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Como trabalhar com "raça" em sociologia.

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Academic year: 2017

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Texto

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C o m o t r a b a lh a r c o m " r a ç a " e m s o c io lo g ia

1

Antonio Sérgio Alfredo Guimarães

Universidade de São Paulo

Correspondência:

Antonio Sérgio Alfredo Guimarães Departamento de Sociologia - USP Av. Luciano Gualberto, 315 - Cid. Universitária

05508- 900 - São Paulo — SP e- mail: asguima@usp.br

1. Este texto reproduz, de maneira li-geiramente modificada, uma aula que proferi, em abril de 2000, a pedido de Nadya Araújo Guimarães, em seu se-minário de orientação de bolsistas, na USP. Mais tarde, esse texto foi modi-ficado e apresentado no ciclo de semi-nários do projeto " Gestão local, empregabilidade e eqüidade de gêne-ro e raça: uma experiência de política pública na região do ABC paulista", em desenvolvim ento no CEBRAP, em 2001.

R e s u m o

Numa exposição didát ica, de carát er t eórico- met odológico, o aut or explica o modo como ut iliza em suas pesquisas a cat egoria “ raça” , em conexão com out ras cat egorias como “ cor” , “ et nia” , “ região” , “ classe” , “ nação” , “ povo” , “ est ado” , et c.

A part ir do pressupost o de que os conceit os, t eóricos ou não, só podem ser aplicados e ent endidos no seu cont ext o discursivo, o aut or est abelece a dist inção ent re conceit os “ analít icos” e “ nat i-vos” , ou seja, ent re cat egorias ret iradas de um corpus t eórico e cat egorias que compõem o próprio universo discursivo dos su-jeit os que est ão sendo analisados, mas que devem ser ut ilizados pelo sociólogo.

Na part e cent ral do t ext o, o aut or esboça uma hist ória dos signi-f icados da cat egoria “ raça” no Brasil e das diversas explicações do carát er das relações ent re brancos e negros avançadas pela Sociologia: desde o t rabalho pioneiro de Donald Pierson, nos anos 1940, passando pelos est udos da Unesco, nos anos 1950, os t rabalhos da chamada “ escola paulist a” , nos anos 1960, e a ret omada da t eoria da “ democracia racial” nos anos mais recen-t es, em esrecen-t reirecen-t o diálogo com os movimenrecen-t os negros.

O aut or t ermina por f azer uma pequena discussão sobre os di-versos est ímulos, ou pergunt as, dados em pesquisas t ipo survey, para def inição e mensuração da variável cor ou raça.

P a l a v r a s - c h a v e

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H o w t o w o r k w it h “ r a c e ” in s o c io lo g y

1

Antonio Sérgio Alfredo Guimarães

Universidade de São Paulo

.

A b s t r a c t

In a didact ic account of a t heoret ical- met hodological nat ure t he author explains how the category of “ race” is used in his research, in connect ion wit h ot her cat egories such as “ color” , “ et hnics” , “ class” , “ nat ion” , “ people” , “ st at e” , et c.

Assuming t hat concept s, t heoret ical or ot herwise, can only be appl i ed an d u n derst ood w i t hi n t hei r di scu rsi ve con t ext s, t he au t hor est abl i shes t he di st i n ct i on bet w een “ an al yt i cal ” an d “ nat ive” concept s, t hat is, bet ween cat egories ext ract ed f rom a t h eo ret i cal co rp u s, an d t h o se t h at co m p ri se t h e d i scu rsi ve universe of the subjects being analyzed, but that must be employed by t he sociologist .

In t he cent ral part of t he t ext , t he aut hor sket ches a hist ory of t he meanings of t he cat egory “ race” in Brazil and of t he various explanat ions of t he nat ure of t he relat ions bet ween whit e and black people put f orward by Sociology: st art ing wit h t he 1940s pioneering work of Donald Pierson, going t hrough t he UNESCO st udies of t he 1950s and t he work of t he so- called “ São Paulo School” in t he 1960s, up t o t he more recent revival of t he t heory of “ racial democracy” in close dialogue wit h Black movement s. The aut hor concludes t he art icle wit h a brief discussion about t he various quest ions or st imuli given in surveys f or t he def init ion and measurement of t he color or race variable.

K e y w o r d s

Race – Ethnics – Class – Nation. Contact:

Antonio Sérgio Alfredo Guimarães Departamento de Sociologia - USP Av. Luciano Gualberto, 315 - Cid. Universitária

05508- 900 - São Paulo — SP e- mail: asguima@usp.br

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Nest e t ext o, pret endo f azer uma discus-são conceit ual sobre “ raça” que seja t ambém met odológica. Gost aria de lembrar, an t es de t udo, que se t rat a de uma exposição sobre o modo como eu t rabalho conceit ualment e. Pos-so parecer cat egórico demais, às vezes, mas se t rat a apenas de uma int erpret ação minha, pois nada do que eu f alo f orma um corpo dogmát ico est abelecido ou cient if ico; é apenas a explici-t ação críexplici-t ica da maneira como eu explici-t rabalho.

Vamos começar pelos conceit os. Faze-mos sempre uma dist inção, nas ciências sociais, ent re dois t ipos de conceit os: os analít icos, de um lado, e os que podemos chamar de “ nat i-vos” ; ou seja, t rabalhamos com cat egorias ana-lít icas ou cat egorias nat ivas. Um conceit o ou cat egoria analít ica é o que permit e a análise de um det erminado conjunt o de f enômenos, e f az sent ido apenas no corpo de uma t eoria. Quan-do f alamos de conceit o nat ivo, ao cont rário, é porque est amos t rabalhando com uma cat ego-ria que t em sent ido no mundo prát ico, ef et ivo. Ou seja, possui um sent ido hist órico, um sen-t i do específ i co para u m desen-t erm i n ado gru po humano. A verdade é que qualquer conceit o, seja analít ico, seja nat ivo, só f az sent ido no cont ext o ou de uma t eoria específ ica ou de um m om en t o hi st óri co específ i co. Acredi t o qu e não exist em conceit os que valham sempre em t odo l u gar, f ora do t em po, do espaço e das t eori as. São pou qu íssi m os os con cei t os qu e at ravessam o t empo ou as t eorias com o mes-m o sen t i d o . Se é assi mes-m , o s t ermes-m o s d e q u e est am os f al an do são t erm os qu e devem ser com preen di dos den t ro de cert os con t ext os. Gost aria, port ant o, de f risar esse aspect o. Ob-servação que pode parecer bem simples, mas que t rat a de uma regra necessária para evit ar conf usões sobre o que vem a seguir.

