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O observador do mundo: a noção de clivagem em Ferenczi.

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Academic year: 2017

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RESUMO: Discute-se a noção de clivagem de Ferenczi, com parandoa com as teorias freudianas sobre o tem a e verificando sua im -portância para a prática clínica da contem poraneidade. A hipótese qu e serve de eixo do trabalh o é a qu e su põe a clivagem com o resultado de um a descontinuidade radical entre as figuras discur-sivas da prim eira e da terceira pessoa. Em função desta desconti-n u idade codesconti-n strói-se u m a orgadesconti-n ização psicológica pau tada pelo

papel de observador do mundo e pela culpa de ser.

Palavras - chave: Ferenczi, clivagem , m elancolia.

ABSTRACT: The world’s observer: Ferenczi’s idea of cleavage. This article is an attem pt to discuss Ferenczi’s notion of cleavage com -paring it w ith som e Freudian theories about this subject and also to verify its im portance to contem porary clinical practice. The m ain assum ption of this paper is that cleavage is a radical interruption betw een figures related to the first and third gram m atical person. Because of this interruption a psychological organization is built

based on the role of the world’s observer and the guilt of being.

Ke y w o rds: Ferenczi, cleavage, m elancholy.

INTRODUÇÃO

Muitas vezes nos deparam os com pessoas que, m uito em bora não sejam psicóticas, exigem um trabalho que possibilite o que outros sujeitos parecem ter em excesso: a sensação de estar vivo. As sessões transcorrem em um clim a de aparente m onotonia, na m edida em que o que se escuta são relatos Psicanalista,

psiquiatra, doutor pelo Ipub-UFRJ e psiquiatra deste m esm o órgão.

Ju lio Se rg io Ve rzt m a n

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m inuciosos do cotidiano, banhados por um a tem poralidade achatada, nos quais raram ente vislum bram os a em ergência do sujeito do inconsciente tal qual po-dem os reconhecer em outros discursos. Todas as tentativas de fazê-las falar de outros tem as, de produzir intervalos em suas falas para o surgim ento da surpre-sa e da novidade são catastróficas ou m al-sucedidas. Tais tentativas são consubs-tanciadas pela idéia de que o puro relato dos fatos da vida é um a resistência ao dispositivo analítico. Se tom arm os, entretanto, a noção de resistência em sua vertente positiva com o indicadora do nosso cam inho, podem os supor que o objetivo destes sujeitos é fazer da nossa presença o testem unho ocular de um a verdade que se esconde na aparente uniform idade de seus relatórios diários. Eles usam o olhar do analista com o garantia de que suas ações, sensações e sentim entos form am conjuntos que podem ser reconhecidos com o sendo suas vidas. Este reconhecim ento que, para m uitos, é im ediato e pré-reflexivo, só ocorre, quando ocorre, após m uito labor. Aquilo que é o ponto de partida de m uitos percursos analíticos e que deve ser desconstruído para que ele se dê, não o é em absoluto para estas pessoas. Um sentim ento de estranheza radical em relação a si as invade. O vazio que as acom ete parece localizar-se na própria idéia de ser, o que acarreta num a falta de consistência da im agem narcísica e num a percepção de futilidade e indiferença quanto às próprias ações.

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Desde a invenção da psicanálise, vários autores descreveram os cam inhos e im passes do tipo de funcionam ento psicológico a que estou aludindo. A carac-terização que proponho é, infelizm ente, am pla o suficiente para abarcar perfis tão heterogêneos quanto personalidades narcísicas e borderlines, definidas pela escola norte-am ericana; sujeitos organizados em torno do falso self, com o pro-posto por Winnicott, sujeitos m elancólicos, entre outros.1 No âm bito deste artigo, todavia, procurarei seguir os passos daquele que nos abriu as portas para esta realidade: Sándor Ferenczi. A sua teoria do traum a e a proposição associada da clivagem psíquica transform aram nosso edifício teórico e forneceram abri-go a m uitos sujeitos despejados pelos síndicos de plantão. Tratada alternadam ente com o segredo ou com o m anifestação da alm a atorm entada e já doentia de Ferenczi, a clivagem derivada da confusão de línguas por ele proposta vem sendo tem atizada de form a m arginal nos textos psicanalíticos. A sua noção de clivagem , entretanto, dem onstrou tanta pujança que Freud a ela se rendeu, m es-m o que parciales-m ente, no final da obra, após a es-m orte de Ferenczi. É exataes-m ente com a teoria freudiana da clivagem que com eçam os, esperando que o leitor possa reconhecer algo de sua própria clínica nas páginas que se seguem .

FREUD

Ao expor algum as noções freudianas que gravitam em torno da cisão do eu, pretendo apenas fornecer um panoram a m ínim o de dois m om entos deste con-ceito na obra de Freud, para que o leitor possa com pará-los com as proposições de Ferenczi sobre o tem a. Não é m eu intuito discutir aprofundadam ente os seus desdobram entos nem as controvérsias teóricas que o assunto vem despertando na literatura psicanalítica. Participar m ais ativam ente desta discussão requere-ria ou um outro artigo, ou o prolongam ento excessivo deste ou um a capacidade de síntese que infelizm ente ainda não possuo.

