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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS

DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA

JOÃO ALEX COSTA CARNEIRO

A teoria comparativa do conhecimento de Ludwik Fleck:

comunicabilidade e incomensurabilidade no

desenvolvimento das ideias científicas

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS

DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA

JOÃO ALEX COSTA CARNEIRO

Versão corrigida

De acordo:_______________________ Prof. Dr. Caetano Ernesto Plastino

A teoria comparativa do conhecimento de Ludwik Fleck:

comunicabilidade e incomensurabilidade no

desenvolvimento das ideias científicas

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia do Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, para obtenção do título de Mestre em Filosofia sob a orientação do Prof. Dr. Caetano Ernesto Plastino

(3)

À minha mãe, por seu apoio tão especial e incondicional.

(4)

Depois de longo confronto com sua obra, percebi que:

O trabalho do pesquisador consiste em diferenciar, no meio da confusão incompreensível, no caos que enfrenta, entre aquilo que obedece à sua vontade e aquilo que resulta de si mesmo e que resiste à sua vontade. Esse é o solo firme que ele, ou melhor, o coletivo de pensamento procura e não cansa de procurar.1

(GDFC, p. 144)

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO CRÍTICA: Ler Fleck hoje--- 13

CAPÍTULO I: O quadro conceitual fleckiano e suas linhas de desenvolvimento--- 24

1.1. Origens: especificidades das ciências médicas e a necessidade de uma nova epistemologia--- 28

1.2. Forjando categorias sociais: o projeto de uma teoria comparativa ou a refundação de uma sociologia do conhecimento --- 44

1.3. Crítica ao Positivismo Lógico – Ludwik Fleck e o Círculo de Viena--- 64

1.4. Abordagem histórica---73

CAPÍTULO II: Da comunicação à incomensurabilidade – a teoria comunicacional fleckiana e a transformação do conhecimento--- 80

2.1. Teoria comunicacional fleckiana - círculos esotéricos versus círculos exotéricos--- 81

2.2. O problema da incomensurabilidade em Ludwik Fleck--- 88

2.3. O problema da incomensurabilidade em Thomas Kuhn e Paul Feyerabend--- 100

2.4. Reconsiderando o problema da incomensurabilidade em Ludwik Fleck--- 116

CAPÍTULO III: Da incomensurabilidade à comparabilidade ------ 122

1.1. A persistência da tese relacionista em Ludwik Fleck--- 135

1.2. Tensão entre o relacionismo epistemológico fleckiano e seu projeto de uma teoria comparativa do conhecimento--- 149

CONSIDERAÇÕES FINAIS --- 160

ANEXO 1. Dados biográficos de Ludwik Fleck--- 166

2. Bibliografia completa e traduzida de Ludwik Fleck --- 169

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AGRADECIMENTOS

Agradeço primeiramente ao Prof. Caetano Plastino, pelo contínuo e longo apoio que remonta aos anos de graduação e, principalmente, pelo voto de confiança em um projeto tão incipiente em seu estágio inicial. Ao Prof. Claus Zittel (Universidade Livre de Berlim), pela pronta e contínua solicitude e pelo acesso à fontes inéditas, de inestimável valia para a condução das pesquisas. Ao Professor Mauro Condé (UFMG), por tudo que tem realizado em prol das pesquisas fleckianas em solo nacional. Ao Prof. Otávio Bueno (Universidade de Miami), por sua característica atenciosidade e fraterno acolhimento durante as visitas ao campus de Coral Gables. Ao Prof. Maurício de Carvalho Ramos (Departamento de Filosofia), pelos instigantes debates e pelo interesse por essas e outras pesquisas. Ao Prof. Johannes Fehr (Ludwik Fleck Zentrum), pela simpatia e pelo acesso a materiais dos arquivos, quando de sua visita ao Brasil. Ao Prof. Leopoldo Waizbort (Departamento de Sociologia), pelas indicações literárias e considerações críticas. Ao Prof. Wojciech Sady (Universidade Marie Curie-Skłodowska, Polônia) bem como a Zofia Maria Siwecka (Universidade de Roma), pelo envio dos artigos originais de Fleck. À Editora Suhrkamp (Frankfurt am Main), pela autorização para publicação dos materiais contidos na seção Anexo. Ao Prof. Michel Rabinovitch (UNIFESP), pelo fundamental auxílio no estabelecimento de terminologia técnica apropriada em língua portuguesa para muitos conceitos do campo médico e imunológico. Ao Prof. Jerzy A. Brzozowski (UFFS) pelo imprescindível auxílio na tradução dos títulos poloneses, bem como à Marcella Silva, pela valorosa e rigorosa revisão da maior parte de minhas traduções de excertos em língua alemã.

À equipe da Secretaria do Departamento de Filosofia, em especial, Marie, Verônica, Maria Helena, Luciana e Geni, pelo bom humor e contínuo auxílio, desde meu ingresso na Universidade de São Paulo. Aos filósofos, amigos de longas e recentes datas: Marcos, Wilson, Diego, Sérgio, Ramires e Michel (que revisou esta dissertação), pela fraterna companhia boêmia e estimulantes trocas de ideias. A Miriam, pelo carinho e apoio. Ao Daniel e a Nanci, pela generosidade e boa convivência diária.

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RESUMO

CARNEIRO, J. A. C. A teoria comparativa do conhecimento de Ludwik Fleck: entre a incomensurabilidade e a comunicabilidade. 2012 – Dissertação (Mestrado), p. 192 – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012.

A presente dissertação tem por objetivo analisar o desenvolvimento da proposta fleckiana de uma teoria comparativa do conhecimento, seu estatuto epistemológico, bem como o diagnóstico de algumas de suas dificuldades teóricas. Defenderemos o caráter potencialmente científico de sua teoria e indicaremos que a incomensurabilidade entre estilos de pensamento constitui o problema mais imediato para sua efetivação. Nesse ínterim, sintetizaremos as principais diretrizes metodológicas esboçadas em sua teoria, entendida como um programa de pesquisa aberto, e indicaremos possíveis desdobramentos futuros. Esta dissertação terá início, em sua Introdução, com uma sucinta análise das principais fases de recepção da obra de Fleck, tendo em vista a compreensão de suas tradições de leitura e do significado atual de seus escritos. No Capítulo I, reconstituiremos o quadro conceitual da teoria comparativa de Ludwik Fleck a partir da análise de suas principais linhas e dimensões de desenvolvimento: médico-imunológica, sociológica, de crítica ao positivismo lógico e histórica. O Capítulo II

será dedicado à análise dos processos comunicativos de sua teoria tanto ao nível diacrônico como ao nível sincrônico, bem como do fenômeno da incomensurabilidade. Estabeleceremos paralelos sobre a manifestação desse fenômeno com as formulações de Thomas Kuhn e Paul Feyerabend. No Capítulo III, abordaremos a tese do relacionismo cognitivo defendido por Fleck, indicando que sua teoria comparativa do conhecimento não possui um estatuto epistemológico privilegiado, sendo, portanto, um saber também relacional. Diante disso, defenderemos seu caráter científico, em conformidade, em linhas gerais, com as demais ciências naturais. Por fim, em nossas Considerações finais indicaremos, a partir das diretrizes lançadas pelo filósofo, algumas das possíveis linhas metodológicas que o programa da teoria comparativa deve seguir diante do problema da incomensurabilidade e da necessidade de um desenvolvimento metodológico mais preciso.

(8)

ABSTRACT

Ludwick Fleck’s comparative epistemology: communication and incommensurability in

the development of scientific ideas.

