O ESPAÇO MlTICO EM NARCISO
ftãvia Regina UARQUETT1*
O que pretendemos d i s c u t i r nessa comunica ção é se a l e i t u r a do espaço mítico em N a r c i s o pode s e r v i s t a como um r i t u a l de passagem, como uma manifestação do sagrado, ou s e j a , se há a p o s s i b i l i d a d e de v e r o espaço em N a r c i s o como uma h i e r o f a n i a fundadora do mundo.**
Segundo M i r c e a E l i a d e , em 0 Sagiado e o PtojCa
no e no Tnatado de. HiòtonÁa de leu, ReJLA.gi.onei,, para o
homem r e l i g i o s o o espaço não é homogêneo, e l e se d i v i d e em espaço sagrado e não-sagrado. O espaço sagrado corresponde a um espaço f o r t e , que marca
o r e a l , enquanto que o espaço não-sagrado ( p r o
fano) corresponde a um espaço amorfo, i n f o r m e -nâo-real, p o r t a n t o .
Em N a r c i s o temos a revelação de uma r e a l i d a
* Aluna do Programa de Pós-Graduacão
** A versão do m i t o com a q u a l trabalhamos é
de a b s o l u t a p o r meio do espaço.
Como bem observou o P r o f e s s o r I g n a c i o em
seu a r t i g o A Metamorfose de N a r c i s o ( 2 , p. 57-7 1 ) , N a r c i s o s a i de um espaço a b e r t o que é o bos que (de campos ínvios, sem caminhos) para um es paço fechado - a f o n t e . Temos, assim, um deslo-camento h o r i z o n t a l d i r e c i o n a d o , que o l e v a de um l u g a r inóspito a um l u g a r " a t r a e n t e " , o que, na verdade, não é um s i m p l e s deslocamento, mas uma
sedução.
Ainda seguindo os passos do P r o f e s s o r I g n a c i o , nós temos que N a r c i s o é i m p e l i d o p e l o s o l , p e l a sede e p e l a caça para a f o n t e ( * ) , sen
* Segundo E l i a d e a e s c o l h a de um l u g a r sagrado não cabe ao homem, mas sim a uma manifestação da d i v i n d a d e , ou s e j a , a d i v i n d a d e i n d i c a r i a ao homem p o r meio de presença de um a n i m a l con sagrado a e l a , ou de q u a l q u e r o u t r o símbolo, o sítio que deve s e r consagrado; o uso de a n i mais selvagens ou domésticos é m u i t o freqüen
do atraído p e l a b e l e z a d e s t a , p e l o amor ao b e l o e a aparência. E será em função de o u t r a aparên c i a que e l e irá se f i x a r no l o c a l , ou s e j a , a paixão p o r sua imagem. Como vemos, é p o r meio da s e x u a l i d a d e que N a r c i s o v a i e n t r a r em comunhão com o sagrado.
Num p r i m e i r o momento, temos N a r c i s o / p r o f a n o s o l t o , sendo que o bosque é o símbolo dessa não-s a c r a l i d a d e e que pode não-s e r c a r a c t e r i z a d o como enão-s paço t e r r e s t r e > i l i m i t a d o , transpassável, quen t e , i l u m i n a d o , enxuto - é o espaço i n f o r m e da l i . berdade.
Mas nenhum mundo pode nascer no caos da ho mogeneidade e da r e l a t i v i d a d e do espaço p r o f a n o . Vale l e m b r a r que há no homem uma necessidade bá
s i c a de e s t a b e l e c e r os l i m i t e s de seu mundo, ou s e j a , de fundá-lo. E é i s s o que o c o r r e com Narc_i so: através de Eros, e l e v a i c r i a r seu "cosmos".