CLIVAGEM E MELANCOLIA

Em seu único artigo dedicado à m elancolia ( FREUD, 1917/ 1993, p. 235-256) , Freud fez da clivagem no eu um dos m ecanism os responsáveis pelas m anifesta-ções m ais características desta neurose narcísica. Mais especificam ente é esta

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tese etiológica que lhe fornece instrum entos para dem onstrar que o sujeito m elancólico expressa um conflito psíquico. As propostas form uladas no texto referentes à identificação narcísica com o objeto perdido e à regressão a um a fase de relação objetal caracterizada pela am bivalência não perm item a Freud localizar um a dinâm ica conflitiva na m elancolia. Som ente quando é enunciado o surgim ento de um a fenda no eu, de um a neoform ação representada pela consciência m oral, torna-se possível dizer que a m elancolia expressa um con-flito entre o eu e a parte do eu m odificada pela identificação narcísica. Isto decorreria do não-reconhecim ento m útuo entre instâncias que, em outras cir-cunstâncias, carregariam a m arca do investim ento egóico. A consciência m oral só reconhece o objeto perdido onde deveria vislum brar o eu e o eu só percebe a alteridade onde costum am estar presentes as m arcas m ais caras à constituição do sujeito.

Este ponto de vista é retom ado no contexto da segunda tópica no breve artigo “Neurose e psicose” ( FREUD, 1924/ 1993) . Nele, Freud efetua um a sepa-ração entre as psicoses e as neuroses narcísicas ( m elancolia) com base nas relações conflitivas que dizem respeito ao eu. Enquanto que as psicoses expres-sam um conflito entre o eu e o m undo exterior, a m elancolia é definida pelo em bate entre eu e supereu. A m eu ver, dois fatores contribuíram para que o conceito de clivagem não fosse desenvolvido para explicar este arranjo. Em prim eiro lugar, um a transposição apressada entre eu alterado pela identificação narcísica para supereu. Concordando com Pinheiro ( 1998) , a im perm eabilidade entre eu e a consciência crítica na m elancolia torna com plicada a caracteriza-ção da consciência crítica com o supereu, m uito m enos com o ideal de eu. Sub-seqüentem ente, em função da universalidade do supereu na subjetividade hu-m ana e da ênfase concedida a este cohu-m o fonte privilegiada na produção de hu-m al-estar, a divisão radical entre dois destinos de investim entos egóicos torna-se obscurecida. Conflito entre eu e supereu é algo m uito abrangente para especi-ficar a organização psíquica dos m elancólicos, concorrendo para outras form as discu rsivas, especialm en te a n eu rose obsessiva, com a qu al a m elan colia é freqüentem ente com parada. Assim , o conceito de clivagem do eu perm aneceu longo tem po adorm ecido e teve um breve despertar no final da obra.

SEGUNDA DEFINIÇÃO DE CLIVAGEM

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seguinte, que elas tenham sido influenciadas ( na form a de resposta) por sua teoria do traum a.

O m ecanism o de clivagem ou cisão tem sido freqüentem ente im putado à perversão, por contraposição ao recalque na neurose e à foraclusão ( sobretudo na tradição lacaniana) na psicose, porém , se exam inarm os m ais detidam ente as palavras de Freud verem os que este é um acontecim ento m ais am plo: “Não se creia que o fetichism o seja um a exceção, com respeito à cisão do eu: não é m ais do que um objeto particularm ente favorável a seu estudo” ( FREUD, 1940a/ 1993, p. 205) .

O exem plo clínico de clivagem fornecido em “O fetichism o” é de um sujei-to obsessivo ( Idem , p.150) e Freud, nos vários m om ensujei-tos em que aborda o tem a, sugere que se possa lançar m ão do m ecanism o em várias estr uturas. “O ponto de vista que postula em todas as psicoses um a cisão do eu não teria títulos para reclam ar tanta consideração se não dem onstrasse seu acerto em outros estados m ais sem elhantes às neuroses e, em definitivo, nestas m esm as” ( FREUD, 1940a/ 1993, p. 204) .

A universalidade do recalque nas neuroses parece estar sendo colocada em xeque, em bora Freud não desenvolvesse m ais este ponto. A cisão no eu é deriva-da do processo m ais am plo de desm entido que é desta form a caracterizado ( FREUD, 1927/ 1993, p.148) : “Se assim se quer separar de m aneira m ais nítida o destino da representação do destino do afeto, e reservar o term o ‘repressão’ para o afeto, ‘desm entido’ (Verleugnung) seria a designação alem ã correta para o destino da representação.”

Freud dem onstra que em algum as circunstâncias o eu divide-se em duas correntes opostas, um a capaz de acatar a realidade ( realidade da castração) e outra que a nega perem ptoriam ente. O acontecim ento em nada tem a ver com distúrbios na percepção. Cada um a destas correntes é incapaz de reconhecer a outra e am bas convivem lado a lado sem se influenciarem , o que produziria um a im portante defesa contra a psicose, a qual só eclodiria caso um a delas ( a que assum e a realidade) se enfraquecesse. A noção de ininfluenciabilidade dos dois fragm entos m erecerá m aiores considerações, no entanto descreverem os antes com o estes se form am .

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banais, na m edida em que a psicanálise lidaria desde sem pre com a divisão psíquica. O sujeito sobre o qual ela incide é desde sem pre dividido, entretanto, Freud dem onstra que a clivagem m encionada é de outra ordem tópica:

“ Os fatos da clivagem do eu os qu ais tem os descrito n ão são tão n ovos n em tão estran h os com o à prim eira vista pu deram parecer. Qu e com respeito a u m a

deter-m in ada con du ta su bsistadeter-m n a vida an ídeter-m ica da pessoa du as postu ras diversas, u deter-m a co n trap o sta à o u tra e in d ep en d en tes en tre si, eis u m traço fu n d am en tal d as n eu roses; só qu e n este caso u m a perten ce ao eu e a con traposta, com o reprim ida,

ao isso. A distinção entre am bos os casos é, no essencial, tópica ou estrutural [ grifo

nosso] e n em sem pre é fácil decidir fren te a qu al destas du as possibilidades se está” ( FREUD, 1 9 4 0 a/ 1 9 9 3 , p. 2 0 5 ) .