This dissertation aims to analyze the development of Fleck’s proposal of a comparative theory

of knowledge, its epistemological status and the diagnosis of some of its theoretical

difficulties. We will defend the potentially scientific status of its theory and indicate that the

incommensurability between thinking styles constitutes the most immediate problem for its

effectiveness. Meanwhile, we intend to synthesize the main methodological guidelines

outlined in his theory, understood as an open research program, and indicate possible future

developments. This dissertation will start in its Introduction with a brief analysis of the main

stages of reception of Fleck’s work, so as to understand its traditions of readings and the

current meaning of his writings. In Chapter I, we will reconstitute the conceptual framework

of Fleck’s comparative theory from the analysis of its main lines and dimensions of

development: medical and immunological, sociological, as well as his criticism of historical

and logical positivisms. Chapter II is devoted to the analysis of his theory of communicative

processes at both the diachronic and synchronous level, as well as the phenomenon of

incommensurability. We will establish parallels with Thomas Kuhn and Paul Feyerabend’s

formulations of this phenomenon. In Chapter III, we discuss the thesis of cognitive

relationalism defended by Fleck, indicating that his comparative theory of knowledge does

not have a privileged epistemological status, being, by its turn, also a relational knowledge. In

the face of it, we will defend its scientific character, in accordance, in general, with the other

natural sciences. Finally, in our final considerations we indicate, from guidelines released by

the philosopher, some of the possible methodological lines that the program of comparative

theory must follow regarding the problem of incommensurability and the need for a more

precise methodological development.

(9)

NOTA SOBRE TRADUÇÕES, CITAÇÕES E ABREVIATURAS

O presente trabalho serviu-se, em quase todas as oportunidades, de edições em línguas originais. Para materiais escritos originalmente em língua polonesa, teremos por base as traduções feitas para língua alemã, dada a carência de versões em língua portuguesa. No entanto, no que concerne os artigos epistemológicos mais relevantes de Ludwik Fleck, faremos um cotejamento com os originais em língua polonesa, propondo pequenas alterações nas traduções, bem como deixando transparecer, em casos de relevância conceitual, a terminologia e expressões originalmente adotadas. Indicaremos, paralelamente, a paginação do original polonês a cada citação realizada. A escolha da língua alemã como base é justificada, primeiramente, por nela encontrarmos equivalência de parcela importante do quadro conceitual fleckiano, uma vez que a monografia e outros escritos do autor foram redigidos em alemão. Ademais, a recente coletânea Denkstile und Tatsachen2, editada por Sylwia Werner e Claus Zittel, oferece novas traduções, bem como a revisão de antigas versões, todas acompanhadas de importantes notas críticas, constituindo, desse modo, material de referência indispensável para o trabalho exegético. As traduções para língua inglesa, presentes na coletânea de Cognition and Fact,3 editadas por Robert Cohen e Thomas Schnelle, serão consultadas em caso de discrepância relevante quanto à terminologia empregada, em tais casos uma nota de rodapé fundamentará a opção adotada. O mesmo procedimento será adotado para a coletânea editada por Ilana Löwy: The Polish School of Philosophy of Medicine.4

Para o caso da monografia, obra maior de Fleck, recorreremos à tradução de Georg Otte e Marina Oliveira, sob coordenação de Mauro Condé5: Gênese e desenvolvimento de um

fato científico. Tal tradução mostra-se muito coerente e fiel ao original alemão. Em algumas oportunidades, entretanto, proporemos alterações, indicando-as sempre em nota de rodapé. A paginação, em todas a oportunidades, será feita indicando primeiramente a abreviatura (GDFC) para a edição brasileira e, subsequentemente, para a abreviatura da reedição para

2 FLECK, Ludwik (2011). Denkstile und Tatsachen: gesammelte Schriften und Zeugnisse. Frankfurt: Suhrkamp.

3 COHEN, R; SCHNELE, T (1986). Cognition and Fact: materials on Ludwik Fleck. Dordrecht: Reidel. 4 LÖWY, Ilana (1990). The Polish School of Philosophy of Medicine:From Tytus Chalubinski (1820-1889) to

Ludwik Fleck (1896-1961). Dordercht: Reidel.

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língua alemã6 (EEWT). Manteremos os termos alemães citados entre parênteses pela edição brasileira, adicionando, sempre que julgarmos haver relevância conceitual, novas expressões entre colchetes. Em algumas oportunidades, compararemos passagens ou termos com as soluções propostas pelas traduções para língua inglesa7 e francesa8 Todas as traduções, exceção feita às passagens de GDFC que não sofrerem alterações, foram por nós realizadas.

As obras não abreviadas serão citada - seja em corpo de texto, seja em nota de rodapé - atentando para a data de sua publicação original, que será explicitada em colchetes quando nos servimos de edições posteriores ou traduções. A data de publicação original ordenará as referências contidas no final desta dissertação. Cada obra terá o seu título revelado, quando de sua primeira referência. Os títulos serão conservados em seu idioma original, exceção feita aos materiais originalmente publicados em polonês, que terão o título traduzido para o português, recebendo, no entanto, nota indicando o título em polonês. Ao final da dissertação, constará, na forma de anexo, uma bibliografia completa dos escritos de Ludwik Fleck.

6 FLECK, Ludwik ([1935] 1979). Entstehung und Entwicklung einer wissenschaftlichen Tatsache. Frankfurt: Suhrkamp.

7 FLECK ([1935] 1979).Genesis and Development of a Scientific Fact. Chicago, London: University of Chicago Press

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LISTA DE ABREVIATURAS DAS OBRAS MAIS CITADAS

9

LUDWIK FLECK:

SCML: O niektórych swoistych cechach myślenia lekarkiego (1927)

SMAD: Über einige spezifische Merkmale des ärztlichen Denkens10([1927] 2011)

KW: Zur Krise der 'Wirklichkeit' ([1929] 1983)

EEWT: Entstehung und Entwicklung einer wissenschaftlichen Tatsache. ([1935] 1980)

GDFC: Gênese e desenvolvimento de um fato científico11(1935] 2010)

FGME: Zur frage der Grundlagen der mezinischen Erkenntnis (1935)

SOPG: O obserwacji naukowej i postrzeganiu wogóle (1935)

WBWA: Über die wissenschaftliche Beobachtung und die Wahrnehmung im allgemeinen12 ([1935] 2011)

ZTP: Zagadnienie teorii poznawania (1936)

PTE: Das Problem einer Theorie des Erkennens13 ([1936] 2011)

NS: Nauka a środowisko ([1939] 2007)

WU: Wissenschaft und Umwelt14 ([1939] 2011)

PSS: Problems of science of science15 ([1946] 1986)

WP: Wissenschaftstheoretische Probleme16([1946] 2011)

SSW: Schauen, sehen, wissen17 ([1947] 2011)

CS: Crisis in the Science. ([1960] 1986)

9 Para um levantamento bibliográfico completo de Fleck, conferir Anexo 1 desta monografia.

10 Tradução para língua alemã do artigo polonês: O niektórych swoistych cecach myślenia lekarskiego (1927) 11 Tradução para língua portuguesa de Entstehung und Entwicklung einer wissenschaftlichen Tatsache [1935] 12 Tradução para língua alemã do artigo polonês: O obserwacji naukowej i postrzeganiu wogóle (1935) 13 Tradução para língua alemã do artigo polonês: Zagadnienie teorii poznawania (1936)

(12)

THOMAS KUHN:

CCC: Commensurability, Comparability, Communicability ([1983] 2000)

(13)

INTRODUÇÃO CRÍTICA

Ler Fleck hoje

Claude Lefort, ao refletir sobre os desafios envolvidos na interpretação de um “obra de pensamento”18, diria que “é um fato muito pouco observado que a tentativa do intérprete o liga necessariamente a um empreendimento coletivo que, na maioria das vezes, o precede e prolongar-se-á para além dele”. Tal princípio seria válido mesmo no caso hipotético de um primeiro intérprete, de uma obra ainda inaudita, já que “[...] seu lugar [do intérprete] e todos os esquemas organizadores de seu trabalho lhe são já traçados e sugeridos do exterior [...]” (LEFORT, 1979, p. 175). Embora Lefort pense primariamente em autores do universo político, tanto o conceito de “obra de pensamento” quanto sua atenção às tradições interpretativas que circundam qualquer grande pensador, parecem-nos oportunas ao entendimento atual de Ludwik Fleck.

