Morbidade materna extremamente grave a
partir dos registros de internação hospitalar
do Sistema Único de Saúde: algoritmo para
identificação dos casos
Extremely severe maternal morbidity in
Brazilian National Health System hospital
registers: an algorithm for identification of
cases
Maria da Consolação Magalhães 1
Carlos Eduardo Raymundo 2
Maria Teresa Bustamante-Teixeira 3
1Secretaria de Saúde de Juiz de Fora. Rua Halfeld, 1400. 3º andar. Centro. Juiz de Fora, MG, Brasil. CEP: 36.013-000.
E-mail: consolamagalhaes@gmail.com
2Instituto de Medicina Social. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
3Universidade Federal de Juiz de Fora. Juiz de Fora, MG, Brasil.
Abstract
Objectives: to identify codes for constant proce-dures in the Brazilian National Health System’s Hospital Information System (SIH-SUS) deemed to be cases of Extremely Severe Maternal Morbidity (MMEG) and to develop an algorithm to manage/prepare an AIH database, with a view to identifying cases of MMEG in this database.
Methods: the data used were from the SIH-SUS supplied by the Juiz de Fora Health Secretary and refer to admissions to SUS hospitals between 2006 and 2007. The study covered all admissions where the principal diagnosis involved all of Chapter XV of CID10 – complications of pregnancy, miscarriage, delivery and puerperium and/or admissions to hospital involving obstetric procedures. For identifi-cation of SIH-SUS procedures deemed to be MMEG, the criteria proposed by the WHO were used. The algorithm was developed using Microsoft Access.
Results: 326 cases of MMEG were found among the 8620 women selected, constituting a rate of 37.8/1000 women. The most frequent procedures were transfusion of blood products, “a longer stay” and severe pre-eclampsia/eclampsia, with a prevalence of 15.7/1000, 9.5/1000 and 8.2/1000, respectively.
Conclusions: the algorithm used may optimize the use of the SIH-SUS for identifying cases of MMEG and generating information for maternal morbidity and mortality surveillance services and the evalua-tion of obstetric care.
Key words Medical informatics, Health evaluation, Morbidity, Hospital Information Systems, Pregnancy complications
Resumo
Objetivos: identificar os códigos de procedi-mentos constantes no Sistema de Informação Hospitalar – Sistema Único de Saúde (SIH-SUS) considerados como Morbidade Materna Extremamente Grave (MMEG) e construir um algo-ritmo para o manejo/preparação da base de dados de Autorização de Internação Hospitalar visando a captura dos casos de MMEG neste banco de dados.
Métodos: utilizaram-se os dados do SIH-SUS fornecidos pela Secretaria de Saúde de Juiz de Fora e referem se as internações ocorridas no SUS no período de 2006-2007. Foram selecionadas todas as internações cujo diagnóstico principal compreendia todo o capítulo XV da Classificação Internacional de Doenças (CID10) - Complicações da gravidez, aborto, parto e puerpério e/ou internações em que procedimentos obstétricos foram realizados. Para identificação dos procedimentos no SIH-SUS, consi-derados como MMEG, adotaram-se os critérios propostos pela Organização Mundial da Saúde. O algoritmo foi desenvolvido no software Microsoft Access.
Resultados: foram capturados 326 casos de MMEG entre as 8620 mulheres selecionadas, perfazendo uma taxa de 37,8/1000 mulheres. Os procedimentos mais frequentes foram transfusão de hemoderivados, “permanência a maior” e pré-eclampsia grave/eclâmpsia, com prevalências de 15,7/1000, 9,5/1000 e 8,2/1000, respectivamente.
Conclusões: o algoritmo utilizado pode otimizar o uso do SIH-SUS para a captação dos casos de MMEG e gerar informações para os serviços de vigilância da morbimortalidade materna e avaliação de cuidados obstétricos.
Introdução
A Organização Mundial da Saúde (OMS) define que um caso de near miss materno ou Morbidade Materna Extremamente Grave (MMEG) é aquele em que a mulher quase foi a óbito por complicações que ocorreram durante a gestação, parto ou até 42 dias após o término da gestação, mas sobreviveu.1Os
critérios de MMEG tem variado entre os autores,2-7
mas, recentemente, a OMS1definiu alguns destes
para identificação de casos de MMEG: critérios clínicos (choque, distúrbios da coagulação, acidente cerebrovascular, perda de consciência por mais de 12 horas, entre outros); critérios laboratoriais (trom-bocitopenia aguda, creatinina >3,5 md/dL e outros) e procedimentos (diálise, histerectomia puerperal, uso contínuo de drogas vasoativas, entre outros).