O q u e é raça? Dep en d e. Real m en t e d ep en d e d e se est am o s f al an d o em t erm o s cient íf icos ou de se est amos f alando de uma cat egoria do mundo real. Essa palavra “ raça” t em pelo menos dois sent idos analít icos: um reivindicado pela biologia genét ica e out ro pela sociologia. Quando digo isso, est ou querendo

t ambém provocar alguns ant ropólogos em f lor, com o di ri a m eu vel ho prof essor Vi val do da Cost a Lima (1971), que chegam a t er arrepios ao ouvir que “ raça” pode ser um conceit o so-ciológico; o que consideram um absurdo. Ade-mais desses usos analít icos, t emos “ raça” como con cei t o n at i vo. Vam os dest ri n char i sso u m pouco mais.

Vamos volt ar, por um moment o, ao f i-nal do século XIX para lembrar que quando a so ci o l o g i a se f o rm a — l em o s i sso em M arx (1974), em Durkheim (1970), em Boas (1940) — o co r r e u m d esl o cam en t o em t er m o s d e explananda: abandonamos as explicações sobre o mundo social baseadas em raça ou clima, em f avor de explicações baseadas no social e na cult ura. O que f unda as ciências sociais é essa idéia de cult ura. Que idéia é essa? É a idéia de que a vida humana, a sociedade polít ica, et c., não são det erminadas, de uma maneira f ort e, por nada além da própria vida social. Quem não se l em bra de Du rkhei m repet i n do: “ u m f at o soci al só pode ser expl i cado por ou t ro f at o social” ? Essa mesma idéia vai ser desenvolvida por Boas e por ou t ros. Podem os pen sar em cult ura mat erial ou simbólica, e essa idéia de cult ura simbólica é muit o import ant e para nós qu e t rabal ham os com “ raça”. Const ru ím os o sent ido de nossa vida social e individual, assim como const ruímos t ambém os art ef at os que nos permit em sobreviver e reproduzir de maneira ampliada a n ossa vida em sociedade. Aqu ilo qu e cham am os de n at u reza f ísi ca pode ser considerado, de agora em diant e, como simples condicionant e da vida social. Lembremos Weber (1970) — cuja leit ura é essencial: a ação social só exist e como t al qu an do a ela se cola u m sent ido subjet ivo. Assim se const it uiu o cam-po das ciên cias sociais.

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de que a espécie humana poderia ser dividida em subespécies, t al como o mundo animal, e de que t al divisão est aria associada ao desen-vol vi men t o di f eren ci al de val ores morai s, de dot es psíqu i cos e i n t el ect u ai s en t re os seres humanos. Para ser sincero, isso f oi ciência por cert o t empo e só depois virou pseudociência. Todos sabemos que o que chamamos de racis-mo não exist iria sem essa idéia que divide os seres humanos em raças, em subespécies, cada qual com suas qualidades. Foi ela que hierar-quizou as sociedades e populações humanas e f u n dam en t ou u m cert o raci sm o dou t ri n ári o. Essa dout rina sobreviveu à criação das ciências sociais, das ciências da cult ura e dos signif ica-dos, respaldando post uras polít icas insanas, de ef eit os desast rosos, como genocídios e holo-caust os. Depois da t ragédia da Segunda Guer-ra, assist imos a um esf orço de t odos os cient is-t as — bi ól ogos, soci ól ogos, an is-t ropól ogos — para sepult ar a idéia de raça, desaut orizando o seu uso como cat egoria cient íf ica. O desejo de t odos era apagar t al i déi a da f ace da t erra, como primeiro passo para acabar com o racis-mo. Alguns cient ist as nat urais, biólogos, t ent a-ram i m pedi r o u so do con cei t o n a bi ol ogi a, m esm o qu e t en ha f i cado cl aro qu e el e n ão pret endia mais explicar a vida social e as dif e-ren ças en t re os seres hu m an os; propu seram que o seu nome f osse mudado, que se passasse a f alar de “ população” para se ref erir a grupos razoavelment e isolados, endogâmicos, que con-cent rassem em si alguns t raços genét icos. Essa i déi a de “ popu l ação” , apesar de próxi m a de “ raça” , seria ext remament e út il em alguns est u-dos biológicos e, ao mesmo t empo, evit aria as implicações psicológicas, morais e int elect uais d o an t i g o t erm o . M esm o q u e se p o ssa d e-m on st rar est at i st i cae-m en t e qu e a popu l ação mundial, em t ermos genét icos, não pode ser dividida em raças, seria necessário, para alguns biólogos, conservar a idéia da exist ência desses grupament os genet icament e mais unif ormes.

O qu e si gn i f i ca a n ão exi st ên ci a de raças humanas para a biologia? Signif ica que as dif erenças int ernas, digamos aquelas relat ivas às

populações af ricanas, maiores do que as dif e-renças ext ernas, aquelas exist ent es ent re popu-lações af ricanas e popupopu-lações européias, por exemplo. Ou seja, é impossível def inir genet ica-m en t e raças hu ica-m an as qu e correspon daica-m às f ront eiras edif icadas pela noção vulgar, nat iva, de raça. Dit o ainda de out ra maneira: a cons-t ru ção b asead a em cons-t raço s f i si o n ô m i co s, d e f enót ipo ou de genót ipo, é algo que não t em o menor respaldo cient íf ico.2