Os escritos de Ludwik Fleck consistem, na sua esmagadora maioria, numa produção cientifica, que totaliza mais de 180 registros. Tais produções limitam-se quase por completo às áreas de imunologia e microbiologia, estando dispersos em várias línguas e publicações19. Há, no entanto, ao menos uma dezena de trabalhos que versam primariamente sobre epistemologia – embora uma primeira leitura destes já indique a existência de discursos que vão da história da ciência passando pela teoria e sociologia do conhecimento, psicologia social e política. No interior desse grupo menor de escritos - verdadeiras obras de pensamento no sentido lefortiano - figura uma monografia, única produção publicada na forma de livro, que merece interesse particular: Gênese e desenvolvimento de um fato científico20. Uma breve história da recepção deste livro, que será o magnum opus do projeto epistemológico fleckiano, sintetizando todas as suas linhas de desenvolvimento, é de grande valia para definirmos o

18 Em A obra de pensamento e a história,Lefort emprega tal termo para referir-se a discursos tão diversos como os de Platão, Montaigne, Maquiavel, Marx ou Freud. “Obra de pensamento” designa, ainda que de modo puramente negativa,“[...] o que não é nem obra de arte nem produção de ciência, que se ordena em razão de uma intenção de conhecimento para a qual, no entanto, a linguagem é essencial.” (LEFORT, 1979, p. 155). 19 Está disponível ao fim desta dissertação, na forma de anexo, a relação completa de toda produção técnica e

bibliográfica de Ludwik Fleck.

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sentido de uma releitura contemporânea do pensador polonês. Como teremos a oportunidade de indicar ainda no primeiro capítulo desde trabalho, ler a obra de Fleck a partir de suas tradições interpretativas, seria não só coerente, mas inevitável ao assumirmos sua perspectiva de uma teoria do conhecimento, histórico e socialmente ancorada.

***

Logo após ver publicado seu segundo artigo epistemológico em 1929 - primeiro escrito em alemão - na prestigiada revista Die Naturwissenschaften [As ciências naturais]21, Ludwik Fleck, ignorando a pouca atenção dada às suas ideias22, iniciará a redação de uma obra de maior fôlego, contrapondo-se diretamente às principais ideias epistemológicas de sua época, bem como sugerindo a inclusão de novas áreas do conhecimento para reflexão para reflexão teórica, tal como podemos constatar em sua carta endereçada a Moritz Schlick:

Eu não poderia deixar de notar que a teoria do conhecimento [Erkenntnistheorie] investiga, no mais das vezes, não o conhecimento tal como factualmente se manifesta, mas sim sua construção ideal imaginária [Idealbild], que carece das suas propriedades reais. Mesmo a escolha dos materiais (quase exclusivamente do campo da física, astronomia ou química) são, em meu juízo, errôneas, pois o surgimento de conhecimentos elementares da física vem de muito antes, a tal ponto que nós apenas podemos investigar com muita dificuldade, e os novos conhecimentos são muito, por assim dizer, presos ao sistema [systembefangen] tão sugeridos a todos nós por meio da formação escolar e tradição científica […] A frase: todo conhecimento provem das impressões sensíveis não é apropriada, pois a maior parte do conhecimento de todos os homens provem dos manuais [Lehrbüchern]. E esses manuais originam-se de outros livros e outros escritos e assim por diante.. Carta endereçada a Moritz Schlick em 5 de setembro de 1933 (Cf. FLECK,[1933] 2011, p. 561)

Tais ponderações feitas por Fleck não são originais, estão, no essencial, em plena consonância com aquelas já destacadas quatro anos antes em KW. Com relação ao desenvolvimento posterior das ideias do autor, embora não tenhamos conhecimento textual do manuscrito enviado a Schlick, as indicações feitas no corpo da carta sobre sua organização e divisões internas parecem indicar que a organização do texto estava muito próxima ao da monografia tal como publicada em 193523 o que nos serve de pista indicativas sobre quais

21 Trata-se do artigo Zur Die Krise der Wircklichkeit. Publicado no mensário Die Naturwissenschaften.

22 Não encontramos nos índices onomástico da Die Naturwissenschaft referente aos anos subsequentes à publicação do artigo de Fleck, qualquer referência seja ao autor, seja a seu artigo.

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seriam os tópicos de seu projeto epistemológicos que o autor teria maior interesse em enfatizar no contexto do debate do Círculo de Viena.

A delonga de mais de seis meses da resposta de Schlick – que gentilmente a atribui à sua intensa agenda acadêmica - por si só já poderia ser entendida como indicativo do distanciamentos entre os compromissos epistemológicos assumidos por ambos. Em sua resposta, o epistemólogo alemão demonstraria a um só tempo, interesse e discordância sobre as considerações contidas no manuscrito fleckiano:

Seu manuscrito despertou-me muito interesse e certamente representa uma realização científica de alto nível. Eu, contudo, não teria condições de concordar com suas conclusões concernentes à Teoria do Conhecimento (eu teria de dedicar muito tempo e espaço para esclarecer as razões para tal). Posso, no entanto, muito apreciar e louvar a riqueza intelectual, a erudição, a inteligência dos seus argumentos bem como o alto nível intelectual do todo. (Carta resposta de Moritz Schick endereçada a Ludwik Fleck, datada de 16 de março de 1934. Cf. SCHLICK, [1934] 2011,p. 563)

Em que pese a notória heterodoxia para o pensamento positivista lógico, hegemônico à época, seria justamente a Moritz Schlick, como indica a referida carta, que o autor polonês buscara auxilio para edição da sua monografia. A publicação junto à editora Springer (por intermédio de Schlick) foi negada. Tal negativa, aliado ao baixo interesse ou desconhecimento pelos demais membros do Círculo de Viena (Áustria) e à posterior ascensão do Partido Nacional Socialista na Alemanha24 dificultou muito difícil a publicação de sua obra em solo alemão. Restaria, como destaca Erich O. Graff25, a Suíça. A casa editorial contratada, Benno Schwabe e Co. estaria “[...] no cruzamento dos domínios abordados pela monografia […] seu catálogo continha obras filosóficas e médicas desde muitos séculos” (GRAF, 2009, p. 64). Publicada em 193526, a monografia não fora completamente ignorada à época, tendo recebido treze resenhas em publicações europeias não polonesas27. Seria necessário dizer, no entanto,

capítulo IV da Monografia receberam respectivamente os seguintes títulos: “Observação, experimento e experiência”, “Algumas características do coletivo de pensamento científico moderno”. Já a seção IV do Capítulo II e Seção III do Capítulo IV receberia as seguintes designações: “Considerações introdutórias acerca do coletivo de pensamento – O condicionamento social de todo conhecimento.” e “Considerações adicionais acerca do coletivo de pensamento”.

24 Fleck, lembramos, era de ascendência judia.

25 Erich O. Graf, em HABENT SUA FATA LIBELLI – Le destin des livres, tenta reconstruir todo itinerário da monografia fleckiana a partir da análise de trocas epistolares entre o autor a a casa editorial Benno Schwabe. As cartas constam na forma de fac-símile em seu artigo Cf. GRAF, 2009, p. 63-76. Tais cartas foram recentemente republicadas na coletânea Denkstile und Tatsachen. (Cf. FLECK, 2011, p. 592-596).

26 Não poderíamos deixar de lembrar que, um ano antes fora publicada a Lógica da Pesquisa Científica [Logik der Forchung] de Karl Popper, que, embora não fosse ignorada à sua época, também seria “redescoberta” como a monografia de Fleck.