O fundam ental, portanto, não é a existência da cisão, m as a sua localização. Dizer que a clivagem incide sobre o eu é afirm ar a existência de dois grupos psíquicos separados que possuem a m arca do investim ento narcísico. Em cada um deles o sujeito pode reconhecer um a im agem assum ida com o representante privilegiado de si e alcançar a vivência pré-reflexiva do sentim ento de existên-cia. Freud adverte, entretanto:

“ Não interessa o que em preenda o eu em seu afã defensivo, seja desm entir um fragm ento do m undo exterior real e efetivo ou rechaçar um a exigência pulsional

do m undo interior, o resultado nunca é perfeito, sem resíduo, senão que sem pre se seguem duas posturas opostas, das quais tam bém a subjacente, a m ais débil, conduz a ulterioridades psíquicas.” ( FREUD, 1940a / 1993, p. 206)

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FERENCZI

In t ro je ç ã o

Não podem os circunscrever a noção de clivagem em Ferenczi sem definirm os m inim am ente seu conceito de introjeção, na m edida em que a clivagem é o selo de um a introjeção im possível. A noção de introjeção, criada por Ferenczi em 1909, conheceu inúm eros desdobram entos na literatura psicanalítica, in-clusive nas várias teorias freudianas sobre a identificação; devem os, entretanto, sublinhar as diferenças entre elas. Ferenczi, ao contrário de Freud, afirm a que o sujeito introjeta, não com o reação a qualquer tipo de perda objetal, m as porque assim procedendo consegue atenuar, através da diluição, “a tonalidade penosa dessas aspirações ‘livrem ente flutuantes’, insatisfeitas e im possíveis de satisfa-zer” ( Ferenczi 1909/ 1986a, p. 36) . Este m ecanism o é responsável pelos investi-m entos generalizados e excessivos do neurótico e não é uinvesti-m a coinvesti-m pensação, uinvesti-m troféu de con solação con seqü en te à falta e à im possibilidade de satisfação pulsional. A introjeção não diz respeito à posse de objetos, m as à pulsão. Com o reitera Torok ( 1995a, p. 222) :

“É qu e, precisam en te, a aspiração da in trojeção n ão é da ordem da com pen sação, m as da ordem do crescim en to: ela bu sca in trodu zir, alargan doa e en riqu ecen

-do-a, a libido in con scien te, an ôn im a ou recalcada. Além disso, n ão se trata de

‘in trojetar’ o objeto, com o se diz facilm en te, m as, o con ju n to das pulsões e de su as

vicissitu des cu jo objeto é o próprio con texto e m ediador.”

A introjeção é o processo perm anente pelo qual os neuróticos se vinculam aos outros, porque, por seu interm édio, a pulsão torna-se com patível com a vida. Quando um sujeito introjeta é a própria pulsão que deixa de funcionar com o agente externo e se integra ao eu, lem brando, com Mezan ( 1996, p.101) , que eu para Ferenczi, neste m om ento, corresponde a todo o psiquismo. A introjeção nunca poderia ser com pensação, na m edida que a m aneira neurótica de am ar pressupõe a integração do outro a si, a inclusão da m aior parcela possível do m undo dentro do eu ( FERENCZI, 1912/ 1986, p. 61) . O eu não é form ado pelo em bate do isso com o m undo exterior, m as isso e eu são form ados pelo proces-so introjetivo, o que faz com que haja um recobrim ento entre introjeção e aparelho psíquico. É o que afirm a Costa ( 1995, p.13) ao invocar a categoria m ais recente, para a psicanálise, de sujeito: “ Não existe distância lógica ou fenom enológica entre o sujeito e as introjeções. Sujeito é aquilo que introjeta e aquilo que é introjetado.”

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O enriquecim ento egóico proposto por Ferenczi não é o aum ento da densidade hidráulica do reservatório narcísico, m as sim da sua capacidade de se inserir no m undo, de aum entar seu vínculo com m uitos objetos, de expandir os m ais variados laços de dependência com os outros. Um a chave para com preender com o é possível tal efeito encontram os na com paração entre introjeção e lin-guagem . Segundo Pinheiro ( 1995b, p. 47) , Ferenczi afirm a que o resultado do processo introjetivo é o povoam ento do universo psíquico por representações do objeto, que quando associadas produzem a fantasia. É evidente que a con-cepção de linguagem de Ferenczi é datada, baseada na teoria representacional.2 Aqui, entretanto, ele nos brinda com um design bastante avançado, se pensarm os nos padrões de 1909. Vejam os: a introjeção é um m ecanism o lingüístico que produz linguagem . Fornecer tal descrição da origem do aparato psíquico — m esm o que o suporte de todo o processo seja a pulsão — constituiu-se em grande inovação. Desse m odo, o alargam ento do eu traduz-se em sua capacida-de capacida-de fom entar vínculos lingüísticos, os quais visam à produção capacida-de sentido. Sentido, para Ferenczi, é transform ar o estranho em fam iliar, o m undo exterior em lugar habitável, em sum a, um processo m arcado pela onipotência e pela atividade, pelo desejo de expansão. Isto faz com que Pinheiro defina a introjeção com o introjeção de sentido ( Pinheiro 1995b, p. 48) . É exatam ente o funcionam ento holístico da linguagem o que nos faz com preender a gulodice do ego de introjeção. O sentido só é dado por referência aos outros elem entos lingüísticos, e sua produção exige sem pre jogos de linguagem m ais sofisticados e com plexos, com m aiores possibilidades de inter-relações entre seus constituintes.