Ou seja, as raças são, cient if icament e, uma const rução social e devem ser est udadas por um ramo próprio da sociologia ou das ciências sociais, que t rat a das ident idades sociais. Est a-mos, assim, no campo da cult ura, e da cult ura simbólica. Podemos dizer que as “ raças” são ef eit os de discursos; f azem part e desses discur-sos sobre origem (Wade 1997). As sociedades humanas const roem discursos sobre suas ori-gens e sobre a t ransmissão de essências ent re gerações. Esse é o t erreno próprio às ident ida-des sociais e o seu est udo t rat a ida-desses discursos sobre origem. Usando essa idéia, podemos dizer o seguint e: cert os discursos f alam de essências que são basicament e t raços f isionômicos e qua-lidades morais e int elect uais; só nesse campo a idéia de raça f az sent ido. O que são raças para a sociologia, port ant o? São discursos sobre as origen s de u m gru po, qu e u sam t ermos qu e remet em à t ransmissão de t raços f isionômicos, qualidades morais, int elect uais, psicológicas, et c., pelo sangue (conceit o f undament al para ent en-der raças e cert as essên ci as). Exi st em vári os out ros t ipos de discursos que são t ambém dis-cu rsos sobre lu gares: lu gares geográf icos de origem — “ a minha Bahia, o meu Amazonas, a minha It ália” —, aquele lugar de onde se veio e que permit e a nossa ident if icação com um gru-po enorme de pessoas. Quando f alamos de lu-gares, f alamos de et nias. Out ras vezes, os discur-sos sobre origens são discurdiscur-sos sobre o modo de f azer cert as coisas (por exemplo: “ nós f aze-m os desse j ei t o, n ós coaze-m eaze-m os u aze-m al i aze-m en t o cort ando- o na diagonal e não na vert ical, como

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f azem os bárbaros” ); esses são discursos que podem t ambém f ormar uma comunidade.3

É muit o import ant e observarmos a dist inção de Tönnies, ret omada por Weber (1970), ent re “ as-sociação” e “ comunidade”. São dois conceit os f undament ais. Lembrando sempre que est amos f alando de discursos que criam comunidades, não associações. O que é uma associação? As-sociação é simplesment e uma reunião de pessoas l i gadas por cert os i n t eresses, i n t eresses qu e podem ser submet idos à crít ica. Um sindicat o é cert ament e uma associação, f ormado a part ir de uma mesma sit uação de classe, de uma posição comum num mercado de bens e serviços. Não est amos f alando, port ant o, de comunidades, como acont ece quando est amos nos ref erindo a et nias ou raças. Est as últ imas podem mesmo se t ransf ormar numa out ra coisa, a qual devemos desi gn ar por u m ou t ro n ome, como qu an do passam a reivindicar, não apenas uma origem comum, mas um cert o dest ino polít ico, t ambém comum. Quando et nias ou raças passam a reivin-dicar um dest ino polít ico comum, quando f or-mam uma comunidade de origem e de dest ino, ent ão est amos em presença de uma nação. É perf eit ament e plausível dizermos, por exemplo, que os negros americanos, que t êm a raça como cat egoria nat iva se t ransf ormaram, em algum moment o, em uma nação, f ormando um movi-ment o nacionalist a.

Um parênt ese: quando se f ala em raça, n os Est ados Un i dos, i sso f az i m edi at am en t e sent ido para as pessoas; não se pode viver nos Est ados Unidos sem t er uma raça, mesmo que se t en ha qu e i n ven t ar u m a den om i n ação — como lat ino — que designa uma unif ormidade cult ural e biológica de out ro modo inexist ent e, mas imprescindível para possibilit ar o diálogo com pessoas que se designam “ negras” , “ bran-cas” , “ j u di as” , et c. Todos os gru pos ét n i cos viram raça nos Est ados Unidos, porque raça é um conceit o nat ivo classif icat ório, cent ral para a sociedade americana. Por out ro lado, quan-do nos ref erimos ao af rocent rismo americano, ao panaf ricanismo, ao islamismo de Faraken, nit idament e est amos t rat ando de moviment os

qu e est ão rei vi n di can do, n ão som en t e u m a origem comum, mas um dest ino polít ico co-mum enquant o povo.

Al i ás, a n oção de “ povo” é t am bém muit o import ant e. O povo é just ament e o sujei-t o dessa comunidade imaginária de origem ou de dest ino, o conjunt o das pessoas da comu-nidade: o povo de sant o, o povo brasileiro, o povo baiano, o povo paulist a. Nenhum povo exist e sem a comunidade que lhe of erece uma origem ou um dest ino: o candomblé, o Brasil, a Bahia, São Paulo.

A dist inção clássica de Weber (1970) en-t re Esen-t ado e Nação é basen-t anen-t e conhecida. Aliás, um out ro parênt ese: est e t ext o est á parecendo uma aula de sociologia, não é? M as eu t rabalho assim mesmo, f azendo dist inções analít icas que só f azem sent ido quando empregadas para en-t ender um f aen-t o concreen-t o. Em ceren-t os momenen-t os do meu raciocínio é como se est ivéssemos no mundo da lua, pois me refiro a uma distinção pu-rament e analít ica, em abst rat o, quando t udo o que exist e é uma realidade concret a, singular. Os conceit os só f azem sent ido num mundo t eórico det erminado, não f az sent ido sair daqui para aplicar ali est e discurso t eórico sem ref erências concret as, porque f alt aria hist ória, e esses con-ceit os se art iculam numa det erminada hist ória e numa det erminada t eoria.

Ent ão, o que é Est ado? O Est ado é a or-ganização polít ica que t em domínio sobre um t errit ório e monopoliza o uso legit imo da f orça, essa é a def inição weberiana. O Brasil cert ament e é um Est ado. O século XIX assist e ao surgiment o dessas f ormações chamadas Est ados- nação, ent i-dades que emit em passaport e, que erigem e con-trolam fronteiras, que garantem direitos a seus dadãos, mas às quais, ao mesmo t empo, esses ci-dadãos devem se identificar como filhos, devendo-lhes amor e fidelidade; e que são, ao mesmo tem-po, comunidades polít icas e de dest ino.