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que a maior parte dessas resenhas constava em revistas da área médica. Tal fato, somado à não penetração junto ao Círculo de Viena (principal centro de difusão de ideias epistemológicas de então), constituiu o primeiro fator de restrição à circulação das ideias de Fleck em um ambiente de discussão propriamente epistemológica. A eclosão da II Guerra Mundial e, com ela, a desarticulação de boa parte dos círculos intelectuais europeus, bem como a migração, perseguição ou detenção (caso do autor em questão) de boa parte da comunidade judia, comprometera ainda mais tal difusão.

Não seria possível afirmar, porém, que a monografia não foi lida à época. Tendo 450 exemplares vendidos até 1940, tal obra “[...] embora não fosse um best-seller, constituiu um livro que fora adquirido pelos círculos científicos do antes Guerra.” (GRAF, 2009, p. 65). No pós Guerra, tal interesse continuaria vivo em solo norte-americano. Afirmou Fleck em correspondência de 20 de abril de 1949 à casa editorial Benno Schwabe: “Na minha opinião seria muito importante promover o livro no mundo científico americano, onde a problemática da sociologia do conhecimento é discutida vivamente hoje”.28 Em outra carta, mais extensa, datada de 1 de novembro de 1959, o autor fizera referência a um “físico reconhecido” norte-americano Prof. H. K. Schilling então docente da Universidade do Estado da Pensilvânia, citando passagens de uma carta assinada por Schilling29:

Por favor acredite que eu me expresso com sinceridade quando digo que este é um livro notável. Deve ser dito que está à frente de seu tempo. Seria pouco provável que eu pudesse tê-lo apreciado ou entendido vinte anos atrás […] Sua editora na Basileia teria exemplares disponíveis? Ou estão esgotados? Gostaria de escrever a alguns de meus amigos sobre esse assunto e recomendá-los cópias seguras.30

Algumas linhas mais à frente da mesma carta, haverá uma referência a Michel Polanyi31, autor do livro Personal Knowledge, livro este que conteria, segundo Fleck, um “ponto central comparável” ao de sua monografia, afirmando ainda que havia enviado a Polanyi “um exemplar de meu livro, que ele não conhecia”.32 Tais considerações pareciam visar municiá-lo

28 Ludwik Fleck. Carta de 20 de abril de 1949 à casa editorial Benno Schwabe. (Cf. GRAF, 2009, p. 70, fac-símile da carta).

29 Fleck fará referência ao artigo de Schilling A human enterprise (Science, 127, 1958) em seu último artigo epistemológico Crisis in the Science , redigido em 1960 e publicado apenas postumamente.Cf. (CS, p. 154). 30 Idem. Carta de 1 de novembro de 1959 à casa editorial Benno Schwabe. (Cf. GRAF, 2009, p. 71, fac-símile

da carta).Tal passagem fora escrita em inglês, em contraste com o resto da carta, escrita em alemão. Isso reforça a veracidade de que Fleck tenha de fato estabelecido uma troca de correspondências com o professor Schilling.

31 Tanto Personal Knledge (1958) quanto The study of man (1959) também serão citados em Crisis in the Science. (Cf. CS, p. 156)

(17)

a solicitar, ao final da carta, uma nova edição de sua obra: “[...] meu livro ainda é atual e talvez fosse conveniente pensar numa nova edição com alterações [modernisierte Neuauflage]”.33

A proposta do autor não foi deferida pela Casa Editorial, que a justificou com base na baixa vendagem da primeira edição, salientando ainda a existência de 258 exemplares encalhados no estoque.34 Esse estoque seria, em sua quase totalidade, descartado pela editora alguns anos mais tarde, como indica uma carta endereçada ao autor – já morto à época – datada de 11 de outubro de 1966.35 Ora, parece importante chamar a atenção para o fato de que tal descarte ocorreria alguns anos depois da publicação, em solo americano, da obra que seria diretamente responsável pela redescoberta do filósofo polonês: The Structure of Scientific Revolutions de Thomas Kuhn. Não poderíamos ignorar a grande ironia envolvida nesses fatos. Destaca Graf que a obra de Kuhn foi publicada na forma de um fascículo da

Foundations of the Unity of Sciences36. Trinta anos antes, como visto, a monografia de Fleck fora ignorada por Moritz Schlick. Ora, a monografia de Fleck estava citada na obra que seria um divisor de águas, consolidando o momento pós-positivista em curso no interior do debate epistemológico, issograças ao aceite para publicação recebido por Thomas Kuhn.

Uma análise do que virá a ser considerada a segunda fase de recepção da obra de Fleck, mereceria, antes, algumas palavras sobre um positivista lógico que seria o responsável direto pelo conhecimento de Kuhn da obra de Fleck: Hans Reichenbach. Um dos europeus que lera Fleck ainda antes da II Guerra, ao analisar a possibilidade de uma construção objetiva do mundo por Experience and prediction, publicado em 1938, se depararia com as dificuldades advindas da constatação de certas “condições históricas”, bem como influências do “meio social” a que todo e qualquer indivíduo estaria submetido. A percepção visual seria a instância em que tais influências atuariam de modo mais claro: “Nossos olhos modernos,

carta)

33 Carta de 1 de novembro de 1959 à casa editorial Benno Schwabe. (Cf. GRAF, 2009, p. 71, fac-símile da carta, p. 71. Tal afirmação, somado à declaração feita dois anos antes em jornal polonês (Cf. SCHNELLE, 1982) sobre e “segundo volume” de sua monografia, indicam o real interesse de Fleck em retomar ou alterar de modo substancial seu projeto epistemológico. No entanto, nem a nova edição da monografia tão pouco a publicação de um complemento foram concretizados.

34 Carta Resposta da Benno Schwabe endereçada a Fleck, data de 8 de Dezembro de 1959. (Cf. GRAF, 2009, p. 73, fac-símile da carta)

35 Carta Resposta da Benno Schwabe endereçada a Fleck, data de 11 de outubro de 1966. (Cf. GRAF, 2009, p. 74, fac-símile da carta)

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familiarizados com casas retangulares e construções de aço, enxergam as ricas formas da natureza pela estrutura [frame] de nosso estilo arquitetônico.” (REICHENBACH, 1938, p. 224). Tal passagem viria acompanhada da seguinte nota de rodapé:

Cf. L. Fleck. Entstehung und Entwicklung einer wissenschftliche (Basileia, 1935) p. 147, prancha III. Fleck mostra desenhos antigos e modernos de esqueletos humanos extraídos de manuais médicos; ele destaca que nos desenhos antigos o esqueleto é sempre visto como um símbolo de morte, ao passo que nos modernos, é um símbolo de construção mecânico-técnica. (REICHENBACH, 1938, p. 224)

Tal passagem parece ensejar o filósofo alemão a firmar, algumas linhas adiante, que “Em vez de livrar nosso mundo imediato da influência do meio, nós o adaptamos a outro meio”. (REICHENBACH, 1938, p. 224).

Em princípio, o conceito de “percepção de forma” [Gestaltsehen], tão caro à epistemologia fleckiana – como veremos no primeiro capítulo deste trabalho – parece ter sido incorporado em Experience and Prediction. No entanto, não seria necessário avançar mais que uma página do livro de Reichenbach para encontrarmos expressões como “características essenciais do mundo”, “totalidade perceptiva superior” e, de modo mais arrematador, a crença em uma “[...] construção total do mundo, a expansão consistente do que nos autoriza a uma reivindicação constantemente aprimorada [ever increasing] da objetividade.” (REICHENBACH, 1938, p. 225). Ora, tal concepção afasta-se sobremaneira daquela defendida pelo filósofo polonês e de sua “percepção de forma”.