No Brasil, os sistemas de informação em saúde disponíveis contam com grande número de dados que poderiam contribuir para o estudo da morbimor-talidade materna. O Sistema de Informação Hospitalar - Sistema Único de Saúde (SIH-SUS), que se refere aos internamentos registrados pelo SUS, seria um deles. Vários estudos8-11 de
concordância de registros de procedimentos e de diagnósticos têm demonstrado a confiabilidade das informações nele contidas. Esses registros têm sido utilizados ainda para captura das internações devido às condições sensíveis aos cuidados na atenção primária à saúde12,13e também como fonte de
iden-tificação de doenças de noiden-tificação compulsória desde 2005.14
Este trabalho objetivou identificar os códigos de procedimentos constantes no SIH-SUS considerados como MMEG e construir um algoritmo para manejo/preparação da base de dados e captura dos casos neste banco de dados.
Métodos
Os dados do Sistema de Informação Hospitalar (SIH-SUS) foram fornecidos pela Secretaria de Saúde de Juiz de Fora e referem se as internações ocorridas no SUS no período de 2006 e 2007. Inicialmente foram selecionadas, na Tabela TB-AIH, todas as internações cujo diagnóstico principal compreendia o Capítulo XV da CID-10 (Complicações da gravidez, aborto, parto e puer-pério) e/ou internações, fora deste capítulo, em que constavam a realização de procedimentos obstétricos, identificados pelos códigos de procedi-mentos iniciados por 34, 35 e 69 no SIH-SUS.15
O SIH-SUS fornece diversas tabelas que armazenam, cada uma delas, dados relativos a
carac-terísticas do usuário, procedimentos e atos realizados na internação, entre outros. A Tabela TB-AIH fornece dados gerais relativos à internação como o número da Autorização de Internação Hospitalar (AIH), identificação do usuário e do hospital, datas de internação e saída, número de dias de UTI, diag-nóstico principal e secundário, procedimento solici-tado e realizado, médico responsável, e outros. Essa contém todas as internações do período. A Tabela TB-HSP abrange os atos profissionais realizados em cada internação, identificação do profissional, os respectivos valores e quantidades de atos, entre outros. A Tabela TB-HPE apresenta os procedi-mentos especiais realizados. São utilizados os mesmos códigos para atos profissionais, procedi-mentos realizados e procediprocedi-mentos especiais. Nas Tabelas TB-HSP e TB-HPE o número da AIH se repete cada vez que houver um procedimento para a internação registrada na TB-AIH. Se o paciente foi submetido a dez procedimentos ou atos profis-sionais, por exemplo, a AIH estará repetida este número de vezes nas tabelas referidas.
Para identificação dos procedimentos conside-rados como MMEG, foram selecionadas as variáveis HAH-PROC-R (procedimento realizado), HSP-ATO (ato profissional) e HPE-PROC (procedimentos especiais) nas Tabelas TB-AIH, TB-HSP e TB-HPE, respectivamente, considerando os procedimentos identificados como MMEG a partir dos critérios propostos por Say et al.1apresentados na Tabela 1.
Tabela 1
Procedimentos ou condições clínicas, com os respectivos códigos, considerados indicativos de morbidade materna extremamente grave no banco de dados do Sistema de Informação Hospitalar – Sistema Único de Saúde (SIH-SUS).
Procedimentos ou condições clínicas Códigos correspondentes no SIH-SUS
Admissão em UTI 96001011, 96001020, 96001038,
96002018, 96002026, 96002034
Albumina Humana 92037011- 92037992
Cardioversão 004001028
Choque anafilático 86300016, 86300015
Choque cardiogênico no adulto 77500199
Choque hipovolêmico no adulto 77500245
Choque séptico 77500482
Complicações de procedimentos cirúrgicos ou médicos 91500141
Concentrado de hemácias 94006016
Concentrado de leucócitos 99004013
Concentrado de plaquetas 94002010
Defeitos da coagulação 79300057
Eclampsia 69000069
Edema agudo de pulmão 77300149
Hemorragias na gravidez 69000140
Histerectomia puerperal 35011017
Implante de cardiodesfibrilador 48010421
Implante de marcapasso 48010405
Infecção parede abdominal 69000034
Infecção parto e puerperio 69000093
Instalação de assistência circulatória 48010170
Insuficiência renal aguda 80300057, 8050056
Insuficiência respiratória aguda 76300188, 76500233
Intercorrência clinica de atendimento secundário em gestante de alto risco 69500029
Intercorrência clínica na gravidez em gestante de alto risco 69500010
Intercorrencia obstétrica atendimento secundário a gestante de alto risco 35032014
Intercorrencia obstétrica na gravidez em gestante de alto risco 35031018
Laparotomia exploradora 33016119
Laparotomia para histerorrafia 35012013
Mastite 69000026
Outras histerectomias 34009035, 34010033, 34011030,
34014039, 34017038, 3474124, 34709037, 34710035, 34717030
Peritonite pós cesareana 69000042
Permanência a maior 99003015 a 99003996
Pielonefrite 80300073, 80500072
Plasma individual 94005010
Preeclampsia grave 69000050
Púrpura trombocitopenica 79300065
Ressutura de parede abdominal 33022119
Sangue total 94007012
Septicemia 74500244
Tireoidite 8250037
Tireotoxicose 82300020
Tratamento conservador da hemorragia cerebral 40202003
8620 mulheres. Na última etapa são criadas as variáveis número e tempo de internação total por usuária armazenadas na tabela temporária “tabtemp3”. Estas duas últimas tabelas são agre-gadas formando o banco de análise final (BDA). A sintaxe do Microsoft Access para identificação dos casos de MMEG no banco de dados do SIH-SUS está disponível em http://www.ufjf.br/nates/files/ 2008/09/Rotina-para-identifica%C3%A7%C3%A3o -dos-casos-de-Morbidade-Materna-Extremamente-G rave-MMEG.pdf
O presente projeto foi submetido ao comitê de ética de pesquisa da Universidade Federal de Juiz de Fora e aprovado pelo parecer nº 468/2007.