M as ainda me f alt a f alar de t rês out ros con cei t os qu e sem pre aparecem n os n ossos

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discursos. O primeiro deles é “ classe” e, para empregá- lo, peço ao meu leit or mais isenção, mais abert ura, menos dogmat ismo. O que est ou pedindo? Est ou pedindo o seguint e: que con-sidere essa palavra f ora de um discurso t eóri-co especif ieóri-co; que não diga, cat egoricament e: “ a classe de alguém depende f undament almen-t e do lugar que ele ocupa num modo de pro-dução”. Peço que f aça de cont a que est á ou-vindo est a palavra pela primeira vez. “ Classe” pode ser um conceit o analít ico ou, como qual-qu er ou t ro con cei t o, pode ser u m con cei t o n at i vo. Pen se n u m a pessoa qu al qu er, em si mesmo, em mim: essa pessoa diz que pert en-ce a u ma det ermi n ada cl asse, ou t ros podem achar que ela est á errada em sua aut o- classif i-cação; eu digo que sou de classe média, você diz: “ classe média uma ova, o cara t rabalha não sei quant as horas, pega no pesado, e vem di-zer qu e é cl asse m édi a”. Percebem os, n esse exemplo, que est amos manipulando um con-ceit o nat ivo de classe. O cidadão é pret o, t em seu carro, t em t ambém uma loja num shopping, aí vamos ent revist á- lo e ele diz que é t dor. Ficamos indignados: “ esse cara é t rabalha-dor uma ova, ele é classe média”. A classe dele, para ele, o modo nat ivo como ele se ident if ica é como t rabalhador, é essa a idéia de classe que ele t em. O exemplo que est ou usando é real. Am au ri de Sou za (1971) descobri u qu e, n os anos 1960, no Rio de Janeiro, a maior part e da população negra, mesmo aquela que t inha ren-diment o alt o, vot ava no part ido t rabalhist a e se ident if icava como t rabalhador, dif erent ement e dos bran cos do m esm o n ível soci al , qu e se ident if icavam como de classe média.

Podemos pensar em classe em t ermos analít icos e em t ermos nat ivos. Analit icament e, podemos pensar classe como uma associação ou como uma comunidade. Quando pensamos clas-se como uma comunidade, geralment e é uma comunidade de dest ino, mas às vezes t ambém pode ser uma comunidade de origem, pode ser um discurso igual a esses sobre raças, et nias, et c. Alguns est udiosos (Thompson 1958; Pzreworski 1977; Burawoy 1979; Wright 1985), co m o s

quais simpat izo muit o, t rabalham com a idéia de f ormação de classe, ju st amen t e para dizer que a classe, enquant o comunidade, est á sem-pre em processo de f ormação ou dissolu ção, el a n u n ca é perm an en t e; porqu e, para cri ar essa comu n idade, precisa- se criar u m discu r-so de origem ou u m discu rr-so de dest in o. Ou seja, const ruir uma comunidade de dest ino ou a comu n idade de origem exige t empo, hist ó-ria, polít ica — não é algo que se f aça aut oma-t icamenoma-t e.

O penúlt imo conceit o que me f alt a é o mais dif ícil de t odos — a cor. Os povos euro-peus se def inem e f oram def inidos como bran-cos, no cont at o com os out ros, considerados negros, amarelos, vermelhos. Est amos diant e de um discurso classif icat ório baseado em cores. Temos que dar t rat os à bola para compreender est e qu e é o m ai s n at u ral i zado de t odos os discursos. E quando f alo nat uralizado, est ou querendo dizer t ot alment e nat ivo, pois quant o mais nat ivo é um conceit o mais ele é habit ual, menos ele é expost o à crit ica, menos consegui-mos pensar nele como uma cat egoria art if icial, con st ru ída, m ai s el e parece ser u m dado da nat ureza. É isso que quer dizer “ nat uralizado”. Cor é um discurso desse t ipo, uma cat egoria t ot alment e nat iva; eu não posso f alar muit o dela, pois t enho que est udá- la mais um pouco. Eu poderia discorrer sobre raça; como surgiu a i déi a de raça, os pri m ei ros l i vros em qu e a palavra raça apareceu, qual o signif icado que t inha, et c.; exist e uma enorme lit erat ura sobre isso, mas sobre “ cor” não exist e. Na mais lon-gínqua ant iguidade, essa met áf ora das cores já se aplicava à classif icação dos seres humanos. “ Cor” nunca é um conceit o analít ico, a não ser t alvez na pint ura, na est ét ica, na f ot ograf ia; cert ament e na art e ele é um conceit o analít ico, mas nas ciências sociais ele é sempre nat ivo, usado para classif icar pessoas nas mais diver-sas sociedades.

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apa-rece dest roncado – um braço pra cá, um dedo pra lá – sem corpo, sem hist ória, sem mat éria, para um últ imo t ermo: cult ura. Usamos esse termo “ cultura” num sentido muito abstrato, mas t ambém o usamos num sent ido reif icado, espe-cíf ico. Falamos assim numa det erminada cult u-ra ét nica — a cult uu-ra it aliana, a cult uu-ra negu-ra, a cult ura baiana —, f alamos em cult uras nacionais, em cult ura brasileira e em cult uras raciais.

Que signif ica, af inal de cont as, o t ermo “ cult ura” ? Isso, numa discussão como est a, é f undament al. Vamos examinar os discursos ef e-t ivos, reais, em que o e-t ermo “ cule-t ura” aparece com ref erência ao Brasil, à nação brasileira.

Se examinarmos o caso brasileiro, vere-mos de uma maneira especif ica a mudança no signif icado do t ermo. A primeira coisa a lembrar é a seguint e: as raças f oram, de f at o, um con-ceit o nat ivo no Brasil, e f oram durant e muit o t empo uma cat egoria de posição social. Pelo m en os at é o com eço do sécu l o XX, essa era uma cat egoria t ot alment e ant inat ural; somos uma nação que se f ormou com a escravidão, e essa escravidão não era uma escravidão gene-ralizada de t odos os povos, mas soment e da-queles localizados numa det erminada part e do cont inent e af ricano. Os povos que escravizamos vieram da Áf rica ocident al e da Áf rica meridio-nal, hoje Congo, Angola, M oçambique, Zaire e, subindo a cost a ocident al, a Nigéria, o Níger e Go l f o d o Ben i n . Fo ram d essas reg i õ es q u e vieram os povos escravizados em t oda a Amé-rica. Um sist ema muit o próprio de comercia-lização que envolvia negreiros da Holanda, de Port ugal, do Brasil, da Inglat erra, da França, et c., alguns reinos af ricanos e as colônias americanas. Essas pessoas escravizadas f oram chamadas de “ af ricanas” e “ negros” ; essas f oram, digamos, as duas ident idades criadas originalment e na so-ciedade escravocrat a brasileira, em que o negro t inha um lugar e esse lugar era a escravidão.

