezando durante uma missa em latim, a princípio de olhos

fechados e, depois, com os olhos abertos, pensativo, como se sentisse alguma coisa

acontecendo ao seu redor, ao mesmo tempo em que um vulto adentra a capela no

fundo da tela. A camêra desloca-se e foca na imagem de Nossa Senhora encerrando

o plano. Em seguida, um dos padres da instituição, e que parece ser amigo de

Gabriel, aproxima-se e avisa que o reitor quer lhe falar. Na sala do reitor (Ênio

Santos), Gabriel é comunicado de que seu pai havia vindo lhe buscar. Surpreso,

Gabriel pergunta se o pai não estava preso, ao que o reitor responde dizendo que já

havia dois anos que ele tinha sido solto e que, desde então, estava criando

condições para que os dois pudessem viver juntos.

Nesta sequência o espectador começa a conhecer melhor a história do

protagonista pelas suas próprias palavras, pois ele vai rememorando junto ao reitor

que fazia muito tempo que estava no internato e que não tinha contato com o pai,

que nunca havia lhe escrito sequer uma carta. O reitor afirma a Gabriel que o pai

não desejava abandoná-lo, mas que a vida tinha ficado muito difícil após a morte da

mãe do menino. Além disso, conta que o pai sempre pagou as mensalidades do

colégio – fato que assusta Gabriel, o que nos leva a pensar que, até então, ele devia

achar que estava ali “de favor”, por caridade dos padres – nos oito anos em que ele

esteve ali –, oferecendo-nos o período exato de tempo que o menino encontrava-se

na insituição. Logo depois, vemos Gabriel e o pai (Claudio Marzo) no carro,

calados. Mais à frente, o pai para o automóvel em uma estrada de terra, coloca

documentos e uma arma no porta-luvas, e pede ao filho que pegue suas coisas.

(38)

obrigado a fazer aquilo, “para sua própria segurança”, e que mais tarde explicaria

seus motivos ao garoto. Não sabemos como os dois saíram do local, pois na cena

subsequente eles já aparecem sentados em um restaurante e Gabriel parece

continuar tentando entender aquela figura que, apesar de paterna, lhe é bastante

desconhecida pela distância dos anos. Indagado sobre o motivo que o levou à

prisão, ele responde ao filho: “Gostaria de poder responder a todas as suas

perguntas, mas no momento não posso. Para o seu próprio bem eu sou obrigado a

lhe esconder tudo. Quanto menos você souber de mim, mais seguro estará.”

Esse discurso do pai, que se repetirá ao longo do enredo de outras maneiras,

deixa claro que não é intenção do diretor explicar todos os acontecimentos aos

espectadores; de maneira geral, espectador e filho permanecem em uma situação de

desconhecimento sobre o contexto na diegese.

Imagem 1

Um corte seco nos leva à próxima sequência, iniciada por Gabriel

admirando a vista da praia de Copacabana através de uma enorme janela de vidro;

em seguida, o jovem aparece percorrendo um amplo apartamento, praticamente

vazio, do qual se tem uma estonteante vista do mar. À noite, a escuridão esconde o

mar e revela o letreiro Hotel Califórnia piscando em neon azul e vermelho em frente ao apartamento. Neste momento ouvimos pela primeira vez uma música

instrumental bastante melancólica que será repetida em outros momentos do filme.

A película não apresenta exatamente uma trilha sonora, salvo a música

Referências

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