Seria, entretanto, essa leitura bastante livre, senão rápida, que conduzirá Thomas Kuhn entre os anos de 1949-1950 à leitura daquela monografia de título tão pouco usual à época.37 Doze anos mais tarde poderíamos ler a célebre passagem do prefácio de sua The structure of scientific revolutions38:

Um ensaio [monografia de Fleck] que antecipa muitas de minhas próprias ideias. O trabalho de Fleck, juntamente com uma observação do “Junior Fellow”, Francis X. Sutton, fez-me compreender que essas ideias podiam necessitar de uma colocação no âmbito da Sociologia da Comunidade Científica. (SSR, p. 11)

Tal citação motivará a busca de informações sobre esse desconhecido polonês. Pioneiros foram os trabalhos de W. Baldamus no sentido de resgatar a monografia fleckiana e, também,

37 Algo que reafirmaria em sua última entrevista [A discussion with Thomas Kuhn] realizada em 1995 e publicada em 1997, sendo republicada na coletânea The road since Structure publicada em 2000. (Cf. KUHN, [1997] 2000, p. ) p. 283.

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parte de seus escritos científicos.39

Será, no entanto, apenas com a edição em língua inglesa da monografia em 1979 seguida um ano mais tarde pela sua reedição em língua alemã e, três anos mais à frente com tradução e publicação de uma coletânea, Cognition and Fact, contendo seus principais artigos em sua maior parte escritos originalmente em polonês, que a obra de Fleck ganharia um público leitor mais amplo. Essa “segunda fase” de recepção da sua obra, tal como denominaram recentemente Sylwia Werner e Claus Zittel40, seria marcada pelo interesse em compreender em que medida as ideias de Fleck teriam antecipado e influenciado a teoria dos paradigmas de Thomas Kuhn. Com o paulatino desinteresse pelo modelo kuhniano, calcado na história da física, acompanhado por um olhar mais atento às ciências da vida, culminando no “cultural turn” pós-moderno e ascensão da epistemologia histórica, desembocaríamos na terceira fase, de sua recepção qualificada como “amplamente exitosa” de sua recepção. (WERNER; ZITTEL, 2011, p. 3).

No atual momento, a epistemologia fleckiana passaria a fornecer um instrumental conceitual capaz de lidar com questões emergentes – que em boa medida foram suscitadas pela leitura de sua obra, tais como o papel da metáfora, das ilustrações, instrumentação, emoções e relações interdisciplinares no interior da prática científica. Essa ampla gama de estudos somente poderia surgir a partir do descolamento entre Fleck e Kuhn41, descrito de modo quase poético pelo editores:

As teorias de Fleck saíram finalmente das longas sombras de Kuhn e são agora reconhecidas como uma posição própria no interior das teorias científicas. Não tardará muito até que a teoria do paradigma de Kuhn se torne apenas algo como uma nota de rodapé de um renascimento geral de Fleck. (WERNER; ZITTEL, 2011, p. 16)

Seria necessário ponderar que, ainda que marcada mais diretamente pelo signo da

39 A esse respeito cf., por exemplo, artigo de Baldamus The role of Discoveries in Social Science (1972) bem como seu livro The structure of social inference (1976).

40 A esse respeito, conferir a Introdução [Einleitung] feita por Werner e Zittel para a coletânea Denkstile und Tatsachen (WERNER; ZITEEL, 2011, p. 12).

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busca pelas fontes envolvidas no projeto epistemológico de Thomas Kuhn, a “segunda fase” de recepção da obra de Fleck fora marcada igualmente por um rigoroso estudo acerca das próprias fontes envolvidas no desenvolvimento de suas ideias. Alguns exemplos fundamentais desse esforço pela busca de fontes seriam as pesquisas de Thomas Schnelle, iniciadas em fins dos anos 70, resultando na publicação de Ludwik Fleck – Leben und Denken em 198242. Tal tipo de investigação ganharia ainda fôlego adicional com os trabalhos de Ilana Löwy em meados dos anos 8043, que culminariam na publicação de The Polish schol of philosophy of

medicine44, em 1990. Ainda digno de nota seria o artigo de Anne-Marie Moulin: Fleck's style (1986) que visa interpretar de que modo Fleck absorveu as teorias imunológicas e microbiológicas em disputa à sua época. Em outras palavras, Moulin buscava compreender o “estilo de pensamento” defendido pelo, não só filósofo, mas também cientista Ludwik Fleck. Por fim, baseada em uma abordagem mais técnica e histórica, temos a contribuição de Bernard Zalc no artigo Fleck and the Bordet-Wassermann reaction (1986), centrado em compreender os pressupostos químicos e bioquímicos envolvidos na reação de Wassermann no contexto de seu desenvolvimento.

A obra de Fleck desde o início motivou, por sua riqueza, uma gama muito variada de leituras e leitores. Uma tradição de leitura que busca enfatizar mais as diferenças que as semelhanças entre as formulações epistemológicas de Ludwik Fleck com a filósofos posteriores - em especial, Thomas Kuhn – funda-se, a nosso ver, no fato da proposta de Fleck, além de sua originalidade, não assumir certas teses problemáticas, como a das “revoluções científicas” em seu sentido forte, como fora defendida inicialmente por Kuhn45. Tal tradição, a nosso ver bem fundamentada, não isentaria o projeto fleckiano de certas dificuldades teóricas. Mais que isso, defenderemos que certos refinamentos conceituais desenvolvidos por Kuhn, face às críticas desferidas contra suas “revoluções” e “paradigmas incomensuráveis”, podem

42 SCHNELLE (1982). Ludwik Fleck – Leben und Denken. Em seu livro, além de reunir a biografia e o levantamento bibliográfico de Fleck, Schnelle estabelecerá importantes paralelos entre as ideias do autor algumas e com a de outros três poloneses: Leon Chwistek, Kazimierz Ajdukiewiez e Leon Chwistek.

43 Cf., por exemplo, o artigo de Ilana Löwy. The epistemology of the science of an epistemologist of the sciences: Ludwik Fleck's Professional outlook and its relationship to his philosophical works (1986), ou.

Ludwik Fleck on the social construction of medical knowledge (1988).

44 Nesse livro, Löwy sintetizará seu esforço em abrir uma nova linha de pesquisa acerca das fontes envolvidas na epistemologia fleckiana, ao buscar fundamentos de seus principais conceitos na tradição médica polonesa, por ela denominada Escola Polonesa de Filosofia da Medicina.

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em boa medida dialogar com as formulações epistemológicas fleckianas.

Nossa defesa, obviamente, baseia-se em alguns pressupostos. Primeiramente, é necessário admitir muitas semelhanças, inclusive, em alguns casos, certas equivalências conceituais, entre Thomas Kuhn e Ludwik Fleck, e, em menor escala, entre o segundo e Paul Feyerabend. O problema da incomensurabilidade, que receberá um capítulo especialmente dedicado à sua análise, estará no cerne de nossa tese. Assumiremos que tal problema é real na obra de Fleck. Ainda que não conduza a grandes rupturas e descontinuidades bruscas no processo de transição entre estilos tematicamente afins ou historicamente aproximados, o problema da incomensurabilidade não deixará de engendrar dificuldades quanto à possibilidade de uma real comparabilidade entre estilos de pensamentos. Ora, nisso reside a maior ambição do filósofo polonês: construir uma “teoria comparativa do conhecimento”46 . Um último pressuposto consiste em assumir a teoria fleckiana como um projeto aberto, bem como identificar quais as suas diretrizes gerais. Entender quais soluções seriam consistentes com suas diretrizes, face a dificuldades teóricas enfrentadas. Tal abordagem, pensamos, é consistente com a concepção que o autor tinha sobre a produção do conhecimento, atividade social por excelência, dinâmica e historicamente ancorada. Nossa proposta de leitura, antes que anacrônica ou parcial, é crítica; busca situar suas ideias no debate epistemológico de época bem como no debate mais amplo e recente, a partir do desdobramento de suas concepções.