Ent ão, nessa sociedade muit o racialist a a raça era import ant e, nat ivament e import ant e, para dar sent ido à vida social porque alocava as pessoas em posi ções soci ai s. Essas posi ções sociais f oram chamadas originalment e de “

clas-ses”. Usando Weber, que dist ingue os grupos abert os — como as classes — dos f echados — como as cast as — uma boa part e da lit erat ura sociológica brasileira af irma que a colônia bra-sileira era uma sociedade de cast as. Isso por-que, no nosso caso, a relação social era f echa-da pela cor — negro —, que sinalizava seja a idéia de raça, seja a idéia de cult ura e civiliza-ção, seja a idéia religiosa de uma descendência divina. As pessoas comuns, ent ret ant o, sempre se ref eriram a essa divisão ent re “ senhores” e “ escravos” como uma divisão de classes.

As raças e as classes, port ant o, se art i-culavam int imament e, em seu sent ido nat ivo. No ent ant o, ainda não conhecíamos o racismo moderno. Ao dizer isso, est ou supondo que o meu leit or saiba o que seja o racismo chama-do “ cient if ico” , ist o é, aquele que se just if ica pela ciência. Pois bem. M uit os aut ores, ent re eles Colet t e Guillaumin (1992), af irmam que o raci sm o e a “ raça” são produ t os da m oder-nidade, ou seja, que a idéia de raça não exis-t iria f ora da modernidade. O que eles querem dizer com isso? Eles querem dizer que a idéia de raça, t al como a t emos hoje, pressupõe uma n o ção ch ave p ara a ci ên ci a m o d ern a, a d e nat ureza imanent e, da qual emana um det ermi-nado carát er, uma det erminada psicologia, uma det erm i n ada capaci dade i n t el ect u al . A i déi a ci en t íf i ca d e q u e a n at u reza se d esen vo l ve propulsionada por seus próprios mecanismos int ernos é imprescindível para essa idéia moder-na de raça. Feit a essa dist inção, não se pode negar que a palavra “ raça” é ant erior a essa idéia moderna. M as t rat a- se ent ão de uma idéia não cient íf ica, int eirament e t eológica, que no Brasil, nos Est ados Unidos e em out ros lugares just if icou a escravidão.

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descen-dent es daquela t ribo perdida, t razendo- os para a civilização crist ã, agora, para aprender o va-lor do t rabalho.

O f at o é que esse racialismo que mar-cou a sociedade e a nação brasileiras desde o seu início, f oi cedendo lugar aos poucos a f ór-mulas muit o mais brandas. Esse processo é ra-zoavelment e bem est udado pela hist oriograf ia, mas não complet ament e desvendado. Sabe- se, por exemplo, que, no Brasil, a ordem escravocrat a con vivia com u m n ú mero de alf orrias mu it o grande e um t ráf ico muit o int enso de escravos, de sort e que o que aliment ou a escravidão no Brasil f oi o t ráf ico e não a reprodução de es-cravos. Assi m , com o t em po, se f orm ou , n o Brasi l , u m a cl asse de hom en s l i vres pret os, mulat os e pardos, que f oi f orçando e conquis-t ando o seu lugar na sociedade, o que f ez com que essa racionalização t eológica f osse abran-d aabran-d a. On abran-d e eu q u er o ch eg ar é: em al g u m moment o da hist ória, possivelment e pressiona-da pelo avanço social dos ex- libert os e de seus descen den t es, a cat egori a predom i n an t e em t ermos de classif icação social passou a ser “ cor” e não “ raça”. Ganhou esse est at ut o de cat ego-ria nat iva mais import ant e. Essa idéia de cor est á hoje na base do que se chama de nação brasileira, desse Est ado- nação. Desde a Inde-pen dên ci a, t em os u m proj et o de n ação qu e est á ligado à const rução de um Est ado nacio-nal; deixamos de ser part e do Est ado port u-guês, passamos a f ormar um Est ado brasileiro mant endo a escravidão, mas t ínhamos já int e-grado um número grande de pret os libert os, de homens livres de cor, e a import ância da cor não cessou de crescer desde ent ão.

Dit o isso, permit a- me um salt o hist óri-co. Vamos pensar agora o nosso t empo moder-n o, dos amoder-n os 1930 pra cá. Podem os, emoder-n t ão, dist inguir t rês grandes períodos.

Temos uma primeira f ase, de const it ui-ção da naui-ção brasileira, e aqui eu f alo de na-ção co m o co m u n i d ad e d e d est i n o , n a q u al prevalece a idéia de cor sobre a idéia de raça. O ant i- racialismo é uma das ideologias f unda-doras dessa nação.

Quando esse discurso se crist aliza? Ele se crist aliza basicament e nos anos 1920, 1930, e encont ra em Gilbert o Freyre o seu principal i n t el ect u al . O m arco pode ser 1933, an o de publicação de Casa- Grande e Senzala, mas pode ser t am bém a Sem an a de Art e M odern a em 1922, pois t odos os modernismos vão perseguir exat ament e uma idéia nova de Brasil e de povo brasileiro.

É ver d ad e q u e t em o s an t eced en t es desde o Império. O primeiro f oi, sem dúvida, o moviment o românt ico brasileiro, o indianismo. O primeiro moment o de uma nação indepen-dent e, da nação brasileira. Fomos buscar no índio o símbolo da nação. Essa f oi uma maneira de deixar de ser europeu e passar a ser brasi-leiro. Essa primeira const rução nacional f oi t ão marcant e que, na minha t erra, Bahia, at é hoje, os negros, e o povo em geral, se ident if icam com o caboclo do Dois de Julho.

Vale aqui mais um parênt ese. Quando f oi proclamada a Independência brasileira as t ropas port uguesas de Salvador não se rende-ram. Ao cont rário, aliment aram o projet o de mant er Salvador como um port o port uguês, um enclave; dando ensejo a uma lut a pela Inde-pendência que durou mais ou menos um ano, at é que, f inalment e, em 2 de julho de 1823, as t ropas brasileiras ent raram em Salvador, pela est rada da Liberdade. Ali, na Lapinha, se cons-t ruiu uma Casa dos Caboclos, porque os cabo-clos f oram lut ar na guerra da Independência. Toda essa const rução simbólica é f eit a no Im-pério e perdura at é hoje. Vejam- se os candom-blés de caboclos, eles espelham essa idéia de n aci on al i dade qu e vem desse movi men t o de indianismo (Sant os, 1995). Ult imament e, quem melhor t em est udado esse período, est a const ru-ção simbólica, t em sido Lilia Schwarcz (1999) e José M u ri l o de Carval ho (1991), cu j a l ei t u ra recomendo.