O N a r c i s o p r o f a n o encontrava-se s o l t o , sem um ponto f i x o , p e r d i d o numa massa amorfa de uma i n f i n i d a d e de l u g a r e s mais ou menos n e u t r o s , até o momento em que e n t r a em c o n t a t o com Eros, com sua imagem; é a p a r t i r daí que nós teremos a f u n dação do mundo de N a r c i s o , que e l e irá e s t a b e l e c e r um c e n t r o , um ponto f i x o .
t i d o . A f o n t e é um espaço que se opõe ao bosque, p o i s é aquático, l i m i t a d o , intranspassável (embo-r a pe(embo-rmeável), f (embo-r i o , t(embo-ranslúcido e úmido - é o espaço da não l i b e r d a d e , da prisão. Desse modo, observamos que num p r i m e i r o momento nós t i n h a mos N a r c i s o sem um ponto f i x o , desconhecendo o amor e com uma inexistência do mundo - que v i v e uma i r r e a l i d a d e . No segundo momento, quando e l e conhece o amor, e l e e s t a b e l e c e um ponto f i x o ,
funda o mundo e passa a t e r uma v i d a r e a l .
O que d e t e r m i n a a passagem do p r i m e i r o mo mento para o segundo é o espelho ď á g u a e a v i _
são. A f o n t e é o l i m i t e , o l i m i a r desses d o i s espaços (sagrado e p r o f a n o ) , é o p o n t o de passa gem de um modo de s e r a o u t r o .
A f o n t e é a f r o n t e i r a que d i s t i n g u e e opõe d o i s mundos, é o l u g a r p a r a d o x a l onde esses d o i s mundos se comunicam e onde pode e f e t u a r - s e a pas_
sagem do mundo p r o f a n o para ò Sagrado. E é o o l h a r que v a i p o s s i b i l i t a r essa passagem. De acordo com Muni z Sodré em A Máquina de MOACÁAO, o amor é visão d i v i d i d a , ou s e j a , o o l h a r é um caminho para a fusão com o o u t r o , é uma forma de p o s s u i r e s e r possuído. E como já dissemos, é a s e x u a l i d a d e que irá c r i a r o "cosmos" em N a r c i s o .
mas também é uma a b e r t u r a para o c o n t a t o com o mundo s u p e r i o r e as regiões i n f e r n a i s , é um meio de comunicação com os deuses, os deuses do a l t o ; h a j a v i s t e , , que o céu também é r e f l e t i d o no espe l h o d*água j u n t o com a imagem de N a r c i s o . Ao mes mo tempo, o e s p e l h o ď á g u a esconde as regiões i n
f e r n a i s , as p r o f u n d e z a s .
Observamos, assim, que o movimento que apre sentava uma h o r i z o n t a l i d a d e passa a uma v e r t i c a l i d a d e , e essa v e r t i c a l i d a d e assume proporções a i n d a maiores quando N a r c i s o mergulha na f o n t e em busca de sua imagem. Teríamos, desse modo, a constituição de um r i t o de passagem.
f i x o
Bosque Fonte Espelho l i b e r d a d e / s o l t o ď á g u a
regressão ou c a t a c l i s m o ( * ) .
N a r c i s o , enquanto p r o f a n o , recusa os c o n t r a t o s humanos, ou s e j a , não a c e i t a a v i d a religió sa e c u l t u r a l de sua comunidade. Mas quando mer g u l h a em busca de sua imagem e l e e s t a b e l e c e uma mutação do seu regime ontológico.
Vemos, em E l i a d e ( 1 , p. 145-147), que o ho mem das sociedades p r i m i t i v a s não se c o n s i d e r a
"acabado" t a l q u a l se e n c o n t r a no nível n a t u r a l da existência. Para se t o r n a r homem p r o p r i a m e n t e d i t o , deve m o r r e r para e s t a v i d a p r i m e i r a ( n a t u r a l ) e r e n a s c e r para uma v i d a s u p e r i o r , que é ao mesmo tempo r e l i g i o s a e c u l t u r a l .
A iniciação c o n s i s t i r i a , assim, em uma expe riência p a r a d o x a l , s o b r e n a t u r a l , de morte e r e s surreição, ou segundo nascimento. Percebemos, com i s s o , que o m i t o de N a r c i s o obedece ŕs e t a
* N a r c i s o é f i l h o do d e u s - r i o Céfiso, p o r t a n t o nasceu l i t e r a l m e n t e da água, e morre ao a t i r a r - s e na f o n t e , r e t o r n a n d o ao elemento, que para os gregos e r a o único capaz de d e s i n t e g r a r a alma. Sendo assim completa um c i c l o .
pas que compõem a iniciação, ou s e j a , contém uma t r i p l a revelação: a da s e x u a l i d a d e , a do sagrado e a da m o r t e . Essa t r i p l a revelação d e v e r i a l e var N a r c i s o de um e s t a d o de não-saber, a um es t a d o de sa^ber.