***

Na defesa de nossa tese faz-se necessário uma estratégia geral de leitura do corpus

textual de Fleck. Nosso escopo circunscreve-se à sua obra maior, a monografia de 1935, bem como aos seus artigos de interesse propriamente epistemológico, redigidos entre 1927 e 1960. Referências à sua produção propriamente científica serão feitas, porém de modo secundário. O Capítulo I terá como objetivo central o de reconstituir o quadro conceitual fleckiano a

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partir de suas principais linhas de desenvolvimento. Talvez a maior dificuldade de ler Fleck resida no vocabulário original, com amplas referências a tradições epistemológicas, sociológicas e médicas vigentes à época. Tradições essas que devem ser investigadas, uma vez que constituem algumas das fontes e influências às concepções fleckianas ali nascentes. Nossa busca pelas fontes terá - além do esclarecimento da terminologia técnica amplamente utilizada - mais interesse por localizar diferenças e contraposições, que propriamente semelhanças entre Fleck e seus contemporâneos. Como poderemos observar, Fleck escolherá seus interlocutores, no mais das vezes, a fim de estabelecer uma oposição às suas próprias ideias, indicando não apenas como seus conceitos deveriam ser entendidos, mas, antes de tudo, como não deveriam sê-lo.

O interesse do Capítulo II estará fundamentalmente voltado em compreender o que talvez seja o aspecto mais original da obra de Fleck: os mecanismos comunicativos envolvidos nos processos de mudança dos estilos de pensamentos. Analisaremos de maneira detalhada os processos comunicativos entre círculos esotéricos e exotéricos. Defenderemos, nesta oportunidade, que a incomensurabilidade – ao nível sincrônico e diacrônico de tal comunicação - ainda que não conduza a rupturas abruptas no campo do conhecimento, engendrará dificuldades no que tange à possibilidade de uma tradutibilidade e, mesmo, de uma comparabilidade entre estilos de pensamento distintos. Na segunda metade do capítulo, após realizado um trabalho de comparação e aproximação dos conceitos de incomensurabilidade tal como entendidos por Kuhn, Feyerabend e Fleck, analisaremos até que ponto as críticas sofridas por Kuhn47 poderiam ser direcionadas a Fleck. Por fim, analisaremos se seria possível encontrar nesse autor, tal como encontramos em Kuhn, a distinção entre interpretação e tradução.

O Capítulo III será dedicado à análise da tese do relacionismo cognitivo de Ludwik Fleck face seu projeto de uma teoria comparativa do conhecimento subentendida como uma metaciência propriamente dita, dotada de referências e métodos capazes de ultrapassar as fronteiras de um determinado estilo de pensamento. Defenderemos, no entanto, que a teoria

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comparativa do conhecimento não possui um estatuto epistemológico privilegiado, sendo, portanto, um saber também relacional. Diante disso, indicaremos seu caráter científico, conforme, em linhas gerais, com as demais ciências naturais. Por fim, em nossas

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CAPÍTULO I:

O quadro conceitual fleckiano a partir de suas principais linhas de

desenvolvimento

Ler Fleck impõe, de entrada, certas dificuldades. A orientação de suas ideias epistemológicas aparenta uma originalidade – ou, no mínimo, heterodoxia - não só para sua época, mas também para o leitor contemporâneo. Tal heterodoxia já pode ser antevista na própria terminologia por ele cunhada. Ao abrirmos sua monografia, Gênese e desenvolvimento de um fato cienífico [Entstehung und Entwicklung einer wissenschaftlichen Tatsache]48, nos deparamos com expressões como: “coerção no pensamento” [Denkzwang], “sinal de resistência” [Widerstandsaviso], “acoplamentos ativos e passivos” [Aktive und passiv Koppelungen], “protoideias/pré-ideias” [Ürideen/Präideen], “estilo de pensamento” [Denkstil], “coletivo de pensamento” [Denkkolektiv], dentre outras expressões. Tal vocabulário, como veremos, longe de refletir pedantismo, busca satisfazer as necessidades conceituais de uma teoria inovadora, que poderia perder em boa medida sua precisão, expressividade e, inclusive seu característico estilo, caso fosse expressa por meio de palavras já desgastadas, conceitualmente contaminadas.

Assim descritas, as ideias de Fleck parecem não possuir antecessores, o que nos poderia fazer conceber seu pequeno livro como que uma “Atenas emergindo já plenamente desenvolta da cabeça de Zeus”, como metaforizou Allan Janik49. Supor, no entanto, que estamos diante de uma obra sem antecessores, constituiria um paradoxo ao próprio pensamento do autor, já que não haveria lugar para criações ex nihilo no campo das ideias, segundo sua teoria. A rigor, não seria possível falar de um objeto sem todo o desenvolvimento histórico e “estado de conhecimento” [Wissensbestand], usando mais um de seus termos, a ele relacionado, como é explicitado já em um de seus primeiros artigos epistemológicos. Claro, embora desejável, não estaria em questão, nem sequer seria possível, reconstituir todas as “linhas de pensamento”, “coletivos de pensamento” e “estilos de pensamentos” englobados na

48 Doravante referida ora pela abreviatura GDFC (edição brasileira), ora por EEWT, referente à reedição alemã de 1980.

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atmosfera de ideias vivida por Fleck. Nos parece ser, no entanto, imprescindível localizar algumas das possíveis fontes motivadoras de suas posições teóricas, mas também das alternativas dominantes à época, às quais se contrapunha. A partir da análise de certos pontos e contrapontos, será possível melhor compreender a direção e o desenvolvimento assumidos pelo projeto epistemológico e filosófico fleckiano, assim como precisar melhor seu quadro conceitual.

Ao analisarmos a questão das fontes envolvidas, não poderíamos deixar de citar o trabalho pioneiro e ainda atual de Thomas Schnelle50. Em Leben und Denken, Schnelle defenderá que seriam três pensadores poloneses, ainda que indiretamente, as fontes da orientação inovadora de Fleck: Leon Chwistek e Kazimierz Ajdukiewicz (pensadores ligados à tradição da Escola Lógica Polonesa, sendo Ajdukiewicz também associado ao Círculo de Viena e Chwistek, que além de lógico, atuava paralelamente como pintor e crítico de arte) e Kaziemierz Twardowski (associado à tradição fenomenológica e psicológico-descritiva). No entanto, a ausência de referências textuais a qualquer um dos três no corpus fleckiano, conjuntamente à falta de evidências de conhecimento mútuo entre esses pensadores e Fleck51, não deixam de dificultar a tese de Schnelle. Por fim, seria necessário destacar a própria aversão encontrada no pensamento do filósofo polonês quanto à tendência de formalização lógica da ciência ou de sua fundamentação por vias transcendentais.52

No presente capítulo, nosso esforço de uma reconstituição do quadro conceitual e das principais linhas de desenvolvimento do projeto epistemológico fleckiano privilegiará autores e escolas que tenham recebido referências textuais explícitas no corpus textual do filósofo polonês. Embora reconheçamos a limitação de tal estratégia, dada a possibilidade de existirem múltiplas influências para além daquelas que Fleck explicitamente reconhecera ou decidira se contrapor de modo possivelmente retórico, pensamos que tal caminho seja proveitoso na medida em que ajuda a delimitar e clarificar tanto a terminologia como a evolução de seu pensamento. O pressuposto básico de tal abordagem reside no fato de que, ao fazer referência a autores de sua época, Fleck não estaria apenas em busca de argumentos de autoridade, mas

50 Thomas Schnelle, em fins dos anos 70, iniciou um extenso trabalho de levantamento bibliográfico e biográfico e levantamento de fontes teóricas sobre o então desconhecido Ludwik Fleck. Tal resultou na assinatura, juntamente com Lothar Schäfer, da introdução crítica da edição alemã, em 1980 e, dois anos mais tarde, na publicação do livro Ludwik Fleck – Leben und Denken.

51 Exceção feita à Leon Chwistek, que, inclusive assinou uma resenha elogiosa para a monografia de Fleck. (Cf. SCHNELLE, 1982, p. 341).

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sim estabelecendo uma movimentação de posições e contraposições a fim de definir de que modo suas ideias deveriam ser entendidas ou, antes, como não deveriam ser entendidas. A isso soma-se o fato de que, em um trabalho de modesta dimensão, com um objetivo bastante reduzido, não seria possível desenvolvermos uma crítica genética, histórica e de fontes em seu sentido exaustivo.