Resultados
A Tabela 2 apresenta os procedimentos/condições selecionados. Entre as 8620 foram identificadas 326 mulheres com morbidade materna extremamente
grave, ou seja, uma taxa de MMEG de 37,8/1000 mulheres. Os procedimentos mais frequentes foram: transfusão de hemoderivados, “permanência a maior” (procedimento especial autorizado e registrado no sistema quando o período de inter-nação ultrapassa o dobro da permanência prevista na tabela de procedimentos) e pré-eclampsia grave/eclâmpsia, com prevalências de morbidade específicas de 15,7/1000, 9,5/1000 e 8,2/1000, respectivamente.
Figura 1
Discussão
A MMEG vem ganhando importância devido à queda na razão de mortalidade materna e buscar formas de identificar estas ocorrências torna-se fundamental para o monitoramento da saúde materna. Algumas pesquisas têm sido realizadas a partir de registros em prontuários hospitalares para identificação dos casos de MMEG.2-7Embora sejam
ideais, na rotina dos serviços de saúde, especial-mente para vigilância da morbimortalidade esta busca se torna pouco produtiva. Neste sentido a utilização dos dados secundários constitui-se em fonte importante de informação que poderia ser incorporada na rotina da vigilância da saúde materna. O algoritmo proposto demonstrou ser eficiente para a construção do banco de dados de procedimentos e na identificação dos casos de
morbidade materna, embora tenha sido pouco sensível para captação de óbitos maternos, uma vez que grande parte destes pode ocorrer no puerpério ou em serviços de urgência/emergência. Nos casos de reinternação, nem sempre o motivo da internação faz referência ao período gravídico puerperal. No entanto, a identificação dos casos de MMEG podem constituir-se em fonte importante para os comitês de investigação de morte materna, agilizando seu trabalho.
O algoritmo aqui proposto visa otimizar o uso do SIH-SUS para a captação dos casos de MMEG e, se adotado pelos gestores, poderia gerar automatica-mente e em tempo hábil informações para os serviços de vigilância da morbimortalidade materna, permitindo a avaliação e monitoramento de cuidados obstétricos.
Tabela 2
Procedimentos ou diagnósticos considerados como critérios de morbidade materna extremamente grave (MMEG) em mulheres internadas pelo Sistema Único de Saúde/Juiz de Fora, 2006-2007.
Variáveis N % Tx. MMEG
Diagnóstico e/ou condições clínicas
Complicações de procedimentos cirúrgicos ou médicos 11 3,4 1,3
Eclampsia/ Preeclampsia grave 71 21,8 8,2
Hemorragias na gravidez 10 3,1 1,2
Intercorrência clinica /obstétrica de atendimento secundário 28 8,6 3,4
em gestante de alto risco
Procedimentos
Admissão em UTI 2 0,6 0,2
Histerectomia 10 3,0 1,2
Transfusão de hemoderivados* 136 41,7 15,7
Total de mulheres com MMEG 326 ** 37,8
*plasma, sangue total, hemácias, albumina humana; ** os percentuais não somam 100% porque uma mulher pode ter apresentado mais de um diagnóstico ou procedimento.
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Recebido em 31 de maio de 2012Versão final apresentada em 14 de dezembro de 2012 Aprovado em 17 de janeiro de 2013
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