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A (in)elegibilidade feminina na Academia Brasileira de Letras: Carolina Michaëlis e Amélia Beviláqua.

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Academic year: 2017

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Academia Brasileira de Letras

Carolina Michaëlis e Amélia Beviláqua

Michele Asmar Fanini

Introdução

O projeto inaugural a partir do qual a Academia Brasileira de Letras foi criada (em 1897, na cidade do Rio de Janeiro), assegurou-lhe uma complei-ção marcadamente androcêntrica, característica esta que permaneceu inalterada por décadas a fio. Com isso, a elegibilidade feminina, ainda que tenha integrado a pauta de algumas das incontáveis sessões acadêmicas, foi mantida fora de cogitação, precisamente durante os oitenta primeiros anos de sua existência, ora em decorrência de um acordo tácito – inicialmente estabelecido entre seus membros fundadores, mas logo transformado em legado –, ora respaldada pelo Regimento Interno. Conforme o Art. 2º do Estatuto da Academia Brasileira de Letras:

[...] só podem ser membros efetivos da Academia os brasileiros que tenham, em qualquer dos gêneros de literatura, publicado obras de reconhecido mérito ou, fora desses gêneros, livro de valor literário. As mesmas condições, menos a de nacionalidade, exigem-se para os membros correspondentes.

Além disso, o art. 30 do Regimento Interno da agremiação (que, nas edições posteriores a 1951, corresponde ao art. 17) reitera o Estatuto, e postula que

*Este artigo é

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“os membros efetivos da Academia serão eleitos dentre os brasileiros, nas condições do art. 2.º dos Estatutos, que se apresentarem candidatos, me-diante carta dirigida ao Presidente e entregue na Secretaria, que da mesma passará recibo”.

Muito embora infensa à presença feminina durante esses longos anos, a Academia Brasileira de Letras1 não deixou de sediar algumas discussões

desencadeadas por propostas e/ou pela cogitação de candidaturas que “desa-fiavam” suas origens misóginas. No presente artigo, pretende-se iluminar os bastidores de dois episódios que ilustram muito bem esta situação. O pri-meiro, praticamente desconhecido (o que justifica, de saída, seu tratamen-to), diz respeito à cogitação do nome da filóloga Carolina Michaëlis, em 1911, para concorrer a uma vaga entre os sócios correspondentes da agre-miação. Já o segundo acontecimento merece ser descortinado, sobretudo, por se tratar da primeira proposta formal de candidatura enviada à ABL, de autoria de uma mulher. Referimo-nos à tentativa da escritora Amélia Bevi-láqua, em 1930, de obter da entidade a validação de sua inscrição na disputa por uma Cadeira entre seus membros efetivos.

Destarte, pretende-se, neste artigo, abordar a antessala da ABL, no que concerne a estas duas, digamos, “ausências institucionais”.

O veto à candidatura de Carolina Michaëlis: um “insuspeito pretexto”

A partir das informações compulsadas na Biblioteca Lúcio de Mendonça e no Arquivo ABL, o ano de 1911 foi marcado pela polêmica acerca da (im)possibilidade de candidatura feminina, desencadeada pela cogitação do nome da filóloga Carolina Michaelis2 para compor o quadro de sócios

cor-respondentes da entidade, na sucessão do escritor russo, Léon Tolstoi (1828-1910), que até então ocupava a Cadeira 173. Quanto a isso, o período

abaixo, extraído da Ata da sessão ocorrida em 9 de setembro de 19114

com-prova tal indicação, que vem acompanhada pela sugestão do nome do escri-tor francês Anatole France. Ambos são apresentados como potenciais candi-datos para a disputa pela vaga em aberto.

A ordem do dia é a eleição de um membro correspondente à vaga de Tolstoi. Porque fossem lembrados [sic] os nomes do Sr. Anatole France e D. Carolina Michaëlis de Vasconcelos.

1. As subsequentes men-ções à agremiação apare-cerão sob a forma abrevi-ada de ABL.

2.Carolina Wilhelma Michaëlis de Vasconce-los (1851-1925) nasceu em Berlim, mas morou grande parte de sua vida em Portugal, ten-do faleciten-do na cidade do Porto. Em 1916, é eleita para a Academia das Ciências, porém, por se tratar de mulher, seu ingresso suscitou discussões e estranha-mento. Ver <http://ww w.instituto-camoes.pt/ cvc/hlp/biografias/cm vasconcelos.html>. 3.De acordo com art. 1º dos Estatutos da ABL, § 1º, “a Academia compõe-se de 40 mem-bros efetivos e perpé-tuos, dos quais 25, pelo menos, residentes no Rio de Janeiro, e de 20 membros correspon-dentes estrangeiros, constituindo-se desde já com os membros que assinarem os presentes Estatutos” (Estatutos e Regimento Interno da ABL, 1910).

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Vale registrar que o Regimento Interno de 1901, então vigente, não apresenta qualquer restrição ao ingresso feminino:

Art. 32 – As eleições para preenchimento da vaga de membro correspondente serão feitas mediante indicações apresentadas por Acadêmicos e após o estudo de uma comissão, especialmente nomeada pelo Presidente para informar a Acade-mia acerca dos candidatos propostos (Estatutos e Regimento Interno da ABL, 1901, p. 24).

No entanto, a indicação do nome de uma mulher fez com que a tônica da sessão do dia 9 de setembro de 1911 recaísse sobre o debate acerca da (in)elegibilidade feminina, mais especificamente, “sobre a inconveniência das mulheres nas sociedades masculinas, sobre a assimilação das mulheres aos eclesiásticos quanto ao uso do uniforme acadêmico”, tal como especifi-ca o documento. Afonso Celso, um dos aespecifi-cadêmicos a tomar a palavra, defi-ne a possibilidade de ingresso da filóloga não como uma “questão isolada”, mas como corolário de uma resolução mais abrangente, qual seja, a “ques-tão do sexo”.

O Sr. Afonso Celso acha que se deve preliminarmente resolver a questão do sexo, como condição para a elegibilidade. O Sr. Souza Bandeira diz que não considera Anatole France superior em sexo à D. Carolina, mas a eleição desta não seria possível por se achar preenchido o número de correspondentes portugueses.

Tal como se pode depreender da leitura do trecho acima, a “questão do sexo” é tratada explicitamente como a real barreira ao ingresso de Carolina Michaëlis. Contudo, para a validação do veto, a justificativa não esteve exa-tamente atrelada às prerrogativas de gênero (possivelmente para evitar um desgaste maior da imagem da Academia, que mantinha uma postura intole-rante e arbitrária quanto ao assunto desde a sua criação). Os acadêmicos buscaram na destinação das vagas por país a “insuspeita” deixa para a provação da impossibilidade de candidatura da filóloga. Para melhor com-preender o argumento dos acadêmicos, vejamos o que nos diz o parágrafo 5.º do art. 32 do Regimento Interno da ABL, que especifica as condições para a candidatura dos sócios correspondentes: “Dos 20 lugares de mem-bros correspondentes, metade será destinada a escritores e sábios portugue-ses, preferidos os que se tenham interessado pelo Brasil” (Estatutos e Regi-mento Interno da ABL, 1901, p. 24).

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De acordo com tais critérios foi possível constatar que, no ano de 1910, dez novos sócios correspondentes foram eleitos, dos quais metade possuía nacionalidade portuguesa5. Levando-se em consideração este quadro, bem

como o fato de outras cinco Cadeiras já estarem ocupadas por portugueses, as vagas destinadas ao país estavam, de fato, integralmente preenchidas6.