Não pensamos com isso que a busca por fontes ou referências indiretas seja desnecessária. Além dos trabalhos já citados de Thomas Schnelle e Allan Janik, seria digno de nota o esforço empreendido por Claus Zittel em estabelecer, a partir de uma extensa análise análise histórica, aproximações entre o conceito de “estilo” tal comoempregado por diversos autores europeus entre o fim do século XIX e princípios do século XX com a noção fleckiana de “estilo de pensamento”.53Dentre os estudos de fontes indiretas, a linha de pesquisa mais profícua para o propósito do pressente trabalho é a desenvolvida por Iana Löwy em The epistemology of the science of an epistemologist of the sciences, artigo em que defenderá uma explicação diversa - embora em última instância complementar - àquela oferecida por Schnelle. A fim de compreender as origens da inovadora “abordagem relativista” do filósofo polonês, Löwy defenderá que “sua visão da ciência e sua atitude concernente à natureza [...] derivam de sua experiência profissional [médica, microbiológica, imunológica]” (LÖWY, 1986, p. 421) 54. Tal pesquisa culminará em The Polish School of Philosophy of Medicine (1990), livro em que Löwy resgatará uma longa e original tradição médica e filosófica estabelecida em solo polonês, tendo a figura de Ludwik Fleck como seu último expoente.

Iniciaremos a primeira seção deste capítulo como a linha de desenvolvimento que deriva justamente da análise de Löwy, buscando compreender de que modo o meio profissional médico, com suas especificidades e disputas teóricas moldou sua perspectiva teórica e o motivou a pensar a epistemologia das ciências médicas a partir de categorias distintas das demais ciências naturais. Indicaremos também a transição de seu projeto do campo estritamente médico para o esboço de uma epistemologia geral. A segunda seção buscará compreender a dimensão propriamente social de sua teoria, principalmente a partir da análise do desenvolvimento do par conceitual “estilo de pensamento” e “coletivo de pensamento”, que serão amalgamados na ideia de uma “percepção da forma” realizada coletivamente. A terceira seção apresentará um panorama do debate epistemológico à época

53 Cf. ZITTEL. Ludwik Fleck und der Stillbegriff in den Naturwissenschaften (2011).

54 Para informações mais detalhadas sobre a formação e atuação profissional de Ludwik Fleck, consulte a seção

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1.1. ORIGENS

Especificidades das ciências médicas e a necessidade de uma nova

epistemologia

Não podemos ignorar o fato de que Fleck jamais fez referência textual a qualquer um dos principais representantes da referida Escola Polonesa da Filosofia da Medicina. Não obstante, Löwy, não só o associa a tal Escola, como chega a afirmar que “[...] ele [Fleck] provavelmente permaneceu mais fiel (ainda que à própria maneira) ao espírito dessa Escola que outros pensadores de sua geração que explicitamente se reconheciam como discípulos da Escola Polonesa”55. Sendo ou não considerado membro da Escola Polonesa de Filosofia da Medicina, Ludwik Fleck, para além de sua atuação profissional e pesquisa científica, possuía profundo interesse por diversos temas debatidos ali debatidos, em especial, pelas questões do estatuto científico e epistemológico do conhecimento médico, da relação entre prática clínica e conhecimento teórico e da relação entre a medicina e sua história. A reflexão sobre tais temas culminaria na publicação de seu primeiro escrito de natureza epistemológica.

Sobre algumas característica específicas ao modo médico de pensar

Seis anos após ter iniciado a carreira médica e científica – período que resultou na publicação de seis56 artigos associados aos campos da Imunologia e Microbiologia – Ludwik Fleck profere em 1926 uma apresentação para a IV Seção da Sociedade dos Amigos da História da Medicina em Lwów57 intitulada Sobre algumas características específicas ao modo médico de pensar,publicada um ano mais tarde, esta conferência constituirá o primeiro trabalho de caráter epistemológico do autor.58 Tal conferência, como veremos, resgata uma

55 Os demais membros listados por Löwy são: Tytus Chalubinski, Edmund Biernacki, Władysław Biegański, Zygmunt Kramsztyk, Adam Wrzosek e Stanislaw Trazebiński.

56 A respeito do levantamento completo da produção bibliográfica do autor, consulte o Anexo, ao final da dissertação.

57 Em polonês: Poziedzenia Towarzystwa Miłośników Historji Medycyny.

58 Escrita em polonês sob o título O Niektórych swoistych cechach Myślenia lekarkiego [1927], publicada no

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parte importante dos problemas concernentes à Escola Polonesa. Como já sugerido em seu título, o problema central do artigo reside em distinguir quais seriam as especificidades da medicina, quando confrontada com as demais ciências. Partindo da análise do estado “anormal”, “patológico”, a primeira dificuldade residiria em distinguir, ainda que de modo arbitrário, a fronteira entre normalidade e anormalidade e, disso, o estabelecimento de uma “norma” para o que, em princípio, designamos como “anormal”59. Para Ludwik Fleck, o estabelecimento de um determinado estado patológico (anormal) individual - que é, por definição, variável - com doenças específicas “entidades nosológicas” [jednostkami chorobowemi]60, somente poderia ser entendido de modo “construtivo”. As entidades nosológicas seriam como “quadros fictícios” produzidos pelo modo médico de pensar: “[...] por um lado, por abstrações genéricas, por meio da rejeição de parte dos dados observados, por outro lado, pela construção específica de hipóteses, isto é, pela suposição de nexos não observados.” (SMAD, p. 42; SCML, p. 56).

Já à época, a análise e as comparações estatísticas61 constituíam as principais ferramentas para formulação de hipóteses relacionadas à definição de estado patológico. Ocorre que, segundo o autor, tais procedimentos não seriam capazes de fundamentar um conceito central da medicina: o de entidade nosológica. Quais seriam, então, o expedientes envolvidos em sua cognição, construção, a rigor? Devido à complexidade de fatores envolvidos, a medicina demandaria uma “intuição específica [swoista intuicja]”, responsável pela formulação de um “estilo” de pensamento peculiar. (SMAD, p. 42; SCML, p. 57). O termo “intuição”, nesse contexto, deve ser entendido fundamentalmente em oposição ao termo “lógica”. Para o autor, a intuição possuiria um elemento imponderável a qualquer esquema lógico.

Acerca da natureza propriamente dita da intuição médica e seus elementos

59 Não seria nosso objetivo no presente trabalho, mas seria inevitável deixar de comparar a proximidade de tal abordagem com aquela feita por Georges Canguilhem. A esse respeito são dignos de nota os artigos de Jean-François Braunstein. Fleck, Canguilhem, Foucault. Ludwik Fleck et le 'style français' en philosophie des sciences ou o estudo ainda mais específico de Christiane Sinding. De Fleck à Canguilhem: la medicine comme épistémologie de l'incertain, ambos publicados em 2009.