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li-vre é caboclo, que o negro lili-vre é índio. Vai ser preciso incorporar agora esse povo, essa raça, nessa nação nova, criar símbolos nacionais. Foi isso que a geração de 1920 f ez, num período muit o f ért il da nacionalidade, da qual part icipa-ram t odos, inclusive os moviment os negros da época. At é hoje é impossível pensar o movi-ment o negro sem pensar que ele cont inua lu-t ando para ser inlu-t egrado a essa nação, ainda que, agora, de uma f orma que não seja simples-ment e simbólica. Pois, simbolicasimples-ment e, os ne-gros f oram incorporados sim, por Freyre (1933), por M ário de Andrade (1944), pelos f olclorist as, pelos modernist as. Nos anos 1950, a palavra de ordem que encont ramos ainda era a seguint e: a cor é apenas um acident e. Somos t odos bra-si l ei ros e por u m aci den t e t em os di f eren t es cores; cor não é uma coisa import ant e; “ raça” , ent ão, nem se f ala, est a não exist e, quem f ala em raça é racist a.

Na sociologia acadêmica, o moviment o int erpret at ivo da realidade racial que se cons-t icons-t ui no pós- 1930 começou com o cons-t rabalho de campo de Donald Pierson, na Bahia, em 1939, e segu e at é o f i n al dos est u dos da Un esco sobre relações raciais. Nesse período, se f ormam duas int erpret ações. A primeira, que f oi capit a-neada pelo mesmo Donald Pierson (1971), diz o seguint e: a sociedade brasileira é uma socie-dade m u l t i rraci al de cl asses. O qu e el e qu er dizer com isso é que se t rat a de uma socieda-de na qual as “ raças” não eram propriament e “ raças” , mas grupos abert os. Ou seja, a raça não seria um principio classif icat ório nat ivo (nin-gu ém t eri a raça n at i vam en t e, m as si m cor); nem seria t ambém um grupo de descendência. O modo de classif icação por cor não f echa as port as para ninguém, não pesa quase nada nas oport unidades sociais, a sociedade seria uma sociedade de classes, uma sociedade abert a, em que negros, brancos, índios, mest iços, pessoas de qualquer cor, podem t ransit ar pelos dif erent es grupos sociais. Ficamos pensando se isso era uma const rução ideal, ou se pret endia ser uma represen t ação do real , porqu e sabem os por monograf ias, por et nograf ias, que cert os clubes

eram f echados, que cert os lugares das praças públicas das cidades eram vedados aos negros, et c. M as, o mais import an t e para n ós é qu e Pierson inaugura uma out ra ret órica de raça, em que a palavra “ classes” , já de domínio popular, ganha um sent ido acadêmico, weberiano, sendo depois popularizada com esse novo sent ido.

Como é possível not ar, a primeira ma-neira das ciências sociais pensarem essa reali-dade cont inuou colada à ideologia nacional. É dif ícil perceber onde acaba a ciência e onde começa a vont ade de nação. É como se a ideo-logia nacional, que move as relações sociais, passasse a ser o discurso da ciência, apresen-t ando- se como análise. Traapresen-t a- se de um discur-so nat ivo ou de um discurdiscur-so analít ico?

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O que Pierson dizia é que o preconceit o, assim definido, não existia no Brasil. Haveria, sim, casos individuais de preconceit o, casos isolados, mas não como fenômeno social; ou seja, os bran-cos, enquanto grupo, no Brasil, não cultivariam o medo de serem deslocados pelos negros. Em Marvin Harris (1956), que segue a orient ação de Blumer, o argumento se estende ao limite, pois ele diz que, no Brasil, a classe dominant e, a branca, nunca precisou sacar a cart a racial do colet e, ou seja, os negros nunca ameaçaram, e os brancos nunca precisaram sent ir medo, e port ant o nunca desenvolveram preconceit o. O f at o é que, nesses anos, a grande discussão era: exist e ou não exis-t e preconceiexis-t o racial no Brasil?

A chamada “ escola paulista de sociologia” começou a desenvolver um tipo de argumentação diferente, mais ou menos assim: existem áreas tra-dicionais, como a Bahia, Pernambuco, onde isso pode ser verdade, onde não exist iria preconceit o porque não haveria ordem competitiva, igualitária. Mas, nas áreas de desenvolvimento capitalista, em São Paulo, onde se organiza uma sociedade de classes, à medida que aument a a compet ição so-cial, aparece o preconceit o, ou seja, a ameaça do negro t omar o lugar do branco t orna- se real. Em contraposição, os críticos da escola paulista inter-pret avam t al preconceit o como cult ura de impor-t ação, nuimpor-t rida principalmenimpor-t e por cerimpor-t os grupos imigrantes pouco adaptados ainda à vida nacional. A escola paulista, ao contrário, buscava explicações est rut urais, ou seja, remet ia- se à est rut ura social em mutação — o capitalismo industrial, em gesta-ção no país, estaria também deslanchando o fenô-meno do preconceit o racial.

O f at o é que essa escola cunhou a idéia do mit o da democracia racial. Aquela socieda-de mult irracial socieda-de classes, socieda-de que f alava Pierson em 1940, se t ransf ormou, com o t empo, numa coisa chamada democracia racial, cujas origens est ão na idéia de Freyre de que a cult ura luso-brasileira, o “ mundo que o port uguês criou” , t eri a desen vol vi do u m a “ dem ocraci a soci al ” mai s prof u n da e pu j an t e qu e a “ democraci a pol ít i ca” dos an gl o- saxões e f ran ceses. Essa democracia social seria basicament e um modo

dif erent e de colonizar que signif icou miscige-nar- se, igualar- se, int egrar os cult uralment e in-f eriores, absorver sua cult ura, dar- lhes chances reais de mobilidade social no mundo branco. Freyre f ala depois em “ democracia ét nica” para dizer que, no Brasil, apesar de uma est rut ura polít ica muit o arist ocrát ica, desenvolve- se, no plano das relações raciais, relações democrát i-cas. São essas i d éi as q u e f o ram t rad u zi d as como “ democracia racial” e ganharam, por um bom t empo, pelo menos dos anos 1940 at é os 1960, a conot ação de um ideal polít ico de con-vivência igualit ária ent re brancos e negros (Gui-marães, 2002).