Assim, vincular a impossibilidade de candidatura de Michaëlis à sua nacionalidade poderia soar como uma excelente justificativa, posto que ofi-cialmente respaldada, não fosse o fato de a filóloga ter nascido na Alema-nha, e não em Portugal, como “supuseram” os acadêmicos.

Fruto de uma inacreditável manobra, o veto à Carolina Michaëlis, ocor-rido durante a presidência de Rui Barbosa, que ocupou o cargo entre 1909 e 1919, é exemplo contundente de que a “questão do sexo”, ainda que profun-damente partilhada pelos membros da ABL, não chegou a ser explicitamen-te mobilizada para fundamentar uma inadmissão feminina. Estamos, pois, diante de uma verdadeira “lacuna institucional”. No lugar de Carolina Mi-chaëlis, foi eleito o austríaco Martin Brussot, em 1912.

A Academia, afirma o Dr. Constâncio Alves, não quis aceitar Júlia Lopes de Al-meida e mais tarde recusou o [nome] de Carolina Michaëlis para sócia correspon-dente. Que prova isso? O ponto de vista errado, o misogenismo da Academia, que não soube fazer justiça à romancista brasileira nem à notável escritora Carolina Michaëlis, a quem a Academia de Ciências de Lisboa ofereceu uma cadeira. Po-rém essas escritoras nada propuseram; eu fui oficialmente repelida, e, assim, é muito mais ofensiva a recusa (Beviláqua, 1930, p. 114).

Pouco tempo depois, em trinta de setembro de 1911, nova reunião acon-tece, e o assunto vem novamente à baila7. A Ata da sessão assemelhou-se, e

muito, àquela que a antecedeu, especialmente no que concerne às propos-tas anteriormente encaminhadas por Afonso Celso, que encontraram eco nas então perfilhadas por Salvador de Mendonça:

Na ordem do dia, entra em discussão, a propósito da candidatura de Carolina Michaëlis, a elegibilidade das mulheres à Academia. O Sr. Salvador de Mendonça levanta questões de princípio e ordem: por que, em tal assunto, não começarmos pela elegibilidade ou eleição das brasileiras? Refere [sic] controvérsias aos primei-ros tempos na Academia. Encarece um nome que é do respeito e da admiração de todos: o da Sra. Júlia Lopes de Almeida. Depois, estaremos em caso de decidir assunto tão grave, sem a maioria, ao menos, dos acadêmicos residentes?

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Percebe-se, facilmente, o mal-estar provocado pelo assunto entre os aca-dêmicos, que tendiam, muitas vezes, a solicitar foro especial para seu “ade-quado” tratamento. Desse modo, e consoante às manifestações polidas, que tentavam evidenciar a premência do tema (como que para cumprir proto-colos), tratado sempre a conta-gotas, a maioria dos acadêmicos protelava o encaminhamento da discussão, lançando mão de justificativas que iam res-valar, ora na ausência de quórum, ora no manejo enviesado do Regimento Interno, ora no julgamento de que se tratava de questão excepcional, cul-minando em seu frequente adiamento, transformado em “assunto merece-dor de sessões especiais”. Por conta disso, a elegibilidade feminina passou, cada vez mais, a adquirir o caráter de “decisão improvável”, de tal maneira que apostar na realização de reuniões extraordinárias se tornou uma forma de manter o assunto em “banho-maria”.

QUADRO 1

Atuais sócios correspondentes da ABL (em destaque, as mulheres)

CADEIRAS PATRONOS ATUAISOCUPANTES PAÍSDEORIGEM

(NACIONALIDADEBRASILEIRA)

1 Alexandre de Gusmão Antônio Alçada Baptista Portugal

2 Antônio José da Silva, o judeu Mário Soares Portugal

3 Botelho de Oliveira Urbano Tavares Rodrigues Portugal

4 Eusébio de Matos António Braz Teixeira Portugal

5 D. Francisco de Sousa Mia Couto Moçambique

6 Mathias Ayres Arnaldo Saraiva Portugal

(na sucessão de Luciana S. Picchio)

7 Nuno Marques Pereira Joaquim Veríssimo Serrão Portugal

8 Rocha Pita Agustin Buzura Romênia

9 Santa Rita Durão Adriano Moreira Portugal

10 Frei Vicente do Salvador Agustina Bessa-Luís Portugal 11 Alexandre Rodrigues Ferreira Curt Meyer-cCason Alemanha

12 Antônio de Morais Silva Fred P. Ellison Estados unidos

13 Domingos Borges de Barros Jean d’Ormesson França

14 Frei Francisco de Mont’Alverne Daysaku Ikeda Japão

15 Frei Gonçalves Ledo Claude L. Hulet Estados Unidos

16 José Bonifácio de Andrada e Silva Maurice Druon França

17 Odorico Mendes Vitorino Magalhães Godinho Portugal

18 Silva Alvarenga José Vitorino de Pina Martins Portugal

19 Sotero dos Reis Alain Touraine França

20 Visconde de Cairu Eduardo Lourenço de Faria Portugal

Tabela elaborada a partir de informações compulsadas na Biblioteca Lúcio de Mendonça/ABL. Fonte: Academia Brasileira de Letras. Ano base 2009.

6.À guisa de ilustração, os portugueses que já compunham o quadro de sócios corresponden-tes, antes da eleição de 1910, eram: Eugênio de Castro (eleito em 1898), Teófilo Braga (eleito em 1898), Guerra Junquei-ro (eleito em 1898), Carlos Malheiro Dias (eleito em 1907) e Cân-dido de Figueiredo (elei-to em 1901).

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É inegável que a proposta de Salvador de Mendonça tenha feito com que seus pares relembrassem as controvérsias que marcaram o período de criação da agremiação, cuja consequência foi o veto ao ingresso da escritora carioca Júlia Lopes de Almeida, na condição de membro fundadora, proibi-ção esta sacramentada pelo pretexto de que a ABL estaria se erigindo à “imagem e semelhança” de sua congênere, a Académie Française de Lettres, entidade cujo Regimento restringia a possibilidade de candidatura e ingres-so apenas aos indivíduos “do sexo masculino”.

Para encerrar este tópico, vale lembrar que, desde a fundação da ABL até os dias atuais, apenas duas mulheres chegaram a integrar o quadro de sócios correspondentes, quais sejam, a italiana Luciana Stegagno Picchio (9ª ocu-pante da Cadeira 6, ingressa em 2002 e sucedida em 2008 por Arnaldo Saraiva) e a portuguesa Agustina Bessa-Luís (6ª ocupante da Cadeira 10, ingressa em 1989). O Quadro 1, no mínimo, faz recender aquela constata-ção de Nélida Piñon – formulada durante entrevista que nos foi concedida em 2008 –, segundo a qual “com relação às mulheres, critérios estéticos e intelectuais são mais rigorosos”.

Um silencioso interregno

Em 1920, em virtude do falecimento de Francisca Júlia, Humberto de Campos se incumbe do necrológio da poetisa e, em meio à preleção, tam-bém rememora os controversos primeiros anos de existência da ABL, ao afirmar que, caso fosse possível a presença de escritoras na agremiação, esta-riam todos diante da perda de uma acadêmica, cuja Cadeira estaria coberta em crepe (Venâncio Filho, 2006, p. 13). Como se vê, por serem conjecturais, tais homenagens germinam em campo fértil: pelo simples fato de não pas-sarem de suposições, os preitos como que arrefecem o real pendor misógino da agremiação. Ao propor imaginar como seria se Francisca Júlia houvesse integrado a instituição, Humberto de Campos transforma a ausência “de fato” da escritora em “presença momentânea”, e esse exercício exime, de certa forma, parte da responsabilidade da Academia, permitindo que o con-fronto real com o tema seja dissolvido em uma solenidade de enaltecimento que, ao simular uma presença, se pretende “restituidora”.