Nos quadros iniciáticos, o simbolismo do r e nascimento segue sempre o da m o r t e . Considerando a hipótese de correlação do m i t o com os r i t u a i s de passagem, a passagem de N a r c i s o p e l o espelho d'água é uma passagem do v i r t u a l para o f o r m a l , da morte para a v i d a , p o i s o caos aquático que precedeu a criação s i m b o l i z a , ao mesmo tempo, a regressão ao amorfo e f e t u a d a p e l a morte e o r e gresso ŕ modalidade l a r v a r da existência. N a r o i so desce para as regiões i n f e r i o r e s , regiões des^ c o n h e c i d a s , sobre as q u a i s se e s t a b e l e c e o nosso
"cosmos". Como i n i c i a d o reconhece que o verdade_i r o mundo s i t u a - s e no meio, no c e n t r o , porque é aí que há a r u p t u r a de nível, p o r t a n t o , comuni cação e n t r e as três zonas cósmicas. E é esse equilíbrio que se e s t a b e l e c e e n t r e as três zonas que c a r a c t e r i z a o cosmos p e r f e i t o .
Vale l e m b r a r que as p l a n t a s concentram a f o n t e da v i d a , assim como a água é p o r t a d o r a de m i c r o r g a n i s m o s , e, p o r t a n t o a modalidade humana se e n c o n t r a r i a n e l a s , em seu e s t a d o v i r t u a l , sob a forma de germes e sementes.
0 r e a l não é apenas o que p e r d u r a i n d e f i n i . damente i g u a l a s i mesmo, mas também o que advém de formas orgânicas, cíclicas e que convergem a um mesmo f i m . A vegetação a p r e s e n t a - s e como a manifestação da r e a l i d a d e v i v e n t e ; em decorrên c i a d i s s o , poderíamos d i z e r que N a r c i s o - F l o r se c o n v e r t e em uma h i e r o f a n i a , i s t o é, encarna e r e v e l a o sagrado.
N Homem N-Homem
(íntegro)
h o r i z o n t a l Ponto f i x o / t e n s a o
N - Imagem
-E2ÜÊ2-Í iïS/NlíllÇE.
* íntegro
V o r t i c a l i d a d e
i nforme
Denis B e r t r a n d d e s t a c a em L'Eipace ei te
ienò-G e r m i n a l d*Emile Z o l a que o a c t a n t e , s u j e i
t o da enunciação, promove seu espaço e l h e dá um
s e n t i d o , ao mesmo tempo que essa e s p a c i a l i d a d e
a p r e s e n t a d a funda o s u j e i t o . P o r t a n t o , o espaço
pode s e r e n t e n d i d o como o p o n t o de o r i g e m do Su
j e i t o .
Se passarmos a g o r a , p a r a f i n a l i z a r m o s , p a r a
o u n i v e r s o c u l t u r a l grego veremos que com r e l a
ção a r e a l i d a d e s o c i a l do homem e da mulher o c o r
r e uma inversão de papéis no m i t o de N a r c i s o . Na
Grécia, a mulher t e r i a seu modelo na d i v i n d a d e
Hestía, que é f i x a e ocupa o c e n t r o do l a r ; ao
passo que ao homem é r e s e r v a d o o espaço perifèric
co, do d e s l o c a m e n t o , que é a s s o c i a d o , p o r sua
vez, ao deus Hermes. Em N a r c i s o , vemos que a f i .
g u r a de N a r c i s o ( m a s c u l i n a ) se e n c o n t r a f i x a
pa o espaço periférico e de deslocamento.
Com e s t a observação, podemos v o l t a r ao r i t o de passagem. Do ponto de v i s t a f o r m a l , o m i t o p o s s u i todas as etapas do r i t u a l iniciático, mas em nível de s i g n i f i c a d o t r a d u z uma iniciação f r u s
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