60 Literalmente “doença unitária” ou “doença individual”, em polonês “jeden” refere-se ao numeral “um”. A tradução alemã emprega o termo “Krankheitseinheiten”, literalmente “unidade de doenças”, fiel à intenção do autor, uma vez que o que está em questão é a construção de uma “unidade” diante de um quadro de múltiplas manifestações que um estado patológico pode gerar. Em sua monografia, Fleck empregará o termo “Krankheitseinheiten” para a referir-se ao desenvolvimento da sífilis. Manteremos o termo “entidade nosológica” nas traduções, uma vez que já está estabelecido na literatura médica de língua portuguesa. 61 Um área em que Fleck parecia ter familiaridade, dado que publicou vários artigos em conjunto com o

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imponderáveis, poucas palavras são proferidas. É dito apenas que não seria possível entendê-la fora do contexto da histórica da ciência (no caso, da medicina), sendo tal intuição um elemento central para a compreensão daquela história, já que “[...] sem esse conceito, isto é, se admitíssemos que o desenvolvimento da ciência [consiste] apenas em uma questão de tempo, possibilidades técnicas e acidente, nós nunca entenderíamos a ciência.” (SMAD, p. 43; SCML, p. 57). A Clínica Médica, por meio do diagnóstico médico, constituiria a expressão máxima de tal intuição. A consideração ou mera soma de sintomas ou indícios isolados (mesmo no caso da identificação de um eventual agente patogênico inoculado) não seriam suficientes para a formulação de um diagnóstico conclusivo. O conceito de intuição seria a materialização do próprio “estilo de pensamento específico” [woisty styl myślowy]: “[...] Nenhuma outra disciplina afora a medicina, nenhum outro ramo da ciência, apresenta espécies com tantas características específicas, isto é, características não analisáveis, que não podem ser reduzidas a elementos comuns.” (SMAD, p. 43; SCML, p. 57). Tal irredutibilidade é entendida, preliminarmente, pela associação de um estado patológico (por definição individual e variável) a uma entidade nosológica, fruto de uma abstração que é, em boa medida, arbitrária.

Uma dificuldade adicional ao campo médico, e prenhe de consequências ao seu “estilo”, diz respeito à ideia de “causalidade” quando relacionada ao desenvolvimento de um processo patológico. Para o autor, o estabelecimento de uma cadeia causal em um organismo vivo seria quase impossível. Caso pensemos apenas ao nível terapêutico, as interações medicamentosas portam uma ambiguidade patente, podendo apresentar resultados ora antagônicos, ora sinérgicos62. No mais, tão múltiplas quanto as relações causais envolvidas em um processo patológico são as perspectivas que a medicina dispõe para abordá-las. Tal aspecto fará Fleck defender um estratégia holista como a única capaz de nos aproximar mais concretamente dos fenômenos mórbidos. Isso, no entanto, não o faz supor que as mais distintas abordagens médicas sejam comensuráveis:

Da mesma maneira que, por um lado, é apenas a ação amplamente abstrata que possibilita ao pensamento médico encontrar tipos em fenômenos atípicos e, por outro lado, a ignorância das consequências que nos habilita a aplicar uma lei a um fenômeno irregular. Isso resulta na incomensurabilidade [niewspółmierność]63

das

62 Nota explicativa: sinérgico, ou seja, atuando no sentido favorável a recuperação do paciente.

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ideias. Ela [a incomensurabilidade] se origina da maneira cada vez diferente de conceber o fenômeno mórbido, implicando na impossibilidade de intuí-lo de modo unificado. Nem a teoria celular, nem a teoria humoral, nem mesmo o entendimento funcional da doença ou nem seu condicionamento psicogenético poderão por si só exaurir toda a riqueza do fenômeno mórbido. (SMAD, p. 46; SCML, p. 61, nota explicativa nossa)

Ora, a abordagem holista parece conduzir a um impasse: caso analisemos o fenômeno patológico à guisa apenas de uma perspectiva, dentre as várias disponíveis, seríamos conduzidos a um conhecimento parcial e pouco produtivo. Por outro lado, uma abordagem holista esbarra no problema da incomensurabilidade64, já que, é importante ressaltar, não haveria, do ponto de vista teórico, uma instância integradora que pudesse servir como fundamento das múltiplas abordagens, como seria o caso da atomística na química ou da energética na física à época de Fleck. (SSFM, p. 44; SMAD, p. 46).

Será, não em uma instância teórica, mas no que denomina historia morbi, ou história do desenvolvimento de uma morbidade, onde Ludwik Fleck buscará tal instância integradora. À historia morbi é oposta ao status praesens mórbido, a saber, a manifestação de uma morbidade entendida de modo sincrônico, no tempo presente. Como destaca o autor, nenhuma ciência possui tantos níveis de análise quanto a medicina. Há quatro níveis de desenvolvimento diacrônicos das entidades nosológicas. O primeiro consiste em uma “ontologia detalhada da doença”, ou seja, a gênese patológica analisada a partir de um caso individual, que envolveria questões tais como: diátese65, origens e desenvolvimento de sintomas, infecções etc. O segundo nível consistiria, grosso modo, em aplicar o primeiro tipo de análise a períodos ou momentos do desenvolvimento ontogenético humano, tais como puberdade, infância, climatério66. Haveria, ainda, uma “filogênese detalhada”, envolvendo uma análise da história de uma doença num certo contexto social ou localidade geográfica. Por fim, teríamos um “história do desenvolvimento geral de uma patologia”, que descreveria o surgimento de suas mutações durante o curso histórico da humanidade, ou seja, uma

64 O termo “incomensurabilidade” no presente estágio de desenvolvimento da obra de Fleck remete basicamente à ideia da existência de perspectivas excludentes, ou seja, ao assumirmos uma, deixamos necessariamente de ter acesso à sua alternativa. Tal conceito é operado a partir de uma abordagem sincrônica e não diacrônica (histórica).Como veremos no segundo capítulo, tal conceito assumirá outras características durante o desenvolvimento do projeto epistemológico fleckiano.

65 Nota explicativa: predisposição de um indivíduo para determinadas doenças ou afecções.

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“filogênese geral.” (SMAD, p. 47-48; SCML p. 62-63).

Para além de formulações genéricas, Fleck opina sobre o debate teórico da medicina de sua época67, questionando teorias já estabelecidas. Fleck parece demonstrar afinidade com duas teorias emergentes: a da “higiogênese” [higjogenesy]68 e o de “infecção não aparente” [utajonego zakażenia (inapparente Infektio)]69. A partir de tais concepções, Fleck chega a esboçar uma concepção própria do desenvolvimento dos fenômenos patológicos:

Dado que os mais diversos órgãos e glândulas podem se restabelecer mutuamente e que algumas doenças podem compensar-se uma às outras produzindo um estado [de saúde] mais vantajoso, deve-se, para todos intentos e propósitos definir de modo consistente – embora paradoxalmente – a sanidade como uma doença que é mais vantajosa para o momento. Desse modo surge uma concepção dinâmica específica acerca dessa matéria em que, ao invés de causas constantes, tenhamos processos mutualmente influenciáveis. As relações entre tais processos são diferentes e incomensuráveis, dependendo da contínua e necessária mudança do ponto de vista. Se adicionarmos a isso a natureza abstrata e específica da ideia de entidade nosológica, obteremos um quadro geral do modo médico de formulação do problema. (SMAD, p. 48; SCML, p. 63-64).

A concepção teórica apresentada por Fleck é um tanto vaga, pouco desenvolvida, porém, coerente com sua abordagem holista da medicina. Novos indícios de suas posições teóricas serão fornecidos em textos posteriores, especialmente em sua monografia.

67 Klinische Wochenscrift é a revista que Ludwik Fleck mais faz referência, tendo, inclusive, nela publicado em mais de uma ocasião.

68 Sobre o sentido de “higiogênese”, termo que aparentemente não se estabeleceu em língua portuguesa, os editores da coletânea Denkstile und Tatsachen destacam: “O conceito de 'higiogênese' foi cunhado por Franz von Gröer poucos anos depois do conceito de 'patogênese'. Na concepção [de Gröer], um médico não deveria atentar apenas pela história do surgimento das doenças, mas também para o papel desempenhado pela doença no processo da cura. Nesse sentido, higiogênese designa o mecanismo que - compreendendo fenômenos biológicos, químicos e físicos associados ao processo de recuperação - conduz à sanidade” (Cf. WERNER; ZITTEL, 2011, p. 50, nota x).

69 A vaga referência a esse termo e foi alguns anos depois desenvolvida no artigo O conceito moderno de contágio e doença contagiosa, originalmente publicado em polonês: Współczesne pojęcie zakażenia i choroby zakaźnej [1930], publicado na revista Wiadomości Lekarskie [Notícias médicas]. Faremos referência à tradução alemã Der moderne Begriff der Ansteckung und der ansteckenden Krankheit publicada em

Referências

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