Passados dois anos, em 1922, a Revista Brasileira publicou um artigo de Carlos Magalhães de Azeredo (acadêmico que já havia se posicionado favo-ravelmente ao ingresso de Júlia Lopes de Almeida8, em 1897), com o título

“O feminismo e a Academia: comentário sobre um concurso”. O texto 8.Durante o período de

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refere-se à abertura dos concursos promovidos pela agremiação que, já de início, viu figurar entre os classificados, e em primeiro lugar, Rosalina Lis-boa e Gilka Machado, duas poetisas numa época em que a ABL não conce-dia premiações a mulheres.

Imagino que os mais espantados teriam sido juízes mesmo, quando viram a quem haviam premiado! De fato, ainda não é a entrada das mulheres na Academia que eu advogava há meses, mas já o reconhecimento estrondoso – tanto mais impressiona-dor, porque o produziu a força das coisas e não o arbítrio dos homens – de que se con-tinuam a fechar-lhes as nossas portas, não se podendo alegar que seja por lhes faltar a elas merecimento para serem admitidas na nossa companhia. Por minha parte, per-sisto em opinar que seria tão vantajoso, quanto justo consagrar-lhes a elegibilidade.

Austregésilo também faz menção ao concurso, e considera que sua im-portância se inscreve no fato de ter revelado “que os dois candidatos mais discutidos e que lograram maiores favores do cenáculo foram Rosalina Co-elho e Gilka Machado” (1923, p. 41). Assim, se o ingresso feminino era absolutamente vetado, conceder a premiação às mulheres ao menos parecia soar menos ameaçador.

Voltando a mencionar a crônica de Carlos Magalhães de Azeredo, algu-mas considerações nos saltam aos olhos. Se, de um lado, muitos dos acadê-micos contrários à presença de escritoras apostavam em argumentos como o de que as mulheres alterariam negativamente a ordem da instituição, de outro, os pontos defendidos pelo cronista revelam uma postura não muito “transgressora”, especialmente porque seu texto se constrói a partir de uma lógica classificatória, crivada por ideias relacionadas com certo “modo de ser feminino”, que encontram correspondência em termos como “edificante”, “zelo”, “perfeição”, “suavidade”, “delicadeza”:

Ora, continuo a pensar que a colaboração de algumas escritoras, longe de pertur-bar a ordem e a serenidade dos programas acadêmicos, contribuiria para estimu-lar o zelo dos colegas pelo edificante exemplo de pontualidade e perfeição no desempenho dos seus compromissos que elas nos darão.

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(e adeptos), e das quais emanavam os saberes médicos, jurídicos, religiosos e filosóficos, um sem-número de correntes de pensamento ofereciam pare-ceres acerca das distinções entre os sexos, ora respaldados na anatomia hu-mana, que estabelecia como pressuposto que as capacidades e habilidades distintas entre os homens e as mulheres eram corolário de diferenças bioló-gicas, ora advindos da cosmovisão positivista, de acordo com a qual a famí-lia aparecia como um dos pilares da ordem social, ou mesmo a partir da “sacralização” do lar, em que os cônjuges desempenhavam papéis e funções distintas, no sentido de garantirem uma “morada feliz” e virtuosa, “refúgio idílico do desagradável, mas ‘verdadeiro’ mundo dos homens”9 (Ehrenreich

e English, 2003, p. 40; Saffioti, 1976). De acordo com Ehrenreich e English:

[...] tudo o que parece exclusivamente feminino se transforma num desafio para o intelecto científico e racional. O corpo da mulher, com seus ritmos autônomos e possibilidades geradoras, parece para a visão machista uma “fronteira”, uma outra parte do mundo natural a ser explorada e escavada (2003, p. 33).

Em relativa consonância com este ideário conservador, Azeredo mostra-se favorável à premostra-sença de mulheres, tão somente porque elas trariam benefí-cios à agremiação, como o de impedir que as divagações extremadas, comuns entre os homens, pairassem sobre as sessões. Com efeito, tal justificativa res-palda-se numa espécie de “ingresso condicionado”, isto é, no atrelamento da presença feminina a certa missão “moralizante”: as mulheres cuidariam, as-sim, para que os rumos das discussões não saíssem dos eixos. “Mais de uma vez, por certo, enquanto estivéssemos nos perdendo em divagações de sutil bizantinismo, ouviríamos uma voz suave a redarguir delicadamente: ‘Srs., voltemos ao assunto’ [...]”.

Às mulheres, que, segundo Azeredo, tendem a honrar seus compromis-sos com pontualidade, caberia zelar pelo bom andamento dos encontros, desempenhando um papel edificante. Percebe-se aqui certa analogia com os cuidados exercidos pela figura da mãe (que acompanha, zela, cuida etc.). Nestes termos, o apoio manifesto por Azeredo não encontra fundamenta-ção na equidade de direitos, posto que seu ancoramento resvala em uma postura conservadora, preocupada em elencar as vantagens que a presença de mulheres traria aos acadêmicos, todas elas ratificadoras das assimetrias entre os gêneros.

A despeito dessas sessões ocasionais, um “conluio do silêncio”, para utili-zar a expressão empregada pelo próprio Magalhães de Azeredo, marcou a 9.A propósito do

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rotina dos anos seguintes da ABL, e fez com que as discussões em torno da elegibilidade feminina esfriassem, até que, em 1930, um fato inusitado, im-previsto e sem precedentes, tomou de assalto os acadêmicos, lembrando-os da existência de antiga pendência, que remontava ao período de criação da agremiação. A surpresa em questão ficou por conta da proposta de candida-tura encaminhada por Amélia Beviláqua ao então presidente, Aloísio de Castro, intenção oficialmente comunicada aos acadêmicos em sessão ocorri-da no dia 29 de maio de 1930. Ao anúncio seguiu-se um alvoroço, que fora sucedido pela realização das já típicas “reuniões extraordinárias”, nas quais os acadêmicos se viram impelidos a lançar luz sobre aquela sombra vetusta, que não apenas os acompanhava cotidianamente, mas os mantinha ligados de forma umbilical ao ano de 1897. Afinal, perguntavam-se atabalhoados, “deve a mulher pertencer à Academia Brasileira de Letras?”.

As passagens a seguir, de autoria de Amélia Beviláqua, fornecem impor-tantes indícios acerca do desfecho do episódio por ela protagonizado, cujos pormenores serão descortinados na próxima seção.

Fiquei indecisa. Não sabia mesmo o que devesse responder; senti uma espécie de aniquilamento de vida, talvez paralisação das forças imediatamente suspensas pela hesitação moral. Entretanto, para corresponder à delicadeza da pergunta, concordei em escrever qualquer coisa, sem alegria nem entusiasmo (Beviláqua, 1930, p. 16).

A Academia, afirma o Dr. Constâncio Alves, não quis aceitar [o nome de] Júlia Lopes de Almeida e mais tarde recusou o de Carolina Michaëlis para sócia corres-pondente. Que prova isso? O ponto de vista errado, o misogenismo da Academia, que não soube fazer justiça à romancista brasileira nem à notável escritora Caro-lina Michaelis, a quem a Academia de Ciências de Lisboa ofereceu uma cadeira. Porém essas escritoras nada propuseram; eu fui oficialmente repelida, e, assim, é muito mais ofensiva a recusa (Idem, p. 114).

“A sentença fulminante”: os bastidores do veto à candidatura de Amélia Beviláqua

Sim, orgulhosa. A douta Academia Que o vosso nome ilustre recusou Em nada vos tirou

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Humilhada, por quê? Não se ofuscou Vosso talento, e, creio a companhia De alguns fósseis de lá, não vos servia Pois que a sério ninguém nunca os tomou.