O excesso d e investim en to característico d este p ro cesso o r igin ar ia o recalcam ento das pulsões introjetadas e forneceria a conform ação sintom ática própria das neuroses. Neste prim eiro m om ento, Ferenczi definiu apenas um a outra configuração distinta da neurose, que não seria baseada no m odelo da introjeção: a paranóia e seu m ecanism o projetivo. O paranóico expulsaria para o exterior inclinações antes referidas a si e se com portaria com o objeto deste excessivo interesse alheio. A inexistência de introjeção pode, todavia, tom ar form as m ais sutis e m enos ruidosas. No final de sua obra, Ferenczi concebeu, a partir de sua clínica e de sua relação transferencial com Freud, um tipo de im possibilidade introjetiva aparentem ente paradoxal, que tom a a form a

con-2Grosso m odo, podem os definir a teoria representacional com o aquela que deriva representações

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trária à expulsão projetiva: a incorporação violenta da palavra do outro. Com ela a noção de clivagem com eça a se desenhar.

A te o ri a d o tra u m a

Escutando vários pacientes que não m elhoravam com dispositivos clínicos tra-dicionais, Ferenczi supôs que a situação analítica estivesse im plicada nestes resultados terapêuticos, através do que ele denom inou de hipocrisia da figura do

analista. Hipocrisia esta que se colava catastroficam ente à razão pela qual o pa-ciente procurava ajuda. O analista estaria reproduzindo a m esm a cena que tor-nava estas pessoas tão frágeis e incapazes de reação frente à onipotência do outro. Para descrever este tipo de relação transferencial, Ferenczi lançou m ão de um a vinheta bastante sim ples, a qual, infelizm ente, tornou-se m ais conheci-da que suas outras form ulações derivaconheci-das e fez com que sua teoria do traum a parecesse um a retom ada ingênua dos capítulos iniciais da psicanálise. De for-m a resufor-m ida, ufor-m adulto seduz ufor-m a criança. O ato sexual é sentido pela criança com o desprazeroso, porém ela o percebe dentro da linguagem da ternura e do universo lúdico que é o seu, ao contrário do adulto, que no prim eiro m om ento realizou o ato em função da linguagem da paixão.3 Isto ocorreu — é im portan-te sublinhar porque abrange parportan-te central em m inha argum entação — em fun-ção do adulto não ter reconhecido as necessidades da criança devido à cegueira m om entânea produzida por sua excitação. O adulto da vinheta clínica, ao se restabelecer de seu estado apaixonado, reage com culpa ao ocorrido e afirm a para a criança que nada se passou. Se parássem os neste ponto, teríam os um a situação extrem am ente dolorosa, m as não traum ática. Ocorre que a criança, incapaz de renunciar tão radicalm ente às suas im pressões do evento, relata-o a um terceiro. Este, atordoado com o que ouviu, atribui as palavras da criança a fantasias infantis e produz um a segunda negação, esta sim traum ática. O fator traum ático, portanto, não é a linguagem da paixão, m as a negação de sua exis-tência, a culpa diante da pulsão, a necessidade de torná-la um segredo. A situa-ção analítica pode ser traum ática se o analista tom ar parte na cena exatam ente com o este terceiro que nega o ocorrido.

3 A linguagem da ternura é descrita por Ferenczi com o aquela preenchida por fantasias lúdicas,

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Ao recontar este pequeno m ito clínico, pretendo m anter os elem entos que m e parecem centrais da teoria da traum atogênese e substituir aqueles pouco aptos a participarem de um a m etapsicologia desta configuração subjetiva da qual procuro m e aproxim ar. Produzirei um a pequena torção argum entativa, pois não definirei com o traum atogênica a linguagem da paixão, m as sim a linguagem da indiferença. A preponderância da teoria sexual na psicanálise de sua época fez com que Ferenczi acentuasse a relativa independência entre dois m odos de funcionam ento da pulsão: a form a excitada da paixão sexual própria do univer-so adulto e outro tipo de m óvel infantil denom inado de ternura. O escandalouniver-so é que, ao contrário de Freud, Ferenczi não fez da ternura um a form a decantada da excitação passional e afirm ou que a prim eira era m ais especificam ente in-fantil. Assim , foi nesta tensão entre paixão do adulto e ternura da criança que ele construiu sua criança traum atizada. O problem a é que ressaltando a confu-são de lín gu as n ão podem o s en trever o s elem en to s q u e p o ssib ilitaram a clivagem . Retornando à vin heta, não são os atos do adulto apaixonado que efe-tivaram as conseqüências psicológicas próprias ao traum a. Este só ocorreu por-que não existiram instâncias de m ediação eficazes entre os dois jogos de lingua-gem . O elem ento que não cum pre esta função é o terceiro, a quem a criança relata o ocorrido e que produz o ato do desm entido.

O em pobrecim ento do eu que se segue ao traum a é de ordem diversa do estreitam ento subjetivo próprio às psicoses esquizofrênicas. O m ecanism o que vem conferir singularidade a este tipo de im possibilidade introjetiva é o que Ferenczi denom ina de identificação com o agressor. Após o sentim ento de irrealidade gerado pelo desm entido e as conseqüentes sensações de desconforto e m edo, agrega-se um tipo particular de subm issão, que faz o adulto desaparecer da realidade externa para assum ir todo o espaço de reconhecim ento de si da criança. O adulto deixa de ser um outro. Esta identificação particular, que pode ser correlacionada com a identificação narcísica de Freud, im pede que a criança construa um universo subjetivo pautado na percepção de que os investim entos que dirige ao m undo são seus.