Quando o Florest an Fernandes (1965) f ala em mit o da democracia racial, ele est ava qu eren do di zer o segu i n t e: essa dem ocraci a racial seria apenas um discurso de dominação polít ica, não expressava mais nem um ideal, nem algo que exist isse ef et ivament e, seria usa-do apen as para desm obi l i zar a com u n i dade negra; como um discurso de dominação, seria purament e simbólico, sua out ra f ace seria jus-t amenjus-t e o preconceijus-t o racial e a discriminação sist emát ica dos negros.

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Por que o MNU irá golpear de f orma t ão contundente a “ democracia racial” ? Porque ele vai reint roduzir a idéia de raça, vai reivindicar a ori-gem af ricana para ident if icar os negros. Começa-se a f alar de ant epassados, de ancest rais, e os negros que não cult ivam essa origem af ricana seriam alienados, pessoas que desconheceriam suas origens, que não saberiam seu valor, que viveriam o mit o da democracia racial. Para o M NU, um negro, para ser cidadão, precisa, ant es de tudo, reinventar sua raça. A idéia de raça passa a ser part e do discurso corrent e, aceit o e absor-vido de cert o modo pela sociedade brasileira, o que não se explica senão pelas mudanças que ocorreram também na cena internacional, que tor-naram esse discurso bast ant e poderoso int erna-ment e. M as o f at o é que se int roduz de novo a idéia de raça no discurso sobre a nacionalidade brasileira.

Na sociologia acont ece, paralela e inde-pendent ement e, algo parecido. Carlos Hasenbalg (1979) e Nelson do Valle e Silva (1980) simples-ment e analisam os dados agregados, produzidos pelo IBGE, e demonst ram por a mais b que as desigualdades econômicas e sociais ent re bran-cos e n egros, ou sej a, en t re aqu el es qu e se def inem como brancos e como pret os e pardos (negros, na def inição do at ivismo negro), não podem ser explicadas nem pela herança do pas-sado escravagist a, nem podem ser explicadas pel a pert en ça de n egros e bran cos a cl asses sociais dist int as, mas que t ais desigualdades resu l t am i n equ i vocam en t e de di f eren ças de oportunidades de vida e de formas de tratamento peculiares a esses grupos raciais.

Uma enorme coincidência est at íst ica f ez com qu e Carl os e Nel son ref orçassem ai n da m ai s o d i scu rso d o M o vi m en t o Neg ro , q u e naquele moment o procurava dividir a popula-ção brasileira em brancos e negros, recusando os t ermos, of iciais ou não, que classif icavam os m est i ços em m oren os, pardos, escu ros, et c. Sabemos que os dados do IBGE t razem cinco cat egorias – brancos, pret os, pardos, amarelos e indígenas. A cat egoria “ pret o” é diminut a; a proporção, no Brasil, dos que se declaram

pre-t os nunca passou conpre-t emporaneamenpre-t e de 5%. Ora, isso represent ava uma grande dif iculdade para a análise desagregada dos dados, pois não permit ia que se f izessem t est es est at íst icos ro-bust os. Por out ro lado, no t ot al, a cat egoria parda, mais numerosa, não apresent ava grandes di f eren ças em rel ação à pret a em t ermos de sit uação, medida por uma série de indicadores. Como seria est at ist icament e recomendável agre-gar os dados, Nelson e Carlos junt aram os pre-t os aos pardos, ou seja, f izeram, analipre-t icamen-t e, o que o movimenicamen-t o negro f azia na políicamen-t ica, chamando o agregado result ant e de “ negros”. Assim o t ermo “ negro” para signif icar af ro- des-cen den t e gan hou credi bi l i dade n as ci ên ci as sociais, assim como o discurso da desigualda-de racial, t ambém a part ir das ciências sociais, cont agiou o discurso polít ico.

Bom, aí a conf usão est á f ormada; e por qu ê? Porqu e agora t em- se u m con ceit o qu e n ão era n em an al ít i co n em n at i vo. Não era analít ico porque a sociologia não o sust ent ava, t ampouco a biologia, e não era nat ivo senão para uma part e mínima da população brasilei-ra, ou seja, para os at ivist as e simpat izant es do M NU. O que eu escrevi em “ Racismo e Ant i-racismo no Brasil” t ent a desenrolar esse nó, do pont o de vist a t eórico, propondo um conceit o sociológico de raça (Guimarães, 1999).

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orient a essa f orma de classif icação. Se pensar-mos em “ raça” como uma cat egoria que expres-sa um modo de classif icação baseado na idéia de raça, podemos af irmar que est amos t rat an-do de um conceit o sociológico, cert ament e não realist a, no sent ido ont ológico, pois não ref le-t e algo exisle-t enle-t e no mundo real, mas um con-ceit o analít ico nominalist a, no sent ido de que se ref ere a algo que orient a e ordena o discurso sobre a vida social.

Temos out ros dois complicadores adi-cionais.

Primeiro, houve um moviment o de rea-ção à vont ade do M NU de desmist if icar a de-mocracia racial, à sua ânsia de culpar o precon-ceit o e a discriminação raciais como responsá-veis, pelo menos em part e, pela desigualdade racial no Brasil; junt o com isso houve t ambém, nos anos 1980 e 1990, um grande abalo no nosso sent iment o de nacionalidade, result ado de sucessivas crises econômicas e polít icas – houve crises de governabilidade e ameaças de desint egração nacional, com o surgiment o de moviment os separat ist as.

Segundo, houve, no plano da academia, uma cert a reação à t ent at iva de demonização de Gilberto Freyre. Surgiu na academia um movimento de reint erpret ação da democracia racial como um mit o. Formou- se uma cert a mat riz int erpret at iva, que diz assim: “ Tudo bem, a democracia racial é um mit o, mas vocês, sociólogos, não ent endem muito de mito, não. Mito não é só falsa ideologia, mit o é uma coisa mais import ant e do que o que vocês acham; mit o, na verdade, é um discurso sobre a origem das coisas, um discurso sobre o dia- a- dia, que não precisa ser real, ao contrário, é ef et ivo apenas na medida em que orient a a ação das pessoas, em qu e dá sen t i do às rel ações sociais do dia- a- dia. Nesse sent ido, o mit o da democracia racial é e cont inuará sendo muit o import ant e para a idéia de nação brasileira”.