Os documentos vários

Que nesse livro vosso agora estão preitos Não são apenas literários.

São conceitos leais e verdadeiros Dos que “imortais não são Mas julgamentos fazem justiceiros

O poema, marcadamente solidário a Amélia Beviláqua10, foi escrito por

Telles de Meirelles, em outubro de 1930. Nós o escolhemos para inaugurar o presente tópico não apenas pelo fim a que o autor se propôs (solidarizar-se à escritora) mas, e principalmente, pelo modo como a homenagem (solidarizar-se notabilizou. O autor endereçou o poema a Amélia Beviláqua em momento que poderíamos qualificar como “quase” oportuno: logo após ela haver publicado um volume integralmente dedicado à discussão acerca do veto à sua candidatura pela ABL. A escritora, que recebeu o preito com muito entusiasmo, encontrou para o poema uma destinação imediata, que apenas requereu um pequeno ajuste: decidiu incorporá-lo, improvisadamente, ao volume recém-lançado, como uma espécie de epígrafe – ao menos no exem-plar que manuseamos, disponível na Biblioteca Lúcio de Mendonça/ABL, o poema aparece improvisadamente incluído na primeira página.

O volume ao qual nos referimos, intitulado A Academia Brasileira de

Letras e Amélia Beviláqua:documentos histórico-literários, exprime o

posicio-namento de Amélia Beviláqua ante a sua inadmissão como candidata à dis-puta por uma Cadeira na ABL, além de trazer uma compilação, selecionada pela própria escritora, de discursos e artigos de autoria diversa, que versa-vam sobre o veto, todos eles veiculados pela imprensa da época.

A escritora, ao contrário de D. Julia, resolve comprar uma vasta e pública discus-são com a Academia, cujo último ato foi a publicação do livro A Academia Brasi-leira de Letras e Amélia Beviláqua. Pelo conjunto do material apresentado no livro, uma reunião de depoimentos, artigos de jornal e textos da autora em defesa própria, pode-se perceber a alta voltagem da tertúlia político-gramatical travada na ABL em função das aspirações e provocações de D. Amélia (Hollanda, 1992, pp. 77-78). 10.A piauiense Amélia

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Em um breve balanço, Amélia Beviláqua recorre a situações concretas para destacar a existência de “Academias de Letras sem preconceitos antifeministas” (Idem,p. 27), fazendo menção a Edwiges de Sá Pereira (1884-1958) e a Alba Valdez (1874-1962). Porém, quando fala de si mesma, o que sobressai é menos o relevo dado à sua admissão pela Academia Piauiense do que a ênfase (que recai sobre sua posição desfavorável) no campo literário, descrevendo-se como uma desconhecida, destituída de trunfos sociais, au-sente de redes de favorecimento.

[...] se volvermos a vista para os nossos Estados, encontraremos em Pernambuco, Edwiges de Sá Pereira, primorosa poetisa e escritora elegante, vice-presidente da Academia de Letras. No Ceará, também é sócia da Academia a romancista Alba Valdez. Eu mesma, desconhecida, vivendo afastada de tudo, pertenço à Academia Piauiense de Letras (Idem, pp. 25-27).

Aliás, é preciso salientar que a negativa da ABL foi eclipsada pela docu-mentação produzida pelos próprios acadêmicos, já que tanto as atascomo os textos que compõem o acervo da agremiação não fazem menção ao inte-resse de Amélia Beviláqua em integrar o “panteão dos imortais”: seu nome sequer chega a figurar na lista de candidatos à vaga por ela pleiteada. E, quanto a isso, não fosse a iniciativa da escritora em registrar o episódio e publicá-lo, dele não restariam mais do que silêncios, vazios, lacunas – e muitos poderiam apostar piamente em sua inexistência.

Se, de um lado, o livro A Academia Brasileira de Letras e Amélia Beviláqua tem como pedra-de-toque o desabafo da escritora, inconformada com a deli-beração da ABL, ao “homologar” a recusa de sua candidatura, de outro, a publicação atua como uma forma de garantir ao episódio certa visibilidade e oficialidade, livrando-o, ao menos em parte, da possibilidade de entoar o coro dos “vazios institucionais”, cuja inevitável fortuna é o esquecimento, ou seja, a inexistência histórica produzida pelos “déficits documentais” (Perrot 2005).

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ter-mos, o livro não pode ser investigado se apartado de uma dimensão que lhe é crucial: a desforra.

Tendo a Academia Brasileira de Letras recusado a minha inscrição, como candidata à vaga de Alfredo Pujol, provocou revolta natural na mentalidade brasileira con-temporânea, que se traduziu em escritos de grandes vibrações e notável elegância de frases, e em outras manifestações mais íntimas, igualmente expressivas de sim-patia pela minha causa, principalmente pelo pensamento a que ela, dignamente, deu expressão [...]. Grande número de pessoas em cartas formosíssimas, de viva-voz, por telegramas, ou enviando lindos ramalhetes de flores, livros, artigos, me trouxeram o grato conforto, consideração e solidariedade, repelindo, vivamente, o golpe desferido contra mim pelos imortais misogenistas, direi mais acertado, que antipatizaram com a lembrança da minha candidatura e, violentamente, me afastaram de seu grêmio (1930, pp. 5-6).

Ao longo do texto, percebe-se que os questionamentos de Amélia Bevi-láqua, mais do que externarem sua insatisfação para com o veto da ABL à sua candidatura, põem em tela as agruras decorrentes de uma frustração inaudita, recrudescida pelos óbices que atuaram decisivamente, vetando-lhe as possibilidades de fruição dos efeitos da consagração que a “imortali-dade” poderia lhe render.

De que serve, finalmente, externar o meu modo de sentir?

Para dizer que pretendo uma cadeira na erudita sociedade?! Se em todas as minhas aspirações, por mínimas que tenham sido, sempre encontrei a formidável barreira do Impossível, como poderia pensar em ser consagrada? (Beviláqua, 1930, p. 18).

O ineditismo de sua proposta de candidatura requereu a realização de uma sessão extraordinária, ocorrida em 29 de maio de 1930, com o intui-to de que os membros da ABL estabelecessem um acordo quanintui-to à possi-bilidade de ingresso feminino na instituição, respondendo, assim, à insóli-ta demanda da escritora proponente.

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O cômputo geral da sessão foi o seguinte: 21 acadêmicos presentes, dos quais sete votaram a favor da elegibilidade feminina, sendo a proposta re-provada pelos outros catorze sócios. Laudelino Freire, João Ribeiro, Augus-to de Lima, Adelmar Tavares, Fernando de Magalhães, Luiz Carlos e João Ribeiro compunham o grupo minoritário, enquanto Aloísio de Castro, Gustavo Barroso, Olegário Mariano, Afrânio Peixoto, Alberto Oliveira, Coelho Neto, Constâncio Alves, Dantas Barreto, Goulart de Andrade, Humberto de Campos, Luís Guimarães Filho, Ramiz Galvão, Roquette-Pinto e Silva Ramos votaram contra a admissão feminina. Segundo Clóvis Beviláqua, “a sentença foi fulminante”, causando à escritora inconformis-mo e desconforto (1930, p. 53).

Terminada a sessão, fica estabelecido que o art. 2º do Estatuto da ABL ao se referir ao vocábulo “brasileiros”, faz menção exclusivamente aos indi-víduos do sexo masculino. Diz o artigo:

Só podem ser membros efetivos da Academia os brasileiros que tenham, em qual-quer dos gêneros de literatura, publicado obras de reconhecido mérito ou, fora desses gêneros, livro de valor literário. As mesmas condições, menos a de naciona-lidade, exigem-se para os membros correspondentes.