Para prosseguirm os, devem os lem brar que o adulto/ agressor de Ferenczi não é um perverso. Na m aior parte das vezes o que se segue ao suposto ato sexual com a criança é um sentim ento de culpa que reforça o silêncio em relação à cena incom preensível para o infante. Com o o terceiro m antém a criança no lugar da m entira e do engano, o único signo lingüístico capaz de abrigar este ser perplexo é a culpa do adulto. Por não dispor de palavras para significar a culpa, a criança contorna-a com seu silêncio e incorpora absolu-tam ente o jogo de linguagem do adulto. Por outro lado a culpa é o único vestígio do ato. A identificação com o agressor é, portanto, incorporação violenta

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que o que está em jogo é a significação do ocorrido. Se a criança só encontra a culpa com o cam po lingüístico no qual pode se m over, isto se deve ao fato de não lhe ter sido disponibilizado outro vocabulário capaz de m anter sua integri-dade subjetiva.

“Considerado de um outro ponto de vista, o da indestrutível pulsão de autocon-servação, o m esm o processo deveria ser descrito desta m aneira: quando se abando-nou qualquer esperança de ajuda por parte de um a terceira pessoa, e sente-se as

próprias forças de autodefesa totalm ente esgotadas, nada m ais resta senão esperar pela clem ência do agressor. Se m e subm eto tão com pletam ente à vontade dele que deixo de existir, se, portanto, não m e oponho a ele, talvez m e conceda salvar a própria vida...” ( FERENCZI 1990, p. 143)

O terceiro não foi capaz de reconhecer a verdade que a criança expressa, de dar m enos im portância ao fato que ela relata do que ao sentim ento de perple-xidade que ela dem onstra. A fórm ula de Ferenczi é m ais abrangente do que parece à prim eira vista. Podem os retirar toda a cena de violência sexual do seu enunciado, própria ao im aginário de sua época, e ainda assim m antem os seus constituintes. Não é necessário suporm os um a criança abusada sexualm ente para term os acesso às dificuldades que o am biente lhe proporcionará. Quando a onipotência introjetiva não encontra qualquer elem ento no m undo que a sustenta — neste caso o reconhecim ento por parte de um terceiro — ocorre um curto-circuito na construção do sentido. Quando o desm entido atinge um a área onde a afirm ação de si seja prioritária, neste caso a verdade das próprias sensa-ções, o que é desm entido é o próprio sujeito.

Para que o desm entido seja perform ativo e o traum a se efetive não é neces-sário que este terceiro em ita sentenças específicas a respeito da criança. Basta que não a encare com o um a pessoa com necessidades próprias. A ausência de reconhecim ento característica do traum a não é um problem a sensoperceptivo. Diante dos obstáculos típicos da vida, o infans escuta precocem ente que ele deve se adequar ao m undo tal qual ele é, que nada pode fazer para transform á-lo, que o único m odo de existir é na quietude, que deve aceitar prontam ente aquilo que lhe é oferecido. O traum atizado se agarra à idéia de que tudo que lhe ocorre é fruto de um destino que nada quer e que precisa utilizá-lo com o intérprete para provar o seu poder.

A c l i v a g e m p ó s - tra u m á ti c a

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A clivagem dem onstra que não houve m ediação entre dois m odos diferenciados de uso da linguagem , que a descontinuidade foi tão extensa que não perm ite que os seus constituintes sejam percebidos com o integrados im aginariam ente num a m esm a unidade narcísica. Devem os exam inar m ais detalhadam ente este m odo de funcionam ento. No “Diário clínico” ( FERENCZI, 1990) , nosso autor fornece um a definição abrangente do traum a:

“‘Com oção’, reação a um a excitação externa ou interna num m odo m ais autoplástico

( que m odifica o eu) do que aloplástico ( que m odifica a excitação) . Essa neoform ação do eu é im possível sem um a prévia destruição parcial ou total, ou sem dissolução do eu precedente. Um novo Ego não pode ser form ado a partir do ego precedente,

m as a partir de fragmentos, produtos m ais ou m enos elem entares de decom posição

deste últim o. ( Explosão, pulverização, atom ização.) ” ( FERENCZI, 1990, p. 227)

Retem os desta definição que a atividade egóica se m antém após o evento traum ático, em bora à custa de um a neoform ação possibilitada por fragm entos discursivos que pertenciam ao eu precedente ao traum a. Este aspecto diferencia o traum atizado do esquizofrênico. Ternura e paixão perm anecerão isoladas na vida psíquica do sujeito, com poucas m ediações capazes de constituir um a transição entre estes dois universos de interesse. Ferenczi, entretanto, aponta para um a conseqüência m ais radical. Os fragm entos não são pedaços intocados da decom posição egóica, são novos arranjos lingüísticos inventados após a des-truição do eu. Isto significa que tanto a linguagem da paixão quanto a da ternu-ra não podem ser reconhecidas no discurso destes sujeitos. Elas apenas tom am parte, enquanto m óveis privilegiados, na construção de um a nova subjetivida-de, baseada em novas regras sem ânticas. Para enunciá-las devem os prim eira-m ente circunscrever quais são as suas vertentes. Ao contrário de Freud, que form ulou a clivagem com o a form ação de fragm entos independentes que não se reconheciam e nem se influenciavam , Ferenczi sugere um m ecanism o em que os fragm entos, apesar de não se reconhecerem , entram em conflito e pro-duzem sintom as. Ao ressaltar a confusão de línguas, ele indica que os dois fragm entos que se estabilizam são a linguagem sufocada da ternura da criança e a culpabilidade da paixão sexual do adulto. Não encontrando outro term o para indicar o destino específico destas representações, Ferenczi utiliza a pala-vra “recalque” para dem onstrar a presença de conflito. Curiosam ente, não são atributos, crenças ou desejos referidos ao eu que são recalcados, m as sim a própria instância:

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torna-se com o que fotoquimicamente m odelável — e, de fato, ele é sem pre m odelado — pela

excitação exterior. Em lugar de me afirm ar, é o m undo exterior ( um a vontade

estra-nha) que se afirm a às m inhas custas, que se im põe a m im e recalca o Ego. ( Será assim a form a original de recalcam ento?) ” ( FERENCZI, 1990, p. 150)

A linguagem da ternura, aqui tom ada com o sendo o eu da criança, é recal-cada pela linguagem do adulto. Com o visto antes, o elem ento recalcante, neste caso, não pode ser definido com o supereu ou ideal de eu. Falta exatam ente a sua capacidade de ser reconhecido com o intim am ente ligado à form ação do sujeito e, portanto, ao dom ínio de si. O recalque é, desta m aneira, um recalque

exterior. O que torna os traum atizados diferentes dos paranóicos é o sucesso, entretanto, de um a segunda interiorização. Este sucesso é conferido pela m anu-tenção de conjuntos inteiros de enunciados, alterando-se apenas os signos que indicam a posição do sujeito. Recalcar o ego é retirar dos enunciados subjetivos privilegiados a correlação entre palavras com o m e, mim, minha, eu, etc., e todo um conjunto lingüístico definido pela nossa cultura com o referido à esfera da ex-periência privada, ao m undo das sensações im ediatas e sentim entos, ao cam po de exercício da autonom ia individual.

O re fú g i o n a fi g u ra d o o b s e rv a d o r

Um a das conseqüências m ais notáveis do traum a é a dissolução das correlações anteriores entre o eu e o que podem os denom inar de vida sentim ental:

“ A pessoa divide-se num ser psíquico de puro saber que observa os eventos a

partir de fora, e num corpo totalm ente insensível. Na m edida em que o ser psíqui-co ainda é acessível aos sentim entos, incide todo o seu interesse no únipsíqui-co senti-m ento que subsiste de todo o processo, isto é, o que o agressor sente.” ( FERENCZI, 1990, p. 142)

Sublinho, consubstanciado pela citação acim a, que os traum atizados não são pessoas frias e insensíveis. Apenas aponto que os sentim entos que dão sen-tido à existência e ao traum a deixam de ser referidos ao eu, e passam a integrar outra corrente. A conseqüência im ediata é a estranheza radical que eles experi-m entaexperi-m quando percebeexperi-m que alguns sentiexperi-m entos e sensações lhe dizeexperi-m res-peito. O refúgio na atividade da observação e no discurso da terceira pessoa4 faz

4 Utilizo aqui a assim etria proposta por Wittgenstein entre o discurso da prim eira pessoa e o

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com que eles se identifiquem a um grande olho im anente apenas à sua própria atividade de olhar. Eles jam ais podem ser observados, na m edida em que a criança terna sufocada que foram tornou-se radicalm ente um outro, passível do olhar apenas por essa característica de identificação com o olhar, e não que o observado ou olhado. Olhar para o que outrora fora seu eu é olhar para o outro, esta é a extensa descontinuidade produzida pela clivagem .

O jogo de linguagem do observador traum atizado apresenta ainda outra peculiaridade. Qualquer correlação entre observador e observado deve ser si-lenciada. Isto só ocorre se o olho do observador for de tal form a onipotente a pon to de retirar do discu rso do observado qu alqu er positividade sen sível. O sofrim ento do observado é apenas um jogo vazio de palavras sem referentes, que pode ser elim inado pela utilização correta de palavras pelo observador. A gram ática universal e a sem ântica derradeira livrariam o sujeito de suas m a-zelas e o fariam ser vitorioso diante do traum a. A clivagem é o testemunho de um projeto paradoxal. Por um lado, priva-se o sujeito de seus referentes habituais, por outro, criam -se novos referentes form ados, aparentem ente, frisam os, por palavras sem referentes. Isto porque a única m aneira de dividir observador e observado é assum ir que o sujeito está todo contido no olhar do observador e que este é som ente, eternam ente, observador. Nada nele pode ser observado e, portanto, relativizado. A ele devo m e subm eter de m odo radical, pois é ele quem enuncia m inhas verdades inquestionáveis e por ele devo renunciar a m im m esm o. Quando disse que a linguagem da ternura não pode m ais ser reconhecida nestes sujeitos, reitero apenas que a continuidade entre eu e ternura foi rom pi-da de m odo violento. Não encontram os, na clínica cotidiana, sujeitos com esta configuração subjetiva que expressem qualquer sentim ento terno em relação a si. Um fato m arcante, todavia, que pude perceber, é a disposição que eles apre-sentam para a solidariedade e o cuidado ao outro. Salvo quando im ersas em episódios depressivos severos, estas pessoas são capazes de atos altruístas

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m ente concebíveis. O desam paro do outro as toca com um a intensidade que m uitos de nós perderam ao longo da vida. Tudo que elas não podem sentir em relação a si são deslocadas para o outro em sofrim ento. Esta form a particular de expressão da ternura não sucum biu ao m odo desafetivizado próprio ao funcio-nam ento do observador. A clivagem a atinge apenas quanto a seu alvo. A sobre-vivência, para o exterior, da ternura é, por vezes, um a via clínica que deve ser explorada. Seguirem os agora o retorno do clivado que se expressa em sintom a. Se levarm os em conta as proposições de Ferenczi, o que insiste em retornar é o próprio eu, clivado pela culpa do adulto.