Esse é um argument o muit o f ort e, pois signif ica dizer o seguint e: “ Apesar da milit ância do M NU, qualquer um que saia à rua e conver-se com as pessoas vê que a democracia racial est á viva, enquant o mit o”.

Recen t em en t e eu com ecei a reagi r a esse discurso (Guimarães, 2002), pensando o seguint e: esse argument o é muit o bom porque n os en si n a a pen sar as rel ações soci ai s, t ai s como elas se dão no cot idiano; nesse sent ido, ele põe f im à polit ização excessiva do t ema. M as ele t em um def eit o — ele acaba se apegan-do muit o à idéia de est rut ura, de longa dura-ção, t orna- se quase que um discurso a- hist óri-co, como se est ivéssemos t rat ando com uma mat riz que não t eve inicio e não t erá f im. Se os que usam t al argument o são pouco crít icos a respeit o da hist oricidade dessa mat riz, ent ão eu os f ust igo, pergunt ando: como nasceu a demo-cracia racial? Quando se t ransf ormou num com-promisso polít ico? Será que esse discurso não pode acabar? Será que não est á acabando? E, inspirado nas idéias de alguns cient ist as polít i-cos, como Amaury de Souza (1971), por exem-plo, penso a democracia racial como um com-promisso polít ico, que t eve um começo, conhceu o apogeu, passou por crises e, t alvez, t e-nha se esgot ado.

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Segu n do a et n ograf i a qu e se f az n o Brasil, o conceit o de raça cont inua a não ser conceit o nat ivo, ainda que comece a ser ado-t ado por vários grupos sociais, não é um ado-t ermo usual e de sent ido inequívoco. A melhor manei-ra de se pergunt ar quando se quer classif icar em t ermos raciais, port ant o, cont inua a ser: “ qual é a sua cor?” ou “ como o sr(a). se classif icaria em t ermos de cor?” ou variações em t orno da pergunt a sobre cor. O grande problema é que cada vez mais essa pergunt a acaba dando re-sult ados inesperados. No passado, a boa per-gunt a para se observar a ident idade racial era pergunt ar sobre a cor, mas com t oda essa lut a ideológica em t orno da racialização, cada vez mais, começa a aparecer ruído nas respost as a essa pergunt a. O que f azer? Subst it uir a pala-vra “ cor” por “ raça” ? M as, será que a maioria das pessoas aceit a e ent ende a pergunt a? Ou será que vai reagir à idéia de raça como reagia ant igament e? Tem- se aqui um problema. No est ágio em que est amos at ualment e, o t ema se t o r n o u t ão p o u co co n f i ável em t er m o s d e operacionalização que os pesquisadores preci-sam f azer duas ou t rês pergunt as. Uma maneira clara de classif icar, embora seja conceitualmente pouco sociológica, é aquela f eit a pelo ent revis-t ador. Simplesmenrevis-t e, pede- se que a pessoa que est á ent revist ando classif ique o ent revist ado em t ermo de cor. Essa é uma possibilidade. O pro-blema dessa f orma de classif icação é que des-se modo des-se obt ém uma ident idade at ribuída por out rem. Do pont o de vist a da t eoria soci-ológica, não parece ser uma boa solução, por-qu e se t rat a de m edi r u m a vari ável por-qu e, n a verdade, é uma f orma de ident idade subjet iva do individuo; ent ão, at ribuir ident idade é com-plicado, mas, às vezes, é a única maneira dis-ponível. Eu já f iz isso, não quando me deparei com pessoas que eu ent revist ava, mas com f i-chas de regist ro f uncional de pessoas. Nesse caso, eu t ive que classif icar racialment e a par-t ir da percepção gerada por u ma f opar-t ograf ia. Procurei usar muit as cat egorias para que depois f osse possível agregá- l as de acordo com os result ados est at íst icos que eu obt ivesse. Usei,

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com João Bat ist a Felix (2002), quando ent re-vist ou milit an t es e pergu n t ou : “ qu al é a su a raça?”. Esses milit ant es t inham uma t eoria ra-cial muit o consist ent e sobre o mundo e sobre si mesmos, em que a idéia de raça em t ermos polít icos era cen t ral e n a qu al a idéia de cor, que é a idéia normal dos brasileiros, cont inua-va vigen do. Ou seja, essas pessoas f u n diram uma classif icação brasileira com uma classif i-cação milit an t e, n a qu al a “ raça” ref eria- se a uma ascendência biológica e posição polít ica, enquant o a cor a uma t onalidade de pele con-siderada objet iva. At é qu e pon t o esse discu r-so raci al vai se esprai ar, vai gan har adept os f ora do movimen t o? Ou t ro exemplo, n o n os-so Cen os-so Ét n i co- Raci al da USP (Gu i m arães; Prandi, 2002), pergunt amos: “ Você é descen-d en t e descen-d e i m i g ran t es est ran g ei ro s?”. É u m a

pergu n t a à qu al, se f eit a algu m t empo at rás, na minha t erra, t odo mundo responderia “ não”. Aqu i, em São Pau lo, agora, em 2000, eu n ão sei qual será o result ado, pois est amos viven-do u m t empo em qu e as pessoas começam a cu l t i var d i f eren ças, i d en t i d ad es, o ri g en s. É provável qu e apareçam mu it os descen den t es de port ugueses, muit o mais do que seria lógi-co esperar em São Pau lo, simplesmen t e por-que os brasileiros brancos, sem nenhum ances-t ral porances-t u gu ês con hecido, ances-t en ham passado a reivindicar essa ascendência esquecida. O que eu est ou t ent ando def ender é que qualquer ca-t egoria só f az senca-t ido no inca-t erior de um discur-so, no nosso cadiscur-so, racial; quando nos depara-mos com uma respost a sobre ident idade, t edepara-mos que invest igar qual o discurso que est á orien-t ando as resposorien-t as.

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Recebido em 22.05.03 Aprovado em 13.06.03

Antonio Sérgio Alfredo Guimarães é professor do Departamento de Sociologia da USP. É doutor pela University of Wisconsin-Madison e livre-docente em sociologia política. Publicou sobre o tema deste artigo: Preconceito e discriminação

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Referências

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