Porém, mais do que uma questão de interpretação, como queriam os acadêmicos, a justificativa para o veto ao ingresso de mulheres encontrou no vocábulo um inegável álibi. Em 31 de junho de 1930, o Jornal do

Com-mercio publicou uma síntese da reunião:

Na sessão da Academia Brasileira de Letras, realizada no dia 29 de maio de 1930, o Sr. Presidente, Dr. Aloysio de Castro, comunicou ter requerido inscrição à vaga de Alfredo Pujol, Amélia de Freitas Beviláqua. Sendo a primeira vez que se apre-sentava, à Academia, uma candidatura feminina, o Sr. Presidente, por não se achar autorizado a interpretar o art. 2º. dos Estatutos, solicitou que a Academia, em plenário, se manifestasse, de modo que, futuramente, se pudesse ter um crité-rio seguro, para aceitar ou rejeitar candidaturas de senhoras.

Sobre o assunto falaram os Srs. Constâncio Alves, Augusto de Lima, Silva Ramos, Afonso Celso, Roquette-Pinto, Alberto de Oliveira e Coelho Netto, sendo afinal resolvido, por maioria, que na expressão ‘os brasileiros’ do art. 2º. dos Estatutos só se incluíam indivíduos do sexo masculino.

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O Sr. Félix Pacheco, dado como presente, não havia comparecido, e fez declara-ção de voto favorável à entrada das senhoras, na Academia Brasileira de Letras.

O término da sessão de 29 de maio de 1930 foi marcado, então, pela aquiescência dos membros quanto à inadmissão de Amélia Beviláqua como candidata, vetando-lhe a possibilidade de concorrer à Cadeira 23, vaga ocu-pada, entre os anos de 1917 e 1930, pelo advogado e jornalista Alfredo Pujol. Sem esboçarem qualquer constrangimento, uma “firula gramatical” (expressão esta empregada por Ana Maria Machado, durante entrevista que nos foi concedida em 2008) é manejada pelos acadêmicos como justificati-va para uma atitude arbitrária.

Com isso, seis, das sete candidaturas propostas foram oficializadas: Otá-vio Mangabeira, Viriato Corrêa, Menotti Del Picchia, Alcântara Machado, Artur Mota e Haeckel de Lemos, tendo saído vitorioso o engenheiro e po-lítico Otávio Mangabeira, eleito em 25 de setembro de 1930, porém, em-possado apenas em 1º de setembro de 1934.

Amélia Beviláqua chama a atenção para alguns dos muitos comentários desagradáveis como de Rodrigo Octávio, para quem a discussão acerca da presença de mulheres na ABL não seria mais do que “uma consulta saial” (Beviláqua, 1930, p. 25).Não menos estarrecedora é a dúvida manifestada por Olegário Mariano, ao se mostrar menos preocupado com a elegibilida-de feminina em si do que com a ielegibilida-deia elegibilida-de as mulheres virem a portar um fardão. O poeta questiona, em tom de brincadeira: “Que vestimenta arran-jaremos para ela? O hábito de freira, o quimono japonês?” (Idem, p. 29). Os comentários de Rodrigo Octávio e Olegário Mariano exprimem, no míni-mo, descaso para com o assunto, que adquire a forma de um chistoso entre-tenimento.

Para Amélia Beviláqua, a impossibilidade de seu ingresso foi “um golpe desferido pelos imortais misogenistas”, pela “maçonaria das letras” que antipatizou com a lembrança de sua candidatura: “violentamente, me afas-taram do seu grêmio” (Idem, pp. 6-20). Assim, a votação preliminar deixa à mostra que a escritora estava pisando em terrenos hostis, movediços (Idem, p. 18) e, em tom de desabafo, salienta que os acadêmicos

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Contudo, Laudelino Freire buscou reavivar a discussão, registrando sua necessidade em virtude do baixo número de imortais quando da sessão do dia 29 de maio, que não chegou a atingir um quórum significativo o bas-tante para validar a decisão.

Tratando-se de assunto de maior importância, visto que envolve direitos de ter-ceiros, convirá que a Academia pondere de novo sobre a matéria, a fim de que não fique a prevalecer, caso seja realmente errada, a interpretação sumariamente dada ao artigo 2º dos Estatutos, em virtude da qual estarão para sempre fechadas as portas da Academia às escritoras brasileiras [...]. Apreciaram-na os grandes mestres de Direito Clóvis Beviláqua e Spencer Vampré, com fundamentos que deixam mal a resolução acadêmica (apudIdem, pp. 119-120).

Tendo como propósito obter a anulação da decisão, buscando “provar que a violência da preliminar do dia 29 de maio não estava de acordo com os estatutos” e, portanto, viabilizar a oficialização da candidatura de Amélia Beviláqua, a iniciativa de Laudelino Freire não ultrapassou os frágeis limites da boa intenção (Idem, pp. 10-11). Quanto a isso, a falta de receptividade e adesão a tal iniciativa aparece ilustrada na emblemática reação do acadêmi-co Adelmar Tavares, para quem

[...] a indicação [do nome da escritora] não pode ser aceita, pois corresponde, em linguagem jurídica, ao que se chama “embargos de declaração”, isto é, o acadêmi-co Laudelino Freire apela da decisão da Academia para a própria Academia, a fim de que esta considere a interpretação por ela dada ao vocábulo “brasileiro”. A matéria é adiada (Venâncio Filho, 2006, p. 21).

Por sua vez, os posicionamentos dos “imortais” Constâncio Alves e Silva Ramos não fazem mais que reiterar a postura sectária da agremiação. Ambos dizem “aprovar” a presença de escritoras nas academias, mas complementam o comentário com um deboche: contanto que sejam exclusivamente voltadas para as mulheres. Silva Ramos sugere “que as senhoras fundem a sua Academia e deixem em paz o Petit Trianon” (Idem, p. 25) e Constâncio Alves, “a quem certas formas do modernismo aborrecem”(Idem, p. 21), estabelece uma ana-logia entre a ABL e os conventos como fonte de explicação para sua postura:

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Deus; as nossas escritoras podem também, na sua academia, trabalhar pela glória das letras (Idem, p. 21).

A recusa à candidatura de Amélia Beviláqua não representou um episó-dio excepcional, mas um posicionamento esperado por parte da ABL, que não fez mais do que atualizar seus pendores androcêntricos. O discurso sexista de Constâncio Alves, acadêmico que se gabava por também ostentar uma postura misoneísta, foi buscar no proselitismo da igreja a referência para justificar a inadequação da presença de mulheres na Academia e, o que é mais relevante salientar, seu posicionamento encontrou em grande parte dos acadêmicos um inegável ponto de sustentação.

A “maçonaria das letras” e suas “firulas gramaticais”

Tenhamos a prudência e admiremos, como é justo, todas as mulheres de letras, mas não votemos em nenhuma delas.

CONSTÂNCIOALVES

Como ficou visível, o solo comum de todas as discussões em torno da (im)possibilidade de ingresso de mulheres na ABL foi o artigo 2.º de seu Estatuto, especificamente os artigos do Regimento Interno que o comple-mentam: art. 17 ou 30, dependendo da edição manuseada, ou melhor, a interpretação enviesada que os mesmos facultaram. As candidaturas femi-ninas não foram analisadas em função do mérito literário, mas por meio da remissão ao tradicionalismo, tomado como índice explicativo e, no limite, transformado em “dogma”. Nos termos de Clóvis Beviláqua, a interpreta-ção dada ao documento evidenciava que “a palavra brasileiro de que se ser-vem os Estatutos da Academia, no dispositivo referente à composição do grêmio literário compreende, somente, o sexo masculino! A declaração é oficial, e, por isso mesmo, conturbante” (apud Beviláqua, 1930, p. 55), investindo o vocábulo de um significado restritivo.