A c u l p a d e s e r

Devem os percorrer o cam inho traçado pela culpa. Quando esta palavra foi in-corporada violentam ente pela criança com o lhe dizendo respeito, m uito pou-cos referentes estavam a ela associados. Podem os dizer que a culpa é um signo sem qualquer sentido no jogo de linguagem da criança, que instiga, entretanto, a que a gram ática da criança absorva o novo elem ento, o que só pode ser feito se ela inventar novos jogos de linguagem ou rearranjar substancialm ente aque-les já existentes. Por que a culpa não tem sentido para a criança?

Exam inem os rapidam ente a gênese da culpabilidade proposta por Freud. Em bora ele tenha concebido um universo rudim entar da culpa ( ver BALADIER, 1996) em term os narcísicos, organizado sobre a fórm ula de angústia frente à perda do am or dos pais, os principais elem entos que dão consistência à teoria freudiana da culpa são referenciados ao surgim ento do supereu, sob a prim azia do com plexo de Édipo. O duplo crim e edípico — incesto e parricídio — é o pr in cipal m óvel para a com iseração. É a con figu ração estável de u m a in s-tân cia in teriorizada, h erdeira do com plexo de Édipo, qu e torn a a cu lpa u m a das form as principais de reação frente aos desejos interditados pela lei paterna. A culpa é ainda um a expressão da tensão entre eu e supereu, instância esta que se form a sob o jugo da pulsão de m orte. Não é difícil perceber que o jogo de linguagem da culpa da paixão sexual não pode ser introjetado pela criança em tenra idade. Ferenczi não vê qualquer evidência de que os desejos ligados ao incesto e parricídio presidam esta etapa da vida. A linguagem lúdica e m im ética da criança não correlaciona tom ar o lugar da m ãe ou do pai com travar para com o outro genitor com ércio sexual. Ser o outro é sim plesm ente condição para a vida, é um a m aneira de construir a própria identidade. O desejo de ser, com o podem os denom inar a linguagem da ternura, é, além disso, prim ário, ou seja, não é condicionado pelo desejo sexual em relação a um objeto específico.5

5 Para um a crítica acerca da universalidade da gênese sexual do sujeito em psicanálise, ver Costa

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Farei agora um pequeno desdobram ento. Com o encontram os entre os sujei-tos traum atizados todas as características discursivas da culpa de m odo, inclu-sive, bastante sofisticado, podem os supor que este elem ento encontra neles

res-sonância gram atical. Se todo o exposto antes m e levou a rejeitar a introjeção da culpa passional com o heurística da clivagem , estam os em condições de propor a correlação da noção de culpa com outro universo sem ântico. O elem ento im -possível de ser introjetado, com o notado, é a culpa edípica do adulto. A criança não possui vocabulário para correlacionar a linguagem da m ím esis com o crim e da sexualidade, entretanto, ela é capaz de assum ir todos os outros aspectos da culpa, tais com o a com iseração, a im putação com pulsiva de responsabilidade a si, a percepção de ter com etido um ato condenável, dentro da sua form a de usar a linguagem . Se caracterizarm os a ternura com o um a m odalidade de expressão do desejo relativam ente independente, podem os sugerir que no traum atizado a culpa se dirija em inentem ente a desejos ternos. Se a culpa, pelo m ecanism o de identificação com o agressor, ocupa um alto posto na hierarquia m oral do sujeito, sendo im possível m anter-se neutro diante dela, o único desejo reconhe-cido pela criança com o capaz de ser im putado com o seu m óvel é o desejo m im ético de ser.6 Esta é a m aneira pela qual a culpa passional do adulto é degradada no universo psíquico da criança tornando-se culpa por ser. Percebo algum a afinidade entre esta m odalidade paradoxal de culpa e a culpa narcísica, definida por Freud com o angústia diante da perda do am or parental. É evidente que isto deve ser ratificado pelo terceiro que, ao produzir o desm entido fazendo a criança duvidar de seus próprios sentidos, joga-a nos braços da m ãe de todos os dra-m as. O apego que a criança adquire pela nova posição advédra-m do fato de que foi através da culpa de ser que ela pôde se separar paradoxalm ente do outro, que ela pôde assum ir sua única identidade possível, que ela pôde reconhecer a presença de um desejo a ela dirigido.

Co n s i d e ra ç õ e s fi n a i s . De s e r o b s e rv a d o r a s e r p e rc e b i d o

A culpa de ser é geralm ente voraz a ponto de restringir substancialm ente a sensação de existência do sujeito. O único universo pragm ático relativam ente livre desta m odalidade de culpa é aquele definido pelo im perativo ser observador. Ser observador é condição de vida e não se confunde com ocupar o papel de narrador. Entre os neuróticos, quando um discurso diz respeito a si, o sujeito pode ser expresso tanto pela figura do agente na prim eira pessoa quanto pela figura do narrador na terceira pessoa. É exatam ente deste jogo entre essas duas posições que o processo analítico se serve para relativizar o lugar do falante, para fazê-lo ter m enos apego a seus sintom as. Isto só é possível porque há um

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m ínim o de continuidade entre aquele que sente e age e aquele que descreve o que sentiu e com o agiu. Há continuidade, m as não identidade. Quando descre-vem os nossas ações não estam os agindo no m esm o m om ento da descrição. Existe um a alteridade radical entre prim eira e terceira pessoas, porém quando o discurso diz respeito ao dom ínio de si, há um a solidariedade entre elas que perm ite a sensação pré-reflexiva de que nos m antem os os m esm os quando falam os. Descrever a si, não pode ser o m esm o que descrever as células da epiderm e de um urso polar, salvo raríssim as exceções. Na psicanálise, conhece-m os instâncias ou registros que efetivaconhece-m esta continuidade, seja ela a unidade narcísica para Freud, o registro im aginário para Lacan, ou o espaço potencial para Winnicott,7 para citar apenas estes.

Voltan do ao su jeito trau m atizado feren czian o, esta con tinu idade m ín im a foi rom pida de m odo radical, com con seqü en te h ipertrofia do discu rso psi-cológico da terceira pessoa. Tal é a diferença entre o narrador e o obser vador. O o b servad o r ( em função da descontinuidade com o discurso na prim eira pessoa) , ao contrário do narrador, não consegue narrar qualquer fato sobre si, apenas observa o outro. Observar o outro, m esm o que este outro pareça consi-go, é a única ação reconhecida com o sendo sua. Quando o sujeito está obser-vando, ele esta sendo e agindo, entretanto ninguém pode descrever seus atos, m uito m enos ele próprio. O seu repertório pragm ático torna-se, portanto, m ui-to lim itado. É evidente, com o adverte Freud, que a vida im põe em pecilhos po-derosos à realização deste ideal de pura observação. Tudo o que está sob o jugo da clivagem insiste em retornar, e o que retorna, se seguirm os a sugestão de Ferenczi, é o próprio eu, em um am álgam a no qual se sobressai a figura discursiva da prim eira pessoa. A descontinuidade radical da clivagem faz com que o sujei-to não possa suportar esta em ergência, faz com que ele não possa relativizá-la, devendo se subm eter com pletam ente a este intruso inesperado. Na clínica da m elancolia, isto parece ocorrer de m aneira evidente. Nestes casos, o que é exteriorizado é um sentim ento absoluto de desam paro, im potência, eterno so-frim ento em função de um destino desde sem pre desenhado. O sujeito m elan-cólico, sobretudo em situações de crise, parece não reconhecer qualquer outro atributo que não a m iserabilidade de sua vida. A clivagem o im pede de fazê-lo, m as se ela for m inim am ente bem sucedida, esta form a de expressão da prim ei-ra pessoa pode desaparecer paei-ra reaparecer integei-ralm ente no próxim o episódio depressivo.

7 É im portante ressaltar que há diferenças im portantes entre cada um destes conceitos,

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Em bora este artigo não tenha por objetivo discutir nossas possibilidades terapêuticas com estes clientes, não posso deixar, agora, de aludir a um a aposta. Se nós, analistas, nos responsabilizarm os pelo trabalho de observação, se acei-tarm os esta tarefa, ao m enos num prim eiro m om ento, sem m uitas restrições, talvez nossos clientes possam dar, lentam ente, outros passos em novas direções. Se puderm os transform ar as suas dem andas por observação em sintom a analíti-co e não os analíti-colocarm os diante de outras exigências inalcançáveis, quem sabe eles se dêem conta de que há em seus corpos m ovim ento, que eles podem agir e deixar para outrem a tarefa de observar o que fazem . É necessário não se deter neste ponto, na m edida em que em algum m om ento ser observado não pode equivaler a ser percebido. Há um a assim etria entre a posição de observador absoluto do sujeito, com o um sintom a, e a posição relativa de escuta e olhar do analista. O analista pode produzir um a torção na dem anda de observação, to-m ando para si a tarefa de instituir o seu olhar ( e olhar é algo seto-m pre parcial e relativo) desejante com o ponte entre paixão e ternura, palavra e corpo, ação e descrição, em oção e racionalidade. Um sujeito captado pelo olhar do outro talvez possa abrir m ão de se render de m odo incondicional ao grande olho do destino com o qual ele se identifica de m odo narcísico. Infelizm ente, m inha experiência com estas pessoas m e im pede de alim entar qualquer esperança redentora para com eles, m as som ente quem se dedica a este trabalho pode aquilatar o discreto im pacto que ele pode ter em algum as trajetórias. Não foi sem surpresa que escutei de Telm a:

“Eu nunca consegui viver com o todo m undo diz que vive. Vida e não-vida sem pre

teve m uito pouca diferença para m im . Desde criança eu ficava olhando para um a pedra e m e pergu n tan do: qu al é a diferen ça en tre eu e você? Não con segu ia encontrar resposta, porque eu achava que sentia tanto quanto ela, m uito pouco. Hoje, de vez em quando, eu acho que sou diferente da pedra. Em alguns m om

en-tos, às vezes quando venho pra cá, às vezes quando estou com m inha filha, sinto que não preciso sentir qualquer outra coisa, que a m inha voz sai de m im e eu não penso nisso na hora. Quando eu não penso na hora é que eu vejo que sou diferente da pedra. Mas isso é tão raro de acontecer...”

Palavras com o essas têm , certam ente, m uito m ais im portância do que todas aquelas que sou capaz de escrever.

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Julio Sergio Verztm an

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