O desfecho foi pouco feliz, porquanto, em vez de enfrentarem a situação, elegen-do-a ou não, preferiram uma solução diplomática, sob a alegação de que os Esta-tutos faziam referência a “brasileiros” e nessa expressão só estariam compreendi-dos os homens.

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sexos. Assim está nas constituições federais. Assim está no código civil. Assim o esclareceria a velha jurisprudência romana (Meira, 1990, pp. 301-302).

Clóvis Beviláqua rebate a oblíqua interpretação de seus pares com iro-nia, respaldando-se no procedente argumento de que, se assim o é, o dicio-nário da língua portuguesa, então em processo de elaboração pela própria Academia, certamente indicará que o verbete “brasileiro” se refere apenas aos indivíduos do sexo masculino. O autor do Código Civil sustenta sua observação sublinhando que, tal como estatui o art. 2º. deste documento, conforme o qual “todo homem é capaz de direitos e obrigações”, as mulhe-res estão implicitamente repmulhe-resentadas, pois, como é de conhecimento de todos, “homem” representa uma categoria genérica.

Em seguida, o jurista refere-se ao art. 69 da Constituição, de acordo com o qual “são cidadãos brasileiros os nascidos no Brasil”. Para refutar de vez o argumento infundado mobilizado pelos imortais, o “Mestre” conti-nua perseguindo a linha de raciocínio adotada pela ABL e ressalta, sarcasti-camente, que, assim sendo, presume-se que, no Brasil, a mulher não possui nacionalidade, tampouco direitos. A conclusão a que chega é a previsível constatação de que a ABL desrespeitou um “preceito elementar da herme-nêutica” (apud Beviláqua, 1930, p. 57).

Quando se fala de homem, de modo geral, a expressão abrange os dois sexos [...]. Para a Academia, porém, na dicção – brasileiro, o gênero gramatical implica, necessariamente, o sexo. E, como sua autoridade é grande teremos de concluir que, no Brasil, as mulheres não têm nacionalidade, nem direitos (Idem, p. 55).

Como afirma Odylo Costa, membro da Academia Piauiense de Letras, após haver debatido o Código Civil Brasileiro com seus pares, “a palavra ho-mem significa todos os indivíduos da espécie humana, parecendo-nos que o vocábulo brasileiro compreende as pessoas de um e outro sexo. É esse o ter-mo dos Estatutos da Academia Piauiense de Letras”11. O mais espantoso é a

obviedade da questão, uma “firula gramatical”, ter rendido tantas discussões. Com isso, a ABL elege como manobra um surpreendente equívoco, o que nos leva a dizer que a decisão se torna ainda mais inconsistente por ter sido firmada em bases áridas, e o que é mais grave, desautorizando a pró-pria instituição. Eis o disparate: a agremiação parecia desconhecer aquilo que se apresentava como uma das justificativas para a sua existência: a lín-gua portuguesa.

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Conduzia assim a ABL, o debate em torno do acesso feminino à imortalidade literária como uma questão prioritariamente gramatical, insensível aos argumen-tos enfáticos de Clóvis Beviláqua que invocava a responsabilidade da Academia, enquanto autora do Dicionário da Língua Portuguesa (Hollanda, 1992, p. 77).

Uma manifestação que merece destaque é a de Spencer Vampré, que publica no jornal A Notícia um artigo, cuja extensão do título parecia tra-duzir a amplitude do debate: “A palavra ‘brasileiros’ só se refere aos ho-mens: como está sendo julgada a candidatura da senhora Amélia de Freitas Beviláqua em face daquele erro da Academia”. Catedrático da Faculdade de Direito de São Paulo, Vampré inicia o artigo relacionando o veto à candida-tura de Amélia Beviláqua com a inadmissão de Júlia Lopes, episódios estes envolvendo esposas de acadêmicos: “Repetiu-se o episódio ocorrido há anos com D. Júlia Lopes de Almeida, também, como D. Amélia, esposa de um acadêmico”, e assinala ser muito raro encontrar, “na história mental das agremiações literárias, um ponto de vista assim lamentavelmente estreito como este. A cultura literária não tem sexo, e a mentalidade feminina atin-ge por vezes às culminâncias do pensamento”. E conclui, afirmando ser “profundamente lamentável o gesto da Academia Brasileira de Letras; mas estou certo que voltará atrás, premida pelo clamor dos homens bons, ami-gos da justiça [...]. Isso que fizeram foi uma violência aos textos da lei, e até ao ‘decoro da inteligência’” (A Notícia, 28 jun. 1930).

No mesmo ano, a poetisa Henriqueta Lisboa (1904-1985)12 compôs

um soneto, tematizando a postura intransigente da Academia Brasileira quanto à velada proibição de ingresso feminino:

As cadeiras azuis da Academia é problema insolúvel da mulher Acrescentar ao caso uma ironia, Eis, a meu ver, o que se faz mister.

As reticências, em diplomacia, são recursos melhores que qualquer, Eu sei de gente má que malicia pelo que se disser ou não disser

Vejo-vos, ó poltronas, face a face, e não posso atingir a honra suprema enquanto ao meu alcance não descerdes!

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Ai de mim se de leve alguém pensasse que eu, fazendo lembrar um velho tema, em vez de azuis vos ver, vos visse “verdes”

[apud Venâncio Filho, 2006, p. 23]

No poema, Lisboa ironiza a apropriação “interessada” do Estatuto, ao se referir, de forma cifrada, às discussões em torno do vocábulo “brasileiros”, deixando bem claro na última estrofe se tratar de “um velho tema”. Para tanto, a poetisa refere-se ao equívoco interpretativo (apoiado na adoção improvisada de um discurso sobremaneira “conveniente”), por meio do es-tabelecimento de uma analogia com as cores das cadeiras.

Aliás, é fundamental apreender o misogenismo dos primeiros anos da ABL não como um “caso isolado”, mas como exemplo de uma postura recorrente em agremiações congêneres, atrelada às prerrogativas de gênero. Para ilustrar esta afirmação, basta mencionar a Royal Academy School, que, em 1879, declinou acerca da admissão de mulheres, com parecer que recaía sobre a interpretação enviesada que o art. 1º. de seu Regimento Interno facultou, de acordo com o qual apenas seriam aceitos “homens dotados de retidão de moral e de caráter” (Simioni, 2008, p. 101). A esse respeito, lembra-nos Simioni que

[...] na interpretação do artigo operava-se um uso político da língua na medida em que o termo homem tanto poderia ser visto como um representante do univer-sal (incluindo tanto o gênero masculino quanto o feminino), quanto poderia ser tomado em seu sentido restritivo e, de fato, por décadas, foi a segunda postura que prevaleceu (Idem, p. 101).

Como se vê, a apropriação indevida e interessada de certos vocábulos, tomados em seus “sentidos restritivos”, tem seus precedentes históricos. No caso específico da ABL, o “despiste semântico” foi amplamente mobilizado desde a sua fundação, de modo a fazer “vistas grossas” para as demandas femininas, rebatidas de forma evasiva, por meio de argumentos os mais infundados. Nos termos aqui explicitados, torna-se evidente que o caráter limitativo imputado ao Estatuto tenha se afigurado, pois, como uma “inte-ressada manobra”.

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nessa douta corporação. Realmente, diante do dispositivo estatutário, ninguém poderá pensar de outro modo. Se os estatutos não proíbem, permitem (C. Bevilá-qua apud Beviláqua, 1930, p. 33).

Prova disso é o texto “As mulheres e a Academia”, escrito por Josué Montello (1917-2006), para quem “a admissão de mulheres na Academia sempre constituiu, desde a origem da instituição, objeto de vivos debates. Pautando-se no modelo da Academia Francesa, a Casa de Machado de Assis fechou as portas às escritoras” (Montello, 1967, p. 91). Os registros de Montello fazem menção a um diálogo travado entre Ataulfo de Paiva e Roquette-Pinto, suscitado pela proposta de candidatura encaminhada por Amélia Beviláqua. A informal conversa dos acadêmicos exprime muito bem a aura de comicidade que cingia o tema:

Reaberto o debate com o pedido de inscrição de D. Amélia, o Ministro Ataulfo de Paiva, admirador declarado do belo sexo, logo se mostrou favorável à admissão das mulheres na Academia:

– Dariam encanto e graça a esta casa de marmanjos – admitiu, lembrando alguns nomes femininos.

E Roquette-Pinto, numa sugestão:

– Eu sou a favor das mulheres na Academia, desde que declarem, no ato de inscrição, que são maiores de quarenta e cinco anos.

Ataulfo abriu os braços, com uma fisionomia desolada:

– Caro colega, onde encontrar uma mulher que tenha a coragem de confessar, por escrito, que tem quarenta e cinco anos de idade? (Idem, pp. 91-92).

No entanto, Clóvis Beviláqua alega que, se a ABL tem como propósito exprimir a vida literária do país, e havendo mulheres talentosas, “cujos li-vros são afirmações apreciáveis da mentalidade brasileira”, a inadmissão das mesmas desautoriza a própria instituição, no que diz respeito à sua função de representatividade. E conclui julgando ser perturbador pensar que “as ruínas do misoneísmo ainda possam alicerçar opiniões de elites intelectuais” (apud Beviláqua, 1930, pp. 34-35).

***

(21)

auto-ridade para questionar o despiste semântico operado por seus pares acadê-micos – como jurista e membro fundador da ABL –, sua fala adquiriu certa expressividade no campo literário, mas foi insuficiente para promover qual-quer alteração regimental. Diante disso, ao ver-se testemunha do desrespei-to da agremiação ao que considerava um “preceidesrespei-to elementar da hermenêu-tica”, Clóvis Beviláqua tornou pública a sua ruptura com o “Silogeu maior”, deixando de frequentar as reuniões após a inadmissão de sua esposa, tal como informa a Gazeta de Notícias, de 20 de agosto de 1930. Em que pese a decisão do jurista, seu desligamento definitivo jamais chegou a ser concre-tizado, pois o título de membro da ABL é vitalício e irrenunciável.

Por suposto, o rompimento simbólico de Clóvis Beviláqua com a ABL pode ser entendido como fruto de um processo de reavaliação de sua carrei-ra, cujos rumos, acertos e percalços o vinculavam diretamente à trajetória de Amélia Beviláqua e, portanto, à parceria que com ela estabeleceu.

Nestes termos, a atitude de Clóvis Beviláqua, antes de representar um gesto ferrenho de desaprovação quanto à inelegibilidade feminina, deixa subentendido que as bases de seu posicionamento assentavam-se no companheirismo, de modo que sua decisão exprime uma reação pautada pela dimensão sentimental que emanava de seu vínculo com Amélia Bevi-láqua. Em suas manifestações públicas, o jurista parecia estar menos empe-nhado em interceder favoravelmente quanto à presença de mulheres na ABL, tomada como uma causa geral, do que em externar seu descontenta-mento perante uma recusa específica: a de sua parceira literária e conjugal. Até mesmo porque, quando da possibilidade de ingresso de Júlia Lopes, o “Mestre” manteve-se alheio às discussões, não esboçando qualquer envolvi-mento com a questão da “admissão feminina”.

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inseparável de Clóvis Beviláqua do que em termos de seus predicados literários.

Quanto a isso, o veto à candidatura da escritora parece exemplificar algo bastante recorrente entre casais de artistas: o fato de ser geralmente a mulher a negligenciada pela crítica e pela historiografia. Uma explicação para isso resvala em certa tradição cultural que sobrevaloriza a criação so-litária, de sorte que as parcerias são apreendidas como vínculos que, por assim dizer, subentendem certa relação hierárquica, de acordo com a qual um é mais Importante que o Outro (Simioni, 2008; cf. Chadwick e Cour-tivron, 1995).

Outro dado que vai ao encontro de nossa suposição advém da postura conservadora do jurista, que ficou incumbido pela elaboração do Código Civil de 1916, documento este que “reiterava a supremacia masculina”, vindo a definir o marido “como cabeça do casal perante a lei, investido do poder de autorizar ou proibir que ela [a esposa] seguisse uma carreira pro-fissional” (Besse, 1999, p. 11)13. Seguramente, o jurista buscou encobrir

esta assimetria valendo-se de eufemismos, o que o levou a salientar que

[...] as razões da hierarquia e das restrições impostas à mulher não deveriam ser atribuídas à inferioridade física e mental, uma vez que homens e mulheres são dotados de capacidade equivalente. O condicionante, assinalava o jurista, era a diversidade das funções que os consortes eram chamados a exercer “junto à socie-dade e na família” (Maluf e Mott, 2006, p. 379).

Se, para Clóvis Beviláqua, homens e mulheres desempenham papéis dis-tintos na sociedade e na família, temos, assim, indícios de que seu conserva-dorismo seria suficientemente marcante para que ele viesse a investir acerbamente em favor da presença de escritoras na ABL, a menos que se estivesse tratando de um ingresso específico, o de sua esposa, uma exceção à sua própria maneira de enxergar a hierarquia e as restrições impostas à mulher pelo Código Civil:

O Código Civil de 1916 interpretou o modo como cada um dos cônjuges deve-ria ser apresentado socialmente. Um conjunto de normas, deveres e obrigações, com seu correlato inibidor e corretivo, foi formalmente estabelecido para regrar o vínculo conjugal, a fim de assegurar a ordem familiar. A cada representante da sociedade matrimonial conferiu-se um atributo essencial. Assim, se ao marido cabia prover a manutenção da família, à mulher restava a identidade social 13.Referindo-se às

(23)

como esposa e mãe. A ele, a identidade pública; a ela, a doméstica. À figura masculina atribuíam-se papéis, poderes e prerrogativas vistos como superiores aos destinados à mulher. Delineava-se com maior nitidez a oposição entre esfe-ras pública e privada, base necessária para que a mulher se torne mulher e o ho-mem se torne hoho-mem, ao mesmo tempo que fornece os elementos de identifi-cação do lugar do homem e da mulher em todos os aspectos da vida humana (Idem, pp. 379-380).

Assim sendo, e a despeito dos elogios que recebeu da “tríade dos críticos consagrados” (Eleutério, 2005, p. 175), a saber, Araripe Jr., João Ribeiro e Sílvio Romero, ou mesmo do convite que recebeu para integrar a Academia Piauiense de Letras e da homenagem prestada pela “Casa de Juvenal Galeno” (Fortaleza, CE), ao lhe ser atribuído o título de patrona da Cadeira 48 da Ala Feminina, Amélia Beviláqua não encontrou acolhida na ABL.

Sem dúvida, tais demonstrações de respeito e reconhecimento, ainda que a tenham confortado, não foram capazes de arrefecer o sentimento de alijamento e decepção que a proibição de sua candidatura na ABL lhe cau-sara. A sensação experimentada por Amélia Beviláqua muito a aproxima da condição de outsider, conceito utilizado por Norbert Elias e John Scotson para traduzir a posição daqueles indivíduos preteridos de determinado

esta-blishment, isto é, da “minoria dos melhores”. Nestes termos, o episódio

vivido pela escritora, sintetizado nos significados subjacentes à ideia de “au-toindicação”, deixa à mostra sua posição desvantajosa no gradiente de po-der cujo topo é ocupado por aquele “grupo que se autopercebe [...] a partir de uma combinação singular de tradição, autoridade e influência” (Elias e Scotson 2000, p. 7). A inadmissão de Amélia Beviláqua foi um golpe des-ferido contra sua autopercepção, que já se denunciava abalada, haja vista a declarada submissão da escritora (em termos de talento e cacife) em relação àqueles escritores renomados, prestigiados.

O que então se passou provocou imenso trauma no casal Beviláqua, pessoas puras e sem malícia, de um momento para outro envoltas em um aranzel de comentários e competições desordenadas. E os comentários da imprensa! (Meira, 1990, p. 301).

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na interpretação equivocada do Regimento Interno, até que, em 26 de ju-nho de 1951, Osvaldo Orico propôs a modificação do art. 30 do referido documento. Sua proposta era promover uma emenda que tornasse clara a elegibilidade feminina.

Ao sugerir a modificação do art. 30 do nosso Regimento Interno, no sentido de torná-lo mais humano e liberal, tive em mente não só harmonizá-lo com as imposi-ções de nosso tempo, mas também com a isenção de nossos membros fundadores. Efetivamente, na forma de nosso estatuto básico, nenhuma reserva oferecem eles à admissão nesta Casa de brasileiros de outro sexo, constituindo até certo ponto uma inovação recente o dispositivo regimental que veda à mulher a faculdade de candidatar-se a uma cadeira na Academia.[...]

Nessa ordem de considerações, subsiste apenas como um preconceito, como um arcaísmo egoísta do homem o fato de estarem cerradas para as aspirações femini-nas as portas das Academias do Mundo. Das Academias, digo mal, de certas Academias, porque a dos Goncourt se orgulha e rejubila em possuir em seu seio, como mestre e como guia, a figura marcante de Colette, um dos grandes talentos criadores de nossa época e a da Suécia sempre apelou para que lhe não faltasse a honra de contar entre os seus pares a expressão universal de Selma Lagerloff ( Re-vista da ABL, 1951, p. 9).

No entanto, além de a votação não ter sido favorável à emenda, uma vez que os acadêmicos julgavam se tratar de uma questão estatutária (por sua vez, impassível de alteração), o ano de 1951 assiste a uma modificação subs-tancial em seu Regimento Interno – frontalmente infensa à proposta de Ori-co –, tornando oficial o que até então era velado: a inelegibilidade feminina.

Vale ressaltar que a proibição ao ingresso feminino já aparecia improvi-sadamente incorporada ao Regimento Interno de 1927, em tinta vermelha, tal como evidencia a página original do Regimento (Fig. 1), sendo que ape-nas em 1951 a “Casa de Machado de Assis” promove a inclusão, no corpo do texto, do aposto “do sexo masculino”, que restringe a própria norma estatutária e oficializa o pendor misógino da entidade.

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Fig. 1 Página original do Regimento Interno da ABL, de 1927. Ao longo da existência da agremiação, modificações pontuais processaram-se no documento, de modo que o art. 30 passa a corresponder ao art. 17 nas edições posteriores a 1951. Percebe-se aqui o adendo, na margem, que viria a ser oficialmente incorporado à redação do Regimento de 1951, segundo o qual “a expressão ‘brasileiros’ só se aplica aos escritores “do sexo masculino”.

Fonte: Biblioteca Lúcio de Mendonça/ABL.

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Ou ainda, a tinta, em sua acepção metafórica, exprime decisão, “definição”, convicção, enquanto o grafite revela titubeio, incerteza, inconstância.

Portanto, não nos parece exagerado afirmar que, com a incorporação do “aposto restritivo”, o Regimento Interno não faz mais do que formalizar o atrelamento dos critérios de elegibilidade às prerrogativas de gênero.

Ignora o público, e ignoram até muitos acadêmicos, que esse Regimento foi maculado por feia e mesquinha emenda. Esta emenda tornou as cadeiras azuis dessa Casa um privilégio do “sexo masculino”, com isso deturpando as intenções dos fundadores, que aludiram somente a brasileiros em geral com obras publicadas (Venâncio Filho, 2006, p. 32).

Muito embora as edições de 1937 e 1940 do Regimento Interno te-nham sucedido aquela de 1927, ambas não apresentaram qualquer altera-ção formal. Daí ser possível considerar tardia a modificaaltera-ção processada em 1951 (e reiterada na publicação de 1964). A definitiva supressão do adendo limitativo data de 1976, a exatamente um ano da eleição que sagrou Rachel de Queiroz como a “primeira imortal”.

Considerações finais

À guisa de conclusão, é possível afirmar que, se, de um lado, as atas, os anuários, as efemérides correspondem às fontes de informação oficiais acer-ca da Aacer-cademia, de outro, suas fendas e lacunas ratifiacer-cam a parcialidade e a limitação de que são portadoras, especialmente ao promoverem um inten-cional processo de obscurecimento (oriundo de manobras regimentais as mais arbitrárias), no caso específico, dos nomes femininos aqui destacados, a ponto de promoverem sua “exclusão, peremptória, da memória e, por conseguinte, da própria história” (Simioni, 2008, p. 25; cf. Perrot, 1995).

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PIÑON, Nélida. As mulheres e a Academia Brasileira de Letras. Entrevistadora: Michele

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Resumo

A (in)elegibilidade feminina na Academia Brasileira de Letras: Carolina Michaëlis e Amélia

Beviláqua

A Academia Brasileira de Letras erigiu-se como um ambiente refratário à presença feminina. Embora mantida fora de cogitação durante seus primeiros oitenta anos de existência, a questão da “elegibilidade feminina” não deixou de integrar a pauta de algumas das sessões acadêmicas. Destarte, o presente artigo objetiva iluminar este tema, tendo em vista os bastidores de dois importantes episódios ocorridos, respecti-vamente, em 1911 e 1930, quais sejam: a cogitação do nome da filóloga Carolina Michaëlis para integrar o quadro de sócios correspondentes da “Casa de Machado de Assis” e a proposta oficial de candidatura encaminhada por Amélia Beviláqua, primeira mulher a tentar concorrer a uma vaga entre os membros efetivos da agremiação.

Palavras-chave: Carolina Michaëlis; Amélia Beviláqua; Academia Brasileira de Letras;

Elegibilidade feminina

Abstract

Feminine (In)eligibility in the Brazilian Academy of Letters: Carolina Michaëlis and Amélia

Beviláqua’s experiences

The Brazilian Academy of Letters emerged as an environment resistant to the pres-ence of women. Although it was unthinkable during its first eighty years of exist-ence, the question of “feminine eligibility” did make the agenda of some of the academic sessions. The present article seeks to shed light on this issue by taking a backstage look at two key episodes, from 1911 and 1930, respectively: the consider-ation of the philologist Carolina Michaëlis as a candidate to the board of non-effec-tive members of the House of Machado de Assis and the official candidacy of Amélia Beviláqua, the first woman to vie for a seat among the effective members of the academy.

Keywords: Sociology of Culture; Carolina Michaëlis; Amélia Beviláqua; Brazilian

Academy of Letters; Feminine eligibility.

Texto recebido em 16/ 2/2009 e aprovado em 9/3/2010.

Imagem

Tabela elaborada a partir de informações compulsadas na Biblioteca Lúcio de Mendonça/ABL.
Fig. 1  Página original do     Regimento Interno da ABL, de 1927. Ao longo da existência da agremiação, modificações pontuais processaram-se no documento, de modo